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JORNADAS PELO ABORTO LEGAL E SEGURO

DEMOCRACIA E DIGNIDADE DAS MULHERES:


PROBLEMAS ÉTICOS E JURÍDICOS DO
PROJETO DE LEI DO ESTATUTO DO NASCITURO DE
AUTORIA DOS DEPUTADOS LUIZ BASSUMA E MIGUEL
MARTINI1

O projeto do Estatuto do Nascituro apresenta problemas


jurídicos elementares. Institucionaliza a violência (artigo
13) ao criar o dever de pensão a um criminoso de violência
sexual (artigo 13); impõe uma moralidade específica e
ignora o Estado Laico e democrático (artigos 2º, 3º e 8º);
além de criar tipos penais abertos (artigos 5º e 12).

Este projeto apresenta, ainda, dois defeitos também


relacionados ao sentido contemporâneo de liberdade e de
igualdade2. Primeiramente, não é considerada a
pluralidade de saberes e de práticas humanas, como o
saber biomédico, a biologia, o direito e a ética. Com isso o
texto consolida um status para o nascituro que expressa
uma única moralidade, ignorando a diversidade moral e
mesmo a ausência de consensos científicos sobre a
definição de nascituro.

1
Considerações feitas pelas Professoras de Direito e Bioética Samantha Buglione
[buglione@antigona.org.br] e Miriam Ventura [venturaadv@easyline.com.br].
2
Liberdade e igualdade são os pilares das democracias contemporâneas. Dentre as
liberdades, a de pensamento e a de crença caracterizam as democracias liberais
nos Estados Constitucionais. A eventual imposição de uma moralidade hegemônica,
ou a não consideração da diversidade de idéias e opiniões, coloca em risco esses
pressupostos fundamentais, aniquilando o sentido de liberdade construído durante
séculos. Pode-se afirmar que qualquer lei que inviabilize o exercício dessas
liberdades contém um vício original de legitimidade. Outro ponto central das
democracias é a igualdade, que, por sua vez, é condição tanto para a realização da
liberdade quanto para a concretização de sociedades justas. A igualdade não
significa ausência de diferenças e deve ser compreendida a partir de duas
dimensões: a igualdade formal - que é aquela que obriga a um mesmo tratamento
diante da lei; e a igualdade substancial, que reconhece a realidade da diferença de
características e a desigualdade de oportunidades. Ao equiparar os direitos do
nascituro aos direitos das mulheres e equiparar nascituros a crianças o projeto
viola, não apenas a liberdade de crença, mas a igualdade.
O status inferior dado às mulheres no âmbito do
Estatuto implica na ausência do reconhecimento de
sua condição contemporânea como sujeitos morais e
de direitos. A proposta de se proteger os seres
humanos não nascidos é legítima, mas, se torna
ilegítima e incompatível com os princípios
fundamentais do Estado Democrático de Direito no
momento em que viola e/ou ignora a igualdade, a
liberdade, e a dignidade das mulheres como seres
humanos. Além disso, e igualmente importante, o
projeto institucionaliza a tortura e impõe um
terrorismo de Estado. Alguns pontos do projeto devem
ser destacados:

1. A proposta de reconhecimento do nascituro como


humano e pessoa, presente nos artigos 2º, 3º e 8º.
ATENÇÃO: O nascituro pode ser considerado humano por
pertencer a um código genético humano. A categoria
pessoa, entretanto, é uma categoria moral. A afirmação de
ser o nascituro pessoa humana só é possível a partir de
determinada concepção moral e de determinada crença. Ao
impor determinada concepção, que não permite ser
compartilhada pelos diversos sujeitos morais e de direitos,
o projeto fere os princípios, direitos e garantias
fundamentais da liberdade de crença e pensamento, e fere
a igualdade dos sujeitos. Na ciência da biologia e na
medicina, o único consenso existente sobre a condição do
feto é que ele é um estágio do desenvolvimento celular, e
que a vida é um processo de auto-produção contínuo e
infinito.

2. A equiparação moral e jurídica de crianças e


nascituros, presente nos artigos 3º e 6º.
ATENÇÃO: Afirmar que o nascituro – ao longo de seu
processo de desenvolvimento - deve ter direitos
reconhecidos no mesmo grau que os direitos de uma
criança ou uma mulher, é ignorar elementos básicos da
personalidade como: a) capacidade de viver a vida, b)
consciência, c) nascimento com vida, d) participação em
uma comunidade política, e) registro de nascimento, entre
outros que diferenciam o pertencimento à categoria pessoa.
Além de criar severas antinomias no sistema jurídico.

3. Em nenhum momento o projeto reconhece os


direitos reprodutivos e sexuais de mulheres e casais.
ATENÇÃO: A comunidade internacional e nacional
contemporânea reconhece como parte dos direitos
reprodutivos, cuja titularidade é dos genitores, o cuidado
com o nascituro. Um direito que possui especial e diferente
consideração em relação à mulher, pois os riscos e custos
da procriação se dão no corpo feminino. Inverter essa
lógica e não reconhecer a complexidade da relação entre a
mulher, como pessoa humana, e o feto ou nascituro, como
vida humana em desenvolvimento, é esvaziar os direitos
reprodutivos e subordinar o direito de mulheres e homens a
um ser humano não nascido. Além disso, o projeto viola a
dignidade humana das mulheres por transformá-las em
meio, no contexto do processo reprodutivo, ignorando sua
autonomia e vontade.

4. O projeto institucionaliza a tortura ao exigir que


gestações decorrentes de violência sexual sejam
levadas a cabo no artigo 13.
ATENÇÃO: É flagrante a violação aos direitos sexuais
expressa no art. 13 do projeto de lei que prevê que o
nascituro concebido por um ato de violência terá prioridade
de acesso a saúde e adoção e direito a pensão alimentícia
até completar 18 anos. A nova forma de responsabilização
do Estado proposta legitima e institucionaliza a tortura ao
obrigar a mulher a levar a cabo uma gravidez decorrente
de um ato de violência. O Estado torna-se infrator, no
momento que impõe uma política legal que atribui à vítima
o ônus da gravidez e da maternidade, que representa a
perpetuação corporificada da violência, e a tolerância com
um ato de violência considerado crime hediondo em nosso
ordenamento. A isso se pode chamar violência institucional
e grave violação aos direitos humanos, pois o Estado
chancela as seqüelas e a permanência do ato criminoso da
violência sexual, transformando-se, portanto, em um
Estado totalitário.

Em síntese, o projeto de Estatuto do Nascituro:


◘ Viola a liberdade de crença e pensamento e o
princípio da igualdade;
◘ Viola a dignidade das mulheres transformando-as
em mero meio para garantir direitos de um terceiro
em potencial;
◘ Viola preceitos de teoria do direito e princípios de
direito penal ao criar tipos penais abertos (art. 5º);
◘ Ao impedir o aborto decorrente de violência sexual
o Estado chancela a violência e torna-se criminoso,
tal qual nas práticas de Estados totalitários;
◘ Ao criar benefícios diferenciados para aqueles
nascidos em decorrência de violência sexual
praticada contra a genitora, institucionaliza a tortura
e impõe o terrorismo de Estado contra a mulher.
Além disso, cria um novo tipo de responsabilidade
estatal que decorrerá de crimes que ocorrem por
omissão de segurança do Estado.
◘ A proteção ao nascituro não pode se dar ao custo
dos direitos e da dignidade das mulheres; ou
tampouco com a mesma intensidade com que se
tutela o direito de pessoas humanas já nascidas.

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