You are on page 1of 23

CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E

DEMOCRACIA NO BRASIL*

Cláudio Gonçalves Couto


Rogério Bastos Arantes

To embody a right in an entrenched constitutio- Introdução


nal document is to adopt a certain attitude
towards one’s fellow citizens. That attitude is best Um dos aspectos mais evidentes e contro-
summed up as a combination of self-assurance
versos da democracia brasileira contemporânea
and mistrust: self-assurance in the proponent’s
diz respeito ao fato de que a nossa Constituição,
conviction that what he is putting forward really
promulgada em outubro de 1988, não adquiriu
is a matter of fundamental right and that he has
captured it adequately in the particular formula- até o momento as condições de estabilidade e
tion he is propounding; and mistrust, implicit in permanência que normalmente caracterizam os
his view that any alternative conception that textos constitucionais.
might be concocted by elected legislators next year Observando-se a dinâmica política e a pro-
or in ten years’ time is so likely to be wrong-hea- dução legislativa pós-1988, é possível afirmar,
ded or ill motivated that his own formulation is to sem exagero, que o país permaneceu numa espé-
be elevated immediately beyond the reach of ordi- cie de agenda constituinte, como se, paradoxal-
nary legislative revision. mente, o processo de reconstitucionalização não
Jeremy Waldron, Law and disagreement houvesse se encerrado em outubro daquele ano
(Couto, 1997, 1998). Por razões que este texto
* Para a realização desta pesquisa, os autores conta- pretende elucidar, o fato é que os governos pos-
ram com o auxílio do CNPq e da PUC-SP. teriores a 1988 se viram obrigados a desenvolver
boa parte de sua produção normativa ainda no
Artigo recebido em janeiro/2005 plano constitucional, isto é, por meio de modifi-
Aprovado em fevereiro/2006 cações, acréscimos e/ou supressões de dispositi-

RBCS Vol. 21 nº. 61 junho/2006


42 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

vos localizados na própria Carta. Tomar decisões avaliamos se as emendas constitucionais aprovadas
e implementar políticas governamentais são ativi- durante os governos de Fernando Henrique Cardoso
dades que, no Brasil pós-1988, não lograram (1995-1998; 1999-2002) incidiam mais sobre políticas
adquirir uma rotina apenas infraconstitucional. públicas ou sobre princípios propriamente constitu-
Pelo contrário, boa parte dessas atividades teve cionais. Verificamos naquele trabalho que 68,8%
lugar no nível superior da hierarquia legislativa, dos dispositivos integrantes das emendas constitu-
ou seja, na própria Constituição. cionais aprovadas durante o período FHC corres-
À parte o fato de nossa história constitucio- pondiam a políticas públicas. Diante de tal mon-
nal ser marcada pela instabilidade (estamos na tante e do fato de que a maior parte das emendas
oitava constituição desde a Independência do constitucionais fora de iniciativa do Executivo,
país, e a durabilidade média das Cartas, desconsi- poderíamos nos questionar: o que levaria um gover-
derados os diferentes tipos de regime que as ense- no a implementar sua agenda de políticas públicas
jaram, é pouco maior do que duas décadas), o modificando a Constituição, em vez de fazê-lo pela
texto de 1988 parecia refletir um novo estágio de via infraconstitucional?
maturidade política e de longevidade institucional, A pergunta é pertinente, considerando-se
coroando e habilitando ao pleno desenvolvimen- que os procedimentos necessários à aprovação de
to a democracia recém-conquistada, desta feita, emendas constitucionais são muito mais exigentes
em bases aparentemente mais sólidas do que em do que aqueles requeridos para leis ordinárias ou
períodos anteriores. No entanto, passada a euforia mesmo para a legislação complementar. Sendo
inicial, também a Carta de 1988 cedeu aos velhos assim, nenhum governo buscaria implementar sua
signos da instabilidade e da reforma, e aquele que agenda, lançando mão de tal expediente, se não
parecia um texto definitivo, capaz de encerrar uma fosse realmente obrigado a fazê-lo.1 Uma das pos-
fase da história política do país e dar início a outra síveis razões para tal escolha poderia ser a exi-
com chances de longa durabilidade, foi submetido gência, pelos parlamentares, de que determinadas
a freqüentes modificações. mudanças ocorressem pela via constitucional – tal-
No debate público, as alterações na Constitui- vez como forma de dar guarida a determinadas
ção de 1988 foram e têm sido defendidas e com- decisões ao constitucionalizá-las. Outro motivo, a
batidas ao sabor do jogo político e das forças em nosso ver mais plausível, é a existência de impedi-
disputa. Entre os analistas, entretanto, não se avan- mentos constitucionais à implementação de algumas
çou muito além da análise de tipo conjuntural; políticas pelo governo. Ou seja, se a Constituição
quando muito, tais alterações foram interpretadas à determina certas políticas públicas, implementar
luz dos processos mais amplos de reforma econô- alternativas a elas exigirá – necessariamente – a
mica ou do Estado que marcaram os anos de 1990, modificação da Carta. No caso da maior parte das
mas não logramos desenvolver uma explicação das emendas promovidas pelo governo FHC, foi isto
razões mais específicas das mudanças constitucio- de fato o que se verificou.
nais. O objetivo central desse texto é suprir esta É necessário, entretanto, além de analisar as
lacuna e oferecer um modelo de análise capaz de emendas, avaliar o próprio texto constitucional ori-
explicar por que a Constituição de 1988 não adqui- ginário, com vistas a identificar o peso de cada um
riu a estabilidade esperada e o país permaneceu dos tipos de dispositivos constitucionais existentes
numa espécie de agenda constituinte. e, considerando-se sua natureza, aferir se foram ou
Nosso modelo de análise da Constituição não emendados pelos governos subseqüentes.
buscará determinar em que medida ela contém dis- A maneira como distinguimos diferentes
positivos que podem ser classificados como princí- tipos de dispositivos no interior da Carta deve ser
pios fundamentais ou dispositivos que mais se explicada, a fim de que não pareça arbitrária.
assemelham a políticas públicas, e dessa distinção Para tanto, na seção que se segue, apresentamos
várias conseqüências de ordem política e institu- os fundamentos teóricos da Metodologia de
cional poderão ser derivadas. O modelo aqui Análise Constitucional (MAC), por nós desenvol-
desenvolvido já foi aplicado preliminarmente em vida. Essa discussão reproduz em parte a seção
estudo anterior (Couto e Arantes, 2003), no qual metodológica de nosso trabalho de 2003, supra-
CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 43

mencionado. Contudo, tendo em vista que reali- me constitucional logo foi atacado por seu ana-
zaremos neste texto uma nova aplicação da MAC, cronismo, mal tinha ele nascido. Com Fernando
julgamos por bem reapresentá-la, incorporando Henrique Cardoso (1995-2002), essa hipótese so-
também algumas modificações à versão original, bre uma incompatibilidade substancial entre a
advindas do desenvolvimento da própria pesqui- Carta e os novos desafios estruturais evidenciou-
sa desde então. se na formação de uma ampla coalizão de gover-
no que, diferentemente do pouco sucesso de seus
antecessores, conseguiu implementar um conjun-
O problema constitucional brasileiro: to importante de alterações na Constituição.
reformas (não necessariamente) Este texto não explora essa hipótese – que
constitucionais investe na incompatibilidade substantiva entre a
Carta de 1988 e a agenda de reformas dos anos de
A hipótese mais usual sobre a permanência 1990 –, pois desejamos mostrar uma outra dimensão
de uma agenda constituinte no Brasil pós-1988 do problema constitucional brasileiro. Para além de
(comprovada pela intensa atividade de reforma do eventuais anacronismos legados pela Constituição,
texto constitucional nesse período) afirma que a nosso objetivo é demonstrar que ela nos legou um
Constituição teria caducado logo após seu nasci- peculiar modus operandi de produção normativa,
mento, isto é, o texto teria sofrido de um envelhe- com conseqüências significativas para o funciona-
cimento súbito, como se tivesse mais a ver com o mento da democracia brasileira. Nesse sentido,
passado do país do que com o presente. Esse des- nossa hipótese é mais formal do que substantiva,
compasso seria especialmente perceptível diante pois se refere ao modo pelo qual o processo deci-
da agenda de reformas estruturais do Estado e do sório e governamental vem-se dando no Brasil.
sistema econômico que, gradualmente, foi-se Importa-nos pouco o conteúdo concreto das agen-
impondo ao país como necessária para a desejada das de governos específicos. Comprovando-se
estabilização da economia e a retomada do desen- nossa hipótese, a conclusão necessária será que,
volvimento em novas bases. Nesse sentido, o fato enquanto vigorar a Carta de 1988 em seus moldes
de a atividade governamental ter continuado a atuais, independentemente do conteúdo de políti-
ocorrer no plano constitucional seria conseqüên- cas governamentais específicas, levadas à esquer-
cia de uma incompatibilidade substancial entre o da ou à direita, por progressistas ou conservado-
conteúdo da Carta de 1988 e os desafios que a res (ou qualquer outra denominação ideológica
nova realidade econômica e política, nacional e que se queira dar), a atividade de governo no
internacional, passou a impor ao país. Brasil seguirá ocorrendo em grande medida no
Desde a promulgação do texto constitucional, plano constitucional, e estaremos fadados a uma
vozes dissonantes levantaram-se contra a Carta, dinâmica constituinte permanente, incapaz de pôr
acusando-a de constituir, no plano econômico, um um ponto final no processo iniciado em 1988.
obstáculo à modernização do país e, no plano polí- Nosso argumento principal é de que a Carta
tico, um desastre do ponto de vista da governabili- brasileira de 1988 se caracteriza por ter constitu-
dade. Assim, a Constituição escrita sob a égide da cionalizado formalmente diversos dispositivos que
“remoção do entulho autoritário” do regime militar apresentam, na verdade, características de políti-
pós-64 ter-se-ia tornado ela mesma – e muito rapi- cas governamentais com fortes implicações para o
damente – uma espécie de “entulho nacional-desen- modus operandi do sistema político brasileiro. Em
volvimentista”, que precisaria ser removido para primeiro lugar, a constitucionalização de políticas
permitir a implementação das chamadas reformas públicas faz com que os sucessivos governantes se
orientadas para o mercado. vejam diante da necessidade de modificar o orde-
Na perspectiva dessa hipótese substantiva, namento constitucional para poder implementar
desde José Sarney (1985-1990) e sobretudo com parte de suas plataformas de governo. Em segundo
Fernando Collor (1990-1992), questões funda- lugar, construir amplas maiorias legislativas passa a
mentais do Estado e do modelo econômico no ser condição básica para superar o engessamento
Brasil começaram a ser levantadas e o novo regi- prévio a que foi submetida a agenda governa-
44 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

mental pelo constituinte, algo especialmente difícil Este processo descentralizado, o quorum de
no contexto institucional de um Estado federativo maioria simples e a ausência de um projeto-base
e de um regime presidencialista multipartidário e do qual se pudesse partir3 constituíram fatores
bicameral como o brasileiro (Tsebelis, 1997). Por favoráveis à introdução no texto dos mais variados
fim, mas não menos importante, esse tipo especial dispositivos, bastando para isso que estes contas-
de Constituição tende a causar impacto significati- sem com o apoio substancial de algum grupo de
vo sobre o funcionamento do sistema de justiça, pressão ou bancada parlamentar e não ferissem os
na medida em que o Judiciário, e especialmente interesses da maioria congressual.4 Nesse sentido,
seu órgão de cúpula – o Supremo Tribunal Federal pode-se dizer que as negociações travadas em
(STF) –, passa a ser mais acionado para controlar torno da elaboração da nova Carta ocorreram sob
a constitucionalidade das leis e demais atos nor- a égide de um amplo log rolling: ao apoio de um
mativos (Arantes, 1997; Arantes e Kerche, 1999), grupo X a medidas patrocinadas pelo grupo Y,
nem sempre relativos a princípios constitucionais retribuir-se-ia noutra ocasião com o apoio do
fundamentais, mas freqüentemente relativos a grupo Y a uma medida de interesse do grupo X.
políticas públicas. Coelho e Oliveira chamaram a atenção para
Quais seriam as razões da grande presença a dinâmica extremamente descentralizada que
de políticas públicas no interior do texto constitu- marcou os trabalhos constituintes, destacando a
cional? Acreditamos que uma das principais foi o falta de paralelo de processos semelhantes na his-
formato que presidiu os trabalhos da Assembléia
tória constitucional brasileira e mesmo no direito
Nacional Constituinte, favorecendo enormemente
comparado. Segundo esses autores,
a introdução no texto de dispositivos de cunho
particularista. Um bom resumo desse processo é
[...] a construção do futuro Projeto deu-se de fora
dado por Souza e Lamounier: para dentro, de partes para o todo. Vinte e qua-
tro subcomissões temáticas recolheram sugestões,
De acordo com as diretrizes legais estabelecidas
realizaram audiências públicas e formularam
pela chamada “Emenda Sarney”, os deputados e
estudos parciais. Estes foram reunidos em blocos
senadores a serem eleitos em novembro de 1986
de três a três, através de oito comissões temáticas.
reunir-se-iam unicameralmente, decidindo por
Só então a Comissão de Sistematização organizou
maioria simples, como uma verdadeira Assem-
o primeiro anteprojeto, em 15 de julho de 1987.
bléia Constituinte. Quando esse novo Congresso
A partir daí, ocorreu uma tramitação formal, com
iniciou os seus trabalhos, no princípio de 1987,
emendas, pareceres e votações. Muitos impasses,
houve tensos debates entre os constituintes a res-
negociações, confrontos. Ao todo foram apresen-
peito dos poderes de que se achavam investidos
tadas, durante as várias fases de comissões, siste-
e sobre a organização a ser adotada nos trabalhos.
Predominou, no final, uma organização fortemen- matização, primeiro e segundo turnos de plená-
te descentralizada: subcomissões e comissões rio, um total de 65.809 emendas. Existiram nove
temáticas fariam os estudos iniciais, ouvindo a projetos, desde o de 15 de julho de 1987 até a
sociedade e votando relatórios preliminares; encer- redação final, em setembro de 1988 (Coelho e
rada essa fase, uma Comissão de Sistematização de Oliveira, 1989, p. 20, grifo nosso).
97 membros (cuja presidência coube também ao
Senador Afonso Arinos), encarregar-se-ia de prepa- Embora uma análise mais detalhada dos
rar o projeto final a ser votado pelo plenário. O resultados desse método de funcionamento da
projeto constitucional foi finalmente levado a uma Constituinte seja recomendável, antes de conclu-
primeira votação em plenário no princípio de sões generalizantes, parece-nos defensável a hipó-
1988. Uma vez que não se formou nenhum bloco
tese de que esse formato foi o grande responsável
monolítico no Congresso, o voto majoritário, na
pela introdução no texto constitucional de uma
maior parte dos artigos, teve que ser negociado e
renegociado vezes sem conta. A segunda e última grande quantidade de dispositivos mais adequa-
rodada ocorreu em setembro de 1988, sendo a damente definidos como políticas públicas do
nova Constituição promulgada a 5 de outubro que como princípios constitucionais gerais e fun-
(Lamounier, 1990, p. 82).2 damentais. Nesse sentido, para além dos conteú-
CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 45

dos específicos consagrados pela Carta, esse tipo tiva, a inexistência de policy advocates para as
de normatização constitucional engessou formal- emendas e a simultaneidade de votações reduziam
mente a agenda governamental futura e era o potencial de mudança por parte do governo. A
análise sugere que esse potencial, que o arranjo
mesmo de se esperar, como de fato ocorreu, que
institucional propiciava, foi anulado pelo impacto
boa parte desses dispositivos se tornasse futura-
devastador de fatores contextuais, tais como os
mente alvo de tentativas de reforma por parte de constrangimentos eleitorais, a polarização da agen-
novas maiorias parlamentares ou de novas ges- da pública e a estrutura de incentivos com que se
tões à frente do Executivo. Assim, o baixo grau de deparavam o Executivo e o Legislativo na conjun-
universalismo atingido pela Constituição e a gran- tura da CPI do orçamento. O calendário eleitoral,
de quantidade de dispositivos particularistas e como variável isolada, se constituiu no fator deci-
controversos presentes no texto são fatores que sivo (Melo, 2002, p. 76).
ajudam a entender por que a promulgação da
nova Carta ocorreu sob o signo de certa indefini- A análise de Melo é em si reveladora de um
ção ou provisoriedade, tendo a própria Consti- aspecto fundamental disso que estamos chamando
tuinte programado uma Revisão Constitucional de o problema constitucional brasileiro. Afinal de
geral para daí a cinco anos (sob a influência da contas, por que o sucesso ou o fracasso de um pro-
Constituição portuguesa, que possuía a previsão cesso de revisão constitucional deveria estar condi-
de revisões a cada cinco anos), por meio do arti- cionado pelos interesses do “governo”, pela pre-
go 3º do Ato das Disposições Constitucionais sença ou ausência de policy advocates, pelo efeito
Transitórias: negativo (“devastador”) de fatores “contextuais”,
pela “conjuntura” política e pelo “calendário elei-
Art. 3.º A revisão constitucional será realizada toral”, se não pelo fato de que essa Constituição é
após cinco anos, contados da promulgação da ela mesma uma Carta que encerra muitos disposi-
Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos tivos tipicamente governamentais? Isto é, os fatores
membros do Congresso Nacional, em sessão uni- identificados por Melo para explicar o fracasso da
cameral. revisão constitucional de 1993/1994 são a própria
confirmação do nosso argumento de que a
Anos mais tarde, por mais que alguns intér- Constituição criou um modus operandi de produ-
pretes da Constituição tenham tentado vincular o ção normativa que vincula os interesses conjuntu-
artigo 3º do ADCT aos resultados do plebiscito rais, de governo e dos policy advocates, ao marco
sobre sistema de governo realizado em 1993, pre- constitucional. É por essa razão que nossa agenda
valeceu a opinião de que a revisão autoprogra- política seguiu sendo uma agenda constituinte no
mada da Carta deveria ser irrestrita, podendo ver- pós-1988.6
sar sobre todo o texto. O outro exemplo que confirma o argumen-
A Constituição, que nasceu sob o signo da to sobre a peculiaridade do nosso ordenamento
reforma em moto-contínuo, passou, entretanto, constitucional é justamente o processo de refor-
pela Revisão Constitucional de 1993/1994 sem mas constitucionais conduzido durante os dois
que muitas e prometidas alterações fossem feitas mandatos de Fernando Henrique Cardoso na pre-
no texto original.5 Segundo Melo, em um dos sidência da República. O maior sucesso do gover-
estudos mais completos sobre as principais refor- no FHC na implementação de mudanças constitu-
mas constitucionais no Brasil, o malogro da revi- cionais explica-se pela conjunção complexa,
são de 1993/1994 deu-se em virtude de uma con- porém favorável, de fatores como os menciona-
junção de fatores, a despeito do potencial e das dos acima por Melo, em grau suficiente para que
expectativas de mudança que antecederam o pro- a agenda governamental de um presidente em
cesso. Comparativamente aos aspectos que favo- particular pudesse vencer os obstáculos da cons-
reciam a mudança constitucional, titucionalização a que ela foi previamente subme-
tida pelo modelo de 1988.7
[...] outras características, no entanto, tais como o Ao longo de dezoito anos de vigência da
monopólio, pelo Legislativo, da iniciativa proposi- Constituição de 1988 transcorridos até 2006, um
46 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

total de 58 emendas constitucionais foram aprova- 4. A vontade majoritária da população e as


das, sendo seis durante o referido processo de decisões de seus representantes eleitos pre-
revisão – as Emendas Constitucionais de Revisão – valecem nos limites das regras preestabele-
e outras 52 como Emendas Constitucionais co- cidas.
muns. Destas últimas, 35 foram aprovadas duran- 5. A oposição é participante legítima do jogo e
te o governo Fernando Henrique Cardoso (entre não deve encontrar impedimentos para che-
os anos de 1995 e 2002) e treze durante o gover- gar ao poder pelo voto popular.
no Lula. Foram elas, na sua maior parte, propos- 6. Os governantes são responsáveis perante o
tas de iniciativa do Poder Executivo, recaindo pre- eleitorado, prestando-lhe contas.
dominantemente sobre matérias que compunham 7. Os direitos civis clássicos são garantidos, via-
uma agenda tipicamente governamental e não bilizando o desenrolar da competição políti-
necessariamente constitucional, no sentido mais ca – direitos fundamentais operacionais.
rigoroso que essa expressão possa conter. 8. São assegurados direitos sem os quais os
Como distinguir, afinal, princípios funda- atores políticos não se disporiam a participar
mentais de dispositivos veiculadores de políticas da competição democrática – direitos funda-
públicas no âmbito de um texto constitucional? A mentais condicionantes.8
próxima seção destina-se a formular um modelo
que seja capaz disso. Esses oito elementos estabelecem as regras
básicas do jogo político democrático, conforman-
do o que há de essencial na estrutura constitucio-
Polity, politics, policy nal de uma poliarquia (Dahl, 1997). Por delinear
os contornos fundamentais do regime, definem as
Que papéis têm, nas democracias constitu- condições paramétricas estáveis do jogo político,
não se confundido com este ou com seus resulta-
cionais, (a) as estruturas do regime, compreen-
dos. Temos aí a primeira dimensão da política
dendo os direitos individuais e as regras do jogo
democrática, estrutural, a polity. Justamente por
político, (b) a competição política e (c) as deci-
definir os parâmetros da convivência poliárquica,
sões concretas de governo? Embora cada uma
a estrutura constitucional se alicerça sobre um
dessas dimensões seja parte constitutiva do pro-
indispensável consenso mínimo dos diversos ato-
cesso poliárquico, elas não têm o mesmo signifi-
res políticos quanto a seus aspectos centrais.
cado nem contribuem da mesma forma para o
Dado se tratar de um acordo institucional
funcionamento do regime democrático. Se quiser-
básico – um pacto implícito ou explícito entre os
mos, portanto, compreender corretamente a dinâ-
atores poliárquicos – os dispositivos por ele esta-
mica política real das democracias constitucionais,
belecidos têm caráter não controverso, isto é, não
é indispensável verificar como regimes desse tipo
dizem respeito àquilo que a competição demo-
são capazes de distinguir e articular essas três
crática tem como finalidades: (a) definir a ocupa-
dimensões do arcabouço institucional e da dinâ-
ção dos postos de poder por um determinado
mica política.
período e (b) definir quais políticas públicas serão
Em primeiro lugar, é importante considerar
implementadas num dado momento. Estes dois
que regimes democráticos normalmente se distin-
objetivos correspondem, portanto, a duas outras
guem dos não democráticos pela presença de
dimensões, mais visíveis e perceptíveis no dia-a-
alguns elementos-chave, a saber:
dia das democracias do que a primeira:
1. O jogo político ocorre de acordo com regras
preestabelecidas.
1. A competição política por cargos e influência.
2. As eleições são periódicas e se sucedem por
2. A decisão sobre políticas governamentais.
meio de sufrágio universal.
3. Os mandatos dos eleitos são limitados, tanto
A competição política constitui o próprio
temporalmente como no que concerne ao
jogo e nela estão implícitos os enfrentamentos, as
alcance de suas decisões e ações.
disputas, as negociações, os acordos e as coali-
CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 47

zões. Trata-se da dimensão dinâmica da realida- como este jogo se desenrola limitado pela estru-
de política, ao passo que as condições paramétri- tura constitucional, o alcance dos resultados tam-
cas estáveis constituem a sua dimensão estática. bém está limitado por essa estrutura – o que não
Noutras palavras, o jogo político diz respeito à significa dizer que seja predeterminado por ela.9
ação (e à interação), ao passo que as condições A esta dimensão denominamos policy.
paramétricas dizem respeito à estrutura, no âmbito Definimos em inglês as três dimensões da
da qual ocorrem as ações (e interações). É também política em decorrência da falta de termos apro-
no âmbito dessa competição que se definem, nos priados e claramente diferenciados na língua por-
limites das regras estabelecidas, os que ganham e tuguesa para cada uma delas. Sumarizando, a
os que perdem, os que ocuparão os cargos públi- polity corresponde à estrutura paramétrica estável
cos (eletivos ou não) e os que ficarão excluídos do da política e que, supõe-se, deve ser a mais con-
poder, os aliados e os adversários etc. A esta sensual possível entre os atores; a politics é o pró-
segunda dimensão da realidade política denomina- prio jogo político; a policy diz respeito às políticas
mos politics. públicas, ao resultado do jogo disputado de acor-
Entretanto, além do jogo político há também do com as regras vigentes.10 O Quadro 1 resume
a importante esfera das decisões de governo, que a natureza e as características principais destas
constitui a terceira dimensão do regime poliár- três dimensões do processo político democrático.
quico. Tais decisões são elas próprias um objeti- Como nosso intuito neste artigo é analisar
vo e uma decorrência – ao mesmo tempo – do o conteúdo da Constituição brasileira de 1988,
jogo político. Afinal, por que motivos competem não trataremos da dimensão dinâmica do pro-
os jogadores nas poliarquias? Como certa vez cesso democrático, a politics, para concentrar-
definiu Schumpeter (1980), para ocupar postos de mos nossas atenções na hierarquia normativa
poder e influência; mas também para definir polí- que distingue o pacto constitucional (polity) das
ticas públicas. Sobre estas últimas, ao contrário decisões governamentais (policy). A Figura 1
das condições paramétricas estáveis, espera-se ilustra esta hierarquia e diversos aspectos a ela
que sejam objetos de controvérsia, e não de con- relacionados.
sensos mínimos; por isso mesmo, decorrem das A lógica poliárquica supõe que normas
disputas políticas conjunturais. Enquanto a pri- constitucionais estruturem o sistema político, esta-
meira dimensão constitui a base para o jogo polí- belecendo condições gerais para seu funciona-
tico, essa última representa seus resultados con- mento. São por isso genéricas, tanto na definição
cretos e circunstanciais. E da mesma maneira dos pressupostos formais do jogo, como na esti-

Quadro 1
Natureza das Dimensões Ideais do Processo Político Democrático
CARACTERÍSTICA CARACTERÍSTICA
DIMENSÃO NATUREZA DENOMINAÇÃO
SUBSTANTIVA FORMAL
Consenso mínimo
Parâmetros Gerais Generalidade,
NORMATIVIDADE pactuado entre
do Jogo Político Polity relativa
CONSTITUCIONAL os diversos
(Estrutura) neutralidade
atores políticos
EMBATES E Relacionamento
Conflito e/ou
COALIZÕES Jogo Político Politics dinâmico entre os
Cooperação.
POLÍTICAS atores políticos
Resultados Vitória/Derrota
NORMATIVIDADE Especificidade,
do Jogo Político Policy de diferentes
GOVERNAMENTAL controvérsia
(Conjuntura) atores políticos
48 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

pulação dos limiares e dos limites de seus resul- pios são relativamente neutros.11 Na medida em
tados conjunturais. Nessa dimensão, a constitui- que definem somente os parâmetros, os princí-
ção corresponde a um pacto entre os atores polí- pios e os limites do jogo político, as normas cons-
ticos, refletindo um consenso básico entre eles. titucionais poliárquicas têm caráter genérico, pois
Caso não seja assim e a Constituição estipule nor- medidas específicas para sua efetivação são toma-
mas de maior especificidade, que ultrapassem das conjunturalmente, tendo em vista as circuns-
esse consenso básico, ela refletirá a vitória de tâncias particulares com que lidam os governos
alguns setores da sociedade sobre outros. Dado do dia.
seu caráter de maior permanência, tal Constituição Dada a função estruturante da polity, as nor-
consagrará de modo perene interesses circuns- mas constitucionais têm caráter soberano, razão
tanciais, por colocá-los fora do alcance do jogo pela qual não estão em princípio sujeitas à discus-
poliárquico futuro. são democrática cotidiana, à qual balizam, resguar-
A pactuação consensual de princípios cons- dando direitos fundamentais e assegurando que a
titucionais implica na normatização apenas dos politics transcorra segundo parâmetros previsíveis
interesses comuns aos diversos setores da socie- e estáveis. Normativamente, correspondem a um
dade, ou, no máximo, daqueles interesses parti- momento inaugural, no qual se fundaria a polity e
culares inegociáveis, sem cuja garantia o convívio se iniciaria o jogo político (Ackerman, 1988). Em
pacífico e a competição política leal entre os virtude disso, são protegidas contra modificações
diversos setores sociais e políticos seriam inviabi- freqüentes, sendo as regras para sua alteração bem
lizados. Por isso pode-se afirmar que tais princí- mais exigentes do que as necessárias para alterar

Figura
Figura 11
Representação
Representação sintéticadadaHierarquia
Sintética Decisória
hierarqui decisória

MAIOR NORMAS CONSTITUCIONAIS (POLITY ) MAIOR

Estrutura Limiares e Limites Controle

Grau de C o n se n s o Dec i s ór i o Ex i g i d o
Pacto Soberania
Gra u d e Gen era l i d a d e d a s N orm a s

NORMAS PARACONSTITUCIONAIS

(Legislação complementar imediatamente infraconstitucional)

NORMAS GOVERNAMENTAIS(POLICY )

Conjuntura Eficácia
Decisão Majoritária Governo
MENOR MENOR
CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 49

policies: quoruns ampliados de votação, prazos Critérios de distinção de matérias


deliberativos dilatados, poder de veto conferido a constitucionais e não-constitucionais
diversos atores institucionais, consultas populares
obrigatórias e, no limite, vedação total a quaisquer Considerando-se as dimensões de polity,
mudanças por emendas constitucionais pela legis- politics e policy tal como estabelecidas anterior-
latura ordinária, requerendo-se nesse caso a reali- mente, seria possível distinguir, no interior de
zação de uma nova Assembléia Constituinte.12 uma determinada Constituição escrita, os aspectos
Noutras palavras, o grau de consenso necessário a fundamentais do ordenamento político relativos à
decisões constitucionais é muito mais amplo do estrutura do regime (polity) daqueles outros que,
que aquele aplicável às decisões da política “nor- embora se refiram ao conteúdo material de ações
mal”, isto é, da política governamental (Idem). Vale estatais prováveis ou desejáveis (policies), foram
observar ainda que nosso modelo tem em vista sis- abrigados pelo texto constitucional e equiparados
temas políticos dotados de constituições escritas e formalmente aos princípios da polity.
com algum tipo de controle constitucional das leis Nossa intenção, nesta seção, é elaborar cri-
e dos atos normativos dos governos, duas caracte- térios objetivos que permitam classificar os dispo-
rísticas que aumentam o grau de consensualismo sitivos constitucionais como polity ou policy. A
do sistema, em detrimento de seu majoritarismo tarefa exige boa dose de argumentação, dado que
(Lijphart, 1989). o texto formal abriga sem distinção dispositivos
Por outro lado, o governo age na conjuntu- correspondentes a ambos os princípios, de modo
ra; sua ação baliza-se pela eficácia; suas decisões que estabelecer uma hierarquização entre eles é
podem – sem maiores problemas – constituir correr um risco considerável.
imposições da parte vitoriosa na disputa democrá- Como se sabe, o constitucionalismo moder-
tica (a maioria) sobre a parte derrotada (a mino- no desenvolveu-se a partir do princípio liberal da
ria), assim como podem ser específicas e contro- limitação do poder político vis-à-vis a liberdade
versas, no sentido já assinalado. Tudo isto é civil e individual. De modo geral, os textos consti-
possível desde que as decisões de governo não con- tucionais modernos preocuparam-se com o estabe-
trariem a normatividade constitucional, respeitando lecimento dos princípios fundamentais do Estado,
os limiares e os limites estipulados. É da natureza do ao mesmo tempo em que procuraram definir os
próprio jogo democrático o perde-ganha político; limites da ação estatal da maneira mais rigorosa
ora um grupo obtém o controle sobre os postos possível. Poder e liberdade são considerados anti-
capazes de processar decisões governamentais, ora téticos na tradição liberal, e essa oposição marcou
outro. As oscilações decorrentes desse processo decisivamente o surgimento das primeiras constitui-
refletem-se diretamente sobre a formulação e a ções escritas do final do século XVIII. Contempora-
implementação das policies, que são objetos da neamente, o conjunto de dispositivos constitucio-
avaliação do eleitorado o qual – com base num nais relacionados à regulação desse antagonismo
juízo sobre o desempenho do governo – premia vem sendo difundido por meio das noções de
ou pune seus representantes nas eleições subse- Estado de Direito e Rule of Law. Posteriormente,
qüentes, por meio de escolhas eleitorais. Se a com a ampliação do sufrágio, as Cartas também pas-
alternância de grupos (partidos) no governo é saram a ter de lidar com a incorporação de contin-
uma condição do regime democrático, a variação gentes cada vez maiores da população ao proces-
das políticas públicas (policies) é uma conseqüên- so político. Dessa forma, às duas noções anteriores
cia prática inevitável (e desejável) desse princípio. acrescentou-se a de Estado democrático.
A possibilidade de que tal variação de policies Uma primeira classificação do texto constitu-
ocorra é, portanto, pré-requisito a que a alternân- cional, minimalista em termos de polity e policy,
cia de grupos (partidos) no governo tenha efeitos deveria retornar às origens do constitucionalismo
práticos. Daí as menores exigências das regras moderno e aos princípios liberais que marcaram
decisórias referentes à produção de policies, se a refundação do Estado, bem como aos princípios
comparadas àquelas necessárias para o emenda- democráticos que vieram em seguida, especial-
mento constitucional.13 mente a ampliação dos direitos de participação.
50 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

Nesse sentido, os seguintes critérios poderiam ser confundir direitos individuais de proteção (contra
adotados para identificar os dispositivos típicos da o Estado e também contra outras pessoas) e de
polity e, por exclusão, revelar aqueles que pode- participação na esfera pública, com os direitos de
riam ser considerados veículos de policy. Dentre emulação mediante políticas governamentais que
os princípios de um regime liberal-democrático visem a atenuar desigualdades socioeconômicas.
clássico, formalizados constitucionalmente, ape- Nessa classificação inicial, o primeiro tipo de direi-
nas seriam típicos da polity: tos compõe a polity e, portanto, tem natureza cons-
titucional. O segundo aproxima-se da categoria de
1. As definições de Estado e nação, tais como o policy, apesar de sua inclusão na Carta conferir-lhe
regime republicano ou monárquico, a defini- formalmente status constitucional.
ção do território, a organização federativa ou A policy é quase tocada pela segunda vez
unitária, o exercício direto e/ou representativo quando, no critério 3 (regras do jogo), menciona-
do poder político pelos cidadãos, a noção de mos as funções dos entes governamentais. Note-
nacionalidade e a estrutura do aparato estatal. se que esse critério se destina a catalogar provi-
sões constitucionais que organizam processos –
2. Os direitos individuais fundamentais, carac-
como o da divisão de atribuições governamentais
terizados pelas condições básicas do exercí-
específicas entre órgãos estatais – e não devem
cio da cidadania individual (direitos civis).
ser confundidas com dispositivos que estabele-
Consideramos princípios da polity, nessa pri-
çam funções promocionais do Estado e são clas-
meira classificação geral, as garantias da liber-
sificados como policy. As funções de governo só
dade civil, que Berlin (1981, pp. 133-145) reu-
serão classificadas como polity quando disserem
niu sob a expressão “liberdade negativa”
respeito a questões de ordem procedimental, rela-
(proteção do cidadão contra a ação arbitrária
cionadas à distribuição horizontal de poder entre
do Estado), e os direitos políticos de partici-
os diversos entes estatais, ao funcionamento inter-
pação democrática. Note-se que esse critério
no desses mesmos entes, à participação democrá-
minimalista afasta da definição constitucional
tica dos cidadãos e à garantia de suas liberdades
da polity os direitos substantivos, individuais
negativas. Funções passíveis de serem classifica-
e sociais, que normalmente vêm acompanha-
das como polity não serão aquelas que se referem
dos de normas constitucionais programáticas.
a funções emuladoras do Estado, mas aquelas ins-
3. As regras do jogo, que organizam os proces- piradas nos princípios liberal (do governo limita-
sos de participação e competição políticas, do) e democrático (do governo participativo). Por
relacionamento entre e intrapoderes, intera- outro lado, serão classificadas como policy justa-
ção entre níveis de governo e entre atores mente quando impuserem obrigações positivas
coletivos reconhecidos como lidando com (“direito do cidadão, dever do Estado”) numa pers-
interesses de natureza pública. Tais regras pectiva vertical de relação entre o governo e a
estipulam: (a) a divisão de prerrogativas e sociedade, em torno de direitos substantivos cuja
funções entre os atores institucionais, (b) as efetivação depende da implementação de políticas
regras operacionais do processo decisório sociais.
governamental e (c) os tempos e os prazos Entretanto, desde que Marshall (1967) defi-
que balizam tais processos. niu a composição tripartite da cidadania moderna
em direitos civis, políticos e sociais e que os tex-
Esses três critérios partem da maior generali- tos constitucionais da segunda metade do século
dade possível da polity (critério 1) e ganham espe- XX estabeleceram um amplo leque de obrigações
cificidade até quase tocar o nível de policy por sociais do Estado, tornou-se bastante difícil defen-
duas vezes. Pela primeira vez, quando, no critério der um conceito de polity tão minimalista como o
2, a menção à cidadania poder-nos-ia levar a estabelecido acima.14 Em todos os países que recen-
incluir direitos constitucionais substantivos que temente adotaram o figurino liberal-democrático,
requerem policies para sua efetivação. Todavia, gamas importantes de direitos sociais foram men-
nessa definição minimalista de polity, evitamos cionadas nos capítulos constitucionais destinados
CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 51

aos direitos e às garantias fundamentais. Nossas vida democrática, os direitos materiais aqui
constituições atuais não se restringem a estabele- mencionados podem ser considerados direi-
cer os limites necessários à vigência da “liberdade tos condicionantes do jogo político nesses
negativa” e tratam de avançar na direção da igual- regimes, na medida em que mantêm a ade-
dade, impondo obrigações positivas ao Estado. É são social ao pacto político democrático.16
verdade que a realização dessa igualdade é obs-
tada pelo direito também constitucional da pro- Por fim, independentemente do maior peso
priedade privada, não sendo demais lembrar que liberal-democrático ou igualitário das Cartas, nor-
tal dispositivo é a pedra angular do Estado de mas propriamente constitucionais referem-se ape-
Direito liberal.15 De qualquer forma, considera-se nas a princípios fundamentais do ordenamento
um grande salto de cidadania a constitucionalização político, e não a detalhes que são o objeto da poli-
de direitos de igualdade material entre os homens, tics infraconstitucional cotidiana durante a confec-
mesmo que definições como “função social da pro- ção das policies. A constitucionalização de assuntos
priedade” e “Estado Democrático de Direito” com- que são a matéria-prima do jogo político ordinário
portem boa dose de contradição, refletida em ten- extrapolaria justamente o caráter constitucional,
sões no interior do texto constitucional. conformador do jogo, pois estipularia rigidamente
Por essas razões e apesar de os conceitos de e a priori o que será ou não passível de mudança
cidadania e polity não designarem a mesma coisa, pela maioria política. Limitando-se em demasia os
decidimos trabalhar com dois tipos de classifica- resultados possíveis do jogo, constrange-se a liber-
ção: a minimalista, baseada nos três critérios acima, dade dos atores na politics cotidiana, equiparando
e uma maximalista, que além dos três anteriores, a polity ao que é considerado policy, primeira-
incorporaria um quarto critério, mencionado a mente, pelos próprios contendores políticos. Tendo
seguir: isto em vista, incluímos dois critérios adicionais
para classificar textos constitucionais:
4. Os direitos materiais orientados para o bem-
estar e a igualdade, assim como as funções 5. Critério de Generalidade. Não serão classifi-
estatais a eles associadas. Tais direitos e fun- cados como polity os dispositivos constitu-
ções estatais não se confundem com os três cionais não genéricos (muito específicos).
critérios anteriores, dado que não têm impli- Embora de difícil definição em abstrato, a
cação direta sobre as definições de Estado e distinção entre generalidade e especificidade
nação, não constituem direitos civis de pro- poderia ser determinada da seguinte forma:
teção à liberdade individual, nem direitos são específicos os dispositivos derivados de
políticos de participação democrática, assim princípios constitucionais superiores, mas
como não configuram regras processuais da cujo conteúdo pode sofrer alterações sem que
competição pelo poder ou das relações isso ponha em risco as provisões mais amplas
entre e intra-órgãos governamentais. Toda- sob os quais esses dispositivos estão abriga-
via, não se trata aqui de fazer mera conces- dos. Essa é uma maneira eficaz de distinguir
são a uma visão da Constituição como pro- polity de policy, uma vez que os textos cons-
grama social de governo, mas de indicar que titucionais contemporâneos tendem, metafo-
determinados direitos materiais podem ser ricamente, a assemelhar-se a árvores de cujo
considerados condições básicas para o fun- tronco saem galhos que se ramificam até os
cionamento adequado do regime democráti- últimos detalhes. Nosso critério de generali-
co. Tais direitos têm a importante função de dade poderia funcionar à maneira da poda,
promover a adesão ao pacto político demo- cortando pontas de galhos sem ameaçar a
crático e suprimi-los poderia levar a demo- vida da árvore: igualmente, há dispositivos
cracia ao colapso. Enquanto os direitos civis constitucionais cuja retirada do texto não
de liberdade e políticos de participação men- poria em risco os princípios fundamentais a
cionados no critério 2 podem ser considera- que estão associados. Isto será particularmen-
dos direitos operacionais fundamentais à te útil na desclassificação da condição de poli-
52 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

ty dos dispositivos que estabelecem regras do policies reduz em demasia a liberdade decisória
jogo, mas que por serem demasiadamente dos atores e, portanto, o faz em detrimento da
detalhistas, especificando processos que cabe- democracia. Afinal, restringe para além do neces-
riam à normatividade infraconstitucional, sário, numa democracia constitucional, a possibili-
poderiam ser “podados” da Constituição sem dade de que à alternância dos partidos e das lide-
que a essencialidade do princípio superior ranças no governo corresponda uma modificação
fosse afetada. das políticas públicas implementadas – tendo em
vista o leque ideológico e de interesses de uma
6. Critério de Controvérsia. Também deixarão
determinada sociedade num dado momento histó-
de ser classificados como polity dispositivos
rico. Com isso a competição democrática não é
cujo conteúdo for tipicamente objeto da
impedida no plano eleitoral, mas tem seus efeitos
controvérsia político-partidária cotidiana,
restringidos ou em certa medida anulados no
dizendo respeito às plataformas governa-
plano governamental. Pode-se supor que é justa-
mentais apresentadas pelos partidos em seu
mente para isto que servem as constituições – res-
embate pelos postos de governo e não se
tringir a ação dos governos. Mas a suposição é
enquadrando, portanto, nas condições que incorreta se não considera que tal restrição, caso
caracterizam dispositivos de tipo constitucio- ultrapasse certos limites, impede que a própria von-
nal, seja como normas paramétricas da politics, tade popular se realize periodicamente mediante as
seja como regras definidoras de limiares e limi- ações de representantes eleitos.
tes das policies. Em princípio não serão des- O critério da controvérsia aponta para o fato
classificados como polity dispositivos constitu- de que não é legítimo numa democracia constitu-
cionais que estabeleçam regras procedimentais, cionalizar questões que sejam controversas na
exceto quando tenham sido inseridos na Carta disputa partidária. A Constituição deve procurar
apensados a um outro dispositivo que é, ele definir (no limite do possível) apenas o que é
mesmo, policy. incontroverso: as condições básicas de funciona-
mento de um sistema político competitivo. Daí, o
As razões pelas quais adotamos estes dois que for objeto de disputa deve ser resolvido na
últimos critérios são as seguintes. Quanto à gene- disputa, ou seja, nos processo eleitoral e decisó-
ralidade, normas muito específicas não consti- rio, dentro dos marcos poliárquicos.
tuem parâmetros de funcionamento do sistema Por fim, a excessiva limitação constitucional
político, de desenrolar do jogo e de limitação do restringirá ainda mais o alcance das decisões majo-
escopo das decisões, pois equivalem – de ante- ritárias ao multiplicar os motivos para que mino-
mão – às próprias decisões que caberia aos atores rias derrotadas recorram à Justiça como forma de
políticos tomar; por conta disso, não têm caráter obliterar decisões legislativas ordinárias, alegando
constitucional. Ademais, é de se esperar que aca- sua inconstitucionalidade – claro, apenas onde se
bem por criar obstáculos na conjuntura à gestão adote o controle judicial da constitucionalidade
democrática, na medida em que engessam a ação das leis. Em suma, a constitucionalização de poli-
dos governantes e/ou dos atores sociais diante de cies impõe a vontade momentânea de uma maio-
situações imprevistas, mudanças de condições ria conjuntural às maiorias futuras, cerceando-lhes
sociais e econômicas, novas tecnologias etc. Com (Cf. Holmes, 1988). O Quadro 2 resume os crité-
isso, a Constituição pode se tornar um instrumen- rios de classificação do texto constitucional relati-
to que, em vez de conferir maior segurança jurí- vos aos dois modelos teorizados nesta seção.
dica à sociedade, impeça-a de dar cabo de seus
problemas em tempo hábil e com a precisão
necessária, devido ao congelamento constitucio- Análise dos resultados17
nal de temas e problemas próprios da conjuntura
e afeitos à ação governamental. A versão original da Constituição de 1988
O mesmo se aplica à questão da controvér- contém 245 artigos. Decompostos em parágrafos,
sia – com um agravante. A constitucionalização de incisos e alíneas, eles se desdobram em 1.627 dis-
CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 53

Quadro 2
Critérios de Distinção de Matérias Constitucionais e Não-constitucionais

MODELOS DE CLASSIFICAÇÃO

MINIMALISTA (liberal clássico) MAXIMALISTA(social)


(1) As definições de (1) As definições
Estado e Nação de Estado e Nação
(2) Os direitos (2) Os direitos
CRITÉRIOS SUBSTANTIVOS individuais fundamentais individuais fundamentais
(3) As regras do jogo (3) As regras do jogo
(4) Os direitos materiais

e funções estatais correlatas
(5) Generalidade (5) Generalidade
CRITÉRIOS FORMAIS/OPERACIONAIS
(6) Controvérsia (6) Controvérsia

positivos. Para efeitos desta primeira contabilida- Tabela 1


de do texto constitucional, preferimos excluir o Constituição: polity ou policy?
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
(ADCT), por sua natureza específica de regra de Freq. %
transição.18 Depois de rigoroso exame de cada um Polity 1.131 69,5
dos 1.627 dispositivos da Carta original e aplica-
Policy 496 30,5
ção da Metodologia de Análise Constitucional
(MAC), concluímos que 30,5% deles podem ser TOTAL 1.627 100
classificados seguramente como policy e 69,5%
dizem respeito a normas de caráter constitucional
– polity (ver Tabela 1). lismo, dos governos subnacionais e de suas relações
com a União. Apenas em terceiro lugar, praticamen-
te empatados, aparecem os títulos “Direitos e garan-
Dispositivos de polity tias fundamentais” e “Ordem Social”, responsáveis
justamente pelos elementos mais concretos e defini-
O Gráfico 1 apresenta a distribuição de dis- dores da cidadania civil, política e social brasileira.
positivos de polity e policy ao longo dos nove títu- A Tabela 2 apresenta um novo perfil da
los que compõem a Constituição. Em termos Constituição, mais revelador do que a topografia
gerais, deve-se destacar que o título “Da organiza- aparente dos títulos formais. Com base na aplica-
ção dos poderes” é responsável por quase 1/3 do ção dos quatro critérios formulados pela MAC, foi
total de dispositivos da Carta, indicando que os possível revelar que mais da metade dos disposi-
constituintes de 1988 tiveram grande preocupação tivos de polity da Carta de 1988 (55,3%) diz res-
em estabelecer minuciosamente a dimensão horizon- peito a regras do jogo, estabelecendo a divisão de
tal e funcional do sistema político brasileiro: compo- prerrogativas e funções entre os atores institucio-
sição, competências, prerrogativas e regras de fun- nais, os mecanismos operacionais do processo
cionamento dos poderes Executivo, Legislativo, decisório governamental e os tempos e prazos que
Judiciário e órgãos auxiliares como o Ministério balizam tais processos. Quanto aos aspectos que
Público, a Advocacia-Geral da União, entre outros. poderíamos definir como ainda mais estruturais ou
O segundo maior é o título “Da organização do estáticos do ordenamento constitucional – as “defi-
Estado”, que estabelece a estrutura político-adminis- nições de Estado e nação” –, estes ocuparam ape-
trativa do país, enfatizando a dimensão do federa- nas 6,5% do texto promulgado em 1988.
54 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

Tabela 2 Em 24,3% dos dispositivos constitucionais de


Tipos de Polity tipo polity detectamos mais de um sentido nor-
Freq. % mativo, isto é, tais dispositivos contemplam mais
de um dos quatro critérios formulados pela MAC,
1. Definições de Estado e Nação 74 6,5
com destaque também para a presença de regras
2. Direitos individuais 92 8,1 do jogo na maior parte deles: 230 dos 275 dispo-
3. Regras do jogo 625 55,3 sitivos de polity duplos, triplos ou quádruplos con-
tém regras do jogo, simultaneamente a outro(s)
4. Direitos materiais 65 5,7 dos três critérios de classificação.
DISPOSITIVOS COM MAIS DE UM SENTIDO Em suma, observamos que 855 ou 75,5% dos
dispositivos de polity da Carta brasileira dizem
Definição de Estado e Nação +
respeito – exclusivamente ou em associação com
Regras do Jogo 160 14,1 outros – a definições de regras do jogo.
Direitos individuais + Uma primeira conclusão a extrair desse
48 4,2 resultado é que, se a Constituição brasileira pode
Regras do Jogo
ser considerada muito extensa, seu tamanho refle-
Outros dispositivos duplos 58 5,1
te o nível de detalhamento atingido pela Consti-
Outros dispositivos triplos 8 0,8 tuinte na definição dos procedimentos que deve-
Dispositivo quádruplo 1 0,1 riam presidir o funcionamento da democracia
vindoura, algo que certamente pode ser explicado
TOTAL 1.131 100 pelas preocupações da época em torno da libera-

Gráfico 1
Polityou
Polity ou policy,
policy, nos
nos Nove
nove Títulos
títulos da
da Constituição
Constituição de
de 1988
1988

600

500

400

300

200

100

0
Princípios Direitos e Organização Organização Defesa do Tributação e Ordem Ordem Disposições
fundamentais garantias do Estado dos Poderes Estado e das do Orçamento econômica e social constitucionais
fundamentais Instituições financeira gerais
Democráticas

Polity Policy
Policy
CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 55

lização e da redemocratização do regime político. do Estado”, traz dispositivos que criam estrutura
Por outro lado, se Ulysses Guimarães alcunhou o estatal e simultaneamente introduzem regras do
texto como “Constituição Cidadã”, o adjetivo jogo para o seu funcionamento, especialmente no
perde força aos verificarmos que, quantitativa- que diz respeito à dimensão federativa.
mente, os componentes sociais, civis e políticos da Previsivelmente, no título “Da organização
cidadania são incomparavelmente inferiores à dos Poderes” predominam regras do jogo. O títu-
dimensão das regras do jogo: apenas 5,7% dos lo IV, que é o maior e talvez mais importante da
dispositivos constitucionais dizem respeito a direi- Carta (por definir o modus operandi das institui-
tos materiais de bem-estar e igualdade social, ao ções que compõem o regime democrático brasi-
passo que somente 8,1% concernem a direitos leiro), estrutura detalhadamente os três Poderes
individuais de liberdade e de participação políti- de Estado e alguns organismos paralelos e auxi-
ca. Somados, os dispositivos “cidadãos” perfazem liares (Conselho da República, Conselho de De-
pouco mais de 13% da Carta de 1988. fesa Nacional, Ministério Público, Advocacia Geral
O Tabela 3 apresenta o perfil dos dispositi- da União e Defensoria Pública). Além de definir a
vos de polity no interior de cada título da organização e as atribuições do Legislativo, do
Constituição, à luz dos quatro critérios da MAC. Executivo, do Judiciário e do Ministério Público,
Como era de se esperar, a Carta abre majoritaria- estabelece condições de elegibilidade e de investi-
mente com “Definições de Estado e de Nação” no dura nas respectivas carreiras públicas, bem como
seu primeiro título, embora este contenha tam- normas relativas ao exercício do cargo (mandatos,
bém um pouco de “direitos individuais funda- imunidades, responsabilidades etc.); estabelece
mentais” e outros dispositivos que combinam de regras para o processo Legislativo, a fiscalização
dois a três tipos de polity. O segundo título, como financeira e orçamentária do governo e outros pro-
o próprio nome indica, contém majoritariamente cedimentos para o controle recíproco entre os pode-
“direitos individuais fundamentais”, ladeados por res; chega a detalhes na organização do Judiciário
um pouco de “direitos materiais” e também de federal e impõe linhas gerais para a organização do
“regras do jogo”. O terceiro título, “Organização Judiciário nos estados.

Tabela 3. Composição dos Títulos da Constituição, por tipos de Polity


Princípios Direitos e Defesa do Disposições
Tributação Ordem Ordem
garantias Organização Organização Estado e das constitu-
fundamen- fundamen- do Estado dos Poderes Instituições e do econômica cionais
tais Orçamento e financeira social
tais Democráticas gerais
Definições de 40,9% (9) 7,5% (10) 10,9% (21) 5,0% (24) 9,3% (5) 0,0% (0) 15,6% (5) 0,0% (0) 0,0% (0)
Estado e Nação
Direitos
individuais 18,2% (4) 44,0% (59) 0,5% (1) 0,0% (0) 9,3% (5) 1,7% (2) 18,8% (6) 17,4% (15) 0,0% (0)
fundamentais
Regras 0,0% (0) 14,9% (20) 28,5% (55) 82,4% (397) 53,7% (29) 87,1% (101) 9,4% (3) 10,5% (9) 100,0% (11)
do jogo
Direitos 0,0% (0) 13,4% (18) 0,5% (1) 0,0% (0) 0,0% (0) 0,0% (0) 18,8% (6) 46,5% (40) 0,0% (0)
materiais
Estado e Nação
+ Regras 9,1% (2) 0,7% (1) 51,3% (99) 10,6% (51) 1,9% (1) 2,6% (3) 9,4% (3) 0,0% (0) 0,0% (0)
do Jogo
Outros princí- 27,3% (6) 19,4% (26) 7,3% (14) 2,1% (10) 25,9% (14) 8,6% (10) 25,0% (8) 20,9% (18) 0,0% (0)
pios duplos
Outros 4,5% (1) 0,0% (0) 1,0% (2) 0,0% (0) 0,0% (0) 0,0% (0) 3,1% (1) 4,7% (4) 0,0% (0)
princípios

Total 100,0% (22) 100,0% (134) 100,0% (193) 100,0% (482) 100,0% (54) 100,0% (116) 100,0% (32) 100,0% (86) 100,0% (11)
56 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

O título V reúne dispositivos que ascende- títulos das “Disposições constitucionais gerais” e da
ram a tal ponto da topografia constitucional, pro- “Ordem econômica e financeira” foram os que
vavelmente por terem como elemento principal apresentaram maior freqüência de policy, com
as Forças Armadas. Refletindo o peso político re- aproximadamente 70% do total de dispositivos (ver
manescente dos militares à época da Constituinte, Gráfico 2). Na seqüência, figura o título da “Ordem
não só se manteve o status constitucional diferen- social”, no qual cerca de 60% dos dispositivos con-
ciado para as Forças Armadas, como também, templam policy e não polity. Nada menos que 1/3
preservando a tradição, disciplinaram-se a seu do título “Da tributação e do orçamento” e até
lado os mecanismos de “Defesa do Estado e das mesmo do título “Direitos e garantias fundamen-
instituições democráticas” (nome do título V), a tais” não contemplam matérias de natureza consti-
saber, a Segurança Pública e os Estados de Defesa tucional, pois se referem a policy e não a polity.
e de Sítio. Noutro contexto de transição democráti- Enfim, mesmo títulos referidos às linhas básicas do
ca possivelmente tais elementos dispersar-se-iam moderno constitucionalismo – “Da organização do
(submetidos normativamente) a outros títulos cons- Estado” e “Da organização dos poderes” – revela-
titucionais. Seja como for, por estabelecer condi- ram a existência de dispositivos policy em seu inte-
ções da decretação dos Estados de Defesa e de rior: o primeiro com taxa de 27% e o segundo com
Sítio, o título também reúne boa soma de dispositi- taxa de 10% do total de dispositivos.
vos classificados como regras do jogo. Como mostra a Tabela 4, dos 496 dispositi-
Ao estabelecer princípios de “Tributação e vos classificados como policy, 205 deles (41,3%)
orçamento” no título VI, os constituintes também sequer têm relação com os quatro princípios
instituíram um detalhado conjunto de regras do constitucionais definidos pela MAC e podem, por-
jogo sobre a conduta governamental em relação tanto, ser considerados políticas públicas em esta-
às finanças públicas. Mais do que isso, a maior do puro. Logo, poderiam tranqüilamente integrar
parte dos dispositivos foi assim classificada por se a agenda legislativa ordinária de qualquer gover-
referir ao pacto federativo em torno das possibili- no, sem afetar quaisquer dos princípios. Outros
dades de tributar e dos princípios de repartição 43,5% dos dispositivos de policy da Constituição
das receitas tributárias. A dimensão federativa tem ao menos tangenciam um dos quatro critérios,
um peso excepcional em todo o texto constitu- mas sua especificidade é tamanha que caberia à
cional e essa é uma das principais explicações lei complementar ou ordinária discipliná-los. Pelo
para o grande número de dispositivos de polity critério de controvérsia, 35 dispositivos que reme-
do tipo regras do jogo, dispersos por vários títu- tem a aspectos de polity foram desclassificados de
los e seções da Carta de 1988. tal condição, justamente por constitucionalizarem
Embora menor do que os demais na propor- aspectos que estão longe do consenso básico
ção de polity, o título VII contempla um pouco de característico de regras constitucionais. Ocorre
cada um dos quatro princípios definidos pela MAC. que, ao resguardá-los sob o manto protetor da
Já no título VIII predominam os “direitos materiais” Constituição, os constituintes retiraram de futuras
até porque ele trata “Da ordem social”. Por fim, os maiorias políticas ordinárias o direito de adotar
poucos dispositivos classificados como polity, pre- soluções alternativas, tão razoáveis – porém con-
sentes no último título da Carta e destinados a troversas – quanto as estabelecidas pela Carta.
aspectos gerais, dizem respeito, na sua totalidade, Outros quarenta dispositivos foram classificados
a regras do jogo. como policy por serem simultaneamente específi-
cos e controversos.
A Tabela 5 traz a exata medida da agenda
Dispositivos de policy legislativa futura (de tipo complementar ou ordi-
nário) criada pela Constituição: 379 dispositivos
Excetuado o título relativo aos “Princípios ou 23,3% da Carta fixaram a necessidade de lei
fundamentais” (por sinal o menor deles, com ape- federal para regulamentar ou garantir a efetivida-
nas 22 dispositivos), encontramos dispositivos de de de princípios constitucionais. Uma tarefa de
policy em todos os demais. Percentualmente, os pesquisa empírica é verificar em que medida as
CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 57

Gráfico
Gráfico 32
Polity ou Policy
Polity policy nos nove
Nove títulos
TítulosdadaConstituição
Constituição(em
(em%)
%)

100%

80%

60%

40%

20%

0%
Principios Defesa do Organização Organização Direitos e Tributação e Ordem Ordem Disposições
fundamentais Estado e das dos Poderes do Estado garantias do Orçamento social econômica constitucionais
Instituições fundamentais e financeira gerais
Democráticas

Polity Policy

Tabela 4 ções estaduais que iriam ser elaboradas na


Por que Policy? seqüência da federal.

Freq. %
Policy pura 205 41,3 Constituição e reforma constitucional
Policy por especificidade 216 43,5
Uma das principais motivações deste estudo
Policy por controvérsia 35 7,1 reside na tentativa de mensurar o impacto do per-
Policy por especificidade fil da Carta constitucional sobre o processo gover-
40 8,1 namental, a elaboração legislativa e a produção de
e controvérsia
TOTAL 496 100
Tabela 5
Dispositivos que Remetem à Legislação
legislaturas posteriores lograram cumprir essa
missão e quantos dos 379 dispositivos foram de Freq. %
fato complementados e/ou regulamentados por Remetem à lei federal 379 23,3
normatização infraconstitucional. Outros poucos Remetem à lei estadual 2 0,1
dispositivos remetem a leis federais e estaduais.
Remetem à lei municipal 1 0,1
Um último dado interessante, mostrado na
Tabela 6, é que a Constituição de 1988 contém Remetem a leis federal e estadual 9 0,5
auto-referências em 12,4% dos seus dispositivos, Remetem a leis federal e municipal 1 0,1
os quais remetem a outros pontos da própria
Não remetem à lei 1.235 75,9
Carta. Uma pequena quantidade faz remissão
inclusive a determinados aspectos das constitui- TOTAL 1.627 100
58 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

Tabela 6 proporção significativamente superior aos dispositi-


Dispositivos que Remetem à Constituição vos de polity incluídos. Compreender precisamente
Freq. % por que isso ocorreu segue sendo um desafio ana-
lítico e de pesquisa empírica. Nessa perspectiva,
Remetem à própria Carta 202 12,4 verificamos com maior acuidade sobre o que inci-
Remetem à Constituição estadual 5 0,3 diram as emendas que visaram a modificar aspec-
tos do texto constitucional (se polity ou policy). O
Remetem a ambas 1 0,1
resultado encontra-se na Tabela 7.
Não fazem remissão 1.419 87,2
TOTAL 1.627 100
Tabela 7
Constituição e Emendas Constitucionais – FHC
políticas públicas. A pergunta subjacente a esse DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS
objetivo segue sendo a mesma, desde que nos
Tipo de dispositivo Sofreram Não sofreram
aproximamos do tema pela primeira vez: afinal,
original modificação modificação
por que a Constituição brasileira de 1988 não teria
conseguido se estabilizar e por que todos os Polity 92 1.039
governos posteriores se esforçaram por modificá- Policy 68 428
la em diversos aspectos? No trabalho anterior
(Couto e Arantes, 2003) em que aplicamos a MAC TOTAL 160 1.467
ao conjunto de emendas constitucionais promul-
gadas durante os dois mandatos do presidente
Fernando Henrique Cardoso, chegamos a resulta- Embora o maior número de emendas modi-
dos surpreendentes: ficadoras tenha incidido sobre dispositivos de poli-
ty do texto original, proporcionalmente é bem
1. Dos 482 dispositivos de emendas que modi- mais significativo o número de emendas sobre dis-
ficaram ou aglutinaram novos elementos positivos de policy, se considerarmos o perfil geral
constitucionais, nada menos que 68,8% da Constituição. O fato é que teste estatístico19 rejei-
(332) eram de policy e apenas 31,2% (150) tou a hipótese de independência entre as variáveis
eram de polity. da tabela, revelando que existe uma associação entre
2. Do total de dispositivos de emendas consti- policy constitucionalizada e emendas modificadoras.
tucionais, 60,8% eram aglutinadores, isto é, Noutras palavras, as mudanças constitucionais do
vieram agregar novos aspectos à Consti- período FHC incidiram mais significativamente sobre
tuição. Dentre os aglutinadores, nada menos dispositivos de policy do que em dispositivos de poli-
que 82,7% diziam respeito a policy e apenas ty, o que corrobora a hipótese com a qual estamos
17,9% acrescentaram mais polity à Carta. trabalhando desde o início: a agenda política e
3. A conclusão geral a que chegamos naquele governamental brasileira segue sendo uma agenda
estudo foi que, ao contrário do que se afir- constituinte, não porque sucessivos presidentes
mava no debate público, nossa Constituição quiseram mutilar os princípios fundamentais ou
não fora mutilada pelas emendas constitu- por outra razão exógena, mas porque a própria
cionais do período FHC. Pelo contrário, gra- Carta os obrigou a alterar a Constituição para
ças a elas, a Carta cresceu nada menos que implementar as políticas públicas. Mais do que
15,3%, o dobro da taxa de modificação do isso, o grande legado constitucional da era FHC
texto original, nesse mesmo período, que foi foi ter acrescentado 250 novos dispositivos de
de apenas 8,8%. policy à Carta brasileira, constitucionalizando mais
a agenda governamental e estendendo o desafio
Em suma, o crescimento do texto constitucio- de formar coalizões legislativas majoritárias à base
nal no período FHC foi marcado pela inclusão de de 3/5 aos governos posteriores.
novos dispositivos de policy na Constituição, em
CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 59

BIBLIOGRAFIA DAHL, R. A. (1997), Poliarquia: participação e


oposição. São Paulo, Edusp.
ACKERMAN, B. (1988), Neo-federalism?, in J. DI RUFFÌA, Paolo Biscaretti. (1996), Introducción
Elster e R. Slagstad (eds.), Constitutiona- al derecho constitucional comparado.
lism and democracy, Cambridge: Cam- México, Fondo de Cultura Económica.
bridge University Press.
FIOCCA, Demian & GRAU, Eros (orgs.). (2001),
ARANTES, Rogério Bastos. (1997), Judiciário e Debate sobre a Constituição de 1988. São
política no Brasil. São Paulo, Sumaré/ Paulo, Paz e Terra.
Educ/Fapesp.
HOLMES, Stephen. (1988), “Precommitment and
ARANTES, Rogério Bastos & KERCHE, Fábio J. the paradox of democracy”, in Jon Elster
(1999), “Judiciário e democracia no Brasil”. e Rune Slagstad, Constitutionalism and
Novos Estudos, 54: 27-41, jul., São Paulo, democracy, Cambridge: Cambridge Uni-
Cebrap. versity Press.
BERLIN, Isaiah. (1981), Quatro ensaios sobre a HOLMES, Stephen & SUNSTEIN, Cass. (1995),
liberdade. Brasília, Editora da UnB. “The politics of constitutional revision in
BUCHANAN, J. M. & Tullock, G. (1999 [1962]), Eastern Europe”, in Sanford Levinson
The calculus of consent: logical founda- (ed.). Responding to imperfection: the
tions of constitutional democracy. India- theory and practice of constitutional
napolis, Liberty Fund. amendment, Princeton, Princeton Univer-
sity Press.
COELHO, João G. Lucas & OLIVEIRA, Antonio C.
Nantes. (1989), A nova Constituição: ava- _________. (1999), The cost of rights: why liberty
liação do texto e perfil dos constituintes. depends on taxes. Nova York, W.W.
Rio de Janeiro, Inesc/Revan. Norton.

COUTO, Cláudio Gonçalves. (1997), “A Agenda LAMOUNIER, Bolívar (org.). (1990), De Geisel a
constituinte e a difícil governabilidade”. Collor: o balanço da transição. São Paulo,
Lua Nova – Revista de Cultura e Política, Idesp/Sumaré.
39: 33-52. São Paulo, CEDEC, 1997. LASSALLE, Ferdinand. (2000), A essência da cons-
_________. (1998), “A longa Constituinte: reforma tituição. Rio de Janeiro, Lumen Juris.
do Estado e fluidez institucional no LEVINSON, Sanford (ed.). (1995), Responding to
Brasil”. Dados, 41 (1): 51-86. imperfection: the theory and practice of
_________. (2001), “O avesso do avesso: conjuntu- constitutional amendment. Princeton,
ra e estrutura na recente agenda política Princeton University Press.
brasileira”. Revista São Paulo em Perspec- LIJPHART, A. (1989), As democracias contempo-
tiva, 15 (4): 32-44, São Paulo, Seade. râneas. Lisboa, Gradiva.
_________ (2005), “Constituição, competição e LUTZ, Donald S. (1995), “Toward a theory of
políticas públicas”. Lua Nova – Revista de Constitutional amendment”, in Sanford
Cultura e Política, 65: 95-135, maio-ago. Levinson (ed.), Responding to imperfec-
tion: the theory and practice of constitu-
COUTO, Cláudio Gonçalves & ARANTES, Rogério
tional amendment, Princeton, Princeton
Bastos. (2003), “¿Constitución o políticas
University Press.
públicas? Una evaluación de los años
FHC”, in Vicente Palermo, Política brasi- MARSHALL, T. H. (1967), “Cidadania e classe
leña contemporánea: de Collor a Lula en social”, in T. H. Marshall, Cidadania,
años de transformación, Buenos Aires, classe social e status, Rio de Janeiro,
Siglo Veintiuno Editores. Zahar.
60 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

MELO, Marcus A. (2002), Reformas constitucio- 3 O texto elaborado pela Comissão Especial de
nais no Brasil: instituições políticas e pro- Estudos Constitucionais (Comissão Afonso Arinos)
cesso decisório. Rio de Janeiro/Brasília, foi descartado pelo presidente José Sarney.
Revan/Ministério da Cultura. 4 Em sua obra clássica de teoria constitucional, Schmitt
MURPHY, Walter F. (1995), “Merlin’s memory: the (1982) aponta que a Constituição de Weimar conti-
nha diversos dispositivos que não mereceriam o
past and future imperfect of the once and
qualificativo de constitucionais, mas que ali foram
future polity”, in Sanford Levinson (ed.),
introduzidos pela oportunidade que alguns grupos
Responding to imperfection: the theory and tiveram de cristalizar constitucionalmente seus inte-
practice of constitutional amendment, resses particulares.
Princeton, Princeton University Press.
5 Segundo Melo (2002), “Instalada em 13 de outubro
SARTORI, G. A. (1994), Teoria da democracia de 93 e encerrada em 31 de maio de 94, a revisão, ao
revisitada. São Paulo, Ática, 2 vols. longo de 80 sessões, votou apenas 19 mudanças, das
quais 12 foram rejeitadas já no primeiro turno das
SCHMITT, Carl. (1982), Teoría de la constitución.
votações. Das 17 mil emendas relatadas – ou melhor,
Madrid, Alianza.
simplesmente ignoradas – pelo relator, deputado
SCHUMPETER, Joseph. (1980), Capitalismo, Nelson Jobim, apenas seis foram aprovadas. Destas
socialismo e democracia. Rio de Janeiro, últimas, a única emenda relevante é a que reduziu o
Zahar. mandato do Presidente da República, de cinco para
quatro anos” (2002, p. 60).
SUNSTEIN, Cass. (2001), Designing democracy:
6 Vale ressaltar um aspecto formal relevante, a saber,
what constitutions do. Oxford/Nova York,
uma revisão constitucional é, em princípio, um
Oxford University Press.
processo promotor de mudanças muito mais fun-
TSEBELIS, G. (1997), “Processo decisório em siste- damentais do texto constitucional originário do
mas políticos: veto players no presidencia- que o são emendas constitucionais. Nos termos de
lismo, parlamentarismo, multicameralismo Murphy: “A palavra emendar vem do latim emen-
e pluripartidarismo”. Revista Brasileira de dere, que significa corrigir ou aprimorar; emendar
Ciências Sociais, 12 (34): 89-117. não significa ‘desconstituir ou reconstituir’, substi-
tuindo um sistema por outro ou abandonando os
WALDRON, Jeremy. (1999), Law and disagree- seus princípios primários. Portanto, mudanças que
ment. Oxford, Clarendon Press. viessem a transformar uma polity numa outra espé-
cie de sistema político não seriam emendas, absolu-
tamente, mas revisões, ou transformações” (1995, p.
Notas 177). Desse ponto de vista, é curioso que no Brasil
a revisão constitucional fosse percebida como uma
1 Poder-se-ia alegar que a opção pela modificação oportunidade de fazer avançar uma agenda gover-
constitucional se dá por equívoco, e já houve críticos namental.
que afirmaram ser a opção pela emenda constitucio- 7 Ao referir-se a este período, afirma Marcus Melo: “Ao
nal um engano dos governos, sendo possível levar contrário da revisão constitucional, o Congresso, na
adiante iniciativas por meio de legislação ordinária. reforma em curso [1995-1996], tipicamente reagiu às
Todavia, parece pouco plausível que um governo iniciativas que partiram do Executivo. Os ministros
não disponha de informação e conhecimento sufi-
se tornaram policy advocates das propostas. O
cientes acerca dos procedimentos exigidos em cada
Executivo deteve, assim, o poder de agenda durante
caso, a ponto de optar pela via mais difícil para
a reforma” (2002, p. 73). Ou ainda, “embora o arran-
implementar sua agenda, mobilizando todos os re-
jo institucional que prevaleceu tenha sido – em seu
cursos necessários para percorrê-la. Para uma dis-
conjunto – menos favorável à mudança, os fatores
cussão sobre os diferentes instrumentos decisórios à
contextuais favoreceram amplamente o processo de
disposição dos governos, ver Couto (2001).
mudança. Na reforma constitucional [1995-1996],
2 Souza e Lamounier, “A feitura da nova Constitui- apesar de a rotina utilizada exigir quorum qualifica-
ção: um reexame da cultura política brasileira”, em do, tramitação longa e processo descentralizado, o
Lamounier (1990). poder de agenda do Executivo, num quadro de desi-
CONSTITUIÇÃO, GOVERNO E DEMOCRACIA NO BRASIL 61

deologização da agenda pública e ausência de cons- transformação de tipo revolucionário. O tratamento


trangimentos eleitorais decisivos, favoreceu o gover- clássico dessa questão foi dado por Lassalle (2000).
no” (Idem, p. 76).
12 O tema do emendamento constitucional é extensi-
8 As noções de direitos fundamentais operacionais e vamente tratado, por diversos autores, no volume
condicionantes são estipuladas em Couto (2005). editado por Sanford Levinson (1995). Particular-
Voltaremos a elas mais adiante. mente relevantes para nossa discussão são os capí-
tulos de Lutz (1995) e Holmes e Sunstein (1995).
9 Embora numa perspectiva mais filosófica e menos
institucional do que a adotada aqui, Sartori analisa a 13 Uma posição filosófica bastante crítica da necessi-
questão do consenso na democracia também em dade de que haja um texto constitucional res-
três níveis, do mais básico ao mais superficial: 1. o guardado das vontades majoritárias é advogada por
nível básico que diz respeito ao consenso sobre Waldron (1999). Ele afirma que um sistema pura-
valores supremos (tais como a liberdade e a igual- mente majoritário, como o britânico, garante resulta-
dade) que habitam a cultura política; 2. o nível pro- dos melhores do ponto de vista democrático. Como
cedimental de consenso em torno das regras do decorrência de sua posição, Waldron também será
jogo político, indispensável ao funcionamento da bastante crítico do papel exercido pelos tribunais no
democracia; e 3. o nível programático do processo controle da constitucionalidade das leis. Por outro
político, marcado pela discussão sobre governos lado, para uma defesa filosófica já clássica de regras
específicos e suas políticas públicas, âmbito no qual restritivas para uma constituição, ver Buchanan e
o consenso, se houver, está em permanente tensão e Tullock (1999 [1962]).
ajuste decorrentes do debate acerca das ações políti-
14 Para uma análise da evolução do constitucionalis-
cas concretas. Em outras palavras, esse terceiro nível
mo moderno e do perfil das constituições adotadas
está mais para o dissenso (que não ameaça o edifí-
ao longo do século XX, numa perspectiva compa-
cio institucional da democracia se o consenso pro-
rada, ver Di Ruffìa (1996).
cedimental estiver consolidado) do que para o con-
senso (ver Sartori, 1994, vol. 1, pp. 127-132). Para 15 Stephen Holmes e Cass Sunstein (1999) apontam
uma discussão sobre os limites constitucionais acer- que todos os direitos têm custos, de modo que não
ca das políticas públicas, ver Couto (2005). só os direitos sociais, mas também os direitos libe-
rais clássicos requerem ações efetivas do Estado
10 Decidimos recorrer ao inglês para esta terminolo-
(policies) para sua implementação e, portanto,
gia pelo fato de que a utilização de termos em por-
dependem da capacidade que tem o governo de
tuguês perderia em clareza e precisão. Não há
financiar sua implementação. Sunstein (2001) vai
termo em nossa língua que seja equivalente a poli-
ainda mais longe nessa argumentação, mostrando
ty. Mesmo a expressão politéia, roubada ao grego,
que é possível aos tribunais assegurar o enforce-
não é de uso corrente e sequer consta dos princi-
ment de direitos sociais. Para tanto, faz uma inte-
pais dicionários. No que diz respeito a politics e
ressante análise do caso sul-africano, que apresen-
policy, a palavra em português é a mesma para
taria uma constituição de tipo transformativo, em
ambas: política. Neste caso, precisaríamos falar o
vez de apenas preservativo.
tempo todo em “política” como atividade, e em
“política pública”, ou “política governamental”, ou 16 Estamos tratando dos direitos sociais, mas também
ainda em “políticas”. Por uma questão de econo- alguns outros direitos são condicionantes. É o caso
mia de linguagem e clareza, optamos pelos termos do direito de propriedade, que não se enquadra na
em inglês. categoria de direito social de Marshall (e sim na de
direito civil), mas se constitui num condicionante
11 Afirmamos serem estes princípios apenas relativa-
óbvio para o funcionamento de quaisquer regimes
mente neutros por considerar que algumas garan-
políticos em sociedades capitalistas. Para a distin-
tias constitucionais dadas a determinados setores de
ção entre direitos condicionantes e operacionais,
uma sociedade, tendo caráter particular, afetam
ver Couto (2005).
desigualmente os diversos segmentos que a com-
põem. Todavia, considerando-se que a derrogação 17 Trata-se de uma primeira análise, de tipo descri-
de tais garantias implicaria numa derrocada de toda tivo, dos principais resultados da aplicação da
a ordem constitucional, pode-se afirmar a sua neu- Metodologia de Análise Constitucional. Questões
tralidade nos marcos da ordem social instituída, ou analíticas de fundo, como por exemplo o impac-
seja, num âmbito que esteja aquém de qualquer to sobre o processo decisório e sobre o funcio-
62 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

namento das instituições, receberão tratamento


mais aprofundado em trabalho futuro.
18 A versão original do ADCT compreende setenta
artigos ou 228 dispositivos. Em linhas gerais, trata
de regras transitórias em três sentidos básicos: 1)
estabelece que situações jurídicas já consolidadas
remanescerão no interior do novo ordenamento jurí-
dico, a despeito de ter sido introduzido tratamento
diferenciado sobre a matéria pela Constituição
recém-promulgada; 2) define procedimentos, prazos
e metas de transição para temas específicos contidos
na nova Carta; e 3) estabelece situações transitórias
no sentido de provisórias, isto é, que desaparecerão
gradualmente com a implantação do novo texto
constitucional. Por essas razões, consideramos que
o ADCT merece classificação à parte, já que tais
especificidades podem ter impacto distinto sobre o
processo decisório governamental.
19 Teste qui-quadrado, nível de significância de 5%.
220 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 60

CONSTITUIÇÃO, CONSTITUTION, CONSTITUTION,


GOVERNO E DEMOCRACIA GOVERNMENT, AND GOUVERNEMENT ET
NO BRASIL DEMOCRACY IN BRAZIL DÉMOCRATIE AU BRÉSIL

Cláudio Gonçalves Couto e Rogério Cláudio Gonçalves Couto and Cláudio Gonçalves Couto et
Bastos Arantes Rogério Bastos Arantes Rogério Bastos Arantes

Palavras-chave: Keywords: Constitutionalism; Mots-clés : Constitutionnalisme;


Constitucionalismo; Democracia; Democracy; Public policies; Démocratie; politiques Publiques;
Políticas públicas; Processo gover- Governmental process; Processus Gouvernemental;
namental; Mudança constitucional. Constitutional change. Modification Constitutionnelle.

A Constituição brasileira de The Brazilian constitution of La Constitution brésilienne de


1988 apresenta uma elevada taxa de 1988 has a high rate of constitutional 1988 a été modifiée à plusieurs repri-
emendamento constitucional, com 58 amendmenting, with 58 amendments ses. Elle compte 58 amendements en
emendas constitucionais em dezoito in eighteen years (3.22 amendments 18 ans, ce qui correspond à 3,22
anos (3,22 emendas por ano), na per year), most of the times sponso- amendements par an. La plupart de
maior parte das vezes patrocinadas red by the Executive Power, aiming ces amendements sont issus du
pelo Poder Executivo, visando à at implementing public policies. Due Pouvoir Exécutif dans le but de met-
implementação de políticas públicas. to the fact that the post-1988 govern- tre en place des politiques publiques.
Como o programa governamental mental program has abided a consti- Étant donné que le programme gou-
pós-1988 permaneceu como uma tuent agenda with important implica- vernemental postérieur à 1988 est
agenda constituinte, com implicações tions towards the relations between demeuré un agenda constitutionnel,
importantes para as relações do the Executive and both the Congress avec d’importantes implications en
Executivo com o Congresso e o and the Judiciary, the comprehen- ce qui concerne les relations entre
Judiciário, a compreensão da dinâmi- sion of the current Brazilian political l’Éxécutif par rapport au Congrès et au
ca política brasileira atual passa dynamics passes necessarily through Judiciaire, la compréhension de la dy-
necessariamente pelo entendimento the understanding of our constitutio- namique politique brésilienne actuelle
de nosso perfil constitucional. Tendo nal profile. Considered that, this arti- passe nécessairement par la compré-
isso em vista, este artigo analisa o cle analyses the profile of the 1988 hension de notre profil constitutionnel.
perfil da Carta de 1988 com base em constitution based on its contents Dans ce contexte, cet article analyse la
seu conteúdo, distinguindo em que discerning to what extent the consti- Constitution de 1988 par rapport à son
medida o texto constitucional – além tutional text – as well as constitutio- contenu. Il distingue dans quelle mesu-
de normas constitucionais propria- nal norms – contemplate public poli- re le texte constitutionnel – mis à part
mente ditas – contempla políticas cies, causing it to be more prone to les règles constitutionnelles propre-
públicas, que aumentam a probabili- change initiatives. Such analysis has ment dites – contemple les politiques
dade de que ele se torne objeto de been done by means of a publiques, qui augmentent la probabi-
iniciativas de mudança. Essa análise é Constitutional Analysis Methodology lité que la Constitution ne fasse l’ob-
feita por meio de uma Metodologia (Metodologia de Análise Constitu- jet d’initiatives d’amendements. Cette
de Análise Constitucional (MAC), de- cional - MAC) developed by the aut- analyse est proposée par l’emploi
senvolvida pelos autores, que permi- hors, which allows for the interpre- d’une méthodologie d’Analyse Cons-
te uma interpretação do significado tation of the constitutional devices titutionnelle (MAC) développée par
dos dispositivos constitucionais e sua meaning as well as its measurement. les auteurs, de façon à permettre une
mensuração. interprétation des dispositifs constitu-
tionnels et les évaluer.

You might also like