You are on page 1of 4

A Escola que temos, é a Escola que queremos?

I.
Neste artigo procuro reflectir sobre a escola pública portuguesa na medida em que ela
pode, ou não, ser permeável à influência de movimentos sociais, da mais diversa
índole, bem como, por outro lado, ela pode ser um centro de irradiação de
inquietações sócio-culturais capazes de terem um impacto mobilizador na comunidade
envolvente.
Isso torna premente a análise das condições de funcionamento da escola atendendo
ao actual quadro institucional criado por três referenciais legislativos que as actuais
políticas do Ministério da Educação impuseram à escola: o estatuto da carreira
docente1; o estatuto do aluno2 e o Decreto-Lei que introduz mudanças significativas na
gestão das escolas3. Trata-se de três diplomas legais que se articulam em torno de um
eixo comum: a concatenação destes normativos vai determinar, nos próximos anos, a
forma como a escola se vai relacionar com o meio envolvente, como o Ministério da
Educação, com as Autarquias Locais e, ainda, como ela se vai configurar
internamente.

Do conhecimento da sociedade à sociedade do conhecimento

A escola pública portuguesa, nos últimos trinta e cinco anos, se tomarmos como
marco temporal a revolução dos cravos de Abril de 1974, tem sido sujeita a vagas
sucessivas de reformas curriculares que nunca puderam ser levadas às suas últimas
consequências, nem foram objecto duma avaliação profunda. A par destas reformas a
escola, em pouco mais de três décadas sofreu mudanças estruturais profundas,
aplicadas sem uma preparação prévia, e sucessivamente abortadas plena
implementação de novas medidas, sem que se lhe desse tempo para assimilar essas
mudanças de forma construtiva e evolutiva.
Pode dizer-se que o sector da educação em Portugal vive, desde a refundação do
Estado português como Estado de direito democrático, num permanente estado de
excepção: as leis têm uma vigência demasiado restrita no tempo, às leis fundantes
vão-se acrescentando portarias, despachos, ou simples ordens de serviço, que as
deturpam, ou mesmo contrariam. Neste sentido a litigância nos tribunais cíveis e
administrativos tem aumentado exponencialmente no domínio educativo, o que está
longe de contribuir para uma sedimentação de valores, de práticas e de atitudes
capazes de contribuírem para uma melhoria significativa do ambiente educativo em
Portugal.
Por outro lado, a sociedade portuguesa tem sofrido nestas últimas décadas mudanças
estruturais muito profundas. A seguir à revolução de Abril de 1974, a prioridade dos
governos foi a estabilização da economia e a normalização da vida política, a que se
seguiu, em meados dos anos 80, um período de expansão económica, movido pela
adesão de Portugal à União Europeia, na altura a Comunidade Económica Europeia.
Durante esse período foi implementada uma reforma educativa de largo espectro, sob
a orientação do então ministro da educação Roberto Carneiro, assente numa visão
tecnocrática do saber e da sociedade, em linha com as grandes orientações políticas
do governo chefiado por Aníbal Cavaco Silva: em vez de se colocar como prioridade
estratégica o investimento no conhecimento e na qualificação profissional, levou-se a
cabo um intensíssimo programa de mega-investimentos em infra-estruturas
rodoviárias que absorveu uma parte significativa dos fundos comunitários que atingiam
montantes astronómicos e foram o principal motor da economia portuguesa durante os
três governos liderados por Cavaco silva, um governo minoritário que não chegou ao
fim da legislatura e dois governos assentes nas duas primeiras maiorias absolutas da
democracia portuguesa.

1 Decreto-Lei n.º 15/2007.


2 Lei n.º 3/2008, de 18 de Janeiro.
3 Decreto-Lei n.º 75/2008.
Aplicada num clima de conformismo político propiciado pelas maiorias absolutas (na
altura falava-se em ditadura da maioria), a reforma de Roberto Carneiro foi imposta às
comunidades educativas que, na sua larga maioria, quer por razões ideológicas, quer
por razões corporativas, obstaculizaram a sua implementação, dentro dum quadro de
grande conflitualidade, que levou à substituição periódica dos ministros da educação,
mesmo havendo maioria absoluta4. Houve medidas que foram aplicadas com
deturpações funcionais e estruturais, como é o caso da Área-Escola, pensada como
forma de incentivar a interdisciplinaridade e o trabalho cooperativo entre os
professores da mesma turma, acabou por se transformar num pretexto para realizar
actividades lúdicas ou visitas de estudo, sem grande preparação ou alcance
pedagógico.
Havia uma aposta na dinamização dos conselhos de turma enquanto estruturas
capazes de atenderem às necessidades educativas dos alunos, considerados na sua
individualidade e em articulação com o grupo-turma. Mas essa aposta na dignificação
dos conselhos de turma fracassou porque as escolas estavam estruturadas em torno
dos grupos disciplinares, cujos representantes tinham um peso determinante na
definição da política de gestão da escola, uma vez que, em conjunto, formavam uma
maioria no conselho pedagógico. Assim, os professores integravam os conselhos de
turma orientando-se pelas linhas condutoras decididas pelos seus grupos
disciplinares, resistindo, até por defesa contra os diversos problemas funcionais que
surgiam dentro da escola, resultantes do alargamento da escolaridade obrigatória até
ao 9º ano e da massificação do ensino que foi um dos efeitos mais positivos da
instauração da democracia, mas que obrigou as escolas a adaptarem-se a ela sem
terem os meios materiais e humanos capazes de sustentar uma resposta
pedagogicamente adequada.
Isto porque a par da política do betão e do alcatrão, os investimentos infra-estruturais
na escola foram diminutos e a construção de novas escolas não acompanhou o
crescimento demográfico dos grandes centros urbanos, especialmente nas áreas
suburbanas. E o investimento nos meios humanos assentava na contratação de
professores, sem qualquer orientação prospectiva promotora duma formação
adequada aos novos desafios colocados por uma acelerada mudança de paradigma
ao nível dos contextos culturais, resultante das mudanças tecnológicas que dão forma
à sociedade do conhecimento. Para além dos professores a contratação de outros
profissionais qualificados foi praticamente nula, o que explica a não existência nas
escolas, ou então um grande défice, de técnicos informáticos, de bibliotecários, de
animadores culturais, de profissionais de saúde, de assistentes sociais, de psicólogos,
de professores realmente qualificados no âmbito do ensino especial, etc.
Com o tempo os professores foram ocupando certos nichos criados por essas
carências, adaptando-se a funções muito afastadas da docência, muitas vezes sem
formação adequada e seguindo um espírito voluntarista que, em muitos casos é
louvável, mas, quase sempre, pode ser um obstáculo à implementação dentro da

4 Uma das razões para esta conflitualidade prendia-se com a própria orgânica do
Ministério da Educação: tratava-se dum corpo caótico, acéfalo e disforme, com um
número astronómico de funcionários e de professores nele destacados, alguns dos
seus organismos tinham funções conflituantes e as cadeias decisórias eram muito
burocráticas e desarticuladas. Apesar de se terem extinguido e fundido muitos
serviços, hoje a situação é pior, uma vez que foram introduzidas reformas que
comprometeram ainda mais a unidade orgânica do ministério, isto depois de, na
viragem do milénio, a situação ter melhorado significativamente, se sequência das
medidas introduzidas pelos governos do engenheiro António Guterres. Actualmente
o Ministério da Educação continua a centralizar as tomadas de decisão mais
importantes para o sistema educativo, mas a sua direcção política, corporizada pela
equipa ministerial, está desarticulada em relação ao resto das estruturas do
Ministério, havendo muitas medidas que são comunicadas através da comunicação
social com vista à sua prossecução por parte dos serviços que não têm a uni-los
uma cadeia funcional coerente.
escola de práticas adequadas às exigências que lhe são colocadas pelas
transformações sociais e espistémicas.
Por esta razão, hoje na escola portuguesa fazem-se muitas coisas sem a existência
dum suporte crítico e reflexivo assente em áreas do saber que, mesmo não tendo
ainda direito de cidade dentro da escola, são estruturantes no que diz respeito ao
funcionamento da sociedade. Até saberes que deveriam ter um papel estruturante da
vida da escola, como a Psicologia e a Sociologia, são vistos como corpos alienígenas,
muitas vezes desautorizados e desacreditados em nome duma pedagogia da
acomodação e da reprodução de modelos acriticamente instituídos como inamovíveis:
é frequente, por exemplo, os conselhos de turma ignorarem recomendações de
psicólogos, psiquiatras, e outros profissionais que acompanham os alunos com
necessidades educativas especiais, em nome da pedagogia e da justiça da avaliação,
como se a avaliação dos alunos devesse servir para a normalização das inteligências
e não para a sua estimulação para a criatividade.
Para se ter uma ideia dos anquilosamentos estruturais da escola pública portuguesa,
basta notar-se que a informatização intensiva das escolas é muito tardia, data da
segunda metade da década de 90, e só depois do ano 2000 a ligação das escolas à
internet se tornou prioritária. E mesmo com a melhoria das condições funcionais
trazidas pela informatização, muitas escolas estão muito aquém do esperado no que
respeita à rentabilização das infra-estruturas e dos equipamentos informáticos por falta
de técnicos qualificados, quer na supervisão do hardware, ou das redes, quer na
produção e gestão de conteúdos. Neste contexto os programas lançados pelo actual
governo de disponibilização aos alunos, em condições materialmente sustentáveis
pelas famílias, de computadores portáteis e de ligação à internet, por muito meritórios
que sejam, acabam por significar que, no que se refere à adequação da escola à
sociedade do conhecimento, se está a querer começar o edifício pelo telhado. Primeiro
há que lançar os alicerces, ou seja, estruturar a escola de forma a garantir-lhe os
meios funcionais para poder desempenhar as funções que, progressivamente, lhe têm
sido outorgadas. E isso não pode fazer-se sem uma verdadeira revolução das
mentalidades. E esta só pode acontecer se a escola for, verdadeiramente,
democrática, quer na sua gestão, quer na sua interacção com as comunidades de
base em que está inserida.
Ora, na legislatura que terminou há poucos meses foram implementadas medidas
legislativas que vão no sentido de tornar a escola cada vez menos democrática, não
só por lhe impor uma organização interna hierarquicamente estruturada, sem que os
membros da comunidade escolar, mesmo os professores, possam intervir de forma
actuante e crítica nas tomadas de decisão. O Decreto-Lei nº 75/2008 introduz na
escola a figura do director, rompendo com a tradição democrática de eleição, por toda
a comunidade escolar, duma equipa directiva. Até à entrada em vigor deste Decreto-
Lei os membros dos orgãos internos da escola eram eleitos democraticamente,
mesmo no caso do conselho pedagógico. Este último órgão formado por
representantes da comunidade escolar e com a responsabilidade de orientar as
tomadas de decisão no campo pedagógico e curricular, foi sofrendo progressivas
alterações estruturais que visaram diminuir o peso relativo dos representantes dos
professores, diminuindo o poder de intervenção de cada um dos professores nas
decisões de carácter pedagógico e didáctico. Até meados dos anos 90 os professores
estavam agrupados por grupos disciplinares e cada grupo disciplinar elegia um
representante no conselho pedagógico, posteriormente os grupos disciplinares foram
agrupados em departamentos curriculares e cada departamento elegia um
representante no conselho pedagógico, o que diminuiu drasticamente o número de
representantes directos dos professores no conselho pedagógico, diminuindo,
também, a sensibilidade epistémico-didáctica desse órgão, uma vez que as exigências
e as necessidades específicas de muitas disciplinas passaram a ter pouco eco nesse
órgão, por nele não terem voz os professores responsáveis por essa disciplina, por
falta dum seu representante. E não se trata aqui duma visão corporativa da escola,
mas da necessidade desta ser capaz de dar conta da diversidade de saberes e
orientações culturais que dão sentido
à sociedade da qual a escola faz parte e da qual não se pode desligar, sob pena de
correr o risco de sufocar por emparedamento cultural.
A criação dos departamentos curriculares não obedeceu a um modelo único para
todas as escolas, uma vez que progressivamente se foi sedimentando no discurso
político a necessidade de afirmação da autonomia das escolas. Ora, o que aconteceu
na fase final da anterior legislatura, o governo sob a presidência do cidadão José
Sócrates resolveu obrigar a que todas as escolas seguissem a mesma grelha
funcional, o que levou a uma reorganização dos departamentos curriculares, contra a
cultura de cada uma das escolas, sedimentada em mais de uma década de trabalho
continuado.
Hoje a figura do Director é o centro nevrálgico do funcionamento da Escola, mas não
se trata propriamente duma liderança nascida da dinâmica da própria Escola em
evolução, trata-se dum curto-circuito organizacional que ressuscita muitos fantasmas.
A Escola hoje está mais burocratizada, mais rotineira, mais fechada à inovação e à
livre discussão. E onde se nota mais isto é ao nível dos funcionários a quem foi
aplicada uma avaliação draconiana e indignificante. E note-se que há uma grande
precariedade em termos de vínculo laboral dos funcionários, muitos estão colocados
com contratos de provimento há quase duas décadas, sem direito a uma carreira,
vendo os seus salários congelados no mesmo índice, salários de miséria, diga-se em
abono da verdade. Isto torna abjecta a avaliação a que os funcionários foram sujeitos
pelo governo do cidadão José Sócrates.
É urgente repensar a Escola.
Mas há um obstáculo de monta: a opacidade que rodeia os muros da Escola pública.
Escreve-se muito e fala-se muito da qualidade de ensino, ou da sua falta, pasma-se e
vocifera-se perante as sazonais listas de ordenação das escolas pelos jornais, a partir
dos dados dos exames nacionais, fazem-se comparações entre realidades
incomparáveis, assume-se a existência de um facilitismo que se pretende combater
com um facilitismo ainda maior e mais monstruoso: é fácil ensinar os bons alunos, é
muito fácil chumbar os alunos problemáticos, mandá-los de volta para as barracas,
agora travestidas em bairros sociais que servem para criar em guetos os marginais do
futuro, aqueles mesmos que justificarão a nossa falência enquanto construtores de
sociedade humana, de sociabilidade humana. É fácil, demasiado fácil, ensinar os
marrões a tornarem-se bestas, prontos a entrarem nas fileiras dos que vivem da e
para a miséria de termos cada vez mais recursos cada vez menos distribuídos por
todos.
Esse é o pior dos facilitismos. É muito fácil decretar que só vai para médico quem tem
uma média de 19. O difícil será escolher os candidatos a médicos de forma humana,
procurando indícios vocacionais (a vocação existe, embora talvez não exista um
sujeito transcendente que patriarcalmente vocalize o chamamento para esta ou aquela
via existencial e profissional), seleccionando os candidatos que mostrem qualidades
humanas de excelência para a prática da medicina.
Mas isso fica para posteriores reflexões.
(continua)

You might also like