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Universidade Estácio de Sá Curso Superior de Cinema

Disciplina: Dramaturgia Prof.: Silvia Oroz


Aluna: Cristiane Soares Fernandes Mat.: 2001.02.20527-5

Análise dos conceitos fundamentais apresentados


no capítulo 4 - “Bosques Possíveis” do livro “Seis
passeios pelos bosques da ficção” (Umberto Eco)

Nesse texto, Umberto Eco nos fala sobre os fundamentos necessários


para se estabelecer uma relação autor-leitor que permita uma perfeita
compreensão da história e o deleite que se resulta dela. Sem se ater à
definição de leitor-modelo, sobre a qual discorre nos outros capítulos, neste
em questão, tratará basicamente de acordos implícitos pré-estabelecidos,
comuns a todos os leitores, seja este, leitor-modelo ou empírico.

Do acordo ficcional

O acordo ficcional é o conceito básico necessário aos leitores de


ficção: um contrato de leitura que encerra a aceitação de que uma história
imaginária, inventada, não seja uma mentira, mas uma verdade presumida,
ainda que possa contradizer a realidade. É o que, segundo o autor,
Coleridge chama de dogma de “suspensão da descrença”(p.83) - sem o
qual, não é possível, por exemplo, compreender a natureza de uma fábula -
terreno ficcional onde lobos falam e homens acordam metamorfoseados em
insetos – de modo que conclui: “Aceitamos o acordo ficcional e fingimos que
o que é narrado de fato aconteceu” (p.81).
O autor ilustra esse princípio com muita propriedade ao narrar,
precedida da expressão “Era uma vez”, certo fato ocorrido com o rei Vítor
Emanuel III.
Era uma vez... “um rei!”, dirá imediatamente minha gentil
platéia. Certo; agora vocês acertaram. Era uma vez um rei
chamado Vítor Emanuel III, o último rei da Itália. (...) Diz-se
que um dia lhe coube inaugurar uma exposição de pintura.
Encontrando-se diante de uma bela paisagem que mostrava
um vale com uma aldeia que se espalhava pelas encostas de
uma colina, ele contemplou durante muito tempo a pequena
povoação, depois se voltou para o diretor da mostra e
perguntou: “Quantos habitantes tem nessa aldeia”? (p.81)

Cabe ressaltar que em qualquer narrativa, o uso do “Era uma vez”


funciona como uma espécie de fórmula óbvia, um código que
imediatamente nos desliga do mundo real, transportando-nos aos “bosques
da ficção” de que nos fala o autor: “Um texto que começa com ‘Era uma
vez’ envia um sinal que lhe permite de imediato selecionar seu próprio
leitor-modelo, o qual deve ser uma criança ou pelo menos uma pessoa
disposta a aceitar algo que extrapola o sensato e o razoável” (p.15).
Chama-me a atenção o fato de o autor utilizá-la para introduzir um
relato real, o que me leva a crer que, neste caso, o uso da expressão seja
uma divertida alusão ao acordo ficcional a que o autor se refere.

Dado que as fronteiras entre aquilo em que devemos


acreditar e aquilo em que não devemos acreditar são
bastante ambíguas (...) como podemos condenar o pobre
Vítor Emanuel? Se devia simplesmente admirar os elementos
estéticos do quadro (as cores, a qualidade da perspectiva),
ele errou muito ao perguntar quantos habitantes a aldeia
tinha. Mas, se entrou na aldeia como se entra num mundo
de ficção, por que não haveria de se perguntar quem
encontraria lá e qual seria a possibilidade de encontrar uma
estalagem tranqüila? Dado que provavelmente se tratava de
um quadro realista, por que pensaria que a aldeia era
desabitada ou assombrada por pesadelos à Lovecraft? Esse é
o verdadeiro atrativo de qualquer ficção, verbal ou visual. A
obra de ficção nos encerra nas fronteiras de seu mundo e, de
uma forma ou de outra, nos faz levá-la a sério. (p.84)

Eco evidencia nesse trecho que o realismo da pintura faz com que o
monarca abstraia do objeto “quadro”, enquanto obra de arte que pretende
reproduzir a realidade, e ultrapasse aquela tênue fronteira, transportando-
se para o mundo ficcional retratado. E ainda discorrerá, adiante, sobre o
uso do realismo de modo a conferir verossimilhança mesmo às ficções mais
absurdas.

Da verossimilhança através do realismo na ficção fantástica

Esse conceito trata da construção do universo ficcional e da descrição


da ambiência na qual se situará a história. Eco nos relata, no início do
capítulo, sobre como percorreu por várias noites certo trajeto entre a rue
Saint-Martin e a igreja de Saint-Merri, em Paris, para descrever com
fidelidade o caminho percorrido na madrugada de 24 de junho de 1984, por
Casaubon, personagem do livro O pêndulo de Foucalt. Não obstante, valeu-
se até mesmo de um programa de computador onde pudesse “verificar se
houve lua naquela noite e (...) que posições ocupou no céu” (p.82). A
precisão e profusão de detalhes, conferem tamanho realismo à narrativa,
que ocorre levar um de seus leitores ao que o autor chama de “passeio
inferencial”(p.56), ou seja, a relacionar a ficção a um incêndio real -
noticiado nos jornais naquela mesma data, em um local situado no trajeto
fictício descrito - e a se questionar como poderia a personagem não ter
presenciado o incêndio.
Esse mesmo grau de realidade, obtido pelo autor em seu livro, é
encontrado tanto nos romances históricos como nas fábulas ainda que “as
proporções entre realidade e invenção”(p. 84) possam ser diferentes. Eco
nos dá um perfeito exemplo do uso da descrição realista para conferir
verossimilhança ao texto fantástico, citando os primeiros parágrafos de A
Metamorfose, de Franz Kafka e dissertando sobre o minucioso relato que
nos apresenta as características do inseto em que o personagem se viu
transformado: “Essa descrição parece intensificar a natureza incrível do que
aconteceu, e, no entanto, reduz o fato a proporções aceitáveis. (...) Essas
poucas linhas de Kafka constituem um exemplo de realismo, não de
surrealismo” (p.84). O mesmo é observado quanto ao quarto onde se dá a
história: “A descrição que se segue nada tem de fantástico, sendo
inteiramente realista. (...) Kafka precisa situar sua história inverossímil num
ambiente verossímil” (p.85).
Como uma variação do mesmo tema, acrescento outro exemplo de
autor que se utiliza de tal recurso com maestria. Gabriel García Márquez
estrutura seu universo fantástico sobre as transições históricas da América
Latina, expondo através de personagens arquetípicos, a turbulenta
convivência entre as culturas nativa e européia e as marcas indeléveis dos
processos de colonização. Mesmo a fictícia Macondo, de “Cem Anos de
Solidão”, é uma síntese realista de regiões e culturas existentes em quase
todo o continente americano, o que permite que ali ambientados, seus
relatos fantásticos mais inverossímeis pareçam tão possíveis quanto
cotidianos.
Eco vai além e cita o romance Flatland (Terra plana), de Edwin
Abbott, para afirmar a possibilidade de construção do realismo - ainda que
em um universo ficcional do qual não seja possível traçar um paralelo com o
mundo real - mas para o qual se possa buscar um referencial a partir do
conhecimento empírico do leitor. “Temos de reunir todos os nossos
conhecimentos de geometria adquiridos no mundo real, para tornar possível
esse mundo irreal”(p.87). Para tanto, é preciso que o autor se utilize de
bastante precisão, para conceituar um universo tão improvável a partir dos
princípios da geometria, ao descrever um mundo totalmente plano,
habitado por figuras geométricas igualmente bidimensionais, que se movem
tão somente sobre essa superfície. “A fim de tornar o processo mais
provável, Abbott apresenta várias figuras regulares, fazendo uma grande
exibição de cálculo geométrico exato. (...) Poderíamos dizer que, conquanto
improvável, o mundo de Abbott é, todavia, geométrica e perceptualmente
possível” (p.87).
Para projetar alguma relação com a nossa realidade de modo a nos
trazer um mínimo de familiaridade, o autor usa como exemplo, experiências
semelhantes vividas pelos marinheiros, em sua dificuldade de discernir a
visão de costas ou ilhas na linha do horizonte: “Abbott deduz as condições
de possibilidade estabelecendo uma analogia com o que é possível no
mundo real” (p.86).

Da inverossimilhança

Acerca da inverossimilhança, Eco nos fala dos textos de ficção que se


“auto-invalidam” - demonstrando uma impossibilidade de aceitação, por
parte do leitor, da realidade que pretendem transmitir - através de uma
análise de Lubomir Delezel, segundo a qual “um autor pode dar existência
ficcional a entidades possíveis valendo-se de procedimentos de autenticação
convencional; contudo, o status dessa existência é duvidoso porque a
própria base do mecanismo de autenticação está solapada”(p.87). Delezel
destaca as razões pelas quais, o universo ficcional apresentado em La
Maison de rendez-vous (A casa de encontros), de Robbe-Grillet parecerá
impossível ao leitor, por conter um grande número de contradições espaço-
temporais, conflitos entre versões factuais e até mesmo existenciais dos
personagens, que ora surgem como “entidade ficcional”, ora como
“representação teatral” ou ainda, sob a forma de uma obra de arte.
Para ilustrar este conceito, o autor se utiliza de uma conhecida
metáfora visual – a figura de Lionel e Roger Penrose – cuja difícil
compreensão deriva de uma ilusão de ótica, dando a impressão de uma
“inexplicável impossibilidade”, mas que, após uma observação mais atenta,
nos leva a perceber o quanto ela é “bidimensionalmente possível e
tridimensionalmente absurda” (p.88).
Esse mesmo conceito de construção do impossível na ficção visual,
pode ser identificado também nas intrigantes gravuras de M. C. Escher.

Da co-dependência dos mundos ficcionais e do mundo real

Eco enfatiza que “temos que admitir que, para nos impressionar, nos
perturbar, nos assustar ou nos comover até com o mais impossível dos
mundos, contamos com nosso conhecimento do mundo real.” (p.89)
Assim sendo, presume-se que toda incursão aos mundos ficcionais sempre
apresenta a realidade como “pano de fundo”, ainda que às vezes,
precisemos abstrair dele em detrimento da suspensão da descrença.
O autor expõe uma comparação de dois fragmentos de texto, já
citados e analisados anteriormente, através dos quais, nos remete à figura
de carruagens: no primeiro, Agosto, moglie mia non ti conosco (Agosto,
minha esposa não te conheço), de Achille Campanille, temos um diálogo no
qual o personagem Gedeone solicita a um cocheiro que se apresente no dia
seguinte, para conduzi-lo a um determinado destino, tendo indagado o
cocheiro se deveria ir com a carruagem, ao que seu interlocutor responde
que sim, para em seguida acrescentar: “Não se esqueça do cavalo!”(p.89) –
um exemplo de texto humorístico no qual se explora o recurso do óbvio. O
segundo texto refere-se ao capítulo 4 de Sylvie, denominado Uma viagem a
Citera, no qual Gérard de Nerval descreve o percurso da carruagem que
conduz seu narrador a Loisy. Quanto a este, Eco nos faz observar que o
cavalo que puxa a carruagem não é, em nenhum momento, mencionado;
no entanto, nem por isso, o leitor questionará sua ausência na narrativa,
uma vez que, para que uma carruagem possa se locomover, a existência do
cavalo deve ser presumida. Tão certo como, sem nada saber sobre a
história da Inglaterra, ou da Corte de Saint James, ou mesmo sem nunca
ter lido a magistral obra de Shakeaspere, pode-se presumir que Ricardo III
perde seu cavalo na batalha que o levaria à derrota pela simples alusão à
frase “Meu reino por um cavalo”.
Considerando-se então, que “mundos ficcionais são parasitas do
mundo real”(p.89), podemos afirmar que o leitor preenche os espaços
vazios da ficção a partir de uma compreensão prévia, que tem como base
sua cultura e referências adquiridas no mundo real.
Sendo assim, o mundo real é hospedeiro do mundo ficcional, na
medida em que fornece modelos à sua estrutura e situa o relato ficcional
em contextos culturais, históricos e sociais. Em contrapartida, o inverso
também se dá, de forma que o leitor, por sua vez, absorve o que apreende
dos mundos ficcionais para incorporar à sua experiência pessoal. Como
Roland Barthes sugere, a partir da imagem do leitor-aranha, o qual possui
maior capacidade e profundidade de interpretação na exata proporção em
que acumula experiências de leituras anteriores, ao que denomina “teia” ou
“tecido”: uma trama enredada pelo leitor que enriquece a compreensão do
que é lido com fios de leituras outrora incorporadas ao seu léxico virtual.

Texto quer dizer tecido; mas enquanto até aqui esse tecido
foi sempre tomado por um produto, por um véu acabado por
trás do qual se conserva, mais ou menos escondido, o
sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a
idéia generativa de que o texto se faz, se trabalha através de
um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido — nessa
textura — o sujeito desfaz-se, como uma aranha que se
dissolve a si própria nas secreções construtivas de suas teias
(Barthes, 1977: p.112).

Ainda sobre a estreita relação estabelecida pelo leitor entre mundo


real e mundos ficcionais, o autor dirá que é possível, e mesmo natural, que
este aceite a simulação da verdade através de elementos não possíveis,
como personagens e cenários fictícios, muito embora, alguns possam querer
comprovar empiricamente a existência de certos lugares descritos em obras
de ficção, quando sobre estes são dados referenciais extraídos do mundo
real, como a localização da residência de Sherlock Holmes, em Baker
Street; ou da casa de Julieta Capuleto, em Verona, local que existe de fato
e atrai muitos turistas, mesmo que a personagem que supostamente a
habitou nunca tenha existido. A saber, a existência de referências
concretas no mundo real faz a ficção ainda mais palatável. Porém, ainda
que o leitor possa aceitar a existência de um local, ou de um personagem
fictício, bem mais dificilmente se dará a aceitação de situações confusas e
desconexas, tais como cita o autor, das quais destaco “chamar um táxi na
5ª Avenida, em Nova York, com destino a Alexanderplatz” (p.90); uma vez
que, ao se partir do pressuposto de que o lugar em questão situa-se em
Berlim, rompe-se o acordo ficcional com o imaginário idealizado de um
mundo euclidiano, a priori imutável; não encontrando suporte nas leis da
física quântica, ou da álgebra abstrata, a menos que, o leitor possua total
domínio de tais conceitos.
O autor nos revela que, na mesma proporção com que o universo
ficcional apresenta poucas personagens, delimitadas em tempos e locais
definidos, onde nos deparamos com um “pequeno mundo infinitamente
mais limitado que o mundo real”, o acréscimo de “indivíduos, atributos e
acontecimentos ao conjunto do universo real (que lhe serve de pano de
fundo) pode nos levar a “considerá-lo maior que o mundo de nossa
experiência. Desse ponto de vista, um universo ficcional não termina com a
história, mas se estende infinitamente”(p.91), onde Eco conclui que,

Ler ficção significa jogar um jogo através do qual damos


sentido à infinidade de coisas que aconteceram, estão
acontecendo ou vão acontecer no mundo real. (...) Essa é a
função consoladora da narrativa – a razão pela qual as
pessoas contam histórias e têm contado histórias desde o
início dos tempos. E sempre foi a função suprema do mito:
encontrar uma forma no tumulto da experiência humana.
(p.93)

Da verdade presumida

Sobre o conceito de verdade - numa determinada estrutura ficcional -


o autor acredita ser razoável crer que, “afirmações ficcionais são
verdadeiras dentro da estrutura do mundo possível de determinada
história”, aonde escolho ater-me, dentre os exemplos apresentados, àquele
no qual um estudante de Literatura Inglesa afirmasse ter Hamlet se casado
com Ofélia, ignorante do desfecho da tragédia. O que, ao considerar-se
como verdade o que conhecemos deste universo ficcional, podemos retrucar
ser impossível, em decorrência do fato desta ter cometido suicídio.
Ao passo que, no que se refere ao mundo real, Eco introduz alguns
paradigmas, cujas bases estão fundamentadas em nossas comprovações
empíricas, bem como na convicção de que o conhecimento transmitido pela
comunidade humana, através de um conjunto de relatos históricos e
investigações científicas (muitas vezes tão-somente hipotéticos ou
contraditórios) seja verdadeiro. Ao afirmar “delego aos outros o
conhecimento de nove décimos do mundo real, guardando para mim o
conhecimento do décimo restante”, o autor nos conduz a uma reflexão
filosófica acerca de seu real significado: “Estamos seguros de que nossa
noção de verdade no mundo real é igualmente sólida e precisa?” Ao que se
seguem vários outros questionamentos, de diferentes naturezas: sobre a
conformidade com o contexto na qual uma afirmação presumidamente
verdadeira está inserida - por sabermos que o que é verdadeiro para uma
determinada cultura pode não o ser para outra; em função de nossas
verdades terem sido estabelecidas por um “determinado sistema holístico
de postulados” ou sobre a transitoriedade de verdades sustentadas por
muito tempo sobre documentos que em dado momento, podem ser
declarados por pesquisadores como comprovadamente falsos. E acrescenta
que “o modo como aceitamos a representação do mundo real pouco difere
do modo como aceitamos a representação do mundo ficcional”. Assim
como a verdade em Kant é algo que diz respeito às nossas próprias
representações, na medida em que atendem a uma unidade necessária; ou
ainda como presume Nietzsche, para quem a verdade nada mais é do que
mera ficção.

Bibliografia

ECO, Humberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo:


Companhia das Letras, 1994.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1977.

DOLEZEL, Lubomir. 1977. Mímesis y mundos possibles. In: A. GARRIDO


DOMÍNGUEZ(ed.), Teorias de la ficción literária. Madrid, Arco/Libros.

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