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Samizdat Especial 1 - Ficção Científica

abril de 2008

Capa e Diagramação: Editorial


Henry Alfred Bugalho
A revista eletrônica SAMIZDAT surgiu
como a terceira etapa duma comunidade
virtual de escritores, que começou em
Autores
2005, com a criação da comunidade
Ana Cristina Rodrigues “Escritores - Teoria Literária” no Orkut,
depois, com a organização da “Oficina
Carlos Alberto Barros
da E-TL” e, por fim, com o blog da
Denis da Cruz SAMIZDAT.
Giselle Natsu Sato
Na verdade, o senso de comunidade
Henry Alfred Bugalho é essencial para o atual contexto literário.
José Espírito Santo
Mais do que rivais, ou contendores,
os escritores estão compreendendo
Marcia Szajnbok que todos fazem parte duma grande
Samuel Peregrino tecitura literária, do interminável Livro
do Mundo.
Volmar Camargo Junior
A escolha para qual seria o gênero
do primeiro exemplar da SAMIZDAT
Textos de: Especial não foi fácil. Numa votação,
Fábio Fernandes Ficção Científica recebeu apenas um
voto a mais do que Terror, deixando em
Isaac Asimov (trad. Henry Alfred Bugalho) terceiro lugar, empatados, Fantasia,
Max Mallmann Mistério e Ficção Histórica.

Para alguns dos autores da revista,


Imagem da capa: este gênero foi um desafio, para outros,
a oportunidade de apresentarem textos
Acervo da NASA
há muito redigidos, e, para alguns
autores brasileiros já conhecidos neste
meio, esta participação é uma forma de
Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não- apoio a novos escritores que despontam
Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas
no horizonte da Literatura.
2.5 Brasil Creative Commons.

Todas as imagens publicadas são de domínio Com a certeza de que esta é a


público ou royalty free. primeira edição especial da SAMIZDAT
de muitas ainda por vir, eu lhes desejo
As idéias expressas e a revisão das obras são uma ótima leitura.
de inteira responsabilidades de seus autores.
Henry Alfred Bugalho

www.samizdat-pt.blogspot.com Nova York, abril de 2008


Índice

Por que Samizdat? 1


Henry Alfred Bugalho

Lentidão 3
Ana Cristina Rodrigues

Código denominativo: RG-12 12


Carlos Alberto Barros

Recomendações de Leitura

Não Serás Futuro Algum 13

Ana Cristina Rodrigues

O artista da carne (uma parábola) 14

Fábio Fernandes

História Natural 17

Max Mallmann

Primeiro Encontro 19
Volmar Camargo Junior

Como um Fim de Tarde Simulado 22


Samuel Peregrino

O Fascínio da Ficção 35
Denis da Cruz

Cemitério Russo 37
Henry Alfred Bugalho

Ilusões 41
Denis da Cruz
O Botão 46
José Espírito Santo

TRADUÇÃO

A Última Pergunta 49

Isaac Asimov

Termo de Recriação 62
Marcia Szajnbok

Guerrilha Urbana 65
Giselle Natsu Sato

Sobre os Autores da SAMIZDAT 68


www.samizdat-pt.blogspot.com

Por que Samizdat?


Henry Alfred Bugalho

“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,


distribuo e posso ser preso por causa
disto”
Vladimir Bukovsky

Em reação, aqueles que se


acreditavam como livres-pensadores, que
Inclusão e Exclusão não queriam, ou não conseguiram, fazer
parte da máquina administrativa - que
estipulava como deveria ser a cultura, a
Nas relações humanas, sempre há
informação, a voz do povo -, encontraram
uma dinâmica de inclusão e exclusão.
na autopublicação clandestina um meio
de expressão.
O grupo dominante, pela própria
natureza restritiva do poder, costuma
excluir ou ignorar tudo aquilo que não
pertença a seu projeto, ou que esteja
contra seus princípios. Datilografando, mimeografando,
ou simplesmente manuscrevendo, tais
autores russos disseminavam suas
Em regimes autoritários, esta
idéias. E ao leitor era incumbida a tarefa
exclusão é muito evidente, sob forma de
de continuar esta cadeia, reproduzindo
perseguição, censura, exílio. Qualquer
tais obras e também as passando
um que se interponha no caminho dos
adiante. Este processo foi designado
dirigentes é afastado e ostracizado.
"samizdat", que nada mais significa do
que "autopublicado", em oposição às
publicações oficiais do regime soviético.

As razões disto são muito simples de


se compreender: o diferente, o dissidente
é perigoso, pois apresenta alternativas,
E por que Samizdat?
às vezes, muito melhores do que o
estabelecido. Por isto, é necessário
suprirmir, esconder, banir.

A União Soviética não foi muito A indústria cultural - e o mercado


diferente de demais regimes autocráticos. literário faz parte dela - também realiza
Origina-se como uma forma de governo um processo de exclusão, baseado no
humanitária, igualitária, mas logo se que se julga não ter valor mercadológico.
converte em uma ditadura como qualquer Inexplicavelmente, estabeleceu-se que
outra. É a microfísica do poder. contos, poemas, autores desconhecidos
não podem ser comercializados, que não

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

vale a pena investir neles, pois os gastos


seriam maiores do que o lucro.
Ao serem obrigados a burlarem a
A indústria deseja o produto pronto e indústria cultural, os autores conquistaram
com consumidores. Não basta qualidade, algo que jamais conseguiriam de outro
não basta competência; se houver quem modo, o contato quase pessoal com os
compre, mesmo o lixo possui prioridades leitores, o diálogo capaz de tornar a obra
na hora de ser absorvido pelo mercado. melhor, a rede de contatos que, se não é
tão influente quanto a da grande mídia,
E a autopublicação, como em qualquer faz do leitor um colaborador, um co-autor
regime excludente, torna-se a via para da obra que lê. Não há sucesso, não há
produtores culturais atingirem o público. grandes tiragens que substitua o prazer
de ouvir o respaldo de leitores sinceros,
que não estão atrás de grandes autores
populares, que não perseguem ansiosos
os 10 mais vendidos.
Este é um processo solitário e
gradativo. O autor precisa conquistar
leitor a leitor. Não há grandes aparatos
midiáticos - como TV, revistas, jornais -
onde ele possa divulgar seu trabalho. O Os autores que compõem este projeto
único aspecto que conta é o prazer que a não fazem parte de nenhum movimento
obra causa no leitor. literário organizado, não são modernistas,
pós-modernistas, vanguardistas ou
qualquer outra definição que vise rotular
e definir a orientação dum grupo. São
apenas escritores interessados em trocar
Enquanto que este é um trabalho experiências e sofisticarem suas escritas.
difícil, por outro lado, concede ao criador A qualidade deles não é uma orientação
uma liberdade e uma autonomia total: ele de estilo, mas sim a heterogeneidade.
é dono de sua palavra, é o responsável
pelo que diz, o culpado por seus erros, é
quem recebe os louros por seus acertos.

Enfim, "Samizdat" porque a internet


é um meio de autopublicação, mas
"Samizdat" porque também é um modo
E, com a internet, os autores possuem de contornar um processo de exclusão
acesso direto e imediato a seus leitores. A e de atingir o objetivo fundamental da
repercussão do que escreve (quando há) escrita: ser lido por alguém.
surge em questão de minutos.

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Lentidão
Ana Cristina Rodrigues

Eu odeio negociar com certas raças. Algumas por serem gananciosas, como os
malditos dorbelianos, que inventaram maneiras de enganar qualquer comprador e
chamam de ‘Leis Comerciais Internas’. Outras por terem um senso absurdo de honra,
como os hasamanitas que só adquirem qualquer coisa que tenha passado por um
complicado teste de autenticidade de posse. Mas, às vezes, é pura e simplesmente
porque eu tenho nojo dela. E na minha frente, um representante da raça mais nojenta
do Universo. Parece um verme super-crescido, com olhos pequenos em comparação
a cabeçorra disforme, apoiada direto nos ombros de onde saem braços finos como
gravetos. No entanto, em relação a mim, um olho dele era do tamanho do meu punho
fechado. Ele não conseguia andar sem a ajuda de um aparelho de suporte anti-
gravitacional. Não possuía pernas, e pesava cerca de duas toneladas e meia. Isso,
claro, numa estimativa para baixo. Grunhiu alguma coisa no seu dialeto. O meu velho
tradutor universal, roubado do Posto da Federação Interplanetária de Comércio,
demorou alguns segundos para traduzir.

- O meu carregamento, MacAran. Cadê o meu carregamento? Essas bebidas


deveriam ter chegado ao meu bar em Alpha Eridani VI há semanas.

Disfarçando meu desconforto, emito algumas palavras tranqüilizadoras. Enquanto


a geringonça traduz, penso enlouquecidamente, tentando achar uma saída. Malditos
dorbelianos! Devem ter vendido a carga por um preço melhor do que o meu, que
obviamente não foi muito alto. Ainda bem que não os pagara adiantado, como estava
dizendo ao monte de banha e limo para tranqüilizá-lo. Afinal, ele sim pagara adiantado,
confiando nas minhas habilidades de negociação. Pena já ter gasto o dinheiro recebido
com antigas dívidas. Num planeta a beira da guerra civil, proteção nunca é demais, e
eu pagara pela melhor possível.

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

O feioso saiu convencido de que eu resolveria tudo. O seu olhar para os dois
imensos seguranças que o acompanhavam não deixou dúvidas do meu destino, caso
falhasse.

Então, estava claro que eu não podia falhar.


***
Resolvi rumar para a minha residência temporária, um apartamento em um dos
subúrbios de classe média, longe dos centros industriais. Minha gentil hospedeira
estava em casa, vendo algum programa de notícias. Parei cinco minutos e entendi
que algum figurão do Conselho Diretor – o órgão administrativo superior de Cidade
Paraíso – estava defendendo a eleição de um novo presidente. Nenhuma novidade,
eleições acontecem com uma rapidez impressionante por aqui. Não que mude nada,
pois são sempre integrantes do mesmo grupo social no poder. Isso mantém uma
estrutura de dominação que faz a maior parte da população permanecer em situação
de extrema pobreza... e mais algumas baboseiras assim. Eu não sei o resto, porque
sempre durmo em algum ponto do começo do discurso.
Resolvi colocar meu plano de convencimento em prática, vendo que Nicole parecia
mais entretida com suas unhas do que com a fala de Simon Etles.

- Oi, gatinha... Nada de bom na holovisão?

Ela olhou com cara de muito poucos amigos.

- Não.

Usei o meu melhor sorriso.

- Que tal um passeio?

- Não.

- Ah, bem pequeno, eu pago o combustível...

- Não!

- Puxa, eu posso...

- Nem que o Conselho Diretor me eleja presidente! Eu não vou sair desse planeta
levando você, MacAran. Desiste.

Loira, olhos azuis, 1,80m lindamente distribuídos por curvas sensacionais.


E proprietária de uma das únicas naves de cruzeiro de toda Cidade Paraíso. Um
duplo desperdício que ela fosse homossexual, e namorada da líder do movimento

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guerrilheiro, um dos seres mais frios que já vi. E isso porque eu convivi com toneladas
de seres, das espécies mais diferentes possíveis.

- Ah, que é isso, minha linda? Pense em tudo o que eu já fiz por você...

- Fez por mim? Você dorme de favor na minha casa, é um foragido da Federação
e do Conselho Diretor, traz mercadoria contrabandeada para o meu armazém...

- Mas um dia eu posso vir a ser útil!

- Claro. No dia em que quisermos a Federação do nosso lado, entregamos você


para eles.

- Viu? Por favor...

- Eu não posso. Temos negócios importantes essa semana. Vamos atacar o prédio
do Paradise News.

Esse era o mais poderoso centro de notícias dessa pocilga dentro de um domo.
Tudo o que acontecia dentro do campo de plástico transparente reforçado, que separa
Cidade Paraíso do ambiente inóspito circundante, é noticiado ali. E todos os fatos
exteriores são filtrados ali antes de entrarem no nosso pequeno pedaço de inferno.
Realmente, um negócio importante. O videofone de Nicole tocou.

“- Nic, querida...está sozinha?”

- O Mac está aqui.

Fui para trás da loura e acenei para o vulto na tela.

- Oi, Rosinha. Senti saudades!

Convivo com os guerrilheiros há dois anos, desde que um mal-entendido tornara


a minha pessoa uma das mais procuradas pela Federação. Quando eu vi que meus
argumentos de disparo acidental não iriam me livrar da acusação de ter assassinado
o chefe do Posto Diplomático Avançado (e principalmente da fúria da viúva, até
então uma grande amiga), preferi procurar refúgio. Há alguns tipos de párias em
Cidade Paraíso. Tem bandidos de todas as categorias, mas assim eu chamaria muita
atenção, e eu não confiava muito em contrabandistas. Afinal, eu era um. Claro, poderia
me refugiar entre as camadas pobres, porém, sinceramente, elas fedem. Então, o
lado mais vantajoso para mim seria o dos guerrilheiros. Sei lá de onde, um grupo
arranjou idéias socialistas, de igualdade e acesso igual aos meios de produção...
Essas coisas que dão sono no meio de discursos. Como eu consegui convencê-los
que seria útil ter um forasteiro entre eles, para ajudar a conseguir pequenas coisinhas
necessárias a uma revolução, como armas e notícias, fui aceito. A bela Nicole, sem

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

nenhum treinamento de guerrilha, pouco conhecimento dos ideais revolucionários


e que aparentemente só estava no meio por ser a namorada da líder, foi designada
para me vigiar. E nesse par de anos, só conheci o nome e a aparência de Nicole.
Nenhum dos demais permite que eu saiba a sua identidade. Rosa Luxemburgo é o
codinome da líder e, usando meus hábitos investigativos, percebi que ela só poderia
pertencer a uma das famílias importantes daqui. Talvez fosse mesmo filha de um dos
integrantes do Conselho Diretor. Porque eu tenho essa sensação? Bem, até mesmo
para poder escolher os apelidos de seus companheiros, ela demonstrou ter tido uma
educação privilegiada. Afinal, ela sabia detalhes obscuros da história pré-espacial
da Terra, como revoltas perdidas, rebeliões massacradas... Isso indicava um colégio
particular dos bons, que ficam perto do centro do domo. E nesse buraco, lugares
assim só aceitam os filhos do topo da escala do dinheiro.

“- Não me chame assim, MacAran. Nic, preciso que você vá buscar um carregamento
de armas na borda do sistema hoje à noite.”

Isso muito me interessava. Comecei a prestar bastante atenção na conversa das


duas.

- Como assim?

“- Os explosivos que precisamos para a invasão do Paradise News ainda não


chegaram. O cargueiro não consegue entrar no sistema de M 157. A Marseille está
monitorando todo o movimento espacial,e você sabe que a Federação não é muito
disposta a aceitar naves dorbelianas suspeitas. O bando de Bork mandou uma
mensagem sub-espacial comunicando o motivo da demora. Temos até hoje a noite
para buscarmos a mercadoria, ou eles irão partir com nosso equipamento.”

O nome do chefe do bando chamou a minha atenção. Era o mesmo que estava
com a minha bebida. Resolvi não deixar escapar a chance caída do céu.

- Hum... Acho que posso ajudar aqui. Afinal, negocio há anos com os dorbelianos...
e sempre com sucesso. Vocês têm pouca experiência no contato com essa raça
esquisita e podem precisar de minha ajuda. Eu estava mesmo precisando dar uma
voltinha.

Um instante de silêncio tornou claro que ela estava refletindo sobre a minha
proposta, o que deixou Nicole consideravelmente preocupada.

- Rosa, você não...

Mas a voz ríspida da líder não deixou margem para dúvidas.

“- Ok, MacAran. Você irá com Nicole. Hoje a noite, no espaçoporto, entrada
principal. Nosso contato já está esperando com todos os documentos de autorização
de saída necessários. Beijos, querida. Cuide-se.”

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Senti que fui fuzilado pelos olhos azuis de Nicole, mas isso pouco me incomodava.
Coloquei as mãos nos bolsos e comecei a assoviar, satisfeito. Amanhã à noite eu já
teria resolvido meu problema com aquele monstrengo asqueroso. Tudo o que tinha
que fazer era ajudar Nicole a negociar com os dorbelianos, pegar as armas e a bebida,
pagar e... Droga! Eu havia esquecido completamente que ainda tinha que acertar as
contas com os malditos cabeçudos.

Porém a minha preocupação durou meros instantes. Coloquei a mente para


trabalhar, pensando em uma maneira de não pagar e ainda sair bem com os
guerrilheiros. Sorri para mim mesmo, sentado no sofá assistindo holovisão, enquanto
Nicole, resmungando, começava os preparativos para a viagem.
***
É impressionante o que dinheiro, uma boa rede de contatos e a predisposição
natural em funcionários públicos a serem corrompidos podem fazer atuando em
conjunto. Todo o complexo e intrincado ritual burocrático alfandegário de Cidade
Paraíso pareceu ter se desmanchado no ar. Nada de inspeção minuciosa da carga, ou
de vasculhamento das zonas cegas da nave. Simplesmente entramos no espaçoporto,
mostramos os documentos – falsos, embarcamos. E isso porque eu sou um dos
homens mais procurados desse buraco de rato espacial.
Por isso, em questão de poucas horas depois de falar com Rosa, estávamos
confortavelmente instalados em um iate espacial de luxo, classe Icarus. Até onde
eu sei, e isso é bastante, de todos os veículos de navegação espacial particulares
registrados, a Icarus era a única classe que só podia ser adquirida mediante atestado
de procedência familiar. Depois, claro, de paga pelo equivalente a um planetóide.

O sistema de pilotagem totalmente automático nos guiava tranquilamente. A


imensa nave-patrulha da Federação responsável pelo sistema M 157, a Marseille,
nos permitiu sair de órbita após verificar nossas credenciais. Na sala de controle,
mais parecida com um salão de um hotel luxuoso, aguardávamos a aproximação
dos doberlianos. Eu bebericava um bom cálice de conhaque rigeliano, jogado em um
estofado de Magna VII que devia valer mais do que a minha alma... Se bem que uma
lata de lixo já tem muito mais valor do que a minha parte imortal...

Minha companheira evitava olhar na minha direção, então passava o tempo


olhando as belas e compridas unhas. Conseguimos chegar à borda do sistema sem
que nenhum problema, imprevisto, desgraça de proporções cósmicas acontecesse.
Eu estava quase acreditando na existência de um poder maior. Ênfase no ‘quase’.
A desculpa oficial para estarmos ali era testar propulsores de dobra novos, o que só
poderia ser feito a certa distância do planeta. O disfarce perfeito.

Mal deu tempo para me servir de mais uma taça de conhaque antes dos dorbelianos
entrarem em contato. A cabeça imensa em relação ao resto do corpo, com todos os
seus detalhes raciais – dentes irregulares e sempre aparecendo, olhos pequenos e
focinho de porco – do chefe do bando de contrabandistas mais famoso daquela área
preencheu a tela.

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

“- Ótimo. Vocês vieram pegar a mercadoria!”

Resolvi atender a chamada pessoalmente.

- Meu bom amigo Bork, é um prazer revê-lo... Deixou a minha bebida na geladeira,
como eu pedi?

“-MacAran? Está aqui também, não sabia...”

- Que eu era amigo dos guerrilheiros? Tenho mais surpresas do que você imagina,
seu dorbeliano sujo!

Ergui a voz por puro instinto. Mas Bork deu de ombros.

“- Não precisa discutir comigo, humano. Sua mercadoria também será entregue.
Iremos teletransportar tudo para o convés de carga.”

Nicole acompanhava a discussão desinteressada. Afinal, era para isso que eu


tinha vindo.

- Assim que estivermos com a mercadoria em nossa nave, acertaremos o


pagamento. Desligando.

A imagem do negociante sumiu da tela. Prontamente, falei para a paradisíaca.

- Muito bem, eu vou descer até lá e conferir a carga. Assim que eu disser “parta”,
você entra em dobra espacial.

Ela parou de admirar as unhas.

- Mac...

Revi as especificações de carga. É, chegaríamos perigosamente perto do máximo,


o que poderia diminuir a velocidade da nave fora de dobra. Mas como ficaríamos
poucos instantes assim, dava para arriscar.

- Dá para não discutir? – Eu tinha que pensar rápido. O melhor era descer logo e
conferir tudo. Nicole e suas besteiras podiam ficar para depois

- Você não entende, é...

Não quis saber. Dei as costas e fui para o convés de carga, preocupado com
a minha mercadoria. Chegando no convés, dei um suspiro aliviado. Tudo na mais
perfeita ordem. A carga estava toda ali, bebidas de um lado, explosivos de outro.

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Conferi as minhas garrafas uma a uma, e dei uma olhada por alto nos pacotes dos
guerrilheiros. Sorri para mim mesmo, enquanto usava o comunicador da nave.

- Nic, minha linda, parta!

“- Mac...”

- Não discute e vamos logo!

“- A NAVE NÂO TEM PROPULSOR DE DOBRA!”

- Como assim?

“- É um iate, a política de isolamento de Cidade Paraíso não permite propulsores


em naves particulares! Não podemos ter!”

Para salvar a minha pele, eu teria realmente que pensar rápido agora.

- Ok, qual a nossa velocidade máxima?

“- Máxima? 300.000 quilômetros por segundo, forçando os motores.”

- Mas isso é a velocidade da luz! E agora?

A voz de Nicole saiu tensa pelo comunicador interno.

“- Mac, os dorbelianos estão tentando entrar em contato. Eles querem o pagamento.


E agora?”

Bom, como é mesmo aquele velho ditado terrestre? ‘Os inimigos de meus inimigos
são meus amigos, embora sejam meus inimigos também’. Não faz sentido, mas foi
isso que iluminou a minha mente.

- Qual a nossa distância para a Marseille?

“- Pequena. Podemos cobrir em minutos. O que você pretende fazer?”

- Vá em direção a eles, mandando mensagens de socorro. Vou tentar encobrir a


carga até chegarmos a eles.

“- Mas eles vão nos pegar!”

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

- Faz o que eu mandei!

Agora, eu tinha que acertar. Se a Federação me descobrisse, estava perdido.


****
Eu podia sentir a nave se arrastando pelo espaço. Parecia que não saia do lugar.
Minha vontade era colocar um traje espacial, sair e empurrar. Pela escotilha, podia ver
o espaço lá fora. As estrelas estavam nítidas e os planetas do sistema perfeitamente
visíveis... Nada dos borrões familiares da dobra espacial.

Fui sacudido por um impacto. Os dorbelianos atiravam ao lado da nave, sem


querer atingi-la. Afinal, o que interessava era o pagamento. Mortos, não pagariamos
nada. Para mim, foram como horas tivessem passado até Nicole entrar novamente
em contato.

“- Mac, a nave da Federação respondeu. Estão vindo em nosso socorro.”

- Ainda bem. Quanto tempo para eles chegarem aqui?

“- Questão de segundos.”

- Com quem você falou?

“- Tenente Gamgi.”

Péssimas notícias. Sam Gamgi era o chefe de Segurança da Marseille depois de


ter sido retirado da Segurança do Posto Avançado, um cargo muito mais cobiçado.
Por minha culpa, claro, pois eu acidentalmente atirara no comandante do Posto.
Ele tinha convivido comigo por anos, me reconheceria de imediato e iria adorar me
entregar às autoridades da Federação. Eu precisava, mais do que nunca, arranjar um
bom disfarce, e tudo porque a maldita nave não entrava em dobra.

Velocidade da luz? A tartaruga voadora da minha filha era mais rápida.

A nave federada se aproximou. Suas formas prateadas reluziam com as luzes das
estrelas. Não era muito grande para os padrões federativos, mas muito maior do que
a nossa nave de cruzeiro. Bem mais armada, como os dorbelianos pareciam saber.

A perseguição terminara. Agora, vinha a parte da dissimulação. Pois eu tinha uma


arma nas mãos contra Sam. Claro. Se ele me conhecia, eu também sabia de seus
defeitos. O mais terrível, o que eu inutilmente tentara ajudar o pobre coitado a se
livrar, era o de ser absurdamente tímido com mulheres bonitas. Eu já vi Sam enfrentar
seis homens de uma vez só, apenas com uma pequena lâmina. Assim como também
fora testemunha do seu desmaio ao ser cumprimentado mais... efusivamente por uma
escrava-do-prazer ragliana quando eu o levei a um bar em um dia de folga.

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Torcendo para que Nicole conseguisse distrair o oficial pelo tempo necessário,
afinal minha companheira de viagem não tinha muita paciência com o sexo oposto,
entrei no sistema de lazer da nave. Como eu imaginara, estava equipado com os
mais modernos programas de holografias solidificadas em três dimensões. Alguns
comandos e um holograma surgiu. A área de carga virou um grande salão, cópia
daquele localizado na sala de controle...e eu, Richard MacAran Davis, havia me
transformado em uma irmã gêmea da bela Nicole, com muito menos roupa e mais
atitude. Deitei em um sofá, lendo um livro eletrônico, tentando reproduzir as poses
das antigas fotos eróticas que eu vira.

Não demorou muito para que o tenente Gamgi entrasse na área de carga,
acompanhado de Nicole. Foi difícil saber quem ficou mais surpreso. Porém, a
paradisíaca recuperou-se mais rápido enquanto Sam ficou boquiaberto.

Levantei-me e disse, com voz feminina feita pelo computador, sorrindo na direção
do oficial.

- Oi, Nic, conseguiu resolver tudo? Quem é o seu amigo?

Nicole se portou graciosamente. Deu um grande sorriso na minha direção e


falou.

- Sim, querida, tudo resolvido. Graças ao tenente Gamgi.

- Hum, ele é nosso herói, então? – aproximei-me ainda mais dele, que começou
a tremer visivelmente. Completamente constrangido, ele mal olhou para nós “duas”
enquanto fazia uma inspeção ligeira. Despediu-se com uma mesura, ainda sem nos
encarar, e foi teletransportado para sua nave. Nicole olhou para mim, ainda disfarçado.
Pisquei para ela e sorri.

- Você me paga! Sabe o risco que corremos?

Desativei o holograma antes de responder.

- Resolvi tudo, não foi? Agora vamos de volta para aquele pardieiro que você
chama de casa.

O resto da viagem transcorreu em silêncio. Fiz-me de aborrecido, mas por dentro


estava muito satisfeito. Havia enganado os dorbelianos e conseguido a bebida de
graça para entregar ao poço de banha. Claro, teria sido mais simples, mas como eu
poderia adivinhar que a nave não andava em dobra? Velocidade da luz! Odeio esse
planeta. Um dia, ainda conseguiria sair dali... em dobra dez!

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

Código denominativo: RG-12


Carlos Alberto Ramos
quanto mais tempo em construção, mais
nosso sucessor será completo.

Desde a geração 10, um arquivo de


verdade incontestável é implantado no
núcleo de nosso sistema central. Esse
arquivo contém a seguinte informação:
RG-12 é o meu código denominativo
Não há máquina mais perfeita que o ser
de nível. Venho de uma linhagem que
humano. Portanto, o objetivo de todo
teve início na construção do primeiro
Robot Generation é criar o próprio ser
humanóide cibernético, chamado Robot
humano.
Generation One, o RG-1. Essa geração
inicial foi desenvolvida pela mão humana
no ano de 2044 do calendário cristão. Atualmente, estou em busca do RG-13,
Atualmente, estamos no ano 1134 da era que não será perfeito, pois com o nível de
das máquinas. tecnologia que possuo, não se é possível
alcançá-lo. Entretanto, meu sistema de
processamento estabelece que, mesmo
Com a primeira geração de RG’s,
não atingindo a determinação do arquivo
os humanos acharam a fórmula para a
de verdade incontestável, devo construir
criação de um ser completo, que fosse
um sucessor que o tente. E se esse não
tão perfeito quanto eles. Eufóricos e
conseguir, passará a tarefa à próxima
precipitados, pensavam que não se
geração, e esta à próxima, e à próxima,
passaria muito tempo para vislumbrarem
e à próxima...
esse ser ideal. Contudo, até 2110, ano
em que o homem foi completamente
extinto, ainda não se havia chegado nem Estou no limite do tempo para
ao RG-2. desativação e meu sucessor está quase
acabado. Mesmo sendo um RG-13, ele
ainda não terá algo que também não tive,
Nosso funcionamento é relativamente
que é assimilar o porquê dos homens
simples: somos projetados a partir da
desejarem construir outro homem.
estrutura do ser humano e programados
Nossos arquivos básicos nos informam
para criar um RG mais evoluído. O
que esses seres possuíam a capacidade
processo é baseado nos antigos cálculos
procriadora, onde dois deles, através
matemáticos de juros compostos, onde a
de processos bioquímicos, geravam um
capacidade evolutiva de uma geração é
novo ser humano. É incoerente, portanto,
sempre maior que da geração anterior.
aceitar que nossa linhagem venha de um
desejo que, por natureza, já era possível.
O que os humanos não entenderam Talvez o problema esteja em nossos
a tempo é que a passagem de um arquivos básicos. Como máquina, sei
nível a outro será sempre demorada, que eles podem ter sido corrompidos e,
demandando os 100 anos de ativação que pela lógica, é o que deve ter acontecido.
cada RG possui. A própria programação A provável verdade é que seres humanos
implantada no primeiro de nós faz com não procriavam.
que sejamos assim – a lógica é que,

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Recomendações de Leitura

NÃO SERÁS FUTURO ALGUM

Ana Cristina Rodrigues

É praticamente inevitável relacionar o ‘romance’ de Ivan


Hegenberg com um dos clássicos da literatura de FC brasileira,
‘Não verás país nenhum’ de Ignácio Loyola Brandão. As
principais preocupações dessas duas distopias são a rarefação
dos nossos recursos naturais e o controle externo sobre as
ações individuais. Mas enquanto Brandão limita seu universo
seco e desesperançado ao Brasil, o jovem artista plástico
paulistano universaliza suas preocupações.

Em ‘Será’, o cenário tem tanta importância quanto seus


personagens. É um romance experimentalista, no sentido
Livro: Será em que sua trama não segue linearmente um personagem
Autor:Ivan Hegenberg ou uma linha de ação. Ao contrário, pode ser lido como
Editora: Ragnarok uma coletânea de contos no mesmo universo, um mundo
oprimido por suas necessidades, onde a água virou bem tão
precioso que pessoas julgadas sem direito a vida morrem
para que sua água possa ser aproveitada por outros. Onde poderes telepáticos são
aceitáveis e utilizados pelo Sistema, o grande centro que tudo controla. No qual
pessoas perdidas buscam seus caminhos em religiões que elevam a Beleza ao
status divino. Experiências científicas e bizarras ocorrem, por vezes com divulgação
massiva. Uma repulsa ao tempo consumista que vivemos, ‘o tempo do capitalismo’,
expurgado por uma grande revolução; um mundo que consegue ser estranhamente
pacífico e belicoso.

No meio desse cenário que reúne elementos já trabalhados em diversas outras


distopias, - além da obra de Brandão podemos citar’1984’, ‘Admirável Mundo Novo’,
‘O Homem Demolido, destacam-se dois personagens: a menina Seda, uma jovem
telepata que procura entender o que se passa consigo e os seus estranhos dons, e
Ganton, um membro do Comando Água que passa a refletir sobre a sua ocupação.

O livro tem pontos altos e baixos, por vezes se perde em sua necessidade de
contemplação estética, como se o autor também se fixasse na adoração do Supremo
Esteta, e na necessidade de extravasar uma veia poética mal contida que nem sempre
aparece no momento certo.

Mas a riqueza do seu cenário, o carisma de alguns de seus personagens e


principalmente o impacto do capitulo final, ‘A festa do último grito’ (que aliás torna o
subseqüente epílogo um apêndice um tanto deslocado na história) faz com que ‘Será’
torne seu autor uma agradável surpresa no cenário da Ficção Científica nacional, um
nome que surgiu fora do ‘fandom’, e uma promessa de futuros romances tão bons

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

Autores em Língua Portuguesa

O artista da carne
(uma parábola)
Fábio Fernandes
- Quero um clone - disse o vampiro.

- Para quê? - perguntou o artista.

- Isso é problema meu. Você pode ou não pode?

O artista deu de ombros.

- Preciso de uma base de dados.

- Isto basta? - disse o vampiro, colocando uma


lasca de osso na mão do artista.

- Mas vai demorar.

- Quanto?

- Vai depender da idade em que deseja o clone.

- Vinte e dois.

- Mínimo de cinco anos, máximo de vinte e dois. Sugiro tempo real, o trabalho fica
mais perfeito.

- Posso esperar - o vampiro deu de ombros.

Podia. O vampiro tinha duzentos anos e mais duas décadas não fariam
diferença.

Não que isso importasse: no século vinte e dois, todos tinham uma vida muito
longa. A existência dos vampiros já era conhecida. Mas pouco tolerada. As colônias
na Lua e em Marte existiam para provar isso.

O vampiro era discreto. Só se alimentava quando necessário e sempre nos bancos


de sangue autorizados. Dois séculos de experiência lhe deram dinheiro, conforto e
tranqüilidade.

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Mas faltava algo.

O vampiro conhecera a garota no século vinte, antes da transformação. Primeiro e


único amor. Todas as outras, todos os outros, todo o resto que veio depois foi apenas
sexo e alimento. Às vezes companhia. Amor, nunca.

Agora o mundo era outro. Nem melhor nem pior, apenas diferente. Agora os humanos
também podiam viver muito mais tempo. Ela nem precisaria ser transformada.

O vampiro deixou instruções com o artista sobre o modo correto de educar o


clone, até o dia de seu aniversário de vinte e dois anos. Foi quando se conheceram:
ele voltaria exatamente nesse dia.

Viajou, correu mundo. Poucos eram os lugares que o vampiro não conhecia. Só
faltavam as colônias na Lua e em Marte, mas isso ele não queria: nenhum vampiro
voltava das colônias.

Até que um dia ele olhou o calendário e o dia finalmente havia chegado. Voltou ao
ateliê do artista.

- Como ela está? - perguntou.

- Bem - respondeu o artista. Ele estava diferente: os cabelos agora tinham um tom
grisalho, havia rugas nos cantos dos olhos, a barriga estava ligeiramente dilatada. Há
muito tempo o vampiro não via alguém assim: o artista estava velho.

- Por quê? - perguntou por curiosidade.

- Prefiro assim - foi a resposta do artista. - A morte antes da decadência.

O vampiro não perguntou mais nada, tinha pressa. O artista trouxe o clone.

Era linda, mais linda do que ele se lembrava. Pela primeira vez em muito tempo,
o vampiro chorou. Como se obedecendo a uma deixa, ela se aproximou e tomou-lhe
as mãos, dizendo: calma, estou aqui.

No começo tudo era perfeito. O vampiro viveu com a garota como nunca antes.
Pela primeira vez em muito tempo, o vampiro foi feliz.

Os meses se passaram, e tudo continuou perfeito. O vampiro desconfiou: a


experiência lhe ensinara que nada continuava perfeito.

Então o vampiro descobriu que a garota não era só sua. Ela também pertencia ao
artista.

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

De novo não, pensou o vampiro enquanto se dirigia ao local onde os dois amantes
se encontravam. Ele devia ter percebido a força do DNA.

Pois a garota - a verdadeira garota, a matriz que agora era apenas um punhado
de ossos - não ficara com ele para sempre.

Antes de ser vampiro, antes mesmo de ser humano, ele era possessivo. Muito.

Um dia, poucos meses depois de se conhecerem, ela o deixou, por um homem


mais compreensivo, mais calmo, mais velho.

Mais velho. Por isso o artista escolhera envelhecer.

E por isso o rapaz acabara se tornando um vampiro. O vampiro ainda ousara


pensar que tudo podia ser diferente. Mas o DNA não perdoa.

Nem o vampiro.

Ao chegar, viu a cena: os dois na cama, ele em cima, ela em baixo. Não teve
pressa. Lentamente, com gosto, os dentes aguçados rasgaram carne, perfuraram
artérias, nadaram em sangue. O vampiro só parou quando a polícia chegou. Nada
mais importava.

Nem a colônia em Marte. Nem mesmo a colônia incipiente, que precisava de


mão-de-obra barata para erguer as cúpulas das cidades e trabalhar no processo de
terraformização. Em sua maioria, presidiários e vampiros. E agora ele era os dois.

Pela segunda vez em muito tempo, o vampiro chorou.

Publicado em: Interface com o Vampiro e outras histórias. Writers, 2000.


Sobre o Autor

Fábio Fernandes é jornalista, tradutor e autor teatral. Em 1985, ganhou o


primeiro lugar do concurso de dramaturgia Frei João de Sant’ângela , promovido pela
Universidade Federal de Alagoas, com a peça Polêmicas. Esta peça, reescrita sob
o nome de Vestidos Brancos, foi encenada em 1998 no Teatro Villa-Lobos, Rio de
Janeiro, com direção de Luiz Armando Queiroz.

Como jornalista, trabalhou nos jornais PASQUIM, Tribuna da Imprensa e O Globo,


e fez um breve estágio no Setor Brasileiro da Rádio BBC de Londres. Traduziu cerca
de 40 livros, de autores como Kurt Vonnegut, Gore Vidal e Clive Barker. Estreou
profissionalmente como ator em 1999, na peça Mulher Vestida de Sol, de Ariano
Suassuna.

Prepara, ainda para 2000, o lançamento de um livro de poemas e duas peças.

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História Natural
Max Mallmann

Quando as outras moléculas começaram


a se agrupar, avisei que não ia dar certo.
Alguém me ouviu? Claro que não. Talvez
o fato de que nenhum de nós possuísse
ouvidos naquela época deva ser considerado
atenuante para a presunçosa desatenção
deles. Passado algum tempo, para que não
me chamassem de antiquado, misantropo
ou démodé, também me agrupei. E nos
transformamos em células.

A vida de célula não era má. Era até,


na verdade, bastante agradável, embora
tenha sido um pouco complicado, para mim,
assimilar o conceito de dentro e fora. Mas a invenção das membranas acabou tornando
mais fácil distinguir quem era eu e quem era o resto do mundo. A parte que eu mais
gostava, nesses tempos de célula, era a divisão celular. Era um ato que começava
solitário, quase masturbatório, até que, num orgiástico romper de membranas, eu me
tornava dois. Então nós dois virávamos quatro. E, antes que nos déssemos conta,
nós quatro já éramos quatrocentos trilhões. Uma festa. Só que daí alguém voltou com
aquela velha conversa de se agrupar. Já não estávamos agrupados o suficiente?
Avisei, de novo, que não ia dar certo. De novo, ninguém me ouviu. De novo, segui a
maioria. E me tornei organismo multicelular.

Vendo a coisa em retrospecto, não posso dizer que tenha sido mau negócio. Há um
certo prazer lúbrico na vida multicelular. Meu principal passatempo, naquela época,
era o cultivo de apêndices externos. Flagelos natatórios, tentáculos, barbatanas, uma
infinitude de protuberâncias capazes de balançar para lá e para cá. Porém o apêndice
externo mais divertido de todos, sem dúvida, era o pênis. Não ajudava nem um pouco
na locomoção, mas era ótimo para penetrar nos orifícios dos outros organismos
multicelulares. Sim, foi quando descobrimos o sexo. Ficamos durante milhões de
anos trepando como loucos no fundo do mar, sem que ninguém nos incomodasse, até
que um daqueles chatos cheios de opiniões sugeriu: “E se a gente fosse para a terra
firme?”. Mais uma vez, avisei que não ia dar certo. Foi inútil. Ninguém me ouviu, apesar
de quase todos nós já possuirmos ouvidos ou algo semelhante. Decidi acompanhar
um bando de imprudentes nessa aventura maluca, só para ver a confusão que eles
armariam. Acabei rastejando na areia quente, debaixo de um sol que me torrava as
escamas.

Que tolo fui, quando me condenei à eterna indecisão da vida de anfíbio. Nostalgia
é uma palavra salgada, como o mar que me viu nascer. E foi num ímpeto de
autodefinição, numa busca sôfrega por alguma identidade mais sólida, que acompanhei
os outros rumo ao interior daquela imensidão de terra. Quando me dei conta, já era

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

um dinossauro.

Não me senti feliz como dinossauro. Ainda sofria de saudades da existência


simples de molécula inorgânica. Nós, dinossauros, éramos uma estirpe mutável e
quase tão indecisa quanto os anfíbios. Não éramos lagartos. Não éramos mamíferos.
Aliás, naquela época, desprezávamos os mamíferos, aquelas asquerosas bolas de
pêlo com rabinhos cor-de-rosa. Substituímos a pele lisa de anfíbio por uma casca
grossa cheia de penas. Sim, penas. Éramos todos empenachados, até os mais
ferozes e carnívoros, embora ninguém soubesse para que serviam as penas. Até que
um engraçadinho espalhou o boato de que as penas serviam para voar. E viramos
todos aves.

Sempre odiei voar.

Hoje, vivo numa gaiola, na área de serviço de um apartamento no décimo segundo


andar de um prédio na Avenida Atlântica. Meu dono, que ironia sádica, é um mamífero.
Ainda não pude constatar se ele tem um rabo cor-de-rosa, mas sei que ele não é mais
uma bola de pelo: ficou careca aos vinte e cinco anos.

A forração de jornal da minha modesta prisão muda todo dia. As notícias e editoriais
me deixam aterrorizado com o que acontece no mundo.

Minha única alegria, nesta vida gradeada, é bradar sem descanso, em linguagem
de canário, a todas as formas viventes que possam me escutar, a todos aqueles
ambiciosos, lunáticos, porra-loucas e descompensados que decidiram abrir mão da
pacata existência molecular para poluir o mundo com o milagre da vida: eu avisei, não
avisei?

Sobre o Autor

Max Mallmann, porto-alegrense nascido em 1968, estreou na literatura em 1989,


com o romance Confissão do minotauro, vencedor de concurso do Instituto Estadual
do Livro do Rio Grande do Sul. Em 1996 publicou, pela Editora Mercado Aberto, Mundo
bizarro, que recebeu no ano seguinte o Prêmio Açorianos de melhor narrativa longa.
Seu terceiro romance, Síndrome de quimera, lançado em 2000 pela Editora Rocco,
esteve entre os dez finalistas do Prêmio Jabuti em 2001 e foi publicado em 2003 na
França, pela Éditions Joëlle Losfeld, selo editorial pertencente à Éditions Gallimard.
Seu romance mais recente, Zigurate — uma fábula babélica, foi publicado em 2003,
também pela Rocco. Uma amostra desse novo trabalho pode ser vista no site http://
www.zigurate.com. Casado com a escritora Adriana Lunardi, autora de Vésperas (Ed.
Rocco, 2002), Max Mallmann vive desde 1999 no Rio de Janeiro e trabalha como
roteirista da TV Globo.

Fonte: Bestiário

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Primeiro Encontro
Volmar Camargo Junior
(Um conto steampunk)

O nome do soldado-aranha era conhecido por todos na vizinhança: Oficial “Sete


Pernas”. O responsável por ele ter recebido esta alcunha era também notório: uma
jovem ladra chamada Ixia. Naquele exato momento, Lothar estava segurando Ixia
pelo colarinho do sobretudo de couro, olhando-a como quem contempla um troféu
muito cobiçado.

— Ora, ora, se não é minha inestimável amiguinha... quanto tempo Ixia?

— Não é um prazer revê-lo, Oficial “Sete” – retrucou com alguma dificuldade por
causa da posição em que estava.

— Você sabe que estava ansioso por nosso reencontro, não sabe? – içando-a
a uma altura ainda maior com os braços, os únicos membros de seu corpo ainda
vagamente humanóides.

— Oficial... veja... eu sinto muito pelo acidente com sua perna. Mas olhe pelo lado
positivo. O senhor ainda tem... outra sete! – disse com um sorriso escandalosamente
sarcástico.

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

— Muito gentil de sua parte recordar-me esse detalhe – disse rangendo os


dentes, retesando o corpo aracnídeo. Aproximou-a de si, ficando cara-a-cara com ela.
Continuou – Serei bastante breve, mocinha. Vou cobrar o prejuízo na mesma moeda,
se é que você me entende...

Ao dizer isso, olhou maliciosamente para as coxas da menina, esboçando um


sorriso malévolo com os afiados dentes metálicos. Em seguida, sua pata dianteira
moveu-se com um chiado. A extremidade, à medida que se aproximava do corpo de
Ixia, abriu-se em duas metades, revelando uma serra circular já em funcionamento.

A garota olhou rapidamente à sua volta, um tanto apavorada: não havia ninguém
que pudesse socorrê-la. Teria de contar com a sorte que, até então, nunca falhara. E
ser muito, muito rápida. Em um instante, arquitetou o plano. “É agora ou nunca!”

— Senhor Oficial Lothar – gritou, suplicante e agitada – por favor! Eu tenho uma
proposta, sim?! Uma proposta!

— Vejamos. Talvez hoje seja seu dia de sorte, mocinha. – diminuindo a velocidade
da serra.

Aproveitando a oportunidade, enquanto o bizarro policial divertia-se com a própria


ironia, Ixia livrou-se do casaco, escorregando até o chão. Ao tocar no solo, pondo
à prova todos os seus anos de prática, sacou sua pistola, encostando a boca do
cano na articulação da sétima pata mecânica – a mesma da ponta-de-serra. Dedo
no gatilho, o disparo estrondoso esfacelou ligamentos metálicos e tubulações de
borracha, espalhando aço retorcido, parafusos e uma nuvem de vapor pressurizado
por todo o beco. A jovem correu como louca na direção oposta, saltando o muro de
tijolos no final da ruela sem saída onde fora capturada. O soldado-aranha perdeu o
equilíbrio e a noção do espaço, caindo de cara no asfalto. Ele urra como o monstro
que era. Tiros de suas pistolas pesadas ecoaram no beco, sem direção definida. Ixia
fugira dele mais uma vez.

***

Krinn observava atento o motor à vapor em funcionamento; o antracite1 que


conseguira era suficiente para fazê-lo quase entrar em colapso. O propulsor elétrico
estava pronto, e alinhado. Rapidamente, o estudante posicionou-se no assento,
afivelando firmemente as correias no peito e nas pernas. Com um movimento, acionou
o arranque da hélice acima da cabeça, que, ruidosamente, iniciou sua rotação com
um solavanco. Estava tudo pronto.

Respirou profundamente. Com o polegar, premiu o botão no topo do manche,


1 Antracite: variedade compacta e dura do mineral carvão que possui elevado lustre. Difere do
carvão betuminoso por conter pouco ou nenhum betume, o que faz com que arda com uma chama
quase invisível. Os espécimes mais puros são compostos quase inteiramente por carbono. Um antracito
libera alta energia por quilo e queima limpidamente com pouca fuligem, o que o faz uma variedade
carvão procurado e desta forma de valor mais alto.

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acelerando a hélice a fim de testar o mecanismo. Um redemoinho de poeira e folhas


levantou-se à sua volta, no bagunçado quintal de seu estúdio. Com o pé, Krinn livrou
a trava do propulsor elétrico. Cinco segundos até a descarga acionar a catapulta.
Quatro segundos. Cobriu os olhos com os óculos especiais. Três segundos. Um último
olhar para a o altímetro. Dois segundos. Lembrou que o antracite seria combustível
suficiente para, no máximo, três horas. Um segundo. Teve impressão de ouvir uma
voz feminina. Zero! O som agudo das baterias irrompendo a descarga elétrica no
mecanismo propulsor.

Uma garota, vinda não se sabe de onde, atirou-se no colo de Krinn no instante em
que as molas estouraram, jogando o veículo e seus dois tripulantes a uma velocidade
alucinante em direção ao céu.

O rapaz acelerou. A caldeira fervente e o motor impulsionaram a hélice da obra-


prima do jovem técnico, mantendo o veículo estabilizado no ar, exatamente como no
projeto.

— Funciona!!! Funciona!!! Estamos voando!!!

Só então, passada a emoção de seu enésimo teste – desta vez com êxito – o
rapaz dá-se conta da situação mais que inusitada.

— Puxa... eu não esperava ter um passageiro logo na primeira viagem. M-muito


prazer – disse, um pouco timidamente, e um pouco nervoso, pensando que o motor
poderia não dar conta do peso – meu nome é Krinn.

— O prazer é todo meu, Krinn. Meu nome é Ixia.

A visão das luzes da Cidade-Continente era inexplicável da altura onde estavam.


À distância, chegava a ser bonita, quase romântica. Um vôo de algumas horas levou-
os para longe de sua vizinhança, do laboratório, dos subterrâneos onde os bandidos
se escondiam dos Soldados-Aranha. Assim foi o primeiro encontro de Krinn e Ixia.

***

Depois desse dia, Lothar passou a ser chamado Oficial “Seis-Pernas”.

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

Como um Fim de Tarde Simulado


Samuel Peregrino

No 86º andar do Empire State Building 1 dia antes


pouco antes do anoitecer quando ainda
está claro, dá pra ver as cidades se Londres
acendendo ao cair da noite como em — Detetive!
Sunday in New York...
— Entre e feche a porta sim.
— ...Robert! Ei!Acorde Robert, seu
tempo acabou!
Sentou sem o convidar. Eles sempre
sentam. Acham que estão em alguma
*** repartição pública.

Nova Tóquio — Vi seu anúncio senhor Pyne.


Detetive Pyne
— O que achou?
— Abra os olhos dela, rápido! Abra os
olhos dela! Filha! Filha acorde! Vamos!
“Você é feliz? Se não for, procure Mr.
Acorde Mitzuri! Acorda, acorda logo!
Pyne na 17 da West End.”
Merda! Abre logo esses olhos!... Meu
Deus...!
— Diferente.
É sempre ruim de se vê, filhos
morrendo... — Trouxe os papéis?

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— Sim, a garota se chama Mitzuri, — Não te preocupa, vai tá lá na hora


está dentro há seis dias. certa, vamo acertar primeiro os detalhes!

— Merda! Precisamos correr. Temos — Viu a fonte, o autor?


um dia apenas, um dia!
— Ah cara, eu sei lá, não tive tempo
pra isso. Quem fez ou deixou de fazer,
isso não me interessa, deixo pros caras
Sidney que entendem, eu cuido da minha
parte. E tu, deu sorte, tem um monte de
Sonho de Pietro Controladores vigiando o mercado depois
que ulguns usuários viciados foram pra o
Primeiro Dia
saco por causa desse vírus.
— Casulo 11, você tem 1 minuto.
— Mas você tem certeza, não é falso?
Ei Pietro! Me dê sua mão, venha, Como vou saber?!
agora será tudo diferente. Eu prometo
um mundo melhor para você. Pietro?! — Olha aqui Pietro, já pisei na bola
Consegue me ouvir? Pietro...?! contigo irmãozinho?! Garanto que não
vai se decepcionar, lembra do Zig aquele
— Casulo 11 encerrado! Vamo saindo antiquário que pregou bala num Contrutor
ô de azul, já desliguei tudo, não quero que vendia falsificações no gueto?! O
nenhum maldito Controlador na minha cara assegurou que esse é do bom, como
cola, seu tempo acabou! é mesmo o nome daquela parada que tu
falou...? Salmen, Salei...
— Quanto tempo passou?
— Salém!
— Qual é tá me zoando?
— Isso!
— 23:57...? Doze horas? Falei para
me acordar 5 horas antes seu monte de
estrume!
Moscou
— Ah vai te catar! Some pra casa
Sonho de Dalilah
seu viciado. Porra qualquer dia desses
fecham essa muamba por causa desses Primeiro Dia
manés!
O mundo era assim... Todo construído
de jaspe. O sol... Um esmalte de ouro
num escudo heráldico, fulmegante,
translúcido, belo! A vida absorta num
Ontem jardim halocrômico, verde, tal verdejante
— Consegui a parada irmãozinho! gramado à cobrir lírios aveludados. Meus
pais? Felizes. Eu...? Uma princesa no
— Onde está? sono do eterno.
— Seja bem vinda Dalilah, esta é sua

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

casa. Times

“ O dia que nunca será esquecido!


Mísseis radioativos cruzam os céus de
Bangladesh Manhatan.”

Sonho de James Usher Le Monde


Primeiro Dia
Trabalhei por doze anos! Doze anos!
E o que consegui? Um monte de cinzas
sobre a cabeça, meia dúzia de viroses
alteradas e isso aqui...
— Dois mil? Como conseguiu James,
logo um famigerado como você! Devia
previr.

— Vamos, me dá logo o maldito


formulário e prepare o Casulo, estou
perdendo tempo.

Mais tarde em seu apartamento


James Usher em seus sonhos sombrios
delira um fim do mundo qualquer

— Você quer saber como tudo “Onze cidades evacuadas! 200.000


começou James? de mortos. América conta chora seus
mortos. Os EUA irão contra-atacar?”
Doze anos antes
Clarin
“O primeiro ministro do Irã, Hasan
Ghalib decidiu não mais se pronunciar “ Vingança! Três milhões de mortos é
nas questões envolvendo seu plano de o número de vítimas no Oriente Médio,
defesa anti-aéreo com o qual conta com Teerã, Bagdá, Península Arábica e o leste
o apoio do atual bloco dos países árabes do Golfo Pérsico são os focos do impacto.
unidos. O ministro recorre à segregação O secretario-geral da ONU, o diplomata
posto que a ONU fala em embargo coreano Ban Ki-moon, renunciou o cargo
econômico caso o Irã e as demais nações alegando negligência por parte da atual
árabes não cessem com seus programas líder norte-americana quanto à tentativa
de defesa envolvendo ogivas nucleares.” de pacificação. “O processo de paz à essa
altura já não é relevante”, disse ontem
New York Post Hillary Clinton, após os primeiros ataques
na Operação Guerra nas Estrelas.”
“Será uma terceira guerra?!
O Globo

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Os Casulos deles!
Há poucos meses atrás...
— Ok. Pode ir começando, eu vou
“ Começa a funcionar a zero hora buscar outras fontes. Ah... !E consiga um
da noite de domingo os primeiros PSC, mandato.
Programas de Simulação Consciente,
popularmente chamado de Casulos. — Para que?
Serão instalados em toda rede
SimuLar nas principais cidades-estufa,
— Quero toda a rede SimuLar
sendo monitorados pela DAC e seus
fechada!
Controladores. Os Casulos virão com
um software-demo desenvolvido pelos
Construtores, O Último Alvorescer, um — Ok!...Senhor Pyne...Eu preciso
simulacro projetado com uma belíssima entrar?
arquitetura tridimensional gerada com as
últimas imagens da vida na terra como — O que você acha garoto?
era antes da Grande Guerra.”

Nova Tóquio Salém

Detetive Pyne
— Então senhor Pyne, acha que ele “O mercado de falsificações se
está envolvido? agitou hoje com a chegada de um
software ilegal que impulsiona descargas
— Sem nenhuma dúvida! O desgraçado elétricas específicas no córtex entorrinal,
saiu das sombras novamente. É a sexta estrutura do lobo temporal medial onde
vítima em menos de uma semana. se armazena as lembranças de longo
prazo, com isso, a interação com o
— Como pôde ter invadido o mundo artificial se torna mais natural
sistema? devido a reprogramação oferecida pelo
novo software que se mescla à fatos
verídicos da vida do usuário. Esse é um
— Ele não invadiu, essa merda foi
novo marco no competitivo mercado das
reprogramada, como um vírus.
simulações. Com o software não se torna
preciso projetos desenvolvidos pelos
— Construtores? Construtores como prédios, cidades,
belas paisagens e até mesmo o próprio
— Não, é algo maior, aqueles viadinhos passado, o usuário dispõe de infinitas
podem facilitar as coisas, inserir alguns possibilidades de combinações baseado
dados não permitidos, recriar ambientes, em experiências armazenadas na
mas isso aqui... Temos que vistoriar todos memória, contudo Controladores da DAC
os Casulos. afirmam que o novo simulador pode ser
falso ou um vírus.”
— Só em Nova Tóquio há mais de 30

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

Bangladesh tenho...
Sonho de James Usher
Primeiro Dia
— Sabia que viria James. Alguns anos antes

— Realmente é verdade, estou “A escuridão cobriu os céus das


surpreso! A polícia está atrás de você. principais cidades americanas. De
Washington a Carolina do Sul bombas
termo-nucleares destroçaram a asas da
— Não se preocupe comigo, eles não Grande Águia.”
me pegarão.

— Dizem que Pyne já tá no teu


encalço. Ele é um dos melhores. “A Grande Guerra já dura quatro
anos, o número de mortos ultrapassa os
— Pyne foi um grande Construtor, viu o 15.000.000 em quase todas as capitais
mal que fez e abandonou tudo. Detetives americanas. Brasília, Buenos Aires,
autólatras é minha menor preocupação Lima, Cidade do México e Assunção são
por agora James. algumas das cidades atacadas. Desde
que a China se uniu ao bloco dos países
árabes o fogo aéreo é constante. Várias
— Porque você quer acabar com a
regiões da Europa estão em quarentena,
DAC? Para muita gente é o único alento
Paris, Dublin, Roma. Na África Meridional,
que sobrou nessa merda toda. Não sei se
várias cidades declararam estado de
você é do tipo que lê as notícias, mas as
calamidade pública.”
coisas estão piorando cara! Terroristas
americanos sitiam as cidades-estufa
todo o tempo, não há trégua entre os El Diario
Controladores e as milícias e desde que
fecharam as fronteiras vivemos num
aquário sufocante, tubarões domesticados
com rações, numa bolha de ozônio rubi. Moscou

— Não quero acabar com a DAC, Sonho de Dalilah


ofereço apenas a verdade. Segundo Dia

— Não creio que assassinato seja — Qual é seu nome?


uma boa forma de expor a verdade. — Como me chamam lá fora?

— É preciso dar o primeiro passo — O Construtor.


James, por isso estou aqui, para guiá-los
pelo caminho.
— Fui um deles, não sou mais e você
o que quer ser Dalilah?
— Dizem que você é um sábio e que
tem as respostas.
— Dizem que você pode trazer a
felicidade... Não sei ao certo, apenas
— Fique comigo, veremos se as

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não quero mais alegria artificial em


rótulos de aspirina, cansei dessa vida
plástica, manipulada. Mesmo a DAC
desenvolvendo perfeitas simulações, não
permitem que fiquemos pouco menos
que algumas horas, falam de danos
cerebrais.

— Você acredita neles Dalilah?

— Minha vida têm sido tão falsa que


não sei mais em quem acreditar. Você é
minha última esperança.

— Tudo o que peço são seis dias. Você


pode escolher o lugar: um esconderijo
de infância, uma casa nunca esquecida,
desde os recônditos de suas lembranças
até um campo primaveril num fim de tarde
de baunilha.

passavam por sua mão. Ganhou muito


— Eu não quero mais sair daqui.
dinheiro na DAC, o simulacro Veneza foi
seu último projeto.
— Você não precisa.
— O que simulava as obras de
Shakespeare, ganhador de vários
prêmios?
Nova Tóquio
Grand Hyatt Hotel — Sim, uma boa mentira. Desde
a apresentação de Salém, um novo
Detetive Pyne software capaz de redesenhar um
ambiente virtual a partir das lembranças
— O que descobriu detetive?
dos usuários, Robert está desaparecido.
Isso foi há alguns meses. A DAC não
— Seu nome é Robert Yerushalem, manifestou nenhuma nota sobre seu
imigrante ilegal marroquino, filho de desaparecimento.
americanos, tem dupla cidadania.
Trabalhou com o nome falso de Ihab Juda
— Armaram pra ele já que o governo
para a DAC.
proibiu os Casulos e as ações da DAC
despencam?
— Um Construtor?
— Não duvido de nada, esses caras
— O Construtor. Foi dele a idéia farão de tudo pra continuar vendendo.
de um mundo simulado, projetado Robert esperou até que os primeiro
artificialmente. Todos os ambientes Casulos espalhados por todas a SimuLar
virtuais encomendados aos Construtores tivessem êxito. Um crime impulsionado

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

por vingança...? Provável... Mas não


espero trivialidades de assassinos em
série, ainda mais sendo um Construtor. Sidney

— Foi esperto indo direto na fonte, a Sonho de Pietro


válvula de escape coletiva. Segundo Dia

— Ele distribuiu seu novo software — Então isso aqui é Salém? Bonito, um
no mercado de falsificações. Usuários mosaico de velhas lembranças estampado
viciados sempre procuram coisas novas. atrás de um avelhantado sonho infantil.
Você é bom, muito bom... Uma projeção
do ideal baseado em pura reminiscência,
— Salém? trazendo à tona uma anamnese...? Sem
avatares ou panes temporárias. A mente
— Sim, conheço alguns antiquários projetando o que o self quer. Realmente
interceptadores, por uns dois mil você me impressionou Construtor. Lembrei
consegue um, por dez leva o Casulo no que Demócrito apenas acreditava em
pacote. “átomos e no vazio”, confiava plenamente
em suas sensações físicas a ponto de
— Bom detetive, mas como soube de afirmar que nada mais existia. Engraçado
tudo isso? que Platão achou a idéia tão desprezível
que expressou o forte desejo de que toda
Adoro isso, aquele olhar meio cético, a obra de Demócrito fosse queimada
ponderando o óbvio para em seguida imediatamente.
ostentar o simples fato de que...
— Porque veio Pietro?
— Não me diga que entrou Pyne!
Entrou?! Entrou em Salém?! — Queria ver com meus próprios
olhos. Um céu desbotado num azimute
azul-turquesa resvalando pôr sobre
o sustentáculo do mundo, plêiade de
sumidades! De onde tirou o tom cerúleo?
Há doze anos... Não me recordo desse dia.

“O governo da Nova Confederação — Você é um Construtor Pietro?


emitiu hoje em rede mundial a lista de
imigrantes americanos ilegais que deverão
abandonar as vinte cidades-estufa em Pelas ruas alquebradas de uma nova
até 48 horas com o risco de reclusão Tóquio onde carros voadores cederam
nas prisões-ilhas. O governo afirma que lugar a um dia simulado, caminha por
medidas como essas serão necessárias entre transeuntes que abarrotam as
devido a possibilidade de um contágio em passarelas, detetive Pyne
escala global. Os imigrantes ilegais serão
deportados de volta à América.” — Vê esses ecrãs gigantescos
garoto...
Izvestia
“Veja a Terra que nunca viu! Viaje pelo
passado num presente controlado, criado

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pelos maiores engenheiros da atualidade. “Manifestantes sitiam as cidades-


Os Construtores lhe darão o mundo que estufa em toda a Euro-Ásia!”
sonhou. Cada parede, cada palavra, cada
desejo, tenha a vida que quiser dentro de
um universo de possibilidades! Procure
uma SimuLar mais próxima .”
— ...a América perdeu, os países
árabes também e nós no meio.
— Às vezes me dá náuseas quando
imagino como isso tudo começou senhor
Pyne...

“O primeiro-ministro inglês disse ontem


“Solicite a visita de um de nossos
num pronunciamento enquanto mísseis
técnicos ou peça nosso catálogo, são
balísticos intercontinentais cruzavam o
milhares de mundos prontos para usufruir.
céu de Londres, que os países da União
Pare de sofrer, encomende seu mundo
Européia não entrarão numa Guerra
perfeito e personalize seu Casulo.”
baseada em interesses econômicos,
“a América está sozinha”, encerrou o
— — ... o oxigênio que respiro agora ministro.”
é artificial, assim como essa bolha sobre
nossas cabeças, uma natureza extinguida
pela radiação. Pergunto-me até que ponto
não posso dizer que a vida real se tornou
dissimulada, mera artificialidade?

— Não sei garoto, mas quando Bangladesh


encontrar com Yerushalem lembrarei de
interrogá-lo sobre isso, ah se não...! Tenho Sonho de James Usher
um pressentimento que aquele assassino
está envolvido nessa merda toda! Segundo Dia

— Lembra do alpendre?

Há doze anos houve uma guerra — Sim, sim... Como não lembrar,
estava lá no dia que tudo começou.
Vamos até lá, por favor.

“Se empilhassem os corpos cobriria a Uma velha casa costurada


Estátua da Liberdade.”
— Deus! Está como o deixei! O lago
“A América chora seus mortos.” suntuoso rodeado de estanho, os velhos
gansos de Isabel... Jesus!
“Divulgada a lista das vinte cidades-
estufa no bloco Euro-Ásia.” — Sabe por que querem proibir Salém,
James?
“Após a Grande Guerra o Oriente
Médio se tornou em um deserto.” — Eu, eu não sei...

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

— O governo está perdendo as rédeas.


Não há alimento o suficiente para todos.
O ar escasso e radioativo se prepara para
uma eminente propagação do câncer-
mutante.

— Disseram tê-lo extinguido.

— Ele se propaga pelo ar. Acorde


James! Até quando acha que essas
bolhas de ozônio vão agüentar?! E quando
estourar...! Quem vai segurar os exilados
nas prisões-flutuantes? Acredita que
Controladores defenderão as fronteiras?!
A cada minuto cresce o número de
militantes nas zonas de guerrilha. É tudo
uma questão de tempo.

podendo atingir 14 alvos diferentes, por


exemplo, se um MIRV for lançado em
Moscou
direção à Rússia, este poderá exterminar
Sonho de Dalilah 14 cidades diferentes, isto é, um só míssil
pode destruir todo um país de uma só
Terceiro Dia vez, havia pelo menos 20.000 ogivas
— Onde está me levando sonhador? nucleares no mundo.
Posso te chamar assim, sonhador...?
— Santo Cristo!
Numa tarde de verão sobre a Praça
Vermelha queima-se o céu — A Terra como era há doze anos
jamais tornará a ser, ofereço uma saída
— Sabia que o nome da Praça sempre é Daliha...
associado à cor dos tijolos ao seu redor ou
ao comunismo, no entanto o nome surgiu
porque a palavra russa krasnaya significa
tanto “vermelho” quanto “bonito”. Nova Tóquio
Sonho de Pyne
— Não, não sabia, cresci aqui por
perto, em Kitai-Gorod e sempre achei que Segundo Dia
o “vermelho” fosse por causa da catedral
com suas cúpulas abauladas. — Você fugiu Robert.

— Olhe para cima Dalilah, consegue vê — Não fugi e estou aqui, você
os clarões de fulgor intenso acima dessa abandonou tudo!
enevoada melancolia? São mísseis MIRV,
eram equipados com 14 ogivas nucleares — Diga onde eles estão?! A DAC já

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identificou o sinal. Logo estarão à sua Terceiro Dia


frente segurando o plug. Onde eles estão
Robert? — Eu era um Construtor, assim como
você, até o governo proibir os Casulos
depois das mortes.
— Em suas casas Pyne.
— Acha que fui eu Pietro?
— Você a matou Robert, matou uma
garota de 15 anos e matou vários outros,
como pôde?! — Não sei ao certo... Controladores
que arrobaram meu apartamento
domingo passado não disseram nada
— Consegue se lembrar detetive? sobre suicídio coletivo.

— O que queriam com você?

Doze anos atrás — Suspeitaram que estivesse


interceptando e vendendo seu software.
New York
— Você é corajoso, como me
Empire State Bulding, 86º andar encontrou?

— Sr. Robert, tem um minuto? — Não foi fácil, mas quando se têm
falsificadores, putas de antiquários e
— Claro, o que há Pyne? militantes mutantes como velhos amigos,
dá-se sempre um jeitinho.
— Estava pensando sobre a guerra,
acha que não vai nos comprometer o fato — Você precisa escolher Pietro.
de exilarmos civis americanos.
— Ouvi dizer que as vítimas ficaram
— Já conversamos sobre isso. plugadas por sete dias, causando várias
morte e seqüelas irreversíveis na maioria.
— Certo, porém tive uma última Como você fez isso?! Quando fui demitido
impressão, hum... Será mesmo Pietro um da DAC por causa das mortes ligadas aos
Construtor? Ser o for, a forma de como Casulos não me importei muito, enfim
vê o mundo será diferente dos demais. um Construtor com boas indicações
E essa garota, Dalilah, não precisamos sempre encontra novos patrões para
dela, não há conexão com... satisfazer, agora, quando soube de
Salém, hum, hum...! Eu precisava achar
o filho da puta que criou tudo isso, talvez
— Apenas faça Pyne, execute o para amenizar os nervos, talvez para
projeto, nosso prazo está se esgotando. roubar a idéia... Bem, não sou nenhum
descontrolado que sai por aí com rifle em
punho caçando criancinhas mutantes,
ou sei lá... Um psicopata cibernético que
Sidney vicia suas vítimas com sonhos artificiais!
Com certeza, não sou. Eu precisava te
Sonho de Pietro encontrar Construtor, o homem que fez

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

da minha vida um inferno, apenas pra — Quero que veja algo.


perguntar... Por quê?!

— Por quê...?!

Há uma semana as cidades-estufa


ardiam Moscou

“O governo proibiu hoje a utilização Sonho de Dalilah


e vendas dos simulacros Casulos em Sexto Dia
toda a rede SimuLar. Medida que visa a
proteção dos usuários já que o número — Onde estamos indo sonhador?
de mortes causadas pelo vírus Salém
chega a seis. Como parte do pacote de — Vou lhe mostrar uma coisa.
medidas, houve ainda a demissão em
massa de pelo menos 2.000 Construtores
da DAC. Especialistas afirmam que a
permanência por tempo prolongado ao
software pode causar danos irreversíveis
aos sistemas neurais ligados à memória, Nova Tóquio
levando uma verdadeira overdose
conhecida por hipermnésia ao cérebro. Seis dias antes
Sob hipermnésia o usuário pode reviver
“Mitzuri Yamada filha do comandante
todas memórias com todos os detalhes
Hanako Yamada foi encontrada
e sentidos, evocando lembranças com
morta dentro do Casulo instalado em
mais vivacidade e exatidão ou até
seu apartamento há uma semana.
particularidades que comumente não
Controladores alegam que o software que
surgem na consciência. Um fenômeno
gerava a simulação estava contaminado
curioso é a Hipermnésia que pode ocorrer
com o vírus Salém. O governo proibiu o
em estados que precedem a morte
uso de todo o tipo de simulacros temendo
ou quando a pessoa se defronta com
mais mortes.”
situações extremamente ameaçadoras à
sobrevivência. ”
— Venha Mitzuri, quero lhe mostrar
algo que jamais vai esquecer.
Um turbilhão alegórico de sonhos
vivos, coloridos na tela pálida cefálica

Sidney
Bangladesh Sonho de Pietro
Sonho de James Usher Sexto Dia
Sexto Dia — Porque escolheu essas pessoas?
Venho pesquisando tudo sobre você,
— Para onde está me levando?

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descobri que houve mais de 200 casos as duas torres quadradas que ladeiam
não-oficiais onde usuários tiveram a fachada do Portão do Paraíso? Você
contato com Salém e não morreram. Você sempre gostou de vir aqui com ela, dei uma
espalhou o vírus usando os falsificadores. retocada, viu? Nunca seriam acabadas
Uma droga cara, mas fácil de achar. Todos de qualquer forma... Quer saber onde
os que se conectaram e não morreram eles estão Pyne?
dizem ser uma enganação, a promessa
de felicidade duradoura, de respostas... — Você deve ter agora, hum... Uns
Tudo balela! Porque apenas seis mortos? dois minutos.
Porque foram escolhido,s Construtor ou
posso te chamar de Robert?!
— Venha comigo vou lhe mostrar.

— Venha comigo Pietro, as respostas


estão ali, vê além dos campos repletos de
Sunshine Wattle?
Sétimo Dia

“Controladores rastrearam mais


quatro Casulos em diferentes cidades-
Nova Tóquio
estufa e o governo logo confirmou a
Sonho de Pyne morte dos usuários, o escritor James
Usher de Bangladesh, o ex-Construtor da
Sexto Dia DAC, conhecido como “Pietro” de Sidney,
Sob a dobradura dos sinos na a estudante Dalilah Karenin em Moscou
Cathedral of Saint John, The Divine numa e o investigador inglês reconhecido por
Nova York que não é mais “Pyne” num casebre em Nova Tóquio.
Pyne foi um dos primeiros Construtores
— Escute Robert, vou lhe dá uma última da DAC e fontes asseguram que ele
chance para se entregar pacificamente, estaria investigando a morte de Mitzuri
os Controladores já me localizaram, em Yamada a pedido do pai da vítima, o
poucos minutos rastrearão cada buraco comandante Yamada. Uma segunda
dessa ilha idílica. As cidades-estufa fonte segura confirma que Controladores
são todas conectadas, não há como conseguiram rastrear o sinal do homem
se esconder mais. Cansei desse jogo responsável pelas mortes, o terrorista
doentio! marroquino Ihab Juda depois que Pyne
se conectou ao programa-vírus Salém por
— Sabe o que mais me impressiona em seis dias consecutivos. Analistas da DAC
você Pyne? Sua capacidade de raciocínio. já descartam essa possibilidade já que os
Você sempre foi o melhor em contas, mas picos de transferência provinha do alto do
peca feio quanto à originalidade. Empire State Bulding um dos primeiros
arranha-céus americanos derrubado no
início da Grande Guerra há doze anos
— Seu tempo está acabando Robert,
atrás.”
onde quer que esteja eles vão pegar você
e sabe o que fazem com quem mata filha
de comandante...

— Você não entendeu nada Pyne! Vê

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

Nova York Dez minutos depois Robert Yerushalem


descendo por uma quinta avenida tão real
Sonho de Robert Yerushalem quanto seus cabelos carmim

Sétimo Dia — É um bom divertimento filho?

A verdade? Você teria que ver com — Um tanto enfadonha a história,


seus próprios olhos. O dia após o fim mas os gráficos são bem legais, quem
do mundo foi assim, sonhos criados por desenvolveu pai?
máquinas que alimentavam nosso ego.
Naquele dia tive a ligeira impressão Robert Yerushalem pega o CD num
de que havia algo a mais, algo que me invólucro plástico, à capa estampado num
diria sobre o certo e o errado. E não me holograma arrojado os dizeres,
enganei.
Como um fim de tarde simulado
No 86º andar do Empire State Building
pouco antes do anoitecer quando ainda Um produto Dreams Aware
está claro, dá pra ver as cidades se Corporations por D. Pyne
acendendo ao cair da noite como em
Sunday in New York...

— ...Robert! Ei!Acorde Robert, seu


— Você não conhece filho, é um
tempo acabou!
jovem talentoso da empresa, o jogo foi
idéia dele.
— Ainda não! Só um minuto!
— E no final, todos morrem?
— Sinto muito, vamos embora,
amanhã você termina.
— O final é você quem escolhe
Robert.

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O Fascínio da Ficção
Denis da Cruz

Celular bem empunhado na mão. afinal, talvez eu seja um Cavaleiro Jedi.


Segurado firme como uma espada.
Isto tudo na mente de uma pessoa
“Bzummm”. Faço com a boca tentando que já chegou à casa dos 30. por isso,
imitar o som do sabre de luz. “Zummmm, às vezes me pego pensando o que a
zuuuum, zum, bzummmm.” fantasia, a ficção, faz com a mente de
crianças.
- Sou um cavaleiro Jedi!
Apesar de brincar imaginando um
A fantasia fixa-se de tal forma em sabre de luz, tenho a plena consciência
nossa mente que às vezes parecemos de que – infelizmente – não sairá
estar vivendo em outra dimensão. nenhuma potente arma dali, bem como
Empunhamos sabres de luz (nem que meus sonhos não serão assombrados
sejam cabos de vassoura), guiamos com nenhum Lord Sith.
o carro como se estivéssemos numa
espaçonave, apontamos o braço como E uma criança, ou pré adolescente,
se no lugar de ossos possuíssemos um sabe como distinguir a fantasia da
implante cibernético que dispara rajadas realidade? Aliás, o autor de obras do
laser. gênero deseja que a mente do leitor trace
este limite? Ou quer ele que seu público,
Já fiz muito disso em época não tão ainda que juvenil, mergulhe no universo
distante. E, ainda hoje, o celular parece por ele criado e ali fique preso?
ter o poder de emanar um luz azulada,

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

Estes mundos, sejam eles os futuros uma mensagem específica. Isto é raro,
de tecnologia extrema, ou os universos pois determinadas confissões poder
paralelos, com batalhas épicas, são de fato ser anticomerciais. Preferem deixar a
fascinantes. Quando escrevo, preocupo- mensagem nas entrelinhas ou no nível
me com minha responsabilidade como subliminar. “Interpretem como quiser”
autor em traçar limites e deixar claro que dizem eles.
estou escrevendo sobre o irreal.
O segundo aspecto, é o ligado aos
Igualmente alerto meus filhos quando pais e educadores. Não se pode dar
conto histórias desta natureza. É comum um livro ao filho sem antes conhecer
meu caçula (de três anos) perguntar: seu conteúdo e seu magnetismo. Uma
“Isso existiu de verdade, papai?” (um dia inadvertida criança pode ser sugada para
desses ele me perguntou se o Superman o universo ficcioso e encontrar dificuldade
existe). para se livrar dele.

Este aspecto de responsabilidade das Cumpre aos pais o conhecimento da


obras é pouco abordado. Sim, eu e você leitura oferecida aos filhos e o ensino
certamente sabemos que é ficção. Mas sobre a divisão entre o real e o irreal.
existe por ai até igrejas Jedis (inspiradas
em Guerra nas Estrelas, de George Se o autor é responsável pelo que
Lucas) e muitas outras coisas que escreve, muito mais é o pai que oferece
desconhecemos, baseadas em fantasia e a obra para uma criança em plena fase
ficção. Pois é, tem doido pra tudo. de formação. Um pai espírita não irá
presentear seu filho com “A Canção de
Mas de algum lugar estes doidos Eva” (livro de June Strong, editora CASA),
tiraram a idéia. Em algum momento eles bem como um evangélico vai torcer o nariz
esqueceram de traçar um limite entre o para as obras de Pullman ou de Howling.
real e o fantasioso. Em algum momento
eles acreditaram poder, de verdade, Enfim, a ficção é fascinante e pode
empunhar um sabre de luz. seduzir mentes a absorverem idéias que
afrontam suas próprias ideologias. Se a
Vejo, assim, dois aspectos: mensagem fosse clara e bem definida,
talvez não haveria muitos problemas. A
O primeiro, ligado ao autor. Claro que questão é que o autor pode se valer do
juntamente com toda obra vem a ideologia fascínio da fantasia para, subliminarmente,
de seu respectivo escritor. Além de narrar passar sua mensagem. O ávido leitor pode
sua história, ele passa sua doutrina. ser surpreendido por mensagens que sua
Muitas vezes, essa “doutrina” é contrária mente, descontraída pela boa narrativa,
à nossa. O autor tem a liberdade de não estava preparada para contra-
expressão, mas não podemos esquecer argumentar. A mensagem é prontamente
que temos a liberdade de discordar de absorvida pelo subconsciente.
sua respectiva expressão.
Sinceridade (por parte dos autores) e
Este autor, na minha humilde opinião, cuidado (dos pais e educadores) nunca é
deveria, em algum momento, deixar de mais. E que a força esteja com vocês...
claro que está escrevendo uma ficção e digo, até a próxima.
que sua obra tem a finalidade de passar

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Cemitério Russo
Henry Alfred Bugalho

Havia uma crença coletiva de que reconstruir o planeta”.


o fim do mundo viria de forma súbita,
talvez causado por algum asteróide se Mas não foi assim.
desgarrando do cinturão entre Marte e
Júpiter, ou alguma explosão nuclear,
resultado daquelas guerras insanas que
os humanos adoram empreender, ou
simplesmente os céus se abrindo e, um A China, com seus bilhões de
a um, os quatro cavaleiros do Apocalipse habitantes, sempre foi um celeiro para as
devastando a terra e a chegada do doenças mais bizarras da Humanidade.
Anticristo e da besta com sete cabeças, Seus precários hábitos higiênicos
dez chifres e dez diademas. contribuíam para que qualquer gonorréia
ou conjuntivite se tornassem epidemias,
mas, daquela vez, suspeitava-se que
O fim do mundo seria um marco,
a enfermidade não era natural — não
assim como havia sido a extinção dos
apenas alguma mutação duma das
dinossauros; haveria uma cisão e,
patologias já conhecidas —, mas alguma
se alguém sobrevivesse (ou alguma
aberração criada em laboratório, quem
futura civilização inteligente resolvesse
sabe um malfadado projeto de arma
reescrever a História), haveria uma
biológica.
data evidente e incontestável, na qual
poderíamos anotar em nosso calendário
— “eis o dia do fim do mundo, e, aqui, o A batizada HR7 possuía os sintomas
dia seguinte a ele, quando começamos a iniciais duma mera gripe: dores-no-corpo,
cefaléia, fraqueza, ardência nos olhos

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

e febre. Todavia, agravava-se nos dias Vladimir tinha dezesseis anos


seguintes, vômito, sangramento gengival, quando assistiu a reportagem, na NTV
convulsões e desmaios. Após uma Novosti, anunciando as mortes na China.
quinzena, falência múltipla dos órgãos e Dificilmente ele se lembraria do comentário
óbito. maldoso que realizou naquele dia:

O governo chinês tentou abafar o — Bem que aqueles chineses imundos


caso, mas e-mails espalharam as notícias. poderiam ser varridos do planeta.
Em poucos meses, jornais divulgaram
as primeiras estatísticas, mais de dois Esta raiva derivava da sua derrota
milhões de pessoas já haviam sido no torneio mundial de xadrez para um
infectadas pela HR7, e havia algumas brilhante enxadrista taiwanês, um rapazola
suspeitas de contágio na Coréia do Norte, chamado Yeung. Pouca importância havia
na Tailândia e no Vietnã. sido dada, neste resmungo de Vladimir,
quanto à nacionalidade das vítimas:
No entanto, tais advertências chinês ou taiwanês, qual a diferença?
chegaram tarde demais. Num mundo
globalizado, alguém espirra no Japão e Ingenuidade do jovem, pois algum
lenços são oferecidos no Canadá. tempo depois, a Rússia também passou
a contabilizar seus mortos; inicialmente
Um clima de histeria coletiva se na Província de Khabarosk, na região
instaurou, conseqüência principal do fronteiriça com a China, mas logo surgiram
modo de transmissão da doença: contato casos em Omsk, Kursk, Novgorod, São
físico, pelo ar, pela água, através de Petersburgo e Moscou.
alimentos; não havia proteção. Estar
na presença de alguém enfermo era Assim, não apenas chineses imundos
sinônimo de contágio. morriam, mas até parentes de Vladimir.
Faleceu um tio do interior, uma prima, o
Quando a pandemia já era um marido da irmã, a irmã, a mãe e o pai. Dia
fato, os governos declararam estado após o outro, Vladimir sepultava algum
de emergência, cidades inteiras foram de seus caros.
isoladas, numa tentativa desesperada
de limitar as terríveis conseqüências do Recebeu uma carta do avô, agonizando
HR7, mas isto nada adiantou, os próprios em Zelenogradsky, a nordeste de Moscou,
militares e especialistas envolvidos que lhe ordenava:
nestas operações também adoeceram e,
num curto espaço de meses, não havia
— Fuja, Vlad! Todos vamos morrer!
médicos e cientistas vivos que pudessem
contribuir para dirimir a doença.
Havia sido este seu avô quem o levara,
num domingo de verão, para conhecer um
Religiões apocalípticas, messiânicas,
abrigo nuclear nos subterrâneos da capital.
oferecendo redenção se proliferaram
Ex-burocrata do partido comunista, o avô
e proliferaram também a enfermidade.
lhe contou que várias vezes, durante
Pessoas entravam sãs nas igrejas e
sua carreira, ele teve de se refugiar no
morriam quinze dias depois — pelo
subsolo, por causa de falsos alarmes de
menos, iriam para o Paraíso.
ataque nuclear. A mensagem de “Fuja!”,
vindo dele, era clara — “esconda-se no

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abrigo”. O som aumentava, e com ele crescia


também um odor fétido, semelhante àquele
Vladimir apanhou uma lanterna, quando seu gato Rasputin desapareceu
pilhas, alguns gibis da sua coleção de e, quase um mês depois, foi encontrado
X-Men, seu tabuleiro de xadrez e um preso sob a geladeira, decomposto.
livro de aberturas. Encontrou a entrada
do abrigo , acionou o antigo elevador e Vladimir abriu uma porta (as lamúrias
imergiu na escuridão das profundezas, a provinham do outro lado) e encontrou um
trinta metros abaixo do solo. inferno de pessoas, amontoadas sobre
as outras, pústulas sobre seus corpos,
O abrigo era gigantesco, um labirinto escarrando, tossindo, convulsionando,
de corredores, câmaras, salões, olhos fundos, membros retorcidos... O
depósitos, espaço projetado para refugiar rapaz teve engulhos, afastou-se e tapou
duas mil pessoas por alguns bocados as narinas com a gola da blusa. Todos
de meses. Mas Vladimir estava sozinho, ali morriam e, se as prédicas fossem
amedrontado, desorientado. verdadeiras, se os diagnósticos fossem
confiáveis, Vladimir também morreria em
breve. Ninguém, mas ninguém mesmo se
Explorou algumas galerias, encontrou
aproximava da peste sem ser afetado.
um alojamento confortável e descobriu
onde ficava o depósito, assim poderia
obter um estoque quase infindo de pilhas
e alimentos enlatados (muitos com data
de vencimento de 1989). Deitou-se e O vento soprou, a neve cobriu a cidade
leu seus gibis, depois, ensaiou algumas morta, o degelo, as flores, o sol. Quantas
aberturas e variações da Ruy López e vezes a monotonia da mudança não voou
giouco piano. Adormeceu, acordou, e sobre Moscou e sobre o mundo?
mais um dia se passou; na verdade, a
noção de tempo de Vladimir rapidamente As cidades, antes superpopulosas
desapareceu, sem a luz do sol como — automóveis, escritórios, aluguéis e
indicador. mercados —, agora eram silêncio apenas.
Os edifícios ruíram, foram recobertos por
Foi por volta do quarto ou sexto dia vegetação, pelo pó, pelo gelo duma nova
que Vladimir ouviu espirros, tosses e glaciação. Os rastros da Humanidade
lamentos. Os sons ricocheteavam pelas foram varridos, soterrados pelo amanhã.
paredes das galerias e alcançavam seu
quarto. Aparentemente, Vladimir não
havia sido o único a descobrir o abrigo,
outras pessoas, várias outras pessoas,
Dez mil anos se passaram, Glitzni,
também poderiam estar ocupando aquele
chefe duma equipe de arqueólogos, havia
complexo.
feito uma descoberta memorável, algo
que o incluiria nas galerias de grandes
Munido de sua lanterna, o rapaz pesquisadoras da História.
buscou a fonte do barulho. Abriu portas,
vagou, percorreu inúmeras vezes os
Segundo a tradição oral, os seres
mesmos corredores (ou seriam outros?) e
humanos haviam dominado o planeta
teve a impressão de que estava chegando
antigamente, mas uma doença dizimara
perto.
quase a totalidade da raça. Alguns

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

grupos se refugiaram nos recônditos da — Estou muito doente, Glitzni, acho


terra, isolando-se, salvando-se, assim, da que peguei um resfriado, não poderei
extinção. A Humanidade se reergueu a comparecer às escavações amanhã.
partir do zero, redescobrindo a civilização
desde o básico: agricultura, tração animal, Glitzni também se sentia assim;
escrita, arte, maçonaria, cerâmica, tomou um remédio para aplacar a febre.
navegação, energia a vapor, Astronomia, Recordou-se da descoberta de dias atrás,
Física Quântica, Filosofia. a pilha de ossadas, e temeu que talvez
houvessem desencavado algo terrível.
Havia estes relatos sobre o passado
remoto, mas, até o momento, nenhuma Sobre sua escrivaninha estava o
evidência. Contudo, escavações envelope que recebera naquela manhã
encontraram vestígios desta antiga — a tradução dum manuscrito encontrado
civilização — uma cidade, com ruas, em sítios arqueológicos no litoral de
edifícios, teatros, praças. Amrka —, trabalho dum velho conhecido
de faculdade.
O governo se entusiasmou com
a descoberta, liberou mais fundos e Apesar da vista embaçada, da dor
disponibilizou o equipamento mais muscular, do cansaço, Glitzni leu os
moderno ao projeto. Glitzni era a primeiros parágrafos da tradução:
celebridade da vez.
Havia uma crença coletiva de que o
As escavações atingiram extratos fim do mundo viria de forma súbita, talvez
mais profundos, descobriram galerias causado por algum asteróide se desgarrando
subterrâneas, um engenhoso sistema do cinturão entre Marte e Júpiter, ou alguma
de saneamento urbano e de transporte. explosão nuclear, resultado daquelas guerras
Foram mais fundo, e este foi o verdadeiro insanas que os humanos adoram empreender,
achado. ou simplesmente os céus se abrindo e, um
a um, os quatro cavaleiros do Apocalipse
devastando a terra e a chegada do Anticristo
Edifícios e artefatos eram muito e da besta com sete cabeças, dez chifres e
estimulantes, mas cadáveres, ossadas, dez diademas.
algo ainda mais extraordinário.
O fim do mundo seria um marco, assim
Descerraram a porta do abrigo nuclear como havia sido a extinção dos dinossauros;
e o bafo podre pôde deixar seu túmulo. haveria uma cisão e, se alguém sobrevivesse
Glitzni e seus colegas encontraram quase (ou alguma futura civilização inteligente
trezentas ossadas, sepultadas neste resolvesse reescrever a História), haveria
uma data evidente e incontestável, na qual
imenso cemitério; entre elas, estava a de
poderíamos anotar em nosso calendário
Vladimir. — “eis o dia do fim do mundo, e, aqui, o
dia seguinte a ele, quando começamos a
reconstruir o planeta”.

Ao chegar em casa, Glitzni recebeu Mas não foi assim.


um telefonema de Aaapnor, seu assistente
imediato. www.miriades.blogspot.com

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Ilusões
Denis da Cruz

Ilustração: Carlos Alberto Barros

- Você conseguiu? – pergunta-me - Não. Mas para tudo há uma primeira


Jaila. vez.

Meus olhos, por mais que tento, não Estendo a mão e entrego-lhe uma
conseguem se desviar do fascínio imposto minúscula esfera transparente. Jaila a
por sua beleza. Não faço idéia do que escaneia com seus olhos que avermelham.
existe por baixo daquela camada perfeita Sorri.
de proto-ilusão que a deixa deslumbrante.
Cabelos negros e cintilantes, olhos - Você conseguiu! O nanochip agora é
verdes, curvas esculturais vestidas em nosso. Vamos inserir os créditos em seu
roupas mínimas e traços que lembravam DNA agora mesmo, Samyanm.
algo como os elfos das velhas histórias
de Tolkien.
- Prefiro outro implante - digo sem
rodeios – Quero a tecnologia do nanochip
- Eu já falhei alguma vez? – pergunto em meu braço.
tentando não denotar qualquer entusiasmo
com sua beleza.
- Isto custará mais que os créditos
que você tem. Mas é algo que podemos

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

resolver, se é que você se dispõe a fazer “Escolheu”, penso. A velha história


outro serviço. sobre inteligência artificial, tão comum
neste último século. Eu ia perguntar como
- O que preciso roubar desta vez? o ID conseguiu um dos dróids da Satan,
mas seria perda de tempo; Jaila não me
responderia. Sei exatamente o que fazer:
- A memória de um ID. Você faria isto?
caçar, esterilizar a mente do alvo e trazer
– seu tom é de desafio.
as informações para a Corporação. O
Med500 seria um simples obstáculo a
- Claro – não titubeio, mesmo sabendo ser vaporizado pelo meu potente braço
que isto significava reduzir um ID a um direito.
ser totalmente sem memória, a um
imprestável vegetal.
Recebo as instruções sobre a
localização do alvo e vou para o topo do
Jaila sorri novamente, um sorriso que imenso edifício da Corporação Satan. Meu
eu conheço bem. Algo que, antes mesmo transporte flutua pelas vias abarrotadas
de iniciar minha missão, lhe dava uma de outros veículos, uns cruzando a
certa vitória. Já faz algum tempo que sou poucos metros dos outros, perdidos na
uma espécie de escravo da Corporação imensidão de prédios por todos os lados
Satan, sempre migrando de missão a e no abismo abaixo e acima. Numa
missão, sendo pago ora com Créditos, espécie de transe ocorrido pelo vai e vem
ora com implantes ou melhorias dos que de veículos, não posso evitar que meus
já tenho; um eterno ciclo vicioso que pensamentos viajem para a causa desta
não me permite a libertação das ordens guerra invisível.
deles.
No começo da década de 30 (2030)
Meu corpo tem um potente braço começou aquilo que chamam de Corrida
cibernético, um olho embutido com leitura e pela Inteligência Artificial (IA). Grandes
decodificação virtual, o pulmão modificado empresas iniciaram pesquisas avançadas
e, em minha corrente sanguínea, há quase sobre a IA. Tiveram vários resultados,
um litro de substância prata, recheada mas nenhum como ao dos criadores da
com nanotecs, capaz de reparar quase Messias; uma “mente” cibernética capaz
instantaneamente cortes profundos. de, realmente, pensar. Mais que isto,
pensar com eficácia de uma máquina.
- Você precisa caçar o ID G21G7714.
Não sabemos se nosso alvo veste uma A Messias ajudou a desenvolver a
proto-ilusão, mas já localizamos onde segunda grande IA, batizada como Lúcifer.
ele está neste exato momento. E, Sam, Em algum ponto, por volta de 2045, iniciou
ele tem um de nossos andróides como a guerra. Lúcifer se rebelou contra a raça
guarda costas, um Med500. humana e tentou destruí-la mediante a
ativação de armas químicas e pragas
- Vocês não podem reprogramá-lo virtuais que infectavam os implantes - que
remotamente para retornar? ainda não eram tão avançados naquela
época.
- Não. Ele escolheu estar com o ID
G21. Em 2060, Messias proveu “a cura”
contra Lúcifer. Disseminou sua própria

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essência virtual na rede, como se fosse enquanto desço do veículo. Caminho


um vírus, e, num ato de auto-sacrifício, para o tubo e sou sugado uns sessenta
destruiu a si e todas as Inteligências andares para cima. Finalmente, meu
Artificiais que existiam. andar. Enquanto caminho pelo estreito
corredor de paredes brancas, desligo
Três dias depois, Messias ressurgiu meu sensor, pois ele pode me denunciar.
na matriz da corporação que a gerou. Foi
impossível não traçar um paralelo com o Entro em um salão, tentando não
cristianismo, mas, para a grande maioria,deixar muito evidente que estou caçando
tudo não passava de mera coincidência, alguém entre as vinte e duas pessoas que
já que a religião havia caído na descrença
meus olhos escaneiam instantaneamente.
desde o início da Corrida. Ao fundo, uma autêntica jukebox, onde
toca uma música antiga, com o refrão que
Depois disto, iniciou uma nova era. diz “love me tender”. É um dos inúmeros
Novas IAs surgiram, mas todas muito bares que ambientam antigos cenários.
inferiores à Messias e sempre tentando Este retrata os anos 70 do século XX.
roubar alguma tecnologia que a ela
pertencia. Um novo tipo de guerra, quase - Um energético, por favor – peço
invisível, onde a Corporação Satan se sentando ao balcão enquanto minha
põe apenas como mais uma das simples mente analisa os dados escaneados.
detentoras de Inteligência Artificial,
alimentando-se de qualquer migalha de A maioria tem traços bem humanos,
tecnologia. provavelmente na tentativa de se mesclar
ao ambiente do bar. Alguém põe outra
Estamos quase virando um novo música na jukebox. Ouço o estalar
século; devo muito a Satan e não me mecânico da máquina antes de iniciar a
importo em servir a Corporação usando música. Help, esta eu conheço de algum
todos os métodos possíveis, embora lugar.
nunca tenha sido necessário exterminar
um ID. Bastaria um simples toque em meu
sensor e ele apontaria o ID G21; tempo
Meu transporte começa a voar mais suficiente para que eu também fosse
baixo, ali pelo nível três; para numa das detectado pelo Med500. Antes que eu
entradas do edifício onde meu sensor consiga organizar os pensamentos, sinto
acusa estar o alvo. Olho para o pequeno um golpe covarde de um punho atingindo
espelho e confiro se meus cabelos minha cabeça.
negros estão bem espetados; gosto
deles assim, sem qualquer camada de Sou lançado para trás do balcão,
proto-ilusão, verdadeiro vício entre as estilhaçando garrafas enquanto sinto o
pessoas atualmente. Algumas delas só mover dos nanotecs curando meu crânio
sabem o que é a imagem real de um rachado e alguns cortes nas costas.
humano quando desativam sua fachada
de mentira e conferem a própria imagem
Antes de me levantar, ouço o som
no espelho.
pesado de alguém pulando para trás
do balcão. Dois chutes no abdome me
Um homem com feições reptelianas – empurram contra a parede oposta. Ossos
uma capa de ilusão, claro – me recepciona estalam por todo o corpo; mais alguns

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

golpes e meus nanotecs não irão curar forma sou colhido por meu transporte e
nem mesmo um aranhão. inicio a perseguição.

Pela força dos golpes, só posso Vamos descendo os níveis, desviando


deduzir que meu oponente é o Med500. dos inúmeros obstáculos. Já posso
E de fato é. Consigo levantar os olhos e até sentir o cheiro acre do solo que se
o vejo correndo em minha direção. Ele aproxima. A escuridão nos envolve aos
veste a pele de uma mulher bonita, magra poucos, com poucas luzes de néon
e com roupa rosa que lhe agarra o corpo piscando em alguns cantos.
inteiro. Sua imagem jamais denunciaria
ser ele um andróide. Rente ao solo, disparo alguns raios de
meu veículo, explodindo em espeluncas
Levanto defendendo três chutes e do nível zero. Somente IDs da pior
a energia flui em meu braço. Pessoas categoria vivem por aqui. Finalmente
correm por todo o bar e consigo entrar acerto um disparo, destruindo a turbina do
um soco na fuça da dróid. A camada de alvo. O veículo raspa no chão até colidir
pele e carne do meu punho e do rosto numa parede, base de um dos inúmeros
da máquina dá lugar para a centelha de prédios lá em cima.
faísca que brilha no impacto metálico.
Paro imediatamente meu transporte e
O Med500 cambaleia três passos pulo no tampão do imóvel veículo abatido,
para trás, o espaço que preciso para onde a poeira ainda assenta. Um golpe o
fulminar uma rajada de e3nergia azulada abre por dentro, lançando-me para trás e
que sai com toda potência do meu vejo o ID saindo. Vem em minha direção
braço cibernético. O raio atravessa a e iniciamos uma luta corpo a corpo.
carne artificial do dróid e destrói seus
componentes eletrônicos, deixando um Ele é forte, porém lento. Acerto alguns
enorme buraco em seu peito. socos e finalmente arrebento a camada
proto-ilusória, lançando-o violentamente
Aciono imediatamente o localizador para trás em meio a lâminas cintilantes
e ele aponta o alvo: um homem de pele de energia fragmentada.
negra, careca, que acaba de estilhaçar
o vidro do prédio com o próprio corpo. Este é o momento. Debruço-me sobre
Ele se joga na imensidão do abismo de o ID G21 e pressiono uma espécie de
prédios e pulo logo atrás. arma entre seus olhos. Estou pronto para
sugar toda a memória quando algo me
Um mergulho entre paredes impede de acionar o equipamento.
cristalizadas dos edifícios; veículos
passando no estreito espaço, zunindo a O ID é uma mulher. Há tempos que
centímetros de nossa queda. Não irão não vejo beleza igual. Algo natural,
nos acertar, pois o radar de cada um totalmente humana, sem os vestígios
deles impede qualquer impacto. da capa ilusória. Há um certo pedido de
clemência em seus olhos e ela percebe
Segundos depois, vejo o ID ser minha renitência.
coletado no meio da queda. Ele teve
a mesma idéia que eu, acionando - Não faça isto – ela diz – Sou a última
remotamente seu veículo. Da mesma chance da humanidade.

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Não presto muita atenção em suas revolução e eles me comeriam como um


palavras, mas aquelas belas feições câncer instantâneo.
humanas, tão incomuns nos dias de hoje,
me prendem numa espécie de transe. - Eles sabem – diz a ID G21 – Todos
da Corporação Satan estão trabalhando
- A Corporação Satan precisa do que para trazer Lúcifer de volta – Meus
você sabe – consigo dizer; minhas mãos braços afrouxam e ela sai debaixo de
afrouxando no gatilho. mim – Preciso levar esta informação até
a Messias.
- A Corporação só quer apagar o que
eu sei. - Não posso deixar você fazer isto.

Ela me convence, não com as - Você precisa deixar. A Messias


palavras, mas com a expressão em seu precisa saber. Já nos salvou uma vez,
rosto – como se eu conhecesse muito poderá salvar mais uma.
além de uma proto-ilusão.
Não são os argumentos que me
- Eu compartilho com você – dizendo convencem. Talvez seja aquela forma
isto, ela toca entre meus olhos e sou humana de se expressar. Cabelos
engolido por uma visão. negros e lisos, que não passam dos
ombros, emoldurando um semblante de
Há uma tela translúcida à minha frente. convincente súplica e algo que, a meu
Códigos e mais códigos passam por ela ver, parece esperança.
e consigo distinguir uma palavra: Lúcifer.
Sinto até mesmo as emoções daquela Ela se levanta de vagar. Não me
memória. Surpresa, medo, repulsa. oponho. Vira-se e vai sumindo pelo beco
escuro. Não me oponho.
Lúcifer não foi destruído. Ele vem
sendo reconstruído pela corporação Duas horas mais tarde, na sala da
Satan, aliás, este é seu novo nome. direção da Corporação Satan, ouço os
Quando Messias disseminou-se na rede, gritos de Jaila:
Lúcifer fragmentou sua IA em incontáveis
partículas e, agora, a vem recuperando - Você não conseguiu? Você jamais
aos poucos. Em pouco mais de dois falhou, Samyanm.
anos estará completo e não deixará que
cruzemos o século sem uma violenta
- Para tudo há uma primeira vez.
guerra. Não chegaremos a 2099.

Viro-me sem dar muitas explicações.


Ele já tem uma nova estratégia. Desta
Só consigo pensar que a humanidade
vez usará as próteses de forma mais
realmente precisa de um salvador. Não
eficaz, controlando-as e voltando-as
que lhe garanta a simples existência,
contra seus usuários. Uma nova revolução
mas que ative em seu coração um desejo
das máquinas.
que talvez tenha esquecido: o de ser
realmente um ser humano.
Consigo pensar em meus implantes
e nos nanotecs em meu sangue. Uma

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

O Botão
José Espírito Santo

“Ah… o botão. Esse livre arbítrio em forma de escolha. Alavanca


de mudança abrupta do estado das realidades descontínuas.”

Está um dia frio de Inverno. Pela janela, Jorge vê os flocos de neve caírem
acrescentando mais volume ao manto branco, engrossando a camada que cobre
caminhos e bases das árvores estendendo a solidão até aos limites do horizonte da
vista.

Á frente, no ecrã do pequeno laptop,


surgem sequências de linhas que são
esboços, pedaços de rascunho de um livro
que não se trata de ficção (pelo menos
não de forma integral). Como qualquer
historiador, Jorge constrói os seus textos
de forma a acreditar que os mesmos têm
uma base científica sólida.

O labor da escrita é interrompido


subitamente pela pressão suave da mão
feminina que se apoia no ombro direito
“Querido, anda comer. As crianças já estão
na mesa. Estamos todos à tua espera”

Resmunga um “Já vou. Deixa-me só


guardar o texto”.

Antes de gravar para o dispositivo


de memória holográfica que emula um
disco magnético, efectua ainda um último
retoque na fonte do título. Imagem: Martin McKenna

A frase “Os dias derradeiros” aparece, escrita a azul-escuro, em relevo no topo da


capa castanha, lado a lado com a fotografia da criança e de dois espécimes em idade

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adulta.

Os “Silva” – é assim que se chama a família de Jorge – são conservadores,


esforçam-se por manter e respeitar hábitos e valores há muito perdidos. Desta vez,
efectuarão a refeição da noite como é costume, quase em silêncio, ouvindo as notícias
que o aparelho de televisão divulga. Quase todas sobre tragédias do quotidiano
comum ou política ou desporto.

II

“Tudo começou cerca de duzentos anos antes. Com a maior facilidade de


comunicação e colaboração entre equipas inter-disciplinares, a junção da informática
com a biologia deu origem aos organismos bio-cibernéticos. Os homens começaram
por faze-los à sua imagem e medida mas não demoraria muito até que criador fosse
ultrapassado por criado em todos os parâmetros de desempenho físico e mental. “

Analisou o texto cuidadosamente. Efabulação perfeita, narrar na terceira pessoa


parecia ser a opção mais adequada. Continuou.

“Naturalmente, os requisitos de produtividade provocaram um processo de selecção


onde já só havia lugar para os melhores. De início, usaram-nos apenas em tarefas
manuais que exigiam muito esforço físico e habilidade – aspectos onde os humanos
eram largamente ultrapassados. Depois, um raciocínio lógico rápido que superava
em eficácia a capacidades de intuição humana fez com que fossem usados também
para algumas funções técnicas. A sociedade era altamente eficiente e, apesar de
ociosos, os seres humanos – aqueles que já não trabalhavam – não sofriam mais
carências em termos materiais. Finalmente tinham concretizado um sonho antigo:
casa e pão para todos.”

Decidiu parar neste ponto. Maria chamava-o, queria ajuda para deitar os miúdos.
Em menos de uma hora estava de volta, continuou.

“Qual foi então o problema? Os humanos tornaram-se ociosos entrando rapidamente


em decadência física e mental e então os seres bio-cibernéticos – chamemos-lhe
robots embora essa não seja uma designação muito do meu agrado – tornaram-se
os decisores. Nada, mesmo nada se fazia sem que fosse cuidadosamente planeado
e decidido por eles. O ócio deu lugar à frustração. A frustração cozinhou fanatismos e
violência. E algo tinha de ser feito. No entanto, os robot tinham sido programados com
certas directivas e a primeira destas colocava-lhes a exigência de acção imediata
enquanto simultaneamente lhes retirava todas as hipóteses de agir.

Reuniram então o conselho e este deliberou. A primeira função tinha (mais uma vez)
de ser cumprida: Servir o criador, proteger a espécie humana de todas as ameaças.
Paradoxalmente, a maior ameaça à espécie humana era justamente aquilo em que

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

ela se tornara – uma minoria decente violentada diariamente pela maioria de ociosos
violentos e ignorantes. Que fazer?

- A primeira directiva impede-nos de agir contra os humanos – disse Ashtram, o


conselheiro-mor.

- E no entanto… temos de agir. Tem de existir uma maneira, uma saída –


continuou.

A saída existia realmente e foi encontrada após uns minutos de reflexão comum.
Consistia na segunda directiva, a qual estabelecia que em todas as ocasiões, em
qualquer ocasião, deveria sempre a espécie humana manter na sua posse o LIVRE
ARBÍTRIO.

Engendraram cuidadosamente a armadilha – o dispositivo para distinguir bons


de maus e trigo de joio. Considerando a curiosidade como fonte de todos os males
na espécie humana, adicionaram um botão. Um botão morto e inoperante. Um
dispositivo com uma única legenda provocatória: Não tocar. A infracção identificaria o
prevaricador e permitiria efectuar a escolha. Com a distinção actuariam extirpando o
mal, tornando de novo feliz a humanidade.

Desastre total: Todos tocaram, todos quiseram experimentar. Exterminação! Foi


então que…”

Sentiu o braço quente de Maria enlaçando-o.

“Querido, vem deitar-te comigo. Amanhã poderás continuar o teu texto.”

Desligou o aparelho, concordando. Afinal ainda tinha algum tempo até terminar o
prazo estabelecido pela editora.

Formavam um casal romântico. Dois robot abraçados que se dirigiam para o quarto
calma e lentamente. No silêncio cibernético da noite.

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TRADUÇÃO

Isaac Asimov (1920-1992), nascido na


Rússia, foi escritor e professor de bioquímica.
Autor amplamente reconhecido por suas obras
de ficção científica e por seus populares livros de
ciência.

Asimov foi um dos mais prolíficos escritores


de todos os tempos, com mais de 500 livros
escritos ou editados, e com uma correspondência
estimada em 9 mil cartas e cartões-postais.
Suas obras foram publicadas em nove das dez
categorias principais do Sistema Decima Dewey
(todos, com exceção dos 100, Filosofia).

Asimov é considerado um mestre do gênero


ficção científica e, ao lado de Robert A. Heinlein
e Arthur C. Clarke, foi considerado um dos “Três
Grandes” escritores de ficção científica, durante
sua vida. A obra mais importante de Asimov é a Série Fundação; suas outras séries
importantes são a Série Império Galático e a Série Robô. Ele assinou vários contos,
entre eles “O Cair da Noite”, que, em 1964, foi eleito por the Science Fiction Writers
of America como o melhor conto de ficção científica de todos os tempos, título ainda
vigente.

(fonte: Wikipédia)

A Última Pergunta
Isaac Asimov
trad.: Henry Alfred Bugalho

A última pergunta foi feita, pela primeira cintilante — quilômetros e quilômetros de


vez, meio como piada, em 21 de maio de face — daquele computador gigantesco.
2061, numa época em que a humanidade Eles possuíam, pelo menos, uma vaga
dava os primeiros passos em direção à noção do plano geral dos transmissores
luz. A questão surgiu como resultado e circuitos que, desde há muito, haviam
duma aposta de cinco dólares à base de crescido a um ponto que ultrapassou a
drinques, e ocorreu desta maneira: possibilidade dum único humano ter uma
sólida apreensão do todo.
Alexander Adell e Bertram Lupov
eram dois fiéis empregados do Multivac. Multivac era auto-ajustável e
Tão bem quanto era capaz para um ser autocorretivo. Ele tinha de ser, pois nada
humano, eles sabiam o que havia por humano poderia ajustá-lo ou corrigi-lo
detrás da face fria, tiquetaqueante e com rapidez suficiente, ou mesmo com

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

adequação suficiente — assim, Adell e


Lupov serviam ao gigante monstruoso
apenas leve e superficialmente, ainda
que tão bem quanto qualquer homem
poderia. Eles o alimentavam com dados,
ajustavam questões às necessidades
dele e traduziam as respostas que eram
emitidas. Certamente, como todos os
outros, eles eram totalmente merecedores
de compartilhar a glória que era do
Multivac.

Durante décadas, Multivac ajudou


a projetar naves e traçar trajetórias que
permitiram ao homem alcançar a Lua,
Marte e Vênus, mas, depois disto, os
pobres recursos da Terra não puderam corpo soterrado do Multivac. Dados
sustentar as naves. Era necessária negligenciados, ociosos, organizados
energia demais para as longas viagens. por satisfeitos tique-taques preguiçosos,
A Terra havia explorado seu carvão e Multivac também havia recebido suas
urânio com progressiva eficiência, mas férias, e os rapazes apreciavam isto. A
havia pouco de ambos. princípio, eles não pretendiam perturbá-
lo.
No entanto, lentamente, Multivac
aprendeu o bastante para responder Eles haviam trazido consigo uma
questões mais profundas e, em 14 de garrafa, e a única preocupação do
maio de 2061, o que havia sido teoria, momento era relaxar na companhia um
tornou-se fato. do outro e da garrafa.

A energia do sol foi armazenada, — É incrível quando você reflete,


convertida e utilizada diretamente em disse Adell. Seu largo rosto tinha traços
escala planetária. A Terra desvinculou-se de exaustão e ele mexia lentamente
da queima de carvão, da fissura de urânio, seu drinque com um bastonete de vidro,
e ligou o interruptor que conectava tudo assistindo aos cubos de gelo vagando,
isto a uma pequena estação, quinhentos desajeitados — Toda a energia que
metros de diâmetro, circundando a terra nós podemos usar de graça. Energia
a meia distância da Lua. Toda a Terra era suficiente, se quiséssemos utilizá-la,
movida por invisíveis raios de energia para derreter toda a Terra numa grande
solar. gota de ferro líquido, impuro, e ainda não
esgotar a energia assim usada. Toda a
energia que poderíamos utilizar, para
Sete dias não foram suficientes para
todo o sempre.
ofuscar esta glória, e, finalmente, Adell e
Lupov conseguiram escapar da função
pública, encontraram-se em sigilo, onde Lupov meneou a cabeça. Ele tinha a
ninguém pensaria em procurar por eles, mania de fazer isto quando queria ser do
nas desertas câmaras subterrâneas, contra, e ele queria ser do contra agora,
onde apareciam porções de poderoso em parte porque havia sido ele quem
carregou o gelo e os copos — Não para

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sempre, ele disse. Houve silêncio por alguns instantes.


Adell ergueu ocasionalmente o copo aos
— Ah, diabos, quase para sempre. Até lábios, e os olhos de Lupov se fecharam
que o sol se apague, Bert. com lentidão. Eles descansaram.

— Isto não é para sempre. Então, os olhos de Lupov se


arregalaram.
— Tudo bem, então. Bilhões e bilhões
de anos. Vinte bilhões, talvez. Está — Você está pensando que nós nos
satisfeito? mudaríamos para outro sol, quando o
nosso se houver extinguido, não é?
Lupoz correu os dedos pelos cabelos
ralos, como se quisesse se assegurar de — Não estou pensando.
que ainda restavam alguns, e gentilmente
bebericou seu drinque — Vinte bilhões de — É claro que está. Você é fraco
anos não é para sempre. em lógica, este é o seu problema. Você
é como o cara na história que foi pego
— Durará por nossa época, não é? por uma chuva súbita, correu para um
bosque e se escondeu sob uma árvore.
Não estava preocupado, porque ele
— Mas o carvão e o urânio também.
refletiu que, quando uma árvore estivesse
completamente molhada, ele poderia ir
— Tudo bem, mas nós podemos para debaixo de outra.
conectar cada uma das naves especiais
à Estação Solar, e elas poderão ir e voltar
— Entendi, disse Adell. Não grite.
Plutão um milhão de vezes sem nunca
Quando o sol acabar, as outras estrelas
se preocupar com combustível. Você não
também terão acabado.
pode fazer ISTO com carvão e urânio.
Pergunte ao Multivac, se não acredita em
mim. — Pode apostar que sim, resmungou
Lupov. Tudo começou com a explosão
cósmica original, ou o que quer que tenha
— Não preciso perguntar ao Multivac.
acontecido, e tudo terá um fim quando
Eu sei disto.
as estrelas se extinguirem. Algumas se
extinguem mais rapidamente do que
— Então pare de menosprezar o outras. Caramba, as gigantes não duram
que Multivac fez por nós, disse Adell, mais do que uma centena de milhões de
inflamado. Ele fez tudo certo. anos. O sol durará vinte bilhões de anos,
e talvez as anãs durem uma centena de
— Quem foi que disse que não fez? bilhões de anos em toda a capacidade
O que digo é que o sol não durará para delas. Mas dê-nos um trilhão de anos
sempre. É tudo que estou dizendo. e tudo será escuridão. A entropia terá
Estamos seguros por vinte milhões de aumentado ao máximo, isto é tudo.
anos, ‘tá, e daí? Lupov apontou um dedo
ligeiramente trêmulo para o outro — E — Sei tudo sobre entropia, disse Adell,
não diga que nós nos mudaremos para defendendo sua dignidade.
outro sol.

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

— É claro que sim. O lento piscar de luzes cessou, os


distantes sons dos cliques transmissores
— Sei tanto quanto você. cessaram.

— Então você sabe que tudo se Então, justamente quando os


extinguirá um dia. apreensivos técnicos sentiram que eles
não poderiam segurar mais a respiração,
houve um súbito influxo de vida no
— Correto. Quem disse o contrário?
teletipo anexo àquela parte do Multivac.
Cinco palavras foram impressas: DADOS
— Você disse, tolinho. Você disse que INSUFICIENTES PARA RESPOSTA
tínhamos toda a energia necessária, para SIGNIFICATIVA
sempre. Você disse “para sempre”.
— Ninguém ganhou a aposta, sussurrou
Era a vez de Adell ser do contra — Lupov. Eles partiram apressados.
Talvez possamos reconstruir as coisas,
um dia, ele disse.
Pela manhã seguinte, os dois,
atormentados por enxaqueca e boca
— Nunca. seca, haviam se esquecido do incidente.

— Por que não? Um dia. ________________________________

— Nunca. Jerrod, Jerrodine e Jerrodette I e


II observavam a imagem estrelada no
— Pergunte ao Multivac. videodisco mudar, enquanto a travessia
pelo hiperespaço era completada em
— Pergunte você ao Multivac. Eu o seu lapso não-temporal. Subitamente,
desafio. Cinco dólares que isto não pode o forte brilho das estrelas deu lugar à
ser feito. predominância dum único disco marmóreo
brilhante, no centro.
Adell estava bêbado o suficiente
para tentar, mas sóbrio o bastante para — Este é X-23, disse Jerrod, com
ser capaz de traduzir os símbolos e confiança. As mãos magras, juntas dos
operações necessárias em uma questão dedos empalidecidas, unidas com força
que, em palavras, corresponderia a isto: A atrás das costas.
humanidade será capaz de, um dia, sem
dispêndio algum de energia, restaurar o As pequenas Jerrodettes, duas
sol a sua plena juventude mesmo após meninas, haviam experimentado
ele ter morrido de velhice? a travessia pelo hiperespaço pela
primeira vida em suas vidas e estava
Ou talvez poderia ser dito de maneira semiconscientes por causa da sensação
mais simples, tal qual: como a quantidade momentânea de interior-exterioridade.
final de entropia do universo pode ser Elas pararam de rir e perseguiam uma
reduzida massivamente? à outra ao redor da mãe, gritando: —
Chegamos a X-32 – chegamos a X-23 –
chegamos...
Multivac ficou inerte e silencioso.

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— Silêncio, crianças, disse Jerrod e sua família tinham apenas de


bruscamente Jerrodine — Tem certeza, esperar e viver nas confortáveis câmaras
Jerrodd? de residência da nave.

— Como assim “tem certeza”? — Alguém havia dito a Jerrodd, certa


perguntou Jerrodd, fitando a protuberância vez, que o “ac” no fim de “Microvac”
de metal na altura do teto. Percorria toda correspondia a “analog computer” —
a extensão da câmara, desaparecendo computador analógico — em inglês antigo,
pelas paredes nos dois extremos. Tinha o mas ele já estava quase se esquecendo
comprimento da nave. até mesmo disto.

Jerrodd pouco sabia sobre a grossa Os olhos de Jerrodine estavam


barra de metal, excetuando que era rasos d’água, enquanto ela assistia ao
chamada Microvac, que, caso desejasse, videodisco: — Não consigo evitar. É uma
poderia fazer perguntas a ela; e, caso sensação estranha deixar a Terra.
não desejasse, ela ainda tinha a tarefa
de guiar a nave a um destino pré- — Nossa, mas por quê? — Jerrodd
requisitado, fornecer energia a partir das queria uma explicação — Não tínhamos
várias Estações de Energia Subgaláctica nada lá. Nós teremos tudo em X-23. Você
e calcular as equações para os saltos não estará sozinha. Você não será uma
hiperespaciais. desbravadora. Há milhões de pessoas já

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

vivendo no planeta. Bom Deus, nossos suspirou Jerrodine, ocupada com seus
netos terão que procurar novos mundos, próprios pensamentos — Creio que
porque X-23 estará superpopulada. famílias estarão se mudando para novos
planetas para sempre, do mesmo modo
Então, após uma pausa reflexiva: — que nós.
Eu lhe digo, é uma grande sorte que os
computadores descobriram a viagem — Não para sempre, disse Jerrodd,
interestelar, do jeito que a raça está se com um sorriso. Um dia, isto parará, mas
multiplicando. não por bilhões de anos. Muitos bilhões.
Até mesmo as estrelas se apagarão, você
— Eu sei, eu sei, disse Jerrodine, com sabe. A entropia aumentará.
pesar.
— O que é entropia, papai? — berrou
Jerrodette I disse, de chofre: — Nosso Jerrodette II.
Microvac é o melhor Microvac do mundo.
— Entropia, querida, é apenas uma
– Eu também penso isto, disse Jerrodd, palavra que quer dizer a quantidade
acariciando os cabelos dela. de esgotamento do universo. Tudo se
esgota, você sabe, como o seu pequeno
robô walkie-talkie, lembra-se?
Era uma boa sensação ter um
próprio Microvac, e Jerrodd estava feliz
por fazer parte desta geração, e de — E você não pode pôr uma nova
nenhuma outra. Durante a juventude de unidade de energia, como com meu
seu pai, os únicos computadores eram robô?
máquinas gigantescas, ocupando meio
quilômetro quadrado. Havia apenas — As estrelas são as unidades de
um por planeta. Eram chamados de energia, querida. Uma vez que elas
AC Planetários. Eles haviam crescido tiverem acabado, não haverá mais
constantemente de tamanho por mil anos, unidades de energia.
então, subitamente, veio o refinamento.
No lugar de transistores vieram válvulas Num ímpeto, Jerrodette I soltou um
moleculares, ao ponto em que o maior dos berro: — Não deixa, pai! Não deixa que
AC Planetários poderia ocupar o lugar de as estrelas se apaguem!
metade do volume duma nave.
— Veja só o que você fez, resmungou
Jerrodd se sentiu elevado, como Jerrodine, exasperada.
sempre se sentia quando pensava que
seu Microvac individual era muitas vezes
— Como é que eu iria saber que isto
mais complicado que o antigo e primitivo
as assustaria? Jerrodd resmungou em
Multivac, que primeiro domesticou o Sol,
resposta.
e quase tão complicado quando o AC
Planetário Terrestre (o maior de todos), o
primeiro a resolver o problema da viagem — Pergunte ao Microvac, gemeu
hiperespacial e que tornou possível Jerrodette I. Pergunte a ele como ligar as
viagens estelares. estrelas de novo.

— Tantas estrelas, tantos planetas, — Faça isto, disse Jerrodine. Vai fazer

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com que elas sosseguem. (Jerrodette II — Mesmo assim, disse VJ-23X, hesito
estava começando a chorar também). em apresentar um relatório pessimista ao
Conselho Galático.
Jerrodd deu de ombros: — Está certo,
queridas. Vou perguntar ao Microvac. Não — Eu não pensaria em nenhum outro
se preocupe, ele nos responderá. tipo de relatório. Enrole-os por um tempo.
Temos de enrolá-los.
Ele perguntou ao Microvac,
acrescentando rapidamente: “Imprima a VJ-23X suspirou: — O Espaço é
resposta”. infinito. Cem bilhões de Galáxias estão aí
para serem tomadas. Mais.
Jerrodd apanhou a fina tira de
celufilme e disse, com alegria: — Vejam, — Cem bilhões não é infinito, e esta
Microvac diz que tomará conta de tudo se tornando menos infinito a cada dia
quando chegar o momento, então não se que passa. Pense! Vinte mil anos atrás, a
preocupem. humanidade resolveu, pela primeira vez,
o problema de como utilizar a energia
Jerrodine disse: — Agora, crianças, estelar, e alguns séculos depois, a viagem
é hora de ir dormir. Logo estaremos em interestelar se tornou possível. Levou
nossa nova casa. um milhão de anos para a humanidade
ocupar um pequeno mundo, e apenas
quinze mil anos para ocupar o resto da
Jerrod leu as palavras no celufilme
Galáxia. Hoje, a população dobra a cada
novamente antes de destruí-lo: DADOS
dez anos...
INSUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA
SIGNIFICATIVA.
VJ-23X interrompeu: — Graças à
imortalidade.
Ele deu de ombros e olhou para o
videodisco. X-23 estava logo adiante.
— Tudo bem. Imortalidade existe e
temos de levar isto em consideração.
________________________________
Admito que a imortalidade tem um aspecto
desagradável. O AC Galático resolveu
VJ-23X de Lameth olhava para o muitos problemas para nós, mas, ao
interior das profundezas negras do mapa resolver os problemas de como prevenir
tridimensional, em pequena escala, da o envelhecimento e a morte, ele desfez
Galáxia e disse: — Nós somos ridículos, todas as outras soluções.
eu me pergunto, em nos preocuparmos
tanto com o problema?
— Mesmo assim, você não iria querer
abandonar a vida, suponho.
MQ-17J de Nicron balançou a cabeça:
— Acho que não. Você sabe que a Galáxia,
— De maneira alguma! — retrucou
no atual nível de expansão, estará cheia
MQ-17J, mas logo se acalmou: — Ainda
em cinco anos.
não. Ainda não sou velho o bastante.
Qual sua idade?
Ambos aparentavam estar na casa
dos vinte anos, eram altos e perfeitamente
— Duzentos e vinte e três. E a sua?
formados.

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

— Ainda não cheguei aos duzentos....


Mas voltando ao assunto. A população
dobra a cada dez anos. Uma vez que esta
Galáxia estiver cheia, nós encheremos
outra em dez anos. Outros dez anos e
nós teremos enchido mais duas. Uma
outra década, mais quatro. Em cem anos,
nós teremos povoado mil galáxias. Em mil
anos, um milhão de galáxias. Em dez mil
anos, todo o Universo conhecido. E daí?

VJ-23X disse: — Como uma questão


paralela, há o problema do transporte.
Imagino quantas unidades de energia
solar precisariam para mover galáxias de Na verdade, VJ-23X não falava sério,
indivíduos duma Galáxia para a próxima. mas MQ-17J puxou de seu bolso seu
contato-AC e o pôs sobre a mesa, diante
— Ótimo ponto. Atualmente, a dele.
humanidade consume duas unidades de
energia solar por ano. — Serei obrigado a fazer isto, ele
disse. Isto é algo que a raça humana terá
— A maior parte disto é desperdiçada. de encarar, um dia.
No final das contas, nossa própria Galáxia
sozinha fornece um milhar de unidades Ele observava sombriamente seu
de energia solar e, delas, nós usamos pequeno contato-AC. Apenas duas
apenas duas. polegadas cúbicas e nada dentro, mas
estava conectado através do hiperespaço
— Concordo, mas mesmo com cem com o grande AC Galático que servia
por cento de eficiência, nós só adiaríamos toda a humanidade. Levando em
o fim. Nossos requerimentos de energia consideração o hiperespaço, ele era uma
aumentam em progressão geométrica parte integrante do AC Galático.
muito mais rapidamente do que nossa
população. Ficaremos sem energia muito MQ-17J parou para refletir se um dia
antes do que ficaremos sem galáxias. em sua vida imortal ele conseguiria ver o
Ótimo ponto. Realmente, um ótimo AC Galático. Ele era um pequeno mundo
ponto. em si — uma teia de aranha de feixes
sustentando a matéria interior que brota de
— Teremos de construir novas estrelas
sub-mésons havia substituído as velhas
a partir de gases interestelares. e desengonçadas válvulas moleculares.
Mesmo assim, apesar de seu trabalho
— Ou a partir de calor dissipado? — sub-etérico, sabia-se que o AC Galático
perguntou MQ-17J, sarcasticamente. ocupava mil pés de comprimento.

— Deve haver algum jeito para MQ-17J perguntou, de repente, a


reverter a entropia. Temos de perguntar seu contato-AC: — A entropia pode ser
ao AC Galático. revertida?

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VJ-23X olhou espantado e disse: — incrivelmente poderosa multidão, mas e


Nossa, eu não pretendia, de fato, que daí? Havia pouco espaço no Universo
você fizesse esta pergunta. para novos indivíduos.

— Por que não? Zee Prime havia despertado de seu


sono, após atravessar os finos tentáculos
— Nós dois sabemos que a entropia de outra mente.
não pode ser revertida. Você não pode
transformar fumaça e cinzas de volta — Eu sou Zee Prime, disse Zee Prime.
numa árvore. E você?

— Existem árvores em seu mundo? — Eu sou Dee Sub Wun. Sua


— perguntou MQ-17J Galáxia?

O som do AC Galático os forçou ao — Nós a chamamos simplesmente de


silêncio. Do pequeno contato-AC sobre a “A Galáxia”. E a sua?
mesa veio uma voz fina e bela. Ela disse:
DADOS INSUFICIENTES PARA UMA — Damos o mesmo nome à nossa.
RESPOSTA SIGNIFICATIVA. Todos os homens chamam suas Galáxias
de “A Galáxia” apenas. Por que não?
VJ-23X disse: — Viu?
— Verdade. Pois todas as Galáxias
Assim, os dois homens voltaram à são a mesma.
questão do relatório que eles tinham de
preparar para o Conselho Galático. — Nem todas as Galáxias. Numa
galáxia em particular a raça humana deve
________________________________ ter se originado. Isto a torna diferente.

A mente de Zee Prime mensurava Zee Prime perguntou: — Qual delas?


a nova Galáxia, com fugidio interesse
na espiral de incontáveis estrelas que — Não sei dizer. O AC Universal deve
a salpicavam. Ele nunca havia visto saber.
esta antes. Chegaria a ver todas elas?
Havia tantas, cada uma com sua cota
— Devemos perguntar a ele?
de humanidade — mas uma cota que
Subitamente, fiquei curioso.
era quase um peso morto. Cada vez
mais, a essência real dos homens seria
encontrada lá, no espaço. As percepções de Zee Prime se
ampliaram até que as próprias Galáxias
se encolhessem e se tornassem um novo
Mentes, não corpos! Os corpos
salpicado, mais difuso, num fundo muito
imortais continuavam nos planetas,
maior. Várias centenas de bilhões delas,
em suspensão através de eóns. Às
todas com seus seres imortais, todas
vezes, eles despertavam para atividade
carregando sua cota de inteligências com
material, mas isto se tornava cada vez
mentes que vagavam livremente através
mais raro. Poucos novos indivíduos
do espaço. E, mesmo assim, uma delas
vinham à existência para se juntarem à
era única dentre todas, por ser a Galáxia

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

original. Durante um período, uma delas, não com palavras, mas com orientação. A
em seu vago e distante passado, havia mente de Zee Prime foi guiada até o turvo
sido a única Galáxia povoada pelo mar de Galáxias e uma, em particular, se
homem. ampliou em estrelas.

Zee Prime, consumido pela curiosidade Um pensamento ocorreu, infinitamente


de ver esta Galáxia, chamou: — AC distante, mas infinitamente lúcido — ESTA
Universal! Em qual Galáxia a humanidade É A GALÁXIA ORIGINAL DO HOMEM.
se originou?
Mas, no final das contas, esta era
O AC Universal ouviu, pois em cada a mesma, como qualquer outra, e Zee
mundo e através do espaço, ele tinha Prime conteve seu desapontamento.
seus receptores prontos, e cada receptor
chegava, através do hiperespaço, a algum Dee Sub Wun, cuja mente acompanhou
ponto desconhecido, onde o AC Universal a do outro, perguntou, subitamente: — E
se mantina apartado. uma destas estrelas é a estrela original
do Homem?
Zee Prime conheceu apenas um
homem cujos pensamentos haviam
penetrado a uma distância sensível do
AC Universal, e ele descreveu apenas
um globo brilhante, sessenta centímetros
de diâmetro, difícil de se ver.

— Mas como aquilo pode ser todo


o AC Universal? Zee Prime havia
perguntando.

— A maior parte dele, foi a resposta,


está no hiperespaço. Em qual forma, não
posso imaginar.

Nem qualquer outra pessoa o podia,


pois Zee Prime sabia que havia passado
O AC Universal disse: — A ESTRELA
o dia em que o homem teve alguma
ORIGINAL DO HOMEM SE TORNOU
parte na construção do AC Universal.
UMA SUPERNOVA. ELA É, AGORA,
Cada AC Universal projetou e construiu
UMA ANÃ BRANCA.
seu sucessor. Cada um, durante suas
existências de milhões de anos, ou mais,
acumularam os dados necessários para — Os homens nela morreram? —
construir um sucessor melhor, mais perguntou Zee Prime, sobressaltado e
intrincado e mais capaz, no qual seu sem refletir.
próprio banco de dados e individualidade
poderiam ser incorporado. O AC Universal disse: — UM NOVO
MUNDO, COMO OCORRE EM TAIS
O AC Universal interrompeu os CASOS, FOI CONSTRUÍDO, A TEMPO,
pensamentos dispersos de Zee Prime, PARA SEUS CORPOS FÍSICOS.

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— Sim, é claro, disse Zee Prime, estrela. Se as estrelas morrerão algum


mas uma sensação de perda o oprimiu dia, pelo menos algumas poderiam ser
ainda mais. Sua mente perdeu o foco construídas.
da Galáxia original do Homem, ela se
dispersou e desapareceu em meio aos ________________________________
pontos borrados. Ele nunca mais queria
vê-la novamente.
O Homem pensava consigo próprio,
pois, de certo modo, mentalmente, o
Dee Sub Wun disse: — Qual o Homem era um. Ele era constituído
problema? de trilhões de trilhões de trilhões de
corpos imortais, cada um em seu lugar,
— A estrelas estão morrendo. A estrela cada um descansando em silêncio e
original está morta. incorruptíveis, cada um cuidado por
autômatos, igualmente incorruptíveis,
— Todas elas devem morrer. Por que enquanto as mentes de todos os corpos
não? voluntariamente se fundiram umas às
outras, indistingüíveis.
— Mas quando toda a energia se
esgotar, nossos corpos finalmente O Homem disse: — O Universo está
morrerão, eu e você com eles. morrendo.

— Levará bilhões de anos. O Homem olhou para as Galáxias


enfraquecidas. As estrelas gigantes,
suntuosas, haviam desaparecido desde
— Não quero que isto ocorra, mesmo
há muito, perdidas no passado esquecido.
após bilhões de anos. AC Universal!
Quase todas as estrelas eram anãs
Como evitar que as estrelas morram?
brancas, desvancendendo-se para o fim.

Dee Sub Wun disse, estupefato: —


Novas estrelas haviam sido
Você está perguntando como reverter a
construídas a partir da poeira entre as
entropia.
estrelas, algumas através de processos
naturais, algumas feitas pelo próprio
E o AC Universal respondeu.— AINDA Homem, e estas também estavam se
HÁ DADOS INSUFICIENTES PARA UMA extinguindo. Anãs brancas podiam ser
RESPOSTA SIGNIFICATIVA. colididas umas contra as outras e, das
poderosas forças liberadas, podia-se
Os pensamentos de Zee Prime construir novas estrelas, mas apenas
retornaram a sua própria Galáxia. Ele não uma estrela para cada mil anãs-brancas
deu mais atenção a Dee Sub Wun, cujo destruídas, e estas também acabariam.
corpo deveria repousar numa galáxia a
trilhões de anos-luz de distância, ou até O Homem disse: — Se for bem
mesmo na estrela vizinha a de Zee Prime. gerenciada, como orientado pelo AC
Isto não tinha importância. Cósmico, a energia que ainda existe em
todo o Universo durará por bilhões de
Infeliz, Zee Prime começou a coletar anos.
hidrogênio interestelar com o qual
construiria, por si próprio, uma pequena — Mas, mesmo assim, disse o

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

POSSUO AINDA SÃO INSUFICIENTES.

— Haverá, um dia, perguntou o


Homem, quando haverá dados suficientes,
ou é um problema insolúvel em todas as
circunstâncias concebíveis?

OAC Cósmico respondeu: — NENHUM


PROBLEMA É INSOLÚVEL EM TODAS
AS CIRCUNSTÂNCIAS CONCEBÍVEIS.

O Homem perguntou: — Quando você


Homem, ela acabará. Independente de terá dados suficientes para responder
como ela seja gerenciada, ou prolongada, esta pergunta?
a energia uma vez gasta se foi, e não
pode ser restaurada. Entropia crescerá
ao máximo. — OS DADOS AINDA SÃO
INSUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA
SIGNIFICATIVA.
O Homem perguntou: — A entropia
pode ser revertida? Vamos perguntar ao
AC Cósmico. — Você continuará trabalhando nisto?
— perguntou o Homem.
O AC Cósmico o circundou, mas
não espacialmente. Nenhuma parte O AC Cósmico respondeu: —
dele estava no espaço. Ele estava no Continuarei.
hiperespaço e era feito de algo que não
era matéria, nem energia. A questão de O Homem disse: — Vamos esperar.
seu tamanho e natureza não tinha mais
sentido em termos compreensíveis ao ________________________________
Homem.
Todas as estrelas e Galáxias morreram
— AC Cósmico, perguntou o Homem, e se desintegraram, e o espaço se tornou
como a entropia pode ser revertida? negro após dez trilhões de anos de
esgotamento.
O AC Cósmico disse: — AINDA
HÁ DADOS INSUFICIENTES PARA Um a um, o Homem se fundiu com
RESPOSTA SIGNIFICATIVA. o AC, cada corpo físico perdendo sua
identidade mental, duma maneira que
O Homem disse: — Colete dado não representava perda, mas ganho.
adicional.
A última mente do Homem parou,
O AC Cósmico disse: — FAREI antes da fusão, para observar o espaço
ISTO. É O QUE TENHO FEITO POR que continha nada mais do que os
CENTENAS DE BILHÕES DE ANOS. restos da última estrela negra e duma
ESTA PERGUNTA FOI FEITA A MEUS matéria incrivelmente rarefeita, agitada
PREDECESSORES E A MIM MUITAS aleatoriamente por resquícios de energia
VEZES. TODOS OS DADOS QUE se esvaindo, asintóticamente, a zero

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absoluto. coletado.

O Homem perguntou: — AC, este é Mas todos os dados coletados


o fim? Este caos pode ser revertido ao ainda tinham de ser completamente
Universo novamente? Isto não pode ser correlacionados e postos juntos em todas
realizado? as possíveis combinações.

AC respondeu: — AINDA HÁ DADOS Um intervalo incomensurável se


INSUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA transcorreu nesta tarefa.
SIGNIFICATIVA.
E ocorreu que o AC aprendeu como
A última mente do Homem se fundiu, reverter a direção da entropia.
e apenas o AC existia — e ele estava no
hiperespaço. Mas agora não havia um único homem
a quem o AC pudesse dar a resposta
________________________________ para a última pergunta. Sem problema. A
resposta — por demonstração — tomaria
Matéria e energia acabaram e, com conta disto também.
elas, espaço e tempo. O próprio AC
continuou existindo por causa duma Por outro intervalo incomensurável, o
última pergunta, que nunca havia sido AC refletiu sobre a melhor maneira para
respondida, desde que alguém semi- se fazer isto. Cuidadosamente, o AC
bêbado havia feito a pergunta, dez trilhões organizou o programa.
de anos antes, a um computador que era
inferior ao AC do que o homem era para A consciência do AC abrangia tudo
o Homem. que tinha sido o Universo e englobava o
que agora era Caos. Passo a passo, isto
Todas as perguntas haviam sido teve de ser feito.
respondidas e, até que esta última
pergunta também fosse respondida, o AC E o AC disse: — QUE SE FAÇA A
não poderia libertar sua consciência. LUZ!

Todos os dados coletados chegaram E foi feita a luz...


ao fim. Nada mais restava para ser

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

Termo de Recriação
Marcia Szajnbok

Registro 233.577 - 9
Conforme o previsto no registro anterior, deu-se a completa extinção. O processo
pode ser descrito sucintamente da seguinte forma:
1.
Com o esgotamento dos combustíveis fósseis e a impossibilidade de gerar
energia a partir da água, observou-se nas últimas décadas um declínio progressivo
da temperatura. A atmosfera opacificada pela fumaça tornou-se quase impermeável
à luz solar, o que contribuiu ainda mais com tal esfriamento. Instalou-se o que eles
denominaram “a terceira era glacial”, com a maior parte dos territórios cobertos de
gelo e a conseqüente escassez de alimentos, restando apenas algumas poucas
espécies. Além de bactérias, algas unicelulares e briófitas, restou um único grupo de
humanos, aglomerado ao redor da pouca água em estado líquido, em algum lugar
próximo à linha do Equador.
2.
Confirmando milênios de observações anteriores, devo admitir que o projeto
“Homem” representou um absoluto fracasso. Em algum ponto da história, que nem
mesmo eu consigo precisar qual, instalou-se na espécie humana o impulso ao conflito

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e à destruição. Nenhuma das experiências anteriores havia chegado a este ponto.


Muitos outros seres têm conflitos entre si, mas todos – com exceção do Homo sapiens
– são capazes de se aliar aos semelhantes em momentos de crise e de unir forças
contra o inimigo comum.
O que pude observar neste período final foi estarrecedor. Havia tão poucos deles!
E nem mesmo o impulso à preservação dos indivíduos ou da espécie foi motivo
suficiente para sobrepujar seu instinto destruidor.
Divididos em dois grupos, segundo a localização a leste ou a oeste da Grande
Pedra, lutaram até a morte. Devo registrar, a guisa de comprovação de meu argumento
acerca do fracasso do projeto, que o motivo de tal luta não foi a pouca água disponível,
nem tampouco os musgos com os quais vinham se alimentando. Lutaram e mataram-
se, a rigor, por nada. Pareciam, no final, embriagados do prazer de matar. Num frenesi
que durou o período de sete voltas do planeta em torno do Sol, lançaram mão de
todas as técnicas de aniquilamento que desenvolveram ao longo de séculos, e não
pouparam requintes de crueldade uns com os outros.
3.
O último deles, já muito ferido, segundos antes de morrer completamente
pronunciou a seguinte frase: “Meu deus, o que fizemos?”
Um breve adendo, para registrar minha reflexão sobre o percurso do planeta nos
últimos tempos.
Dentre todos, neste ou em outros sistemas planetários, a Terra sempre foi minha
preferida, foi o projeto ao qual mais me dediquei, e sobre o qual mais esperanças
nutri. Um lindo planeta. Azul! Nenhum outro jamais fora azul. E na produção da
vida, me esmerei em construir um encadeamento de complexidade crescente.
Desde o mais simples aglomerado protéico que separou o primeiro meio interno do
grande caldo de substrato que era o mar primitivo, até a mais alta sofisticação de
um sistema nervoso capaz de criar linguagens e trabalhar com símbolos, houve um
processo que muitos chamariam de milagre. Eu chamo de evolução. Uma evolução
cuidadosamente planejada para que não houvesse rupturas, saltos ou quebras. Um
processo perfeito.
A espécie humana, devo confessar, me deixou mesmo vaidoso. De fato, reproduziam
a imagem e semelhança dos meus ideais de vida, inteligência e operosidade. Sua
capacidade de criar e solucionar problemas esteve absolutamente dentro das
expectativas. O que terá causado o colapso na esfera dos sentimentos? Dotá-los da
capacidade de sentir me pareceu um ganho com relação a todas as demais espécies.
Não previ, entretanto, que acima de todas as emoções estivesse a paixão pelo poder.
Amor, tristeza, alegria, ciúmes, dor, felicidade... uma gama tão completa! Mas eles
se fixaram justamente nesse detalhe, nessa insignificância elevada à categoria de
coisa-mais-importante-do-mundo: o poder. Talvez caiba aqui um mea culpa. De certo
não lhes dei a suficiente atenção, ou não estive presente quando precisaram de mim,
ou então o contrário, quem sabe tenha sido um tanto superprotetor, tenham ficado
mimados... Desta vez, ficarei mais atento.
Tendo em vista que não foi possível, apesar das várias revisões efetuadas,

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

encontrar o ponto exato de ruptura que originou o declínio e a completa devastação do


planeta, comunico as ações que pus em prática desde então, bem como as decisões
tomadas acerca do futuro, imediato e de longo prazo:
1.
Lancei raios à superfície do planeta, com o objetivo de incinerar completamente
os corpos humanos. Com tal medida espero ter extinguido todo e qualquer resquício
de seqüência de DNA que pudesse, porventura, restabelecer a configuração genética
definidora da espécie Homo sapiens.
2.
Uma vez que a espécie humana se desenvolveu também, ainda que por longínquas
mutações, a partir das células primitivas que estiveram no ponto zero da vida no
planeta, decidi modificar um pouco as condições físico-químicas que possibilitaram
sua organização.
Desse modo, a atmosfera será, a partir de agora, assim constituída:
Nitrogênio 37%
Oxigênio 45%
Óxido de Carbono 9%
Vapor de Dripso 9%
O líquido universal, anteriormente chamado “água” deixa de existir, ocorrendo em
seu lugar o “dripso”, de fórmula molecular Li2F.
A distância do planeta ao Sol será reajustada para 120.000.000Km, visando ao
aumento da temperatura média, que deverá ser de 130ºC.
3.
Com o objetivo de acelerar o processo de recuperação da vida no planeta,
procedemos à fertilização in vitro de uma célula de Chorella pyrenoidosa, adaptando
a estrutura dessa alga às novas condições do meio. Uma vez atingido o número
suficiente de indivíduos para colonizar uma pequena quantidade de dripso, lançaremos
as algas ao planeta. O alto teor de clorofila dessas células deverá conduzir a um
desenvolvimento de espécies desprovidas de mitocôndrias, mantendo-se tão somente
a ocorrência de cloroplastos e, por conseguinte, substituindo-se definitivamente a
respiração por fotossíntese. Com isso, testaremos a hipótese de que a destrutividade
humana tenha sido conseqüência indireta do DNA mitocondrial.

As decisões acima descritas entram em vigor na data de sua publicação.

XP-466.7/9
Codinome: deus

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Guerrilha Urbana
Giselle Natsu Sato

foto por: Latuf, em Centro de Mídia Independente

Morava em um bairro cercado de favelas, velhas fábricas e prédios invadidos.


Minha casa ficava na rua principal em frente á estação de trem.
A padaria, farmácia, açougue e locadora fecharam após sucessivos assaltos. Um
bar era usado como ponto de encontro de traficantes .
Quando anoitecia poucos se atreviam a sair. Vivia ou me escondia em um subúrbio
carioca, minha casa antiga e reformada, obra de uma vida inteira. Não valia nada
no mercado. Muros altos e grades fortes mantinham o perigo afastado. Dois cães
vigiavam a frente da casa.
Um dia acordei sitiada. Os traficantes mandaram os ônibus parar de rodar ou
haveria quebra-quebra e incêndio. A delegacia recebeu reforços e as ruas principais
foram ocupadas por policiais. Toda população de sobreaviso escondida em suas
casas, aguardando o pior.
A primeira granada mandou um blindado pelos ares e iniciou a troca de tiros.
Moradores das favelas, crianças e idosos estavam na linha de frente e foram
atingidos.

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

Inocentes obrigados pelo tráfico a formar um cordão de isolamento humano para


dificultar a subida dos policiais.
Estranhamente a mídia estava muda. Não havia nenhum carro de reportagem e
os meios de comunicação continuaram a programação normal.
Alguma coisa estava errada, pensei enquanto ouvia artilharia pesada respondendo
ao fogo cruzado.
Meu alarme interno soou mais forte com a chegada dos helicópteros sobrevoando
as favelas que cercavam o bairro.
Algum tempo depois o exército chegava ao local com muitos soldados e até
tanques de guerra. Apavorada assisti a rua transformar-se em uma praça de guerra.
Muitos feridos, granadas e tiros de todos os calibres. Gritos e desespero. A situação
estava fora de controle e uma multidão descia as vielas das favelas ganhando as
ruas, com paus, pedras e tudo que pudesse servir como arma .
Enfrentavam a polícia que revidava com tiros. O exército e seus jovens e
inexperientes soldados não seguiram qualquer estratégia. O povo qual formigueiro
tomou conta de tudo e dominou a situação.
Eu havia subido na laje e acompanhei a cena aterrorizada, milhares de pessoas
corriam pelas ruas quebrando tudo.
As Forças Armadas sofreram graves baixas. Reforços chegaram por toda a
madrugada e pela primeira vez os canais de televisão informaram a gravidade da
situação.
Não havia mais nada a fazer, em todos os outros lugares da cidade a guerrilha
urbana estava sendo travada.
Muito mais que um simples confronto a provocação serviu para iniciar uma bem
articulada armadilha. As facções haviam unido forças para deflagrar a baderna.
Milhões de desempregados e excluídos foram atraídos para a luta.
Iludidos em suas causa políticas e sociais.
A cidade queimou e o pânico deu lugar á luta pela sobrevivência. Quem contava
com meios de transporte aéreo ou marítimo fugiu com toda a família. Aeroportos
ficaram congestionados assim como as principais saídas da cidade.
Todas as capitais estavam passando pela mesma situação e a falta de estrutura
não permitiu que o contra ataque fosse montado a tempo.
Dirigentes não se entenderam enquanto os oponentes mostraram todo o poder
da organização e revolta.
O país inteiro explodiu em incêndios e assassinatos. Hospitais foram destruídos,
mercados saqueados, sobreviventes procuravam abrigos e formavam grupos de
resistência em guetos improvisados sob escombros.
Pela tv assisti o desembarque de soldados americanos intervindo após negociações

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e pedidos de ajuda do governo brasileiro.


Não acreditei que um novo Iraque estava surgindo na minha terra.
Caças americanos riscaram nossos céus, mísseis apontando favelas e morros,
em questão de minutos tudo estaria acabado.
Assisti o caos, ouvi as explosões e os gritos dos desesperados. O Rio de Janeiro
aos pedaços, o povo brasileiro dividido em facções criminosas lutando contra o
governo.
Pensei na Amazônia, celeiro do mundo. Um esquema especial de proteção havia
sido montado e até paises Europeus e Orientais estavam participando.
A Amazônia não nos pertencia mais, havia sido declarada Área de Preservação
Mundial, assim como outros pontos considerados parte comum ao Planeta.
Muitos discordavam mas foi uma decisão unânime do Novo Conselho das Nações
Unidas. Regras e medidas emergenciais não são democráticas.
Os noticiários mostravam a situação sob controle. As Forças Armadas Americanas
e Brasileiras em comum acordo. Imagens de vários políticos retornando ao Brasil,
sorridentes e otimistas.
O governo mantinha o país sob controle e em nenhum momento a Soberania
havia sido ameaçada. A mensagem era clara em todos os canais de TV.
Houve uma seleção para o extermínio dos ‘’pontos nevrálgicos’’.
Estranhamente varreu as camadas mais pobres e problemáticas solucionando
vários problemas.
Anúncios e apelos para que a população confiasse em novos tempos não me
convenceram. Era hora de tomar uma decisão e eu não podia ficar escondida para
sempre. Em algum lugar deveria haver outras pessoas que como eu não estavam
conformadas com a entrega da nação.

Não sabia por onde começar, nem em quem confiar mas precisava ir em frente.
Pela primeira vez senti que havia uma razão para continuar viva.

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

Sobre os Autores da SAMIZDAT


Ana Cristina Rodrigues
Historiadora por formação e escritora por
vocação. Escreve desde os doze anos de idade,
porém digamos que começou em 2001 com fanfics
de Star Trek. Evoluiu e hoje é plenamente capaz
de escrever sem usar o cenário alheio, com vários
contos espalhados na web. Coordena a Fábrica
dos Sonhos, tendo organizado a primeira coletânea
desse grupo, Espelhos Irreais. Participa do projeto
Intempol, com o conto ‘Vida de Estagiária’ traduzido
no ezine argentino Axxon. Publicou em sites e zines
brasileiros, como Scriptonauta, Círculo de Crônicas, Scarium, Desfolhar, Blocos
Online, Somnium, e argentinos - além da Axxon, o zine Sinergia.Modera diversas
comunidades no Orkut sobre FC e Fantasia, tenta terminar um doutorado, escrever
um romance de ‘fantasia’, é a primeira mulher presidente do Clube de Leitores de
Ficção Científica, funcionária da Biblioteca Nacional e mãe do Miguel. E mesmo
assim, consegue tempo para namorar.

Carlos Alberto Barros


Paulistano, filho de nordestinos, desenhista desde sempre,
artista plástico formado, escritor. Começou sua vida profissional
como educador e, desde então, já deixou seu rastro por ONG’s,
Escolas e Centros Culturais, através de trabalhos artísticos
e pedagógicos – experiências que têm forte influência sobre
seus escritos. Atualmente, organiza oficinas de ilustração para
crianças, estuda pós-graduação em História da Arte e escreve
para publicações na internet.

http://desnome.blogspot.com

Denis da Cruz
Advogado, Servidor Público, marido de Elisa
e pai dos pequenos Lívia e Kalel. Escritor amador,
faz da literatura um agradável e despretencioso
passatempo. Mais detalhes, o leitor poderá flagrar
nos textos que serão apresentados na Samizdat,
afinal, já escreveu certa vez: “não sou nenhuma de
minhas personagens, mas sou todas elas vivendo ao
mesmo tempo”.
http://www.recantodasletras.com.br/autores/kzar

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www.samizdat-pt.blogspot.com

Giselle Sato
Giselle se autodefine apenas como uma
contadora de histórias carioca. Estudou Belas Artes
e foi comissária de bordo — cargo em que não fez
muita arte, esperamos. Adora viajar (felizmente!) e
fala alguns idiomas.
Atualmente se diverte com a literatura, participando
de concursos e escrevendo para diversos sites pela
net. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se a
textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes,
funcionando como um eficiente panorama da
sociedade em que vivemos, principalmente daquilo
que é comumente jogado para baixo do tapete pelos veículos de comunicação.
http://www.trilhasdaimensidao.prosaeverso.net/

Henry Alfred Bugalho


É formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em
Estética. Especialista em Literatura e História. Autor de
quatro romances e de duas coletâneas de contos.
Mora, atualmente, em Nova York, com sua esposa
Denise e Bia, sua cachorrinha.
www.maosdevaca.com

José Espírito Santo


Informático com licenciatura e pós graduação
na Faculdade de Ciências da Universidade de
Lisboa, trabalha há largos anos em formação
e consultoria, sendo especialista em Bases
de Dados, Sistemas de Gestão Transaccional
e Middleware de “Messaging”. A paixão pela
escrita surgiu recentemente, tendo no ano de
2007 produzido os livros “Esboços” (contos) e
“Onde termina esta praia” (poesia). Vive com a
família em Portugal em Alverca, uma pequena
cidade um pouco a norte de Lisboa.

http://www.riodeescrita.blogspot.com/

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Samizdat Especial 1 - abril 2008

Marcia Szajnbok
Médica formada pela Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, trabalha como psiquiatra
e psicanalista. Apaixonada por literatura e línguas
estrangeiras, lê sempre que pode e brinca de escrever de
vez em quando. Paulistana convicta, vive desde sempre
em São Paulo.

Samuel Peregrino
27 anos, cursando Letras e girando a Máquina! Toca com
a Libertália na ociosidade

http://www.diariosinacabados.blogspot.com/

Volmar Camargo Junior


Gaúcho. Formado em Letras pela
Universidade de Cruz Alta, não leciona por
sua própria vontade. Começou a namorar
via postal, e acabou trabalhando no Correio.
É casado com a bela Natascha, e com ela
mora em um cartão postal: Canela, na Serra
Gaúcha. Dividem o apartamento com Marie,
uma gata voluntariosa e cínica. Escreve por
prazer, e até agora não havia pensado em
uma razão para publicar.

http://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj

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