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Do acordo ficcional
Eco evidencia nesse trecho que o realismo da pintura faz com que o
monarca abstraia do objeto “quadro”, enquanto obra de arte que pretende
reproduzir a realidade, e ultrapasse aquela tênue fronteira, transportando-
se para o mundo ficcional retratado. E ainda discorrerá, adiante, sobre o
uso do realismo de modo a conferir verossimilhança mesmo às ficções mais
absurdas.
Da inverossimilhança
Eco enfatiza que “temos que admitir que, para nos impressionar, nos
perturbar, nos assustar ou nos comover até com o mais impossível dos
mundos, contamos com nosso conhecimento do mundo real.” (p.89)
Assim sendo, presume-se que toda incursão aos mundos ficcionais sempre
apresenta a realidade como “pano de fundo”, ainda que às vezes,
precisemos abstrair dele em detrimento da suspensão da descrença.
O autor expõe uma comparação de dois fragmentos de texto, já
citados e analisados anteriormente, através dos quais, nos remete à figura
de carruagens: no primeiro, Agosto, moglie mia non ti conosco (Agosto,
minha esposa não te conheço), de Achille Campanille, temos um diálogo no
qual o personagem Gedeone solicita a um cocheiro que se apresente no dia
seguinte, para conduzi-lo a um determinado destino, tendo indagado o
cocheiro se deveria ir com a carruagem, ao que seu interlocutor responde
que sim, para em seguida acrescentar: “Não se esqueça do cavalo!”(p.89) –
um exemplo de texto humorístico no qual se explora o recurso do óbvio. O
segundo texto refere-se ao capítulo 4 de Sylvie, denominado Uma viagem a
Citera, no qual Gérard de Nerval descreve o percurso da carruagem que
conduz seu narrador a Loisy. Quanto a este, Eco nos faz observar que o
cavalo que puxa a carruagem não é, em nenhum momento, mencionado;
no entanto, nem por isso, o leitor questionará sua ausência na narrativa,
uma vez que, para que uma carruagem possa se locomover, a existência do
cavalo deve ser presumida. Tão certo como, sem nada saber sobre a
história da Inglaterra, ou da Corte de Saint James, ou mesmo sem nunca
ter lido a magistral obra de Shakeaspere, pode-se presumir que Ricardo III
perde seu cavalo na batalha que o levaria à derrota pela simples alusão à
frase “Meu reino por um cavalo”.
Considerando-se então, que “mundos ficcionais são parasitas do
mundo real”(p.89), podemos afirmar que o leitor preenche os espaços
vazios da ficção a partir de uma compreensão prévia, que tem como base
sua cultura e referências adquiridas no mundo real.
Sendo assim, o mundo real é hospedeiro do mundo ficcional, na
medida em que fornece modelos à sua estrutura e situa o relato ficcional
em contextos culturais, históricos e sociais. Em contrapartida, o inverso
também se dá, de forma que o leitor, por sua vez, absorve o que apreende
dos mundos ficcionais para incorporar à sua experiência pessoal. Como
Roland Barthes sugere, a partir da imagem do leitor-aranha, o qual possui
maior capacidade e profundidade de interpretação na exata proporção em
que acumula experiências de leituras anteriores, ao que denomina “teia” ou
“tecido”: uma trama enredada pelo leitor que enriquece a compreensão do
que é lido com fios de leituras outrora incorporadas ao seu léxico virtual.
Texto quer dizer tecido; mas enquanto até aqui esse tecido
foi sempre tomado por um produto, por um véu acabado por
trás do qual se conserva, mais ou menos escondido, o
sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a
idéia generativa de que o texto se faz, se trabalha através de
um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido — nessa
textura — o sujeito desfaz-se, como uma aranha que se
dissolve a si própria nas secreções construtivas de suas teias
(Barthes, 1977: p.112).
Da verdade presumida
Bibliografia