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Introdução
Para falarmos sobre o trajo típico da ilha da Madeira é necessário não
esquecer que este arquipélago foi descoberto em 1418 e 1419, Porto Santo e
Madeira respectivamente, tendo a sua colonização começado 6 anos depois. Pelo
que, o trajar desta gente era o que usavam antes de chegarem às ilhas, e pelo
menos nos primeiros anos, até serem criadas condições dignas de sobrevivência,
não se alterou, mantendo-se as tradições das suas terras no continente.
Tendo a ilha desempenhado um papel fundamental nos Descobrimentos
Portugueses a partir do séc. XV, tornando-se num porto de passagem obrigatória
durante as viagens, rapidamente adquiriu o estatuto de porto comercial. Graças ao
cultivo do açúcar e respectiva exportação, os senhores da terra encetaram viagens e
trocas comerciais com os mercadores que por cá passavam, pelo que não é de
estranhar as inúmeras referências de mercadores, essencialmente ingleses, que
acabavam por se estabelecer na região comercializando tecidos em troca de açúcar
e mais tarde do vinho produzido na ilha.
É a partir deste contexto que podemos começar a falar de alterações ao trajo
dos ilhéus, nunca esquecendo que uma coisa é o trajo da nobreza, que acompanhou
a “moda” das grandes capitais europeias e outra é o trajo fabricado pelo povo.
Enquadramento
O trajo do povo como já foi referido deverá ter-se mantido inalterado durante
muitos anos após o início da colonização, mais do que o da nobreza.
Encontramos semelhanças com os trajos regionais do continente, sobretudo
com os do Minho, pela utilização de cores garridas, nomeadamente o vermelho. Mas
ao analisarmos o trabalho de alguns investigadores, do Danilo Fernandes por
exemplo, que estudaram sobretudo os livros de registo de Juízo de Resíduos e
Capelas da ilha, as referências encontradas dão conta da utilização de outras cores
como o preto, o azul, o castanho e o branco como sendo as mais recorrentes no
vestuário.
Deparamo-nos com duas realidades, a do comércio de fazendas a preços
acessíveis, logo menos ricos, que as disponíveis para a nobreza e o vestuário
produzido pela própria, com recurso aos tares e ao linho e lã produzidos na ilha. A
este respeito importa referir o estudo desenvolvido pelo historiador João Adriano
Ribeiro “O trajo na Madeira – elementos para o seu estudo” onde aborda
precisamente estes dois factores, a produção de linho e lã e os teares existentes nas
diversas freguesias.
Análise
Trajar como acto de cobrir o corpo existe desde sempre, nem sempre com
tecidos, o recurso a pinturas corporais como as que conhecemos de algumas
civilizações indígenas podem e devem ser consideradas quando estudamos esta
necessidade comunicativa do indivíduo.
Necessidade comunicativa é uma definição que caracteriza verdadeiramente o
acto de cobrir o corpo, pois a opção que fazemos ao escolher uma determinada peça
de vestuário comunica a nossa cultura, a nossa condição social, estado emocional e
algo que raramente gostamos de assumir mas que é sempre considerado, a nossa
vaidade. Estudar o vestuário de um determinado período histórico, seja ele qual for,
sem ter em atenção estas questões, conduzirá certamente a conclusões erróneas,
contudo é preciso não esquecer que cobrir o corpo, tal como foi referido, é uma
necessidade comunicativa mas também de sobrevivência. Dificilmente alguém que
viva sob condições climatéricas adversas colocará as suas necessidades
comunicativas acima da necessidade de sobrevivência, e também nos casos onde
essa sobrevivência esteja assegurada se valorizará a vertente comunicativa se não
existir o mínimo de condições básicas de alimentação e higiene.
As mulheres dos séculos XV, XVI e seguintes que viveram na Madeira não
seriam certamente excepção, e é assim que também devemos olhar para o trajo
regional da ilha.
Se por um lado existiria o trajo de cada freguesia ou zona, de certeza que
existiria variantes dentro dessa mesma freguesia, pelos aspectos acima referidos,
mas também por maior ou menor poder financeiro. A estes aspectos é necessário ter
em atenção a actividade profissional desenvolvida, destacando três como sendo as
mais representativas, a pesca, a agricultura e pecuária e afins, certamente o trajo
reflectia a actividade a que se dedicavam.
Neste momento já é possível constatar quão difícil é estudar o trajo regional,
quer pelos múltiplos vectores a considerar quer pela distância temporal.
Até há relativamente poucos anos era comum ver as mulheres usarem o seu
melhor trajo nos dias de missa e romaria, nada nos faz pensar que naquele tempo
seria diferente e seriam esses trajos que reflectiriam melhor o prazer destas
mulheres em se apresentarem mais bonitas que as da freguesia vizinha.
Quanto ao trajo de trabalho no campo, estou convencido que seria do que a
terra desse. A este respeito importa referir o Cónego Fernando de Meneses Vaz num
artigo denominado “Indumentária Antiga” para a revista “Das Artes e das Letras”
onde diz o seguinte:
Inside of a Cottage (do livro «A HISTORY Peasants going to Market (do livro «A
OF MADEIRA With A Series of Twenty- HISTORY OF MADEIRA With A Series of
Seven coloured Engravings, Illustrative of Twenty-Seven coloured Engravings,
the Costumes, Manners, and Illustrative of the Costumes, Manners, and
Occupations of the Inhabitants of the Occupations of the Inhabitants of the
Island»); Litografia de autor Island»); Litografia de autor desconhecido;
desconhecido; edição de R. Ackermann; edição de R. Ackermann, London; 1821 –
London; 1821 – Casa-Museu Frederico de Casa-Museu Frederico de Freitas
Freitas
Peasants in usual Costume (do livro «A Rural Occupations (do livro «A HISTORY OF
HISTORY OF MADEIRA With A Series of MADEIRA With A Series of Twenty-Seven
Twenty-Seven coloured Engravings, coloured Engravings, Illustrative of the
Illustrative of the Costumes, Manners, and Costumes, Manners, and Occupations of
Occupations of the Inhabitants of the the Inhabitants of the Island»); Litografia de
Island»); Litografia de autor autor desconhecido;, edição de R.
desconhecido; Edição de R. Ackermann, Ackermann, London; 1821 – Casa-Museu
London, 1821 – Casa-Museu Frederico de Frederico de Freitas
Freitas
Acho muito improvável que de um dia para outro a pobre campesina, por mais
criativa que fosse, tenha acordado e decidido criar um trajo completamente novo e
diferente de tudo o que existia o do que tivesse visto até então. Simplesmente
porque lhe apeteceu, por mero capricho de vaidade. Difícil de aceitar de ânimo leve,
é que tal colorido e composição tenham sido introduzidos na ilha por escravos
oriundos de Marrocos. Contudo não é de descurar uma influência marroquina, mas
dificilmente esta terá sido introduzida por escravos, sendo mais verosímil que a
existir seja fruto das muitas viagens para África, Índia e Canárias realizadas pelos
nobres e mais tarde pelos burgueses da terra.
Referência inequívoca ao trajo, é a de 1933 pela Câmara Municipal do Funchal onde
são colocadas regras ao vestuário das vendedeiras de flores, como refere o Cónego
Fernando de Menezes Vaz em “Indumentária Antiga” publicado em 1952.
Refere o mesmo autor que vestimenta igual era usada pelas raparigas
aquando da visita das Insígnias do Espírito Santo na Semana Santa, tal com
acontece hoje me dia nalgumas paróquias.
Importa nesta altura citar Carlos Maria Santos, pela descrição que faz do trajo
regional da ilha da Madeira.
A saia
“É fabricada de lã de ovelha que, depois de tingida, é fiada em
tantas maçarocas quantas as cores necessárias e tecida sobre
urdidura de linha de algodão. As cores são: vermelho vivo, azul,
verde, branco e amarelo. As listas vermelhas são as mais largas, cerca
de três ou três e meio centímetros, para que a saia tenha fundo dessa
cor. As outras têm a largura aproximada de dois centímetros. A ordem
da tecedura é a seguinte: vermelho, amarelo, vermelho, azul-escuro,
vermelho, verde, vermelho, azul, vermelho, amarelo, vermelho, e azul,
branco e azul. Estas três últimas cores, embora da mesma largura
(pouco menos de dois centímetros) formam uma tira única, chama-se
«tira casada» e fecha a ordem da tecedura. Depois recomeça, até
atingir a largura da saia, geralmente de três varas - (três metros e
trinta centímetros).”
“…a relativa estreiteza dos teares não permite tecer pano de largura
suficiente para a altura da saia. Corta-se então mais um pedaço do
tecido e acrescenta-se na cintura, formando uma pala…Esta pala é
mais ou menos larga segundo a altura da pessoa… este, bem como a
roda, é debruado a linho da terra, ou pano cru na largura de um
centímetro.”
A Capa
“É, feita de baeta vermelha. Na Ponta do Sol, segundo informações
ali colhidas, as capas vermelhas eram para as raparigas, solteiras ou
casadas. As viúvas punham capas azuis.”
“Era ainda uma compostura para certas classes, principalmente a
popular.”
“A capa da mulher do povo madeirense distingue-se das demais pelo
tamanho e pela romeira. Curta, pela cintura ou pouco menos,
cruzava as pontas na frente e prendia-se no cós, da saia, com
alfinetes. Nas caminhadas ou nas romarias deitavam-na sobre o
ombro direito deixando-a solta ou prendiam as pontas na cintura, à
esquerda. Deste modo o braço esquerdo ficava livre permitindo
transportar qualquer objecto.”
O Corpete
“O corpete da mulher madeirense distingue-se pelo corte que, a
despeito dos decotes exagerados de oitocentos, é casto e veste-se
sobre a camisa. A base desce até ao cós da saia e o decote cobre
ou mesmo ultrapassa a curvatura do seio. Aberto na frente, termina
em bico, sobre o ventre. Nas, duas aberturas e nos lados levam,
dentro de bainhas, hastes delgadas de cana de roca ou de pau de
roseira, à laia de «baleias». A frente e as costas são bordadas a ponto
de espinha. Debruado a linha verde, é atacado a cordões vermelhos
enfiados em ilhós bordados à mão.”
A Camisa
“É feita de linho da terra corada ao sol e tecido a fio muito fino que,
não obstante, é sempre grosseiro e áspero. Aberto no peito, tem gola
voltada, abotoada com botões de ouro em forma de pirâmide.”
…
“A camisa é feita dum só pano, isto é: não tem costura sobre os
ombros. É franzida em volta do pescoço, sem pala. Para ter a
necessária fuga nas costas, dá-se sobre os ombros, um corte do
comprimento duns três dedos, no qual se encaixa um triângulo-
rectângulo de fazenda, da mesma medida …”
…
“A manga é, curta e prende-se na parte superior do braço, mais ou
menos na altura da axila, com um cós de cerca de dois centímetros.
Ajusta-o uma pequena abertura, abotoada com botão e presilha e
colocada na parte interior (debaixo do braço).”
…
“Na extremidade, que também é franzida encanudada, leva um cós
estreito, de menos de um centímetro e a abertura a que há pouco
nos referimos. Uma vez vestida, a manga fica bem justa ao braço e
forma um graciosíssimo balão”
A Carapuça
“Não houve maneira de encontrar uma pista ou simples traço que
nos levasse a conhecer a razão de ser tão minúsculo este interessante
e original barrete, que tanto valoriza o traje regional da Madeira.”
…
“E, como não há memória, notícia ou lembrança de outra cobertura
para a cabeça, de uso popular, nos séculos passados, segue-se que
a carapuça veio do povo e no povo ficou, melhorada ou modificada
– tornada sua pelas modificações introduzidas.”
…
“É geralmente feita de fazenda azul escuro, forrada de flaneleta
vermelha”
A Bota Chã
“…por meados do século passado apareceu a indústria da bota chã
na freguesia de Câmara de Lobos, nela se empregando coiros
curtidos pelos fabricantes. Se é produto da evolução ou simplesmente
questão de economia, apesar da sua relativa fragilidade, ou ainda
imitação para aproveitamento da indústria dos cortumes, não é
agora possível saber. O certo é que é uma espécie de calçado única
no género.”
…
“O chamado calçado regional é fabricado de pele de bezerro ou de
ovelha e tem sola corrida, sem salto.”
In O Traje Regional da Madeira, 1952
Por outro lado é importante referir que desde o séc. XIX surgem desenhos,
gravuras, aguarelas e litografias que retratam a mulher madeirense trajada com saia
lista, camisa branca, corpete ou capa, carapuça e bota chã, será pura fantasia e
delírio dos nossos visitantes, estou em crer que não. Muito dificilmente pessoas
distintas, com trabalhos impressos em locais distintos fossem capazes de
representar uma indumentária tão parecida, se estes factos podem de algum modo
provar a “forma”, a cor, já não será assim tão fácil de provar. Como é referido por
diversos investigadores do trajo, a cor era aplicada à posteriori, no seu país de
origem e como vemos pelas legendas, nem sempre, ou muito raramente por quem
desenhou. Podendo ser feita com base em descrições, que até prova em contrário,
podiam ser verbais, o que diminui o nível de rigor destes registos.
Se hoje em dia, este trajo é utilizado apenas por alguns grupos folclóricos e
vendedeiras de flores, imagine um cenário, partindo do princípio que este seria um
trajo comum a todas as mulheres, o imenso colorido de um baile de romaria, a
dinâmica, a alegria a força e impacto visual que seria …. (é LINDO NÃO É!?)
A verdade é que não sabemos se algum dia foi assim!
José António Pérez Cruz, “El vestido tradicional en Gran Canárias”, 1985 – Instituto
Canário de Etnografia e Folclore
Agradecimentos
Ao Centro de Documentação da Associação Cultural e Musical
XARABANDA, na pessoa do Rui Camacho, à Casa-Museu Frederico de Freitas, ao
Escultor António Rodrigues - professor da UMa, ao Danilo Fernandes – Grupo
Folclore e Etnográfico da Boa Nova e ao Nélio Neves - Casa da Cultura de Santa
Cruz, por toda a colaboração prestada.
Bibliografia
ARAGÃO, António, A Madeira Vista por Estrangeiros (1455-1700), Funchal 1981
Secretaria Regional da Educação e Cultura – Direcção Regional dos Assuntos
Culturais.
Elucidário Madeirense