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Os Fundamentos Filosóficos
e Jurídicos de uma
Comunidade Internacional*
PHILOSOPHICAL AND LEGAL BASIS OF AN
INTERNATIONAL COMMUNITY
Resumo Apesar da difundida utilização da expressão comunidade internacional pela
mídia, pelos Estados, pela literatura e pelas instituições internacionais, o conceito per-
manece como algo impensado nos planos jurídico e filosófico. A vontade de se em-
preender uma reflexão sobre o assunto esbarra, todavia, em um obstáculo prévio.
Como conceber conjuntamente a soberania dos Estados e a comunidade internacional? ISABELLE DUPLESSIS
Até o momento, tudo tem acontecido no pensamento político moderno como se Université de Montréal,
houvesse uma irredutível antinomia entre esses dois termos. Nosso propósito é de- Canadá
monstrar que tal antinomia é superável, contanto que se parta de uma releitura para- isabelle.duplessis@umontreal.ca
lela das noções de soberania nacional e de comunidade internacional.

Palavras-chave COMUNIDADE INTERNACIONAL – SOBERANIA ESTATAL – FUNDA-


MENTOS FILOSÓFICOS E JURÍDICOS.

Abstract Despite the divulged use of the expression international community by the
media, the States, literature and the international institutions, the concept is still so-
mething unacceptable in the legal and philosophical plans. Nonetheless, the purpose
to reflect on the matter collides with a previous obstacle. How to conceive both the
States’ sovereignty and the international community? Until this moment, everything
has happened in the modern political thought as if there was an irreducible antinomy
between these two terms. Our purpose is to show that such antinomy is surmoun-
table, as long as we begin with a parallel rereading of the notions of national sove-
reignty and international community.

Keywords INTERNATIONAL COMMUNITY – STATE SOVEREIGNTY – PHILOSOPHI-


CAL AND LEGAL BASIS.

* Texto apresentado inicialmente durante o seminário de inverno de 1999, na Université du Québec au

Montréal (UQÀM), Canadá. Tradução do francês: Anna Magdalena Machado Bracher.

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O PROBLEMA

H
á certas coisas que se discutem sem necessaria-
mente precisar-se remetê-las a seus fundamen-
tos. Nesse sentido, o estudo da retórica com
base em Aristóteles nos ensina que os homens
argumentam essencialmente sobre aquilo que
representa um problema. Enquanto não se le-
vanta um problema, pode-se deduzir verossi-
milmente que tal problema não existe. De fa-
to, não se discute sobre acontecimentos que dependem da necessidade e,
por conseqüência, escapam ao controle do homem, nem mesmo sobre
conceitos ou regras que não são alvo de nenhuma polêmica, uma vez que
seu uso, seguindo nesse ponto a explicação de Wittgenstein, determina
com segurança sua significação. No caso em questão, e diante do uso di-
fundido do termo comunidade internacional, teríamos o direito de pensar
que ocorre o mesmo.
Nesse caso, a exceção confirma a regra. Além de sua utilização ple-
tórica pela mídia, pelos Estados, pela literatura e pelas instituições inter-
nacionais, o conceito de comunidade internacional é tudo, exceto unívo-
co. Ele permanece como uma coisa impensada. É um pouco como se a
retórica da comunidade internacional esvaziasse aqui o caráter impreciso,
ideológico e mesmo polêmico da expressão, sem se preocupar com ne-
nhuma argumentação ou reflexão. A expressão remete, entretanto, e cer-
tamente, a uma dada realidade. Seu uso corrente sugere uma função prag-
mática do discurso na construção da realidade cujas grandezas e misérias
nos são cotidianamente relatadas.
Contudo, continua sendo, tanto em âmbito semântico quanto no
pragmático, um conceito vago e, portanto, altamente susceptível a
apropriações estratégicas de todos os tipos. Esse uso lingüístico corres-
ponde, mas, em nossa opinião, não deve ser confundido com uma mun-
dialização factual ou, retomando o pensamento de Jürgen Habermas,
com uma globalização dos riscos unindo objetivamente, embora invo-
luntariamente, o mundo.1 A utilização pletórica do termo comunidade
internacional contribui para a confusão dessa última com uma mundiali-
zação de facto, mas que evoca um novo espaço sociossimbólico,2 ultra-
passando, dessa vez, o universo nacional tradicional.
Qual é precisamente a composição dessa comunidade? Ela agrupa
o conjunto dos Estados, as Nações Unidas, os atores transnacionais e os
indivíduos? Limita-se, nesse caso particular, a um organismo internacio-
nal como o Conselho de Segurança, a um braço executivo como a Or-
ganização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a um agrupamento de
cunho regional à semelhança da Comunidade Européia ou a uma potên-

1 HABERMAS, 1996. Essa idéia é retomada por DELMAS-MARTY, 1998, e anunciada por GAETE,
1995.
2 BOULAD-AYOUB, 1995.

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cia estatal pretensamente, não importa como, a distintamente, em instrumentos normativos, como
grande justiceira, cujo nome preferimos não a carta das Nações Unidas3 e a declaração sobre as
mencionar? A reflexão sobre os fundamentos da relações amigáveis,4 interpretante dessa carta, além
comunidade internacional é urgente, sobretudo de confirmar a sua utilização contemporânea cada
quando se ignoram as divisões em seu interior e vez mais difundida, e de forma explícita, em instru-
se lhe outorga desde já a responsabilidade em mentos recentes, como o tratado de proibição com-
caso de inação. Pensemos especialmente no pleta dos testes nucleares5 e o estatuto de uma corte
genocídio em Ruanda e nas exigências, por parte criminal internacional.6
de cidadãos belgas, de investigação sobre o papel O desejo de suprir essa carência de reflexão
assumido, na época, pelo atual secretário-geral sobre comunidade internacional, esse déficit
das Nações Unidas, Kofi Annan, ou ainda, nos filosófico e jurídico, esbarra inevitavelmente em
últimos acontecimentos em Kosovo. um obstáculo. De fato, como conceber, apesar da
Estamos, então, diante de um simples soberania dos Estados, a idéia de uma comunida-
artifício instrumental, podendo ser utilizado con- de internacional como sujeito de ação? Tudo
forme se queira e conferindo certa legitimidade a aconteceu e ainda acontece como se a soberania
fins diversos, até mesmo contraditórios? É pos- nacional e a comunidade internacional fossem
sível dar à comunidade internacional outro senti- mutuamente excludentes, como se existisse, en-
do que não o de um logro coincidente, dessa vez, tre os dois conceitos, uma antinomia insuperável.
com o fim da Guerra Fria e o discurso sobre a Para os autores “clássicos”7 (Vitoria, Sua-
globalização? Como refletir sobre a comunidade rez, Gentili), isso não seria realmente um parado-
internacional em um contexto político em que a xo, uma vez que a virtualidade de um conflito en-
soberania dos Estados se impõe sempre, a despei- tre a soberania nacional e a comunidade interna-
to das transformações que ela possa sofrer? cional poderia simplesmente resultar em nada. As
divergências e os particularismos se confundiam,
A SOBERANIA NACIONAL E A então, no interior de um pensamento jusnatura-
COMUNIDADE INTERNACIONAL: lista, às vezes mesmo teológico-político ou tele-
DUAS IDÉIAS ANTITÉTICAS? ológico de alcance universal. É necessário já ver aí
o início da articulação de um dualismo entre a so-
As dificuldades berania nacional e a comunidade internacional.
Contrariamente ao conceito de soberania, Os autores “clássicos” foram levados a refletir e a
que, desde a criação do Estado moderno, vem sen- escrever sobre a comunidade internacional com a
do sistematizada tanto no plano jurídico quanto no conquista do Novo Mundo, a ruptura continen-
filosófico – tendo como prova o modelo contra- tal da cristandade e a ascendência do Estado. Tal
tualista –, não houve nenhuma tentativa desse gê- tarefa tornou-se verdadeiramente paradoxal, com
nero e desse porte para pensar a comunidade inter- o recuo de um esquema transcendente que absor-
nacional e seu caráter propriamente jurídico. Certa- via os particularismos, além da consolidação do
mente, encontram-se reflexões bastante próximas
disso em Grotius, no Abade de Saint-Pierre, em 3 Conferência das Nações Unidas para a Criação de uma Organização
Internacional (CNUCIO), de 26/jun./1945, 1999, v. 15, p. 365; (1945)
Leibniz e, mais particularmente, em Kant, em sua R.T. Can. n. 7. Cf., por exemplo, FASSBENDER, 1998.
obra sobre A Paz Perpétua, alvo de inúmeros co- 4 Declarações sobre os Princípios de direito internacional relativos às
relações amigáveis e de cooperação entre Estados, de acordo com a
mentários de filósofos contemporâneos (entre eles, Carta das Nações Unidas, Doc. of. A.G., 25.a sessão, sup. n.° 28, p.
Habermas e Höffe). Entretanto, essas reflexões não 131, Doc. N.U. A/5217 (1970).
5 Doc. N.U. A/50/1027, Anexo, 26/ago./1996.
abordam especificamente o conceito comunidade 6 Estatuto da Corte Penal Internacional, adotado em 17/jul./1998 (120

internacional, muito menos a fundação possível de votos a favor, 7 contra e 21 abstenções), Doc. N.U. Conf. 183/9.
7 Para rever a literatura que destaca precisamente a ausência de antino-
sua dimensão normativa. Ora, tal expressão remete mia nesses autores, cf. KENNEDY, 1986; e TRUYOL Y SERRA,
efetivamente a uma realidade delineada, mesmo in- 1995.

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Estado moderno ao longo do tempo. A sobera- Diante dessas explicações representativas


nia tranformou-se cada vez mais, no plano inter- do espectro das posições, deparamo-nos com o
no, em sinônimo do domínio absoluto de um go- seguinte problema: na medida em que se aceite a
verno sobre um território delimitado e uma po- possibilidade de uma normatividade internacio-
pulação definida, tendo por corolário, no plano nal, rejeitada explicitamente pela realpolitik, o di-
externo, uma independência diante de toda auto- reito se resume a uma descrição sociológica ou à
ridade normativa, sem importar a fonte de sua codificação das veleidades e práticas estatais.9 Daí
emanação. procedem as críticas feitas, com razão, ao direito
Como os “modernos” podem conciliar es- internacional. De acordo com elas, o direito in-
ses particularismos estatais na ausência de um es- ternacional comporta uma deficiência normativa
quema transcendente ou de uma autoridade que inaceitável, por evencer espontaneamente qual-
se pretende universal? Geralmente, e indepen- quer capacidade de guiar o agir internacional ou
dentemente de seu campo de estudo, eles apaga- qualquer obrigação internacional. Por outro lado,
rão o conceito de comunidade internacional em se o direito internacional acolhe verdadeiramente
prol da soberania nacional. Por exemplo, o real- uma normatividade independente e possivelmen-
politik atual (ciências políticas e relações interna- te contrária aos interesses imediatos dos Estados,
cionais) se inspirará em Hobbes para aproximar o quem, então, poderá empregá-lo? Toda a questão
cenário internacional de um Estado de natureza da efetividade do direito está aqui colocada.
excessivamente violento, um Estado de natureza O paradoxo soberania nacional e comuni-
sui generis que não precisa de nenhum contrato dade internacional continua, de toda maneira, ir-
social para assegurar a sobrevida e a segurança das resoluto à luz das teorias ou dos conjuntos de te-
individualidades estatais. O jogo internacional orias de que dispomos. Para os “clássicos”, esses
dos particularismos confunde-se com uma estru- dois termos não se apresentavam apenas sob uma
tura tecida de relações de poder. Sai de cena a forma antitética. Quanto aos “modernos”, em-
normatividade. bora herdem completamente a tarefa paradoxal,
As respostas dos juristas são mais atenua- suas soluções se mostram insatisfatórias, pois
das, e até mesmo divididas, pois eles bem sabem consistem invariavelmente em desviar o curso da
comunidade internacional em prol da soberania
que o direito não pode nascer e se impor com
nacional.
base na ausência de uma sociedade. Encadeados
com essa condição sine qua non, mas igualmente
pela força teórica e prática da soberania, os juris- PROPOSTA DE SOLUÇÃO: E SE O
tas farão com que a obrigatoriedade das normas PARADOXO FOSSE APENAS APARENTE...
do direito internacional decorra da vontade ou do Estamos, assim, verdadeiramente diante de
consentimento expresso dos Estados.8 A socieda- termos antitéticos? Devemos, a fim de explicar o
de internacional – pois hesitamos em chamá-la co- uso renovado do termo comunidade internacio-
munidade – se construiria, então, sobre o consen- nal, e por uma espécie de retorno do pêndulo,
timento pontual e explícito dos Estados-nações. apagar por nossa vez o conceito de soberania na-
Dessa forma, a vontade do Estado nacional predo- cional? Algumas abordagens contemporâneas
mina e deixa à comunidade internacional um papel privilegiam esse retorno do pêndulo,10 chegando
bastante subsidiário. mesmo a mencionar ou anunciar a morte do Es-
tado e, ao mesmo tempo, da soberania nacional.
8 A Convenção de Viena sobre o direito dos tratados (1980), 1.155
As teses sobre o esfacelamento ou a dissolução
RTNU 354; (1980) R.T. Can. n. 37, faz do consentimento a pedra
principal das relações contratuais entre os Estados, ao passo que a teo-
ria do consentimento necessitou sofrer verdadeiras contorções para 9Cf. KOSKENNIEMI, 1989.
explicar o costume de maneira mais ou menos satisfatória. Cf. por 10Para um resumo conciso e eficaz dessas abordagens, cf. KOSKEN-
exemplo KELSEN, 1986; e SUR, 1986. NIEMI, 1994.

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do Estado podem basear-se, por um lado, na sua do romantismo, as reflexões sobre a comunidade
incapacidade de responder às exigências factuais internacional eliminam os particularismos esta-
da globalização e à evanescência das fronteiras tais, em razão da sua artificialidade, substituindo-
geográficas e conceptuais ou, em outras palavras, os por uma multiplicidade de pequenas comuni-
à interdependência econômica, militar, ecológica dades autênticas ou, ainda, como parte de um
e social. Por outro lado, elas podem se apoiar em grande todo planetário e orgânico. Essa última
uma exigência ética, dividida, por sua vez, tam- concepção não permite, em nossa opinião, enten-
bém em dois campos. Desse modo, a exigência der a comunidade internacional como um con-
ética liberal ou cosmopolítica rejeita conferir junto funcional e viável formado de individuali-
qualquer primazia moral ao Estado, instrumento dades políticas não redutíveis.
histórico de repressão, para o advento internacio- Gostaríamos, assim, de conservar as idéias
nal do indivíduo e dos direitos do homem.11 A de soberania e de comunidade internacional, na
exigência ética comunitariana censura sobretudo tentativa de uma releitura conjunta desses dois
a criação e a perpetuação pelo Estado de distin- termos. Inicialmente, e por uma simples mudan-
ções artificiais e contingentes, em detrimento de ça de perspectiva, não se poderia entender a idéia
laços autênticos e espontâneos da comunidade de soberania sem a de comunidade internacional,
cultural, étnica ou lingüística,12 ou ainda da hu- uma vez que somente é possível pensar a sobera-
manidade como um todo. nia com relação a uma individuação, uma singu-
Nossa pretensão aqui não é a demonstra- larização. Essa individuação passa obrigatoria-
ção das dificuldades teóricas, filosóficas e prag- mente pelo reconhecimento dado pelos outros
máticas dessas abordagens contemporâneas, seja Estados às práticas políticas e institucionais de
o que for que elas demonstrem ser. Até provar-se uma nação em particular. A comunidade interna-
o contrário, e apesar das transformações que pos- cional funciona como condição indispensável,
sa sofrer, o Estado existe para permanecer, e o pois permite a individuação e a individualidade
conceito de soberania não pode, conseqüente- dos Estados. Tal individualidade completa-se ape-
mente, ser evicto. Por outro lado, é necessário de- nas na presença do Outro, sob o olhar dos ou-
fender e assumir o paradoxo soberania nacional e tros. Diante da alteridade, o Estado nacional se dá
comunidade internacional, talvez apenas aparen- conta de sua singularidade, toma consciência de
te. De fato, a antinomia depende fundamental- sua condição de ator internacional.
mente da representação feita da soberania, por Conseqüentemente, o Estado se atualiza na
um lado, e da idéia tida de comunidade interna- forma como concebe a si mesmo, nos seus dis-
cional, por outro. Uma vez que a interpretação cursos e nos que os outros fazem sobre ele. A
daquela tendeu irresistivelmente para a radicaliza- globalização ocupa aqui um papel de primeira im-
ção e a atomização dos Estados-nações, a comu- portância, cuja intensidade, porém, é variável,
nidade internacional não podia advir, ao menos transformando as funções tradicionais do Estado
no plano conceitual. Na melhor das hipóteses, moderno e ampliando a categoria dos demais, de
essa última se resumiria a uma coleção numérica modo a incluir atores não-estatais ou transacio-
e justaposta de particularismos estatais. nais e as organizações internacionais, regionais e
A comunidade internacional perde, é ne- não-governamentais. A identidade estatal se
cessário dizê-lo, qualquer especificidade e não au- constrói pela utilização da retórica, dessa cons-
toriza nenhuma normatividade independente- tante negociação discursiva entre ele, como Esta-
mente da vontade estrita dos Estados. No senti- do soberano isolável, mas não concebível em ter-
do contrário, e seguindo uma filosofia próxima mos de mônada, e os outros Estados. Essa retó-
rica se articula por meio das regras jurídicas, de
11Cf. a argumentação de TESON, 1992a e b.
12 Essa exigência comunitariana serve de base às reivindicações inter-
sua interpretação e das justificações trazidas por
nacionais autoctonistas, para citar apenas essas. uma ação ou um dissenso. Tais discursos inse-

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rem-se, por sua vez, em um conjunto de práticas por sua vez, tornarão o mundo inteligível, por ser
intersubjetivas. precisamente construído pelo conjunto dos ato-
Em resumo, por exigir apresentar-se aos res. Nesse sentido, o horizonte da comunidade
outros por meio dos discursos, da utilização das internacional jamais se determinou com base na
regras e práticas internacionais que nenhum Es- simples existência de fenômenos globalizantes.
tado recusa realmente, ou mesmo factualmente, Antes, a comunidade internacional é uma cons-
embora alguns exijam uma interpretação diferen- trução permanente, mas bastante real, que pro-
cial, a individualidade participa da construção duz seu próprio sentido irredutível ao universo
ininterrupta de uma comunidade internacional. nacional.
Essa afirmação, por si só, sugere uma comunida- Evidentemente, e para finalizar esse tópico,
de internacional existente como fato jurídico ati- a comunidade internacional sobre a qual deseja-
vo, cujo discurso pode ser, em muitos casos, por- mos refletir afasta-se da definição convencional
tador de normatividade. Isso significa que, mes- que a limita a uma institucionalização política, so-
mo independentemente de uma soberania nor- cial e geográfica.14 Ela é uma comunidade, uma
malmente concebida monadicamente, certos cultura, composta certamente por seres artificiais,
modelos comunitários guiavam o agir e permiti- mas reais, uma associação existente como fenô-
am justamente a autonomia estatal.13 Entretanto, meno, ainda que muitas vezes inconsciente, au-
tais modelos comunitários, que consentiam e torizando a compreensão dos acontecimentos
continuam a reforçar a soberania concebida mo- políticos em esfera mundial e a posição dos Es-
nadicamente, restringem a extensão de uma nor- tados individuais em que vivemos, em compara-
matividade independente do Estado. Para justifi- ção com esse conjunto que constitui o objeto de
car a transgressão de uma regra, o Estado muitas nossa pesquisa, a comunidade internacional.
vezes recorreu à noção de jurisdição exclusiva.
Não havia aí, na verdade, uma justificação jurídica PROGRAMA DE PESQUISA
para as suas ações diante dos outros Estados ou Após ter retraçado os contornos da sobe-
de uma organização internacional. Nessas situa- rania com a consolidação do Estado moderno e,
ções, assistiu-se a uma recusa e ao aborto, pelos sobretudo, as conseqüências dessa representação
modelos comunitários, da construção de uma co- para o direito internacional, teremos condições
munidade internacional interpretativa. de perceber que a soberania foi conceitualizada
A intensificação do discurso contemporâneo na história de tal forma que impedia a existência
que cita, como foi dito no início deste texto, a co- de uma comunidade internacional.
munidade internacional de forma repetitiva per- Será ainda necessário nos perguntarmos se
mite antever uma mudança nos modelos comu- o discurso soberano conserva toda a sua perti-
nitários. Daí procede a urgência de uma reflexão nência na compreensão e na organização políti-
sobre a comunidade internacional, pois ela pode co-jurídica do cenário internacional. Em outras
realmente, nesses momentos de profundas mu- palavras, é a soberania sempre necessária e, na
danças práticas e teóricas, influir na forma de tais eventualidade de uma resposta positiva, consti-
modelos. Esses últimos remetem, desde sempre, tui-se realmente como antinômica a uma comu-
um conjunto móvel de práticas e discursos que nidade internacional normativa? Caso contrário,
conferem em troca um sentido aos sujeitos e a como se deve articular uma comunidade interna-
suas ações. Eles definirão a maneira como as in- cional na ausência da soberania?
dividualidades estatais deverão reconhecer a si Essa questão da necessidade da soberania
mesmas, gerarão categorias, lugares comuns, que, surge inevitavelmente com as teses sobre a cadu-
13
cidade, o esfacelamento ou o desaparecimento do
Pensemos aqui nas regras incontornáveis sobre a igualdade soberana
e a independência dos Estados, a não-ingerência em seus assuntos inte-
riores, a proibição da ameaça ou do uso da força e a legítima defesa. 14 WINTER, 1991.

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Estado. Teses que, a propósito, coincidem com a necessários a uma releitura da soberania, o pensa-
utilização cada vez mais difundida do termo co- mento cosmopolítico e o comunitariano não per-
munidade internacional, confirmando, assim, o mitem, por si sós, fundar uma comunidade inter-
movimento antinômico e oscilatório entre a so- nacional. Além de certos problemas intrínsecos
berania e a comunidade internacional. Se as pre- que implica, o pensamento cosmopolítico baseia-
visões sobre o deperecimento do Estado e sobre se na extensão mundial do Estado de direito libe-
o caráter inútil ou indesejável da soberania fun- ral e democrático. Considerando-se, de maneira
dam-se, por menos que possa parecer, na realida- reservada, que a grande maioria dos Estados não
de, quais serão a composição e o funcionamento atende a essa condição, tal pensamento permane-
da comunidade internacional? De um modo ou ce inaplicável aqui e agora. Do mesmo modo, as
de outro, essas teses apontam dificuldades tanto críticas comunitarianas não atendem ao critério
teóricas como práticas que teremos de responder. funcional. Elas esvaziam, além disso, os funda-
Considerando a diversidade e a quantidade de mentos de uma ordem jurídica internacional em
opiniões, agruparemos em dois grupos as críticas prol de uma moral da autenticidade cultural, ét-
ao Estado e à soberania, até para melhor tratá-las. nica, religiosa ou qualquer outra, que podem cau-
A primeira crítica, qualificada aqui prelimi- sar conflitos potenciais entre particularismos. Por
narmente de sociológica, associa-se estritamente ter-se esvaziado o fórum jurídico que poderia re-
ao fenômeno da mundialização ou globalização. solvê-los, esses conflitos tenderão a se perpetuar.
Após haver circunscrito tal fenômeno ao domí- Ao contrário, postularemos a perduração
nio factual, constataremos que a mundialização por um tempo indefinido do Estado e ele conti-
perturba efetivamente o funcionamento tradicio- nuará a ser, conseqüentemente, uma unidade de
nal e o discurso soberano do Estado, bem como análise primordial a nossas pesquisas sobre os
a produção do direito. Entretanto, essa globaliza- fundamentos filosóficos e jurídicos de uma co-
ção factual e involuntária não nos diz nada em si munidade internacional. No entanto, esse postu-
sobre os fundamentos possíveis de uma comuni- lado deverá acolher, por um lado, as transforma-
dade internacional normativa. Além disso, ela ções factuais do Estado geradas pela globalização
não significa automaticamente a evanescência do e, por outro, as críticas cosmopolítica e comuni-
Estado moderno. O campo de ação do Estado tariana ao Estado. Com base em tais elementos
parece, antes, deslocar-se, e não desaparecer, ao práticos e teóricos, poderemos proceder a uma
passo que a produção do direito tende para um releitura da soberania diante da necessidade de
modelo de regulação, em oposição ao modelo hie- pensar a comunidade internacional, erguendo, as-
rárquico e positivista. sim, o véu antinômico entre esses dois conceitos.
A segunda crítica ao Estado moderno e à so- Com o propósito de eliminar tal antinomia, em-
ciedade internacional ressalta preocupações éticas preenderemos uma reflexão renovada sobre os
e agrupa tanto os partidários de um direito cosmo- fundamentos filosóficos e jurídicos da comuni-
político quanto os de um comunitarismo. Se tal dade internacional, com a ajuda, especialmente,
crítica fornece elementos sérios e indispensáveis, da filosofia da interpretação e da fenomenologia.

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Dados da autora
Doutora em direito e professora da Faculdade de
Direito da Université de Montréal (Canadá)
Recebimento artigo: 28/maio/02
Consultoria: 17/dez./02 a 7/fev./03
Aprovado: 25/mar./03

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