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A MÚSICA DAS ESFERAS

21-10-2007

+ Marcelo Gleiser

A música das esferas

Para os pitagóricos, a essência da realidade estava na


matemática, na dança dos números

MARCELO GLEISER,
é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover
(EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"

Tudo começou na Grécia antiga. Mais precisamente, no sul da


Itália, que, na época, era parte da Grécia. Num vilarejo chamado
Crotona, em torno de 550 a.C., o filósofo Pitágoras fundou uma
espécie de comunidade, na qual pensadores -tanto homens quanto
mulheres- vislumbravam os mistérios do cosmo e da existência
munidos de uma nova arma: a razão.

Claro, isso não significa que as pessoas antes de 550 a.C. eram
estúpidas; ao contrário, é sempre bom lembrar que, mesmo que
vivessem no passado distante, eram tão inteligentes e criativas
quanto nós. Apenas tinham ao seu dispor tecnologias e métodos
diferentes dos nossos. A novidade era que, pela primeira vez,
passaram a usar a razão e não a superstição para interpretar o
mundo à sua volta.

Existiam outros que, como Pitágoras, tentavam aos poucos deixar


os deuses do Olimpo de lado, ao menos como explicação para os
fenômenos naturais. Mas os pitagóricos eram diferentes: para eles,
a essência da realidade estava na matemática, na dança dos
números. Refletir sobre o mundo significava investigar as relações
entre os números, como podiam eles ser usados para descrever a
natureza. Essa é a essência da ciência.

Do pouco que sabemos da escola pitagórica, algo de certo é o


status semilegendário de seu fundador, Pitágoras.
O leitor deve se lembrar do famoso teorema que leva seu nome,
envolvendo triângulos. Aparentemente, não foi Pitágoras quem
obteve o resultado, mas algum, ou alguns, de seus discípulos. A
descoberta que é, em geral, atribuída ao mestre é outra. Foi ele
quem descobriu a matemática da música.

Pitágoras percebeu que os sons que chamamos de harmônicos


vêm de relações diretas do comprimento da corda de um violão
(para citar um instrumento moderno), expressas em termos de
números inteiros. Por exemplo, uma oitava acima é obtida ao
soarmos a corda na metade de seu comprimento, ou seja, na razão
de 1/2.

Uma quinta é obtida soando a corda a 2/3 de seu comprimento;


uma quarta, a 3/4. Essa descoberta teve repercussões muito
profundas, que estão conosco até hoje. Antes de mais nada, elas
representam uma matematização da sensação de harmonia, uma
expressão tangível duma propriedade dos nossos cérebros. Por que
alguns sons são prazerosos enquanto outros são dissonantes, a
ponto de ferir nossos ouvidos? O que isso nos diz sobre o
funcionamento do cérebro?

Deixando as ciências cognitivas de lado, Pitágoras generalizou a


noção de harmonia para além dos sons da lira. Segundo ele, o
cosmo era construído de forma harmônica, seguindo princípios
matemáticos que representavam a estética do belo: a função do
filósofo era desvendar esses princípios, a harmonia cósmica, a
linguagem matemática da Criação. A lenda diz que foi ele que
propôs a noção de música das esferas: que o Sol e os planetas,
girando nos céus em proporções harmônicas, geram uma melodia
que expressa a arquitetura cósmica.

Até que ponto foram mesmo Pitágoras e seus discípulos que


criaram todos esses conceitos? Difícil dizer.

Estudos recentes mostram que a maioria das grandes descobertas


atribuídas a Pitágoras são falsas, construídas durante a Idade
Média e a Renascença a partir do pouco que foi escrito sobre ele na
Antigüidade.

Mesmo assim, fica o poder simbólico, arquetípico, da visão


pitagórica. Grandes pensadores, como Kepler e mesmo Einstein e
Bertand Russell, foram influenciados pelo mito pitagórico. Como
muitos outros mitos, modernos e antigos, nos informam, é na
crença -e não na sua realidade- que reside sua força.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth
College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"

Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe2110200702.htm

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