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ARQUIVAMENTO IMPLÍCITO E ARQUIVAMENTO INDIRETO DO

INQUÉRITO POLICIAL

Rogério Roberto Gonçalves de Abreu1

Segundo significativa parcela da doutrina, haveria pedido de


arquivamento implícito do inquérito policial na hipótese de o representante do
Ministério Público, sem requerer explicitamente o arquivamento do inquérito em
relação a uma ou mais pessoas indiciadas ou fatos criminosos, praticar ato
incompatível com a resolução de denunciar. É o que ocorreria nos casos em
que o promotor de justiça não denuncia todos os indiciados ou fatos delitivos,
silenciando em relação a um ou mais deles.

De forma similar, haveria o chamado pedido de arquivamento indireto do


inquérito policial nos casos em que o representante do Ministério Público,
considerando competente juízo diverso daquele perante o qual haveria de
oferecer a denúncia, requer ao juiz para pronunciar-se incompetente e remeter
os autos ao juízo competente.

O problema ocorre quando o juiz discorda do MP sobre essa


incompetência: considerando-se competente, manterá os autos no juízo a que
foram distribuídos. Diante dessa divergência, qual deverá ser a providência do
magistrado? Nos casos em que o juiz indefere um requerimento do MP,
normalmente determina a intimação da decisão e a devolução dos autos ao
promotor para providências a seu cargo. O promotor pode, inclusive, recorrer
da decisão. Por outro lado, se o juiz entender que nesses casos há pedido
indireto de arquivamento, sua providência deveria ser, por analogia, a do art.

1
Mestre em direito econômico pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-graduado
em direito fiscal e tributário pela Universidade Cândido Mendes (UCAM/RJ). Juiz federal
substituto na Paraíba. Professor de direito penal do Centro Universitário de João Pessoa
(UNIPÊ).
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28 do CPP (ou art. 62 da LC n. 75), com a remessa dos autos à segunda


instância do MP.

Antes de resolver o problema, é preciso esclarecer um ponto: não existe


arquivamento implícito nem arquivamento indireto de inquérito policial. Só
quem pode determinar arquivamento de inquérito é a autoridade judicial
competente e, mesmo assim, em decisão escrita e fundamentada. O MP não
arquiva inquérito, seja explícita ou implicitamente; ele requer o arquivamento.
Desse modo, tratando-se de ato do MP, pode-se teoricamente falar em pedido
implícito ou pedido indireto de arquivamento.

O Ministério Público recebeu da Constituição de 1988 a prerrogativa de


promover privativamente a ação penal pública. A única exceção é a ação penal
privada subsidiária (art. 5º, LIX, da CF e art. 29 do CPP). Da mesma forma,
para o independente exercício de suas funções, os membros do MP foram
dotados de prerrogativas institucionais, como a independência funcional. Em
razão dela, o membro do MP não pode ser compelido a agir contra sua
consciência. Daí porque, requerendo expressamente o arquivamento de
inquérito policial, não poderá ser compelido a oferecer denúncia.

Como dominus litis, o representante do MP é a autoridade constitucional


com atribuição para decidir sobre a promoção da ação penal. Agindo no prazo
legal, pode o promotor, com liberdade e independência, resolver se oferece
denúncia, se requer diligências ou mesmo se pede o arquivamento do
inquérito. Divergindo do pedido de arquivamento, é tarefa do juiz remeter os
autos ao procurador-geral de justiça (MP estadual) ou à Câmara de Revisão do
MPF (MP federal). Havendo reiteração pelo órgão superior do MP, deve o juiz
proceder ao arquivamento.

A providência do art. 28 do CPP representa exemplo de função anômala


do juiz no exercício da jurisdição penal. Como é dotado de independência
funcional, o representante do MP não pode ser obrigado a denunciar se pediu
arquivamento dos autos. Na mesma linha, se o pedido é corroborado pelo
órgão superior do MP, ninguém mais poderá dar início à ação penal (a ação
penal subsidiária só tem lugar em caso de inércia do MP). Se a instância
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superior do Ministério Público discorda do promotor, deve respeitar a


independência funcional dele, oferecendo pessoalmente a denúncia ou
designando outro promotor para, sob delegação, oferecê-la. Daí a função
anômala do juiz, de acordo com o art. 28 do CPP: fiscalizar a atividade do
promotor, evitando arbitrariedades.

A questão aqui é saber se a prerrogativa da independência funcional se


aplica ao caso em que o promotor de justiça não requer o arquivamento dos
autos, não se mantém inerte no prazo legal mas, ainda assim, não oferece
denúncia contra todos os indiciados ou por todos os fatos. Como acima dito, há
pelo menos duas situações em que isso ocorre com freqüência: a) o MP omite,
na denúncia, indiciados ou fatos investigados sem fundamentar a omissão e
sem se reservar a oportunidade de aditar a denúncia (pedido implícito de
arquivamento); b) alegando a incompetência do juízo perante o qual teria de
oferecer a denúncia, o MP requer ao juiz que remeta os autos do inquérito
policial ao juízo competente ou que suscite o conflito de competência (pedido
indireto de arquivamento).

No primeiro caso, relevante parcela da doutrina sustenta que se o juiz


receber a denúncia da forma como está – sem o pedido de instauração de
ação penal contra todos os indiciados e sem requerimento cumulativo de
diligências, desmembramento ou mesmo reserva para futura denúncia – terá
arquivado implicitamente o inquérito policial com relação aos sujeitos excluídos.

Essa é a doutrina de Paulo Rangel, para quem “o arquivamento implícito


ocorre sempre que há inércia do promotor de justiça e do juiz, que não exerceu
a fiscalização sobre o princípio da obrigatoriedade da ação penal” (RANGEL,
Paulo. Direito processual penal. 12. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007. p. 186).

Tal raciocínio peca por não levar em conta que, por expressa disposição
constitucional, toda decisão judicial deve ser fundamentada. Não se trata de
simples garantia processual dos indiciados e denunciados, de modo que possa
ser “flexibilizada” se em benefício deles. Trata-se de fundamento de validade e
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legitimidade da função jurisdicional. Não pode, portanto, ser afastada em


hipótese alguma, mesmo em benefício do réu.

Negando a existência de arquivamento implícito com esse fundamento,


diz Júlio Fabbrini Mirabete que, “com a vigência da Constituição de 1988, que
determina sejam fundamentadas as decisões judiciais (art. 93, IX e X), afasta-
se a possibilidade do reconhecimento de um arquivamento implícito, ou seja,
sem requerimento do Ministério Público e sem decisão expressa e
fundamentada da autoridade judiciária competente” (MIRABETE, Júlio Fabbrini.
Processo penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 82).

Se toda decisão judicial tem que ser fundamentada e o arquivamento de


inquérito policial só pode ser feito por decisão judicial, não é possível aceitar
que o juiz arquive autos de inquérito quando recebe denúncia lacunosa
oferecida pelo promotor de justiça. O arquivamento deve ser produto
consciente de atividade cognitiva e volitiva do magistrado, cristalizada no
instrumento constitucional de que dispõe: a decisão judicial necessariamente
fundamentada.

Nos casos em que o promotor de justiça se “esquece” de denunciar um


ou mais indiciados, deve o juiz devolver os autos ao MP para que se pronuncie
sobre os indiciados excluídos. Não são apenas as manifestações do poder
judiciário que devem ser fundamentadas. Também as do Ministério Público
dependem de expressa fundamentação. A devolução dos autos pelo juiz ao
membro do MP visa a provocar essa manifestação, a partir de que poderá
resolver se envia ou não os autos ao procurador-geral de justiça, aplicando o
art. 28 do CPP. Nesse caso, contudo, haverá pedido expresso de
arquivamento.

Assim pensa Eugênio Pacelli de Oliveira, afirmando que, omitindo-se o


promotor de justiça em incluir na denúncia todos os indiciados ou todos os
fatos investigados no inquérito policial, “cumpre ao magistrado renovar a vista
ao órgão do parquet para manifestação expressa sobre a exclusão, não se
admitindo arquivamento implícito.” (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de
5

processo penal. 3. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.
40).

Na mesma linha, sustentando não existir, tecnicamente, pedido de


arquivamento implícito, afirma Guilherme de Souza Nucci que “cabe ao
representante do Ministério Público oferecer as razões suficientes para
sustentar o seu pedido de arquivamento. Sem elas, devem os autos retornar ao
promotor, a mando do juiz, para que haja a regularização. O mesmo
procedimento deve ser adotado, quando há vários indiciados e o órgão
acusatório oferece denúncia contra alguns, silenciando no tocante aos outros”
(NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 3.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 160).

Finalmente, o que acontece se também o juiz se “esquece” de


determinar o retorno dos autos ao MP para se manifestar sobre os indiciados
não incluídos na denúncia? A resposta: nada. Enquanto não extinta a
punibilidade, o promotor de justiça continua com a prerrogativa de aditar a
denúncia oferecida ou oferecer nova denúncia contra os indiciados excluídos.
Da mesma forma, os legitimados à promoção da ação penal privada subsidiária
(arts. 30 e 31 do CPP) poderão oferecer queixa-crime contra os excluídos no
prazo decadencial do art. 38 do CPP.

Cumpre agora examinar o segundo caso: o assim chamado pedido de


arquivamento indireto. Eugênio Pacelli de Oliveira define arquivamento indireto
como “a hipótese em que o órgão do Ministério Público, ao invés de requerer o
arquivamento ou o retorno dos autos à polícia para novas diligências, ou,
ainda, de não oferecer a denúncia, manifestar-se no sentido da incompetência
do Juízo perante o qual oficia, recusando, por isso, atribuição para a
apreciação do fato investigado” (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de
processo penal. 3. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.
40).

No caso de o juiz discordar dessa manifestação, não lhe sendo possível


determinar ao MP oferecer a denúncia, a solução apresentada pelo autor com
base em decisão do STF, fundada em parecer do então Subprocurador da
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República Cláudio Lemos Fonteles, seria o recebimento da promoção como


pedido indireto de arquivamento, motivando a aplicação do procedimento
previsto no art. 28 do CPP ou art. 62 da LC n. 75/93 (OLIVEIRA, Eugênio
Pacelli. Curso de processo penal. 3. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del
Rey, 2004. p. 41-2).

Conclui Eugênio Pacelli dizendo que, “como conseqüência, o juiz estaria


e estará subordinado à decisão da última instância do parquet, tal como ocorre
em relação ao arquivamento propriamente dito, ou o arquivamento direto”
(OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 3. ed. rev., atual. e
ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 42).

Na verdade, ao entender o promotor de justiça como incompetente o


juízo perante o qual ofereceria denúncia, poderá requerer ao juiz para declinar
a competência e remeter os autos ao juízo competente. Nesse momento,
abrem-se ao magistrado duas opções: indeferir o pedido simplesmente (com as
providências de praxe) ou aplicar o art. 28 do CPP (ou art. 62 da LC n. 75/93),
remetendo os autos ao procurador-geral de justiça (ou à Câmara de Revisão).

Considere-se inicialmente a segunda alternativa. Se o juiz remete os


autos ao procurador-geral de justiça, este poderá ou não concordar com o
promotor. Discordando do promotor (e concordando com o juiz), oferecerá a
denúncia ou designará outro promotor para oferecê-la em seu lugar. Nesse
caso, não haverá maiores problemas, pois a competência jurisdicional será
mantida, com uniformidade de entendimento entre o MP e o poder judiciário.

Mas o que acontecerá se o procurador-geral de justiça concordar com o


requerimento do promotor? Se fosse o caso de promoção expressa de
arquivamento, a reiteração do pedido pelo procurador-geral obrigaria o juiz a
arquivar o inquérito, conforme determina o art. 28 do CPP. Esse dispositivo,
contudo, limita-se à promoção explícita de arquivamento, não dispondo sobre a
resolução de questões de competência jurisdicional. Apenas por analogia é que
se poderia cogitar de tal aplicação.
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Pois bem. Seguindo essa linha de pensamento, considere-se que o juiz


aplique por analogia o art. 28 do CPP, remetendo os autos ao procurador-geral
de justiça. Concordando com o promotor, o procurador-geral insistirá no pedido
de declinação da competência. Nesse ponto, surge a questão: a reiteração do
PGJ vinculará a decisão do magistrado, traduzindo verdadeira ordem para
declinar a competência?

Para aceitar essa tese é necessário admitir que o Ministério Público


pode resolver conflito de competência entre órgãos jurisdicionais, bem como
expedir ordens a magistrados fora da hipótese expressamente prevista no art.
28 do CPP. Considerando as regras constitucionais, a jurisprudência e a
doutrina sobre o assunto, não parece correto pensar dessa forma.

Os conflitos de competência entre juízos somente podem ser resolvidos


pelos órgãos superiores do poder judiciário, conforme as disposições
constitucionais pertinentes. Se os juízos em conflito são vinculados ao mesmo
tribunal, este será competente. Se vinculados a tribunais diversos, será
competente o STJ. Finalmente, se o conflito envolver tribunal superior,
competirá ao STF resolvê-lo. Nunca ao Ministério Público, por qualquer de
seus órgãos.

Por outro lado, a independência e harmonia entre os órgãos que


representam as funções do poder do Estado (executiva, legislativa e judiciária)
compreendem uma série de restrições recíprocas, mas sempre previstas na
Constituição e nas leis. Um exemplo disso é a obrigatoriedade de o juiz
arquivar o inquérito policial quando o procurador-geral de justiça insistir no
arquivamento requerido pelo promotor. Trata-se de regra excepcional em que o
legislativo determina ao judiciário obedecer a comando emanado do Ministério
Público (para alguns, órgão integrante do poder executivo). Como regra
excepcional, deve ser interpretada restritivamente.

Em razão disso, conclui-se que se certo juiz se considera competente


para processar e julgar determinada causa, apenas um tribunal de hierarquia
superior poderá afastar essa competência. Vige no Brasil o princípio da
competência sobre a competência (Kompetenz-Kompetenz), segundo o qual é
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o poder judiciário que tem a competência para resolver sobre sua própria
competência. Imaginar que o MP possa resolver, em lugar do poder judiciário,
um conflito positivo ou negativo de competência entre juízos é violar esse
princípio e usurpar prerrogativas dos juízes e tribunais.

Nesse ponto, mostra-se interessante examinar a lição de Guilherme de


Souza Nucci. Inicialmente, diz o autor que “caso o juiz, após o pedido de
remessa, julgue-se competente, poderá invocar o preceituado no art. 28, para
que o Procurador-Geral se manifeste. Entendendo este ser o juízo competente,
designará outro promotor para oferecer denúncia. Do contrário, insistirá na
remessa” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução
penal. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2007. p. 161).

Até aqui, o autor parece concordar com a vinculação do juiz à promoção


do PGJ com base no art. 28 do CPP. Essa idéia, contudo, é imediatamente
afastada nas linhas seguintes, quando trata da hipótese de o juiz não aplicar o
art. 28 do CPP, deixando de remeter os autos ao procurador-geral ou à
Câmara de Revisão.

Afirma Guilherme Nucci que “caso, ainda assim, o magistrado recuse-se


a fazê-lo, cabe ao Ministério Público providenciar as cópias necessárias para
provocar o juízo competente. Assim providenciando, haverá, certamente, a
suscitação de conflito de competência se ambos os juízes se proclamem
competentes para julgar o caso. Logo, a simples inércia da instituição,
recusando-se a denunciar, mas sem tomar outra providência não deve ser
aceita como arquivamento implícito” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de
processo penal e execução penal. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2007. p. 161).

Ao fim e ao cabo, portanto, a discordância se traduzirá em autêntico


conflito de competência a ser resolvido pelas instâncias superiores do próprio
poder judiciário, não se vinculando o julgador a uma manifestação do
procurador-geral de justiça (ou da Câmara de Revisão) em matéria de
competência jurisdicional.
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Respondendo-se, finalmente, ao questionamento proposto, pode-se


afirmar que manifestação alguma do Ministério Público, ainda que emanada de
sua autoridade máxima, poderá vincular a decisão de juízes e tribunais sobre
sua própria competência. Daí porque se revela inadmissível aplicar por
analogia, a essas hipóteses, o art. 28 do CPP ou o art. 62 da Lei
Complementar n. 75/93.

A solução deverá ser a primeira alternativa apontada. Recebendo os


autos com requerimento do Ministério Público para declinar sua competência,
se discordar, deverá o juiz simplesmente indeferir o pedido e remeter os autos
novamente ao MP para proceder como entender de direito. Caberá ao
promotor de justiça recorrer da decisão do juiz. Se, não recorrendo da decisão,
insistir o MP em não oferecer denúncia e não houver queixa-crime subsidiária,
só restará ao juiz oficiar aos órgãos de correição interna do Ministério Público
para as providências cabíveis.

Em nenhum dos casos examinados haverá arquivamento implícito ou


arquivamento indireto de inquérito policial pelo poder judiciário, nem tampouco
pedido implícito ou indireto de arquivamento pelo Ministério Público. A
necessidade de fundamentação das decisões judiciais e das promoções
ministeriais impede a caracterização dessas figuras que, por esse motivo, não
obstante respeitáveis entendimentos em contrário, não existem no direito
brasileiro.

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