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O significado de não-acordo

Rui Araújo
Mais uma discussão sobre o Acordo Ortográfico, mais uma volta no
carrossel da confusão, da chantagem emocional e do catastrofismo. Esgrimem-
se todos os argumentos possíveis, da suposta inconstitucionalidade do acordo
(negada pelos constitucionalistas) à «destruição virtual da própria noção de
ortografia» (segundo Vasco Graça Moura) e, pasme-se, aos gastos que as
famílias portuguesas terão de fazer em novos livros. Há quem fale em milhões
de euros de prejuízos, como se a minha gente tivesse de destruir os livros
velhos e trocar por livros novos toda a biblioteca de casa.Mais uma discussão
sobre o acordo ortográfico, mais uma volta no carrossel da confusão, da
chantagem emocional e do catastrofismo. Esgrimem-se todos os argumentos
possíveis, da suposta inconstitucionalidade do acordo (negada pelos
constitucionalistas) à «destruição virtual da própria noção de ortografia»
(segundo Vasco Graça Moura) e, pasme-se, aos gastos que as famílias
portuguesas terão de fazer em novos livros. Há quem fale em milhões de euros
de prejuízos, como se a minha gente tivesse de destruir os livros velhos e
trocar por livros novos toda a biblioteca de casa.
Tenham lá calma. Um Acordo Ortográfico que muda dois por cento das
palavras que nós escrevemos (e um por cento das que os brasileiros escrevem)
não obriga a trocar a biblioteca, não destrói a noção de ortografia e não impõe
um totalitarismo unitário sobre a língua. O acordo não é uma catástrofe nem
um milagre. Mas a sua não-adopção teria alguns custos sérios e neles ninguém
parece pensar.
Aquando das comemorações dos 500 anos da descoberta do Brasil, a
comissão conjunta luso-brasileira emitia frequentemente dois comunicados,
um em cada ortografia. É natural: o Estado português não pode escrever os
seus documentos oficiais na ortografia brasileira, nem vice-versa. Ora, se isto
se passa entre comissões de dois países que falam a mesma língua, imaginem
as dificuldades de afirmação do português em instituições internacionais.
Há hoje uma concorrência feroz entre línguas, e nem falo do inglês ou do
espanhol, que estão noutra divisão. Entre numa livraria francesa e veja o que
está escrito nas capas dos romances de Machado de Assis: «Traduit du
brésilien.» A ideia horrorizaria o grande escritor do Rio de Janeiro. Mas
qualquer sugestão de que o brasileiro é um idioma à parte do português é ali
muito bem-vinda (seria uma heresia para o francês do Québec, claro), porque
aí seríamos numericamente ultrapassados não só pelo francês, como pelo russo
e por outras línguas ainda. A impossibilidade de chegar a acordo sobre a
ortografia oficial do português é um presente que oferecemos à concorrência.
A ortografia do acordo já foi discutida e rediscutida à minúcia. Vejamos
agora a palavra que tem escapado: acordo. Sim, isto é um acordo. Nós
mudamos algumas coisas e os brasileiros outras, como é natural num acordo.
Nós não gostamos de algumas mudanças, e eles não gostam de outras: os
lamentos de alguns intelectuais brasileiros por perderem definitivamente o
trema em lingüiça (por culpa dos antigos colonizadores!) estão ao nível do
conservadorismo dos seus homólogos portugueses.
Se não houver acordo, cada país faz o que quer. Ora, se as mudanças na
nova ortografia serão de dois para um a favor dos brasileiros, eles levam uma
vantagem de 18 para um na população. Daqui a uns anos Angola adoptará a
ortografia brasileira (já há quem o proponha), e depois Moçambique também.
Dentro de uma geração Portugal terá dois caminhos: isolar-se ou seguir sem
discussão o que os brasileiros decidirem. Triste fim depois de tantos pruridos.

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