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'Ciência e religião não devem se misturar', diz biólogo dos EUA

No Brasil para palestras, Douglas Futuyma faz balanço dos avanços no estudo da evolução
biológica
Carlos Orsi, do estadao.com.br

"Os genomas não fazem sentido sem a vinculação com a evolução, e hoje também podemos
estudar a influência dos genes na evolução das espécies", disse ele à platéia. Antes de iniciar
a palestra, Futuyma falou à reportagem do estadao.com.br:

Como está a teoria da evolução hoje, 150 anos depois de sua formulação inicial?
Mais forte que nunca. Gostaria de começar dizendo algo sobre
a palavra "teoria". Essa palavra é mal compreendida, nos EUA
e, talvez, no Brasil também. Para muita gente, teoria é algo
como uma idéia, um palpite. Em ciência, no entanto, usamos
"teoria" de um modo diferente. Físicos falam em teoria
quântica, teoria atômica, e não estão fazendo especulações
vazias. Eles têm muita certeza daquilo que dizem. Em ciência,
"teoria" significa um corpo de explicações que dá conta de uma
ampla gama de observações, e forma um corpo de
conhecimento muito forte. Nos últimos 150 anos, a teoria da
evolução cresceu e acumulou evidências em seu favor. Por
exemplo, no tempo de Darwin (Charles Darwin, autor de "A
Origem das Espécies", primeira obra a expor a teoria da
evolução, publicada em 1859) não sabíamos sobre DNA, Douglas Futuyma
Fonte: http://lasp.colorado.edu/life/futuyma.jpg
sobre genes, não sabíamos como as características
passavam dos pais para filhos. Agora, usamos DNA para
entender melhor a evolução, e a evolução para entender melhor o funcionamento dos genes.
Outro exemplo: Darwin sugeriu, em 1866, que humanos e chimpanzés vinham de um ancestral
comum e agora sabemos, graças ao DNA, que ele estava certo, porque o DNA humano e dos
chimpanzés coincide em mais de 90% .

Como o trabalho de Darwin se sustenta hoje? Muitas vezes, o fundador de um novo ramo da
ciência acaba superado pelo avanço da própria ciência que ajudou a criar.
Comparado com outros fundadores, Darwin sobrevive muito bem. Claro que ele não era
perfeito, cometeu erros e havia muita coisa que, simplesmente, não sabia. Mas é notável
quantas das suas idéias, quanto de seus "insights", foram validados. Por exemplo: ele teve
problemas em entender como insetos sociais, como abelhas e formigas, criam comunidades
onde a maioria dos indivíduos trabalha, mas não se reproduz, já que a evolução prevê que os
indivíduos que têm mais sucesso reprodutivo devem acabar dominando a espécie. Isso parecia
um desafio à teoria da evolução. Ele teve a idéia de que alguns indivíduos poderiam se
sacrificar em favor de outros de parentesco próximo, na mesma colônia. E hoje esta ainda é a
principal explicação, com muita evidência a seu favor. Claro, ele estava errado em algumas
coisas. Ele tentou criar uma teoria da hereditariedade que estava, simplesmente, errada. Mas
ninguém é perfeito.

Críticos da evolução costumam dizer que a teoria é um raciocínio circular, já que afirma "a
sobrevivência dos mais aptos", mas o único jeito de saber quem é mais apto é esperando
para ver quem sobrevive...
Não se trata de um argumento forte. Os críticos dizem que só dá para saber quem é o mais
apto depois que ele sobrevive. Mas: sabemos que é possível um tipo de indivíduo ser mais
abundante na espécie, mesmo se não for o mais apto. Esse é um processo puramente
aleatório, de variação dos genótipos (seqüências de DNA) dentro das populações. É um
processo chamado deriva genética. E não é um processo de seleção natural. Se você olhar para
duas populações que começaram do mesmo jeito, uma delas poderá acabar diferente, por
puro acaso, como num lance de dados. Isso elimina o argumento de que se trata de um
raciocínio circular. Além disso, é possível prever qual organismo se sairá melhor num
determinado ambiente. Em praticamente toda edição da revista Evolution há um exemplo do
tipo, onde pegamos uma característica de um organismo, prevemos como ela pode ajudar a
sobrevivência em um determinado ambiente, e depois vemos que esse é exatamente o caso.
Não é preciso ser um gênio para entender que se há dois tipos de bactéria, e um deles é capaz
de digerir uma substância e outro, não, se você colocá-los num ambiente com esse produto,
um vai ganhar e o outro vai perder. Isso é evolução por seleção natural, e podemos prever seu
resultado.

Também há quem diga que não é possível testar a evolução, para saber se ela está certa ou
errada.
Isso também é falso. Vamos pegar a questão da evolução no esquema mais amplo, que é a
proposição de que todos os organismos evoluíram, por descendência com modificações, de
um ancestral comum. Eu e as árvores lá fora, e as bactérias em meu aparelho digestivo, todos
viemos de uma única forma de vida ancestral que deu origem a toda a variedade atual. Isso
ocorreu ao longo do tempo, a um ritmo determinado, é claro. Não dá para tirar um mamífero
de uma bactéria de uma hora para a outra, deve haver passos intermediários. Então,
entendemos que as formas de vida mais recentes não podem ter ocorrido muito cedo na
história da evolução. Portanto, se você conseguisse encontrar fósseis de mamíferos,
indisputáveis, de 400 milhões de anos, isso causaria muita dor e sofrimento, porque os
biólogos diriam, não pode ser. Então, essa é uma observação possível, um teste, que forçaria a
uma revisão completa da teoria da evolução.

O debate entre evolução e criacionismo, se evolução deve ser ensinada nas escolas, se o
criacionismo deveria ser ensinado por professores de
ciências, causa muita polarização, muita polêmica,
desencadeia discussões apaixonadas. A evolução parece ser
o único tema, no currículo de ciências, a provocar reações
tão extremas. Por quê?
É precisamente porque as pessoas resistem muito à idéia de
que surgimos por meio de um processo puramente material,
a partir de outras formas de vida. É uma idéia que preocupa.
É vista como uma ameaça à dignidade humana, talvez. E
também uma ameaça às crenças religiosas, porque as crenças
religiosas dizem que os seres humanos são muito especiais,
foram deliberadamente criados por um Criador bondoso que
se importa com elas. Enquanto que a explicação científica para a origem dos seres humanos
entra em conflito com esse ponto de vista. Creio que é por isso que a evolução causa uma
reação tão emocional.

Mas essa ameaça é real? O sentimento humano de ser protegido por um Criador onipotente
está mesmo sob ameaça da teoria da evolução, ou se trata de um mal-entendido?
Creio que é possível aceitar a evolução totalmente e, ao mesmo tempo, preservar crenças
religiosas e teológicas. E digo isso porque há milhões de pessoas que fazem isso. Incluindo
inúmeros cientistas, que aceitam a religião, têm sentimentos religiosos, e aceitam as
evidências a favor da evolução, incluindo a evolução da espécie humana. Um de meus
melhores alunos de doutorado, que hoje é um biólogo evolucionista muito produtivo, é
católico devoto e praticante. O papa anterior (João Paulo II) escreveu um documento dizendo
que a evidência a favor da evolução é tão forte que a teoria deveria ser aceita como mais ‘
pura especulação. No entanto, o papa disse que isso não significa que existe uma explicação
biológica para a parte mais íntima do ser humano, a alma. Ele reserva uma parte para a
religião. Creio que muitos líderes religiosos, e muita gente religiosa, não têm problema
nenhum com a evolução. A Igreja Católica tem aceito a evolução há muito tempo. No entanto,
é claro que isso significa que há certas afirmações específicas na Bíblia que não são
literalmente compatíveis com a evolução. Mas também não são compatíveis com física,
geologia, ou astronomia, ou nenhuma das outras ciências. Se você acredita que o mundo foi
criado em seis dias, ou se acredita que o mundo foi criado há 100.000 anos, isso não é
aceitável para astrônomos, geólogos ou físicos. Você tem de estar preparado para
reinterpretar os textos religiosos, o que é exatamente o que os teólogos fazem. Bons teólogos
não acreditam que tudo que aparece escrito nas versões em inglês, em português ou espanhol
da Bíblia é para ser tomado exatamente como verdade literal.

Mas as religiões pararam de perseguir astrônomos há séculos, enquanto que professores de


biologia ainda encontram problemas. A resistência às novas verdades científicas que vêm da
biologia é maior por quê...?
É por causa do conteúdo emocional, eu acho. As pessoas não se preocupam muito se a física
entra em conflito com a Bíblia, mas creio que, porque são humanas, elas se preocupam com a
biologia. Mas eu gostaria de destacar que são apenas algumas lideranças religiosas, e algumas
pessoas religiosas, que condenam a evolução. Nos países onde a maioria da população é
católica, como Espanha, Portugal, ou na maior parte da América Latina, não há conflito. O
conflito surge onde há versões fundamentalistas do cristianismo, que tomam a Bíblia
literalmente. Mas isso não é um problema entre as religiões maiores, majoritárias. Há muitas
pessoas que têm crenças religiosas e acreditam na evolução, incluindo cientistas. Mas elas são
cuidadosas em separar uma coisa da outra. Elas defendem que há coisas que a ciência não
deve fazer, há lugares onde a ciência não deve entrar, por exemplo, na questão dos valores, da
ética, da moralidade, coisas sobre as quais a ciência não tem nada de útil a dizer, e onde não
deveria se meter. Mas, em compensação, quando se tenta explicar o mundo natural, quando
se tenta explicar as coisas que acontecem na natureza, com animais, plantas, rochas ou
estrelas, ou átomos, a abordagem científica não pode admitir a religião. É preciso separar e
manter separado. Porque quando se propõe que a ciência aceite explicações religiosas, aí você
tem idéias que não podem ser testadas. Ao postular que algo foi causado por um ser
sobrenatural, ninguém tem a menor idéia de como determinar se essa é uma explicação
verdadeira ou falsa. E se você pode dizer que um ser sobrenatural é responsável por esse
evento em particular, por exemplo, a origem dos seres humanos, então você pode dizer que
ele é responsável por tudo, pelo terremoto que aconteceu na China. Gostaríamos de parar de
tentar entender os terremotos, porque alguém disse que há uma causa sobrenatural? A
ciência tem de se manter materialista em suas explicações, o que não significa que a visão de
mundo do cientista tenha de ser materialista. O materialismo não cabe quando o assunto é
amor, ou ética, mas quando tentamos entender o mundo natural, é essencial.

Mas há conflitos. A ciência pode informar as decisões morais. Para tomar uma decisão sobre
certo e errado, você precisa de fatos, e os fatos têm de vir da ciência, do método científico.
Certamente. Mas não a decisão sobre o que é certo e errado. A ciência pode descrever o que
ocorre com o óvulo, da fertilização até o nascimento, e pode dizer, talvez, quando o cérebro se
forma, quando o cérebro está pronto e descrever outros aspectos do desenvolvimento do
embrião, mas a ciência não pode lhe dizer se o aborto é moral ou imoral.

O uso de células-tronco extraídas de embriões humanos em pesquisas científicas causa


muita polêmica no Brasil. O sr. acha que esse uso deve ser autorizado?
Minha opinião pessoal quanto a isso não tem mais peso que a de qualquer outra pessoa.
Porque é só isso, a minha opinião. Se eu responder a essa pergunta, será uma resposta
baseada em meus valores pessoais, não uma resposta científica. Eu sou um cientista, e não
posso fazer uma afirmação científica sobre esse assunto. Posso falar sobre as conseqüências
científicas de certas linhas de pesquisa. Posso dizer que, se tal e tal pesquisa for feita... e eu
não sou um especialista em células-tronco, mas um biólogo com mais conhecimento dessa
área poderia dizer... que se as pesquisas forem feitas, tal e tal tecnologia médica poderia se
tornar viável . Mas esta seria uma declaração científica, que não é a mesma coisa que uma
declaração de certo e errado. Certo e errado não pode ser uma afirmação científica.

Se o Brasil vier a viver uma radicalização como a que existe nos EUA em torno do ensino da
evolução e do criacionismo, qual seria seu conselho aos cientistas e professores brasileiros?
Meu conselho seria que os cientistas venham a público, que tentem educar a população sobre
essas questões. Eles têm de tentar explicar a diferença entre uma abordagem científica e uma
abordagem não científica. Eles têm de tentar explicar às pessoas que dependemos da ciência
para avanços tecnológicos com muitos resultados práticos. E essas aplicações não podem ser
mais fortes do que o entendimento básico de ciência que temos a respeito do mundo natural.
Os cientistas tem de enfatizar que os benefícios da ciência só virão se ensinarmos às pessoas
como avaliar evidências. Em ciência, sempre que alguém faz uma afirmação, a resposta é:
qual a sua evidência? Em ciência, suas afirmações são tão fortes quanto a evidência que se
apresenta. Portanto, não podemos admitir uma afirmação para a qual não ha evidência
concreta. É preciso que todos os cientistas tentem explicar às pessoas qual é a natureza da
ciência, e manter a ciência separada da religião. Não para fazer pouco caso da religião. As
pessoas têm sua liberdade de crença religiosa, mas precisam entender que isso tem de ficar do
lado de fora da aula de ciências. Assim como a ciência deve ficar fora dos ensinamentos das
igrejas sobre moralidade. Creio, ainda, que os cientistas devem fazer todo o esforço para
contestar as alegações feitas por criacionistas. Então, se houver algum criacionista, algum
defensor do design inteligente (movimento que propõe que a vida é complexa demais para ter
surgido por meios estritamente naturais), alguma figura religiosa que vá à televisão para fazer
alegações falsas sobre a evolução, então os cientistas devem procurar o canal de TV, a revista,
ou o veículo que for, e dizer, não, isso é errado, não é o que entendemos do ponto de vista
científico, e aqui está o que é correto, e eis o porquê. Meu outro conselho seria: não crie uma
oposição entre ciência e religião. Há algumas pessoas no meu campo que são ateus bem
agressivos. Você talvez já tenha ouvido falar em Richard Dawkins (biólogo britânico que
defende a incompatibilidade entre ciência e religião. Seu livro mais recente é Deus, um
Delírio)?

O senhor acha que a participação de cientistas, principalmente biólogos, em movimentos de


difusão do ateísmo acaba prejudicando os esforços em favor do ensino das ciências?
Creio que, provavelmente, sim. E a razão disso é: se você diz às pessoas que elas devem
escolher entre ciência e religião, que é impossível ter os dois, então as pessoas vão escolher a
religião. Por quê? Porque traz mais satisfação emocional. Religião satisfaz necessidades muito
profundas de muita gente. Negar às pessoas o conforto dessas crenças é muito
contraproducente e, eu diria, muito cruel. Minha mensagem para os cientistas, então, seria:

reconheçam a humanidade das pessoas. Tentem mostrar a elas que é possível conciliar o ponto
de vista científico com o religioso, em vez de criar uma dualidade. Mas é claro que muitos
religiosos, principalmente evangélicos fundamentalistas, insistem nessa dualidade. Insistem
que é preciso escolher.

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