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O Traje Regional da Madeira

Fábio Duarte Teles Abreu

Trabalho desenvolvido para a Sociologia da Comunicação no âmbito do


Mestrado em Design da Faculdade de Arquitectura de Lisboa 2006/2007

“Quando se fala no traje regional da Madeira acode ao espírito a saia irisada,


de fundo vermelho vivo, que tanto alinda quem a veste, camponesa ou cidadã e o
fato de linho branco – camisa e calções tufados no joelho - com que o nosso vilão
doutras eras se vestia, fresco como uma alface, carapuça ao lado e bota chã mal
cobrindo um terço da canela gadelhuda. A impressão geral é de que foi esse o traje
característico da terra, generalizado por todas as freguesias, como parecem atestar
gravuras do século passado e muitos postais e fotografias, ainda hoje à venda nos
estabelecimentos comerciais. Mas é uma impressão abstrata, porquanto ninguém a
concretizou, nem mesmo os cronistas antigos, em cujos trabalhos não se encontra
mais do que vagas alusões de onde é impossível extrair elementos bastantes para
se chegar a conclusões definitivas.”

Carlos Maria Santos in O Traje Regional da Madeira, 1952

Introdução
Para falarmos sobre o trajo típico da ilha da Madeira é necessário não
esquecer que este arquipélago foi descoberto em 1418 e 1419, Porto Santo e
Madeira respectivamente, tendo a sua colonização começado 6 anos depois. Pelo
que, o trajar desta gente era o que usavam antes de chegarem às ilhas, e pelo
menos nos primeiros anos, até serem criadas condições dignas de sobrevivência,
não se alterou, mantendo-se as tradições das suas terras no continente.
Tendo a ilha desempenhado um papel fundamental nos Descobrimentos
Portugueses a partir do séc. XV, tornando-se num porto de passagem obrigatória
durante as viagens, rapidamente adquiriu o estatuto de porto comercial. Graças ao
cultivo do açúcar e respectiva exportação, os senhores da terra encetaram viagens e
trocas comerciais com os mercadores que por cá passavam, pelo que não é de
estranhar as inúmeras referências de mercadores, essencialmente ingleses, que
acabavam por se estabelecer na região comercializando tecidos em troca de açúcar
e mais tarde do vinho produzido na ilha.
É a partir deste contexto que podemos começar a falar de alterações ao trajo
dos ilhéus, nunca esquecendo que uma coisa é o trajo da nobreza, que acompanhou
a “moda” das grandes capitais europeias e outra é o trajo fabricado pelo povo.

Enquadramento

A comercialização de tecidos na Madeira foi sem dúvida um negócio muito


lucrativo, sobretudo para os mercadores ingleses. Tomemos apenas um exemplo, o
de William Bolton. Na correspondência deste mercador inglês são várias as
solicitações de tecidos de qualidade para comercializar bem como recomendações
para que não fossem enviados artigos de fraca qualidade ou em desuso.

Carta n.º1 Plymouth 6 de Setembro de 1695


“Tomo nota de que V Senhoria fornecerá as coisas mencionadas
no memorando dos portugueses, a serem enviadas quando surgir
transporte e de acordo com a quantidade de vinhos que
tencionais carregar. Assim, em proporção com essa mercadoria,
enviai-nos por favor baetas, meias, calções de lã, lãs, tecidos para
forros em preto, tecidos de seda, cera de abelhas e tudo o que
achardes conveniente até que eu vos avise da Madeira, à
excepção de tecidos de algodão, a menos que estejam mais
baratos…”

Carta n.º3 Madeira, 16 de Dezembro de 1695


“Aqui não existem senão as mercadorias inglesas que W. B. trouxe
consigo, portanto logo que haja oportunidade de frete, por favor
enviai-nos alguma, à vossa conta como se segue:
20 peças de tecido de lã em moda
30 peças de baeta preta de Colchester e outra mercadoria que
considerem adequada. De momento tenho bastante sortido mas
este, entretanto, gastar-se-á.”

Carta n.º7, Madeira, 19 de Abril de 1696 (continuada a 27 e 30 e


Abril e 1 de Maio)
“Pedimos o favor de se não esquecerem de enviar alguns arcos
para arranjo das nossas pipas, além de bom tecido negro, baeta
preta, crepes negros e sarja, que são muito pedidos.”

Carta n.º 9, Madeira 22 de Maio de 1969


“São muito procurados todos os lanifícios, especialmente baeta
preta, boa sarja preta, crepe negro, tecidos finos para forros, em
preto, e «black ten hundred»”
Carta n.º 11 Madeira, 16 de Julho de 1969
“… um fardo contendo 15 de peças de baeta preta que, por
descuido dele ou dos tripulantes, foi armazenado como lastro….”,
“Quanto às baetas estragadas era para serem deixadas ao sr.
Bolton para as vender…fez uma petição ao nosso juiz para que as
baetas fossem vendidas em hasta pública, o que está agora a ser
feito…”
(as baetas estragadas atingiram os 150 mil reis em hasta pública)

Carta n.º 29, Madeira 1 de Junho de 1697


“Temos necessidade de mercadoria e portanto desejamos que nos
envie pelo primeiro barco, baeta preta de Colchester; cinco meias
peças de lã de Bocking, a saber: duas vermelhas, uma azul, uma
verde e uma amarela; 20 pares de calções de lã grossa em
vermelho e azul; 2º peças de perpetuanas; 20 peças de boa sarja
preta; 10 peças de tecido de lã em moda; 2 peças de tecido
negro com cerca de 12 polegadas por jarda; calções pretos,
sortido, alguns grandes e bons, outros coloridos; dez peças de «ten
hundred» pretas. Podeis fazer o aumento que entenderdes quanto
às quantidades destes tecidos.”

Carta n.º 31, Madeira 22 de Julho de 1697


“Essas miudezas que V. Senhoria enviou como, por exemplo, botões
forrados a seda, não se gastam aqui e, especialmente, não tem
venda esse material ordinário de lojistas antiquados: fica tudo nas
prateleiras.”

Carta n.º 33, Madeira, 1 4 de Setembro de 1697


“Temos falta de sortido de baetas pretas sarjas e meias compridas
de acordo com a lista que já vos enviámos”

Carta n.º 35, Madeira 30 de Novembro de 1697


“Ainda temos os botões que nos mandou o ano passado e
pensamos se nos vai mandar mais: seremos forçados a remetê-los
para as índias Ocidentais”

Carta n.º 37, Madeira 21 de Dezembro de 1697


“ …fornecimento de mercadorias que não são vendáveis na ilha,
especialmente botões, seda ou espécies de artigos capelistas.”

Carta n.º 56, Madeira 12 de Dezembro de 1698


“Sete jardas de bom tecido escarlate.”
“Sete jardas e meia de fita escarlate e sete jardas de verde-
marinho com a largura em uso.”

Carta n.º 86, 24 de Maio de 1700


“Podeis enviar:
30 peças de baeta de Colchester negra;
10 peças de tapete de lã grosseira (Bocking) a saber: 6 azuis. 2
vermelhos e 2 cinzentos;
10 peças de sarja fina;
30 meias compridas, a saber: 20 azuis e 10 de cores sortidas;
10 curtas, n.º 3;
10 peças de Bowdyd ten hundreds e 10 peças de lã vermelha e
azul estampada.”

Analisando estas cartas e atendendo à realidade comercial, facilmente


concluímos que a nobreza estava a par da “moda” internacional de então, sobretudo
das novidades em Inglaterra, França e Flandres, daí que investigar sobre o vestuário
da nobreza na ilha conduziria a conclusões semelhantes senão iguais à de outras
cidades europeias.

Por outro lado, o vestuário do povo campesino, aquele que é comumente


aceite como tradicional, tem outros contornos, na sua origem, fabrico e uso. Não será
de todo errado afirmar que este vestuário também representa uma “moda” e que
recebe influências, nomeadamente de classes sociais mais favorecidas.

“Conforme Weiss notou, «a moda é inimiga da tradição. A moda é


o distintivo do espírito da época, o trajo é a expressão do
compromisso popular da comunidade. Mas a moda, através das
classes elevadas, consegue, também, influir nos trajos populares,
embora muito lentamente e aproveitando o povo aquilo que não
esteja em contradição com a comunidade local ou, melhor, que
esteja de acordo com o seu espírito da época. Os trajas regionais
representam heranças de modas de vários séculos e de várias
origens que se foram reunindo para formar um todo em que, com o
tempo, se vai transformando em tudo».” (Tomaz Ribas, 2004)

O trajo do povo como já foi referido deverá ter-se mantido inalterado durante
muitos anos após o início da colonização, mais do que o da nobreza.
Encontramos semelhanças com os trajos regionais do continente, sobretudo
com os do Minho, pela utilização de cores garridas, nomeadamente o vermelho. Mas
ao analisarmos o trabalho de alguns investigadores, do Danilo Fernandes por
exemplo, que estudaram sobretudo os livros de registo de Juízo de Resíduos e
Capelas da ilha, as referências encontradas dão conta da utilização de outras cores
como o preto, o azul, o castanho e o branco como sendo as mais recorrentes no
vestuário.
Deparamo-nos com duas realidades, a do comércio de fazendas a preços
acessíveis, logo menos ricos, que as disponíveis para a nobreza e o vestuário
produzido pela própria, com recurso aos tares e ao linho e lã produzidos na ilha. A
este respeito importa referir o estudo desenvolvido pelo historiador João Adriano
Ribeiro “O trajo na Madeira – elementos para o seu estudo” onde aborda
precisamente estes dois factores, a produção de linho e lã e os teares existentes nas
diversas freguesias.

“No século XVII, existiam muitas plantações de linho na Madeira,


especialmente nos lugares mais húmidos…Enfim, em maior ou
menor quantidade, em todas as freguesias existiam plantações de
linho utilizado, depois de fiado, em variadas peças de vestuário
para remediar as necessidades indispensáveis do quotidiano.”
“…um levantamento estatístico, elaborado em 1863, revela que
dos 559 teares de linho e lã existentes na Madeira, apenas um,
sublinhe-se, se situava na Camacha.”

Ribeiro, João Adriano in “O trajo na Madeira – elementos para o


seu estudo”, pág. 35

Só depois de percebermos estas duas realidades é que podemos começar a


discutir a existência de um ou vários trajos típicos da ilha da Madeira.

O que hoje conhecemos como descrição da indumentária típica da Madeira


são os relatos de viagem de estrangeiros que, nos séculos XVIII e XIX, procuravam a
ilha para repouso e cura de doenças do pulmão ou de comerciantes e mercadores
que visitavam a ilha regularmente para os seus negócios. Outra fonte de informação
é as gravuras e aguarelas, muitas delas, senão a grande maioria, apenas
desenhadas na ilha e coloridas no seu país de origem, longe da realidade com base
na memória, o seu grau de rigor fica assim comprometido. A este propósito o Cónego
Fernando de Meneses Vaz escreveu um artigo denominado “Indumentária Antiga”
para a revista “Das Artes e das Letras” onde diz o seguinte:

“Das caricaturas feitas por ingleses que à Madeira vinham repousar


ou curar o pulmão, aí por 1800, alguma coisa é de aproveitar,
postas de parte a fantasia e o capricho de meter a ridículo o pobre
vilão que carreava para as firmas estrangeiras o néctar que as
enriquecia.”

A grande verdade é que as aguarelas e gravuras são os registos mais


difundidos sobre o trajo da ilha e salvo alguns testamentos, que sendo importantes
para o entendimento do trajo, ficam muito aquém de serem a fiel caracterização do
trajo típico regional.
O trajo feminino é o que mais controvérsia gera, pela diversidade de cores e
composição, mas na forma todos os investigadores estão de acordo, saia longa até o
tornozelo, camisa de linho branca, colete e capa, carapuça e bota chã.

Análise

Trajar como acto de cobrir o corpo existe desde sempre, nem sempre com
tecidos, o recurso a pinturas corporais como as que conhecemos de algumas
civilizações indígenas podem e devem ser consideradas quando estudamos esta
necessidade comunicativa do indivíduo.
Necessidade comunicativa é uma definição que caracteriza verdadeiramente o
acto de cobrir o corpo, pois a opção que fazemos ao escolher uma determinada peça
de vestuário comunica a nossa cultura, a nossa condição social, estado emocional e
algo que raramente gostamos de assumir mas que é sempre considerado, a nossa
vaidade. Estudar o vestuário de um determinado período histórico, seja ele qual for,
sem ter em atenção estas questões, conduzirá certamente a conclusões erróneas,
contudo é preciso não esquecer que cobrir o corpo, tal como foi referido, é uma
necessidade comunicativa mas também de sobrevivência. Dificilmente alguém que
viva sob condições climatéricas adversas colocará as suas necessidades
comunicativas acima da necessidade de sobrevivência, e também nos casos onde
essa sobrevivência esteja assegurada se valorizará a vertente comunicativa se não
existir o mínimo de condições básicas de alimentação e higiene.
As mulheres dos séculos XV, XVI e seguintes que viveram na Madeira não
seriam certamente excepção, e é assim que também devemos olhar para o trajo
regional da ilha.
Se por um lado existiria o trajo de cada freguesia ou zona, de certeza que
existiria variantes dentro dessa mesma freguesia, pelos aspectos acima referidos,
mas também por maior ou menor poder financeiro. A estes aspectos é necessário ter
em atenção a actividade profissional desenvolvida, destacando três como sendo as
mais representativas, a pesca, a agricultura e pecuária e afins, certamente o trajo
reflectia a actividade a que se dedicavam.
Neste momento já é possível constatar quão difícil é estudar o trajo regional,
quer pelos múltiplos vectores a considerar quer pela distância temporal.
Até há relativamente poucos anos era comum ver as mulheres usarem o seu
melhor trajo nos dias de missa e romaria, nada nos faz pensar que naquele tempo
seria diferente e seriam esses trajos que reflectiriam melhor o prazer destas
mulheres em se apresentarem mais bonitas que as da freguesia vizinha.
Quanto ao trajo de trabalho no campo, estou convencido que seria do que a
terra desse. A este respeito importa referir o Cónego Fernando de Meneses Vaz num
artigo denominado “Indumentária Antiga” para a revista “Das Artes e das Letras”
onde diz o seguinte:

“Em Santa Cruz…saia de lã vermelha, tinta no pau de campeche,


polca branca e lenço encarnado….por cima de si uma capa azul, de
lã, com umas vistas na frente e um cabeção com bicos debruados
com uma fita da mesma cor. Era este o seu traje, e desta forma as vi
descer tantas vezes o caminho…”

“…usavam as camponesa de Santa Ana simples saias brancas de lã


das suas ovelhas.”

“Brancas ou amarelo canário, tinham uma barra larga talvez dum


terço da sua altura, quase com tantas cores quantas tem o arco íris e
bem vivas.” (saias das mulheres de S. Jorge)

“Em Machico, as capas, semelhantes às de Santa Cruz, bem como as


saias azuladas…usadas por mulheres viúvas dos arrazes ou de
qualquer outra campanha, que por sua vez vestiam uma jaleca
verde sem mangas.”

“Na Fajã da Ovelha … as saias das lavradeiras. Eram de lã preta e


branca, misturadas no acto de fiar ou tecer, ... Na roda … listas pretas
mais ou menos largas …as capas azuis”

“Capas vermelhas, garridas … no Estreito da Calheta. As saias, não


me lembro como seriam, pois as capas prenderam-me toda a
atenção.”

Por estas breves descrições apercebemo-nos da riqueza de trajos existentes


na ilha, para não falarmos em adereços como os lenços, descritos sempre como
ricamente enramados e de diversas cores. Ignorar estas referências aos diferentes
estilos do trajo regional é fazer tábua rasa deste manancial de conhecimento.
À semelhança de outras culturas, como as indígenas referidas anteriormente,
que utilizavam a cor como factor diferenciador de tribos e dentro destas como
posição hierárquica do indivíduo, a variedade cromática do trajo regional é bem
característica das diferenças entre freguesias, sejam elas de nível climatérico,
culturais ou profissionais das suas gentes (leia-se colonizadores) não sendo de
ignorar que reflectiriam possivelmente influências dos trajos utilizados pela nobreza e
que a riqueza dos seus adereços, lenços, coletes e corpetes são inegavelmente
factores diferenciadores de poder económico e como já referi de vaidade.
Se aceitarmos que numa determinada freguesia todas as mulheres se vestiam
respeitando um mesmo estilo, nada nos faz acreditar que o conteúdo fosse idêntico,
pensar assim é extremamente redutor, não apenas pela fraca capacidade de
raciocínio de quem investiga mas sobretudo pela minimização da criatividade das
mulheres de então. Estou em crer e apesar de não existirem muitos registos, que os
coletes seriam bordados a várias cores, não apenas a verde e que os motivos neles
representados partilhariam apenas a temática da natureza.

Inside of a Cottage (do livro «A HISTORY Peasants going to Market (do livro «A
OF MADEIRA With A Series of Twenty- HISTORY OF MADEIRA With A Series of
Seven coloured Engravings, Illustrative of Twenty-Seven coloured Engravings,
the Costumes, Manners, and Illustrative of the Costumes, Manners, and
Occupations of the Inhabitants of the Occupations of the Inhabitants of the
Island»); Litografia de autor Island»); Litografia de autor desconhecido;
desconhecido; edição de R. Ackermann; edição de R. Ackermann, London; 1821 –
London; 1821 – Casa-Museu Frederico de Casa-Museu Frederico de Freitas
Freitas

Peasants in usual Costume (do livro «A Rural Occupations (do livro «A HISTORY OF
HISTORY OF MADEIRA With A Series of MADEIRA With A Series of Twenty-Seven
Twenty-Seven coloured Engravings, coloured Engravings, Illustrative of the
Illustrative of the Costumes, Manners, and Costumes, Manners, and Occupations of
Occupations of the Inhabitants of the the Inhabitants of the Island»); Litografia de
Island»); Litografia de autor autor desconhecido;, edição de R.
desconhecido; Edição de R. Ackermann, Ackermann, London; 1821 – Casa-Museu
London, 1821 – Casa-Museu Frederico de Frederico de Freitas
Freitas

Ilha da Madeira. Camponeza indo para Villão ou Camponez da Ilha da Madeira


o Mercado; Des.– João Macphail; Lit – (estampa atribuída à 1.ª série da
Desconhecido; Impressão - Oficina Colecção Palhares); Des.-Desconhecido
Litográfica de Manuel Luiz da Costa, Lit.– Desconhecido; Impressão - Oficina
Lisboa; Edição - Meados do séc. XIX (ca. Litográfica Palhares, Lisboa; Edição -
1842) – Casa-Museu Frederico de Freitas Meados do séc. XIX – Casa-Museu
Frederico de Freitas

Outros trajos para além dos referenciados certamente existiriam como o


registado fotograficamente pelo Escultor António Rodrigues, e pelo Rui Camacho,
nas serras da Ribeira Brava na freguesia do Campanário nos anos 80, diferentes de
todos os outros de que há registo. Este trajo tem a particularidade de apresentar
duas saias, de cor preta e riscas vermelhas, uma delas serviria como agasalho nos
dias mais frios, muito frequentes naquela localidade.

Fotografia de Rui Camacho

Mas nenhum destes se assemelha ao que hoje conhecemos como trajo


regional da ilha da Madeira, celebrizado pelos grupos folclóricos aquém e além
fronteiras e profusamente difundido em postais um pouco por todo o mundo. Trajo
esse também referenciado como sendo originário da Camacha, interpretação
errónea, a meu ver, dos factos. Basta para tal, tomar como exemplo a tabela acima
apresentada sobre o número de teares existentes na região em 1863, e podemos
constatar que nessa freguesia existia apenas 1, pelo que afirmar que o trajo regional
da ilha da Madeira seja originário da Camacha é muito difícil, senão praticamente
impossível de provar.
Certo é que esse trajo apesar de não existirem registos escritos e de serem poucos
os investigadores até à data que refiram a saia listada como sendo tipicamente
madeirense são hoje aceite praticamente sem hesitações como tal. Prestemos então
atenção a uma passagem de “O Traje na Madeira – Subsidio para o seu estudo”
coordenado por Abel Soares Fernandes que diz o seguinte:

“A saia tecida de lã, excessivamente pitoresca pela intensidade do


seu colorido, destacava-se das outras peças da vestimenta da mulher
camponesa. Sempre rodada e multicolor, riscava-se, na vertical, de
amarelo, branco, verde, azul e vermelho vivo, sendo estas listas mais
largas de modo a dar ao fundo da saia essa tonalidade. As listas
verticais formavam duas séries desencontradas: a de cima, apenas
com um palmo de largura, constituía uma espécie de pala e a outra
descia até ao cano da bota e rematava com um debrum de linho da
terra ou pano cru, tal como o cós.”

Acho muito improvável que de um dia para outro a pobre campesina, por mais
criativa que fosse, tenha acordado e decidido criar um trajo completamente novo e
diferente de tudo o que existia o do que tivesse visto até então. Simplesmente
porque lhe apeteceu, por mero capricho de vaidade. Difícil de aceitar de ânimo leve,
é que tal colorido e composição tenham sido introduzidos na ilha por escravos
oriundos de Marrocos. Contudo não é de descurar uma influência marroquina, mas
dificilmente esta terá sido introduzida por escravos, sendo mais verosímil que a
existir seja fruto das muitas viagens para África, Índia e Canárias realizadas pelos
nobres e mais tarde pelos burgueses da terra.
Referência inequívoca ao trajo, é a de 1933 pela Câmara Municipal do Funchal onde
são colocadas regras ao vestuário das vendedeiras de flores, como refere o Cónego
Fernando de Menezes Vaz em “Indumentária Antiga” publicado em 1952.

“Haverá pouco mais de uma dúzia de anos que a Câmara Municipal


do Funchal no intuito de fazer reviver os costumes regionais,
determinou, que as vendedeiras de flores só poderiam fazer o seu
comércio exibindo aquela indumentária. Realmente essa
determinação vinha trazer ao burgo, com tal nota típica, um pouco
mais de alegria e vida, prendendo ao mesmo tempo a atenção dos
turistas.”

Refere o mesmo autor que vestimenta igual era usada pelas raparigas
aquando da visita das Insígnias do Espírito Santo na Semana Santa, tal com
acontece hoje me dia nalgumas paróquias.
Importa nesta altura citar Carlos Maria Santos, pela descrição que faz do trajo
regional da ilha da Madeira.

A saia
“É fabricada de lã de ovelha que, depois de tingida, é fiada em
tantas maçarocas quantas as cores necessárias e tecida sobre
urdidura de linha de algodão. As cores são: vermelho vivo, azul,
verde, branco e amarelo. As listas vermelhas são as mais largas, cerca
de três ou três e meio centímetros, para que a saia tenha fundo dessa
cor. As outras têm a largura aproximada de dois centímetros. A ordem
da tecedura é a seguinte: vermelho, amarelo, vermelho, azul-escuro,
vermelho, verde, vermelho, azul, vermelho, amarelo, vermelho, e azul,
branco e azul. Estas três últimas cores, embora da mesma largura
(pouco menos de dois centímetros) formam uma tira única, chama-se
«tira casada» e fecha a ordem da tecedura. Depois recomeça, até
atingir a largura da saia, geralmente de três varas - (três metros e
trinta centímetros).”
“…a relativa estreiteza dos teares não permite tecer pano de largura
suficiente para a altura da saia. Corta-se então mais um pedaço do
tecido e acrescenta-se na cintura, formando uma pala…Esta pala é
mais ou menos larga segundo a altura da pessoa… este, bem como a
roda, é debruado a linho da terra, ou pano cru na largura de um
centímetro.”

A Capa
“É, feita de baeta vermelha. Na Ponta do Sol, segundo informações
ali colhidas, as capas vermelhas eram para as raparigas, solteiras ou
casadas. As viúvas punham capas azuis.”
“Era ainda uma compostura para certas classes, principalmente a
popular.”
“A capa da mulher do povo madeirense distingue-se das demais pelo
tamanho e pela romeira. Curta, pela cintura ou pouco menos,
cruzava as pontas na frente e prendia-se no cós, da saia, com
alfinetes. Nas caminhadas ou nas romarias deitavam-na sobre o
ombro direito deixando-a solta ou prendiam as pontas na cintura, à
esquerda. Deste modo o braço esquerdo ficava livre permitindo
transportar qualquer objecto.”

O Corpete
“O corpete da mulher madeirense distingue-se pelo corte que, a
despeito dos decotes exagerados de oitocentos, é casto e veste-se
sobre a camisa. A base desce até ao cós da saia e o decote cobre
ou mesmo ultrapassa a curvatura do seio. Aberto na frente, termina
em bico, sobre o ventre. Nas, duas aberturas e nos lados levam,
dentro de bainhas, hastes delgadas de cana de roca ou de pau de
roseira, à laia de «baleias». A frente e as costas são bordadas a ponto
de espinha. Debruado a linha verde, é atacado a cordões vermelhos
enfiados em ilhós bordados à mão.”

A Camisa
“É feita de linho da terra corada ao sol e tecido a fio muito fino que,
não obstante, é sempre grosseiro e áspero. Aberto no peito, tem gola
voltada, abotoada com botões de ouro em forma de pirâmide.”

“A camisa é feita dum só pano, isto é: não tem costura sobre os
ombros. É franzida em volta do pescoço, sem pala. Para ter a
necessária fuga nas costas, dá-se sobre os ombros, um corte do
comprimento duns três dedos, no qual se encaixa um triângulo-
rectângulo de fazenda, da mesma medida …”

“A manga é, curta e prende-se na parte superior do braço, mais ou
menos na altura da axila, com um cós de cerca de dois centímetros.
Ajusta-o uma pequena abertura, abotoada com botão e presilha e
colocada na parte interior (debaixo do braço).”

“Na extremidade, que também é franzida encanudada, leva um cós
estreito, de menos de um centímetro e a abertura a que há pouco
nos referimos. Uma vez vestida, a manga fica bem justa ao braço e
forma um graciosíssimo balão”

A Carapuça
“Não houve maneira de encontrar uma pista ou simples traço que
nos levasse a conhecer a razão de ser tão minúsculo este interessante
e original barrete, que tanto valoriza o traje regional da Madeira.”

“E, como não há memória, notícia ou lembrança de outra cobertura
para a cabeça, de uso popular, nos séculos passados, segue-se que
a carapuça veio do povo e no povo ficou, melhorada ou modificada
– tornada sua pelas modificações introduzidas.”

“É geralmente feita de fazenda azul escuro, forrada de flaneleta
vermelha”

A Bota Chã
“…por meados do século passado apareceu a indústria da bota chã
na freguesia de Câmara de Lobos, nela se empregando coiros
curtidos pelos fabricantes. Se é produto da evolução ou simplesmente
questão de economia, apesar da sua relativa fragilidade, ou ainda
imitação para aproveitamento da indústria dos cortumes, não é
agora possível saber. O certo é que é uma espécie de calçado única
no género.”

“O chamado calçado regional é fabricado de pele de bezerro ou de
ovelha e tem sola corrida, sem salto.”
In O Traje Regional da Madeira, 1952

Por outro lado é importante referir que desde o séc. XIX surgem desenhos,
gravuras, aguarelas e litografias que retratam a mulher madeirense trajada com saia
lista, camisa branca, corpete ou capa, carapuça e bota chã, será pura fantasia e
delírio dos nossos visitantes, estou em crer que não. Muito dificilmente pessoas
distintas, com trabalhos impressos em locais distintos fossem capazes de
representar uma indumentária tão parecida, se estes factos podem de algum modo
provar a “forma”, a cor, já não será assim tão fácil de provar. Como é referido por
diversos investigadores do trajo, a cor era aplicada à posteriori, no seu país de
origem e como vemos pelas legendas, nem sempre, ou muito raramente por quem
desenhou. Podendo ser feita com base em descrições, que até prova em contrário,
podiam ser verbais, o que diminui o nível de rigor destes registos.

Costume of Madeira (do livro «EXCURSIONS Villôa, Camponeza da Ilha de S. Miguel;


IN MADEIRA AND PORTO SANTO, During the Litografia de autores desconhecidos;
Autumn of 1823, while on his third voyage to Impressão - Lith. Palhares, Lisboa;
África»; T. Edward Bowdich); Des.– Susan Edição - séc. XIX
Bowdich, Lit.– Desconhecido; Litografia;
Impressão - C. Hullmandell; Edição - George
B. Whittaker, London; Exec. Des. – 1823
Edição – 1825 – Casa-Museu Frederico de
Freitas

Costumes of Madeira. Woman Spinning; Camponezes da Ilha da Madeira.


Des.-Desconhecido, Lit. – J. Gellatly; Des.-Desconhecido Lit.– Desconhecido;
Litografia; Impressão – Edimburgo; Edição - Litografia; Impressão - Oficina
Meados do séc. XIX Litográfica
Palhares, Lisboa; Edição - séc. XIX
Independentemente da sua origem ou influência, o certo é que o traje típico da
ilha da Madeira transmite uma carga comunicativa elevadíssima. Ninguém consegue
ficar indiferente, ao seu estilo, composição formal e cromática, sobretudo se
presenciar um “bailinho”.
O invulgar colorido da saia de fundo vermelho, vibrante, apelativo, divertido
prende instantaneamente a atenção até dos mais distraídos, a sua disposição em
riscas verticais deixa antever que ao menor movimento toda aquela aparente
estabilidade se desmoronará. De facto é isso que acontece, o simples andar, o correr
e o bailar transformam por completo a sua configuração, as riscas tornam-se
ondulantes e o que antes era estático ganha um dinamismo sem paralelo nos trajos
típicos nacionais.
Se actualmente com toda a cultura visual que existe, fortemente influenciada
pela televisão, vídeo, animação informaticamente assistida e produção multimédia, a
estupefacção é praticamente generalizada, quer dizer então das reacções que
certamente provocaria há dois ou mais séculos atrás.

Stock Photo – Pessoas e Tradições - http://www.madeiraarchipelago.com

Se hoje em dia, este trajo é utilizado apenas por alguns grupos folclóricos e
vendedeiras de flores, imagine um cenário, partindo do princípio que este seria um
trajo comum a todas as mulheres, o imenso colorido de um baile de romaria, a
dinâmica, a alegria a força e impacto visual que seria …. (é LINDO NÃO É!?)
A verdade é que não sabemos se algum dia foi assim!

Dois aspectos a salientar, primeiro, o trajo típico da ilha da Madeira, cumpre


com as duas funções apontadas no início desta análise, a de cobrir o corpo e a
comunicativa, como acabei de apresentar, segundo, seja ou não criação da mulher
madeirense o facto é que foi este povo quem melhor uso e proveito lhe soube dar.
Nota Final

A imagem que se segue representa o trajo típico de Las Palmas, ilhas


Canárias, curioso que a saia, na sua composição formal e cromático é muito próxima
da utilizada na ilha da Madeira e que o corpete tenha um corte semelhante.
São elaborados inúmeros estudos sobre mercados comuns, cooperação
política, de índole cultural, nomeadamente no campo da música, para quando um
estudo sério sobre a etnografia dos arquipélagos atlânticos?

José António Pérez Cruz, “El vestido tradicional en Gran Canárias”, 1985 – Instituto
Canário de Etnografia e Folclore
Agradecimentos
Ao Centro de Documentação da Associação Cultural e Musical
XARABANDA, na pessoa do Rui Camacho, à Casa-Museu Frederico de Freitas, ao
Escultor António Rodrigues - professor da UMa, ao Danilo Fernandes – Grupo
Folclore e Etnográfico da Boa Nova e ao Nélio Neves - Casa da Cultura de Santa
Cruz, por toda a colaboração prestada.

Bibliografia
ARAGÃO, António, A Madeira Vista por Estrangeiros (1455-1700), Funchal 1981
Secretaria Regional da Educação e Cultura – Direcção Regional dos Assuntos
Culturais.

FERNANDES, Abel Soares, ALVES, Ângela, FERNANDES, Julieta, O Traje na


Madeira – Subsídio para o seu estudo, 1ª edição, Secretaria Regional de Turismo e
Cultura, Funchal, 1994

FERNANDES, Danilo, Os trajos usados na freguesia do Caniço no século XVIII,


Revista Xarabanda, n.º4, Funchal 1993

FERNANDES, Danilo, Os trajos do século XVIII e as suas influências nos séculos


posteriores, Funchal 1995, Revista Xarabanda, n.º7

RIBEIRO, João Adriano, O Trajo na Madeira, elementos para o seu estudo,


ACOPORAMA, Funchal 1993

RIBAS, Tomaz, O Trajo Regional em Portugal, Edição, Lisboa 2004

SANTOS, Carlos Maria, O Traje Regional da Madeira, Funchal 1952

VAZ, Fernando de Meneses (Cónego), “Indumentária Antiga”, Das Artes e das


Letras, n.º 13, Funchal 1952

Elucidário Madeirense

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