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CONSELHO EDITORIAL
Antonio de Pádua Bosi, Carla Luciana Souza da Silva, Gilberto Grassi Calil, Méri Frotscher
(Coord.), Petrônio José Domingues, Valdir Gregory
CONSELHO CONSULTIVO
Adriana Facina - UFF
Ana Lúcia Vulfe Nötzold - UFSC
Arno Alvarez Kern – PUC/RS
Astor Antônio Diehl - UPF
Bartomeu Meliá – Univ. Católica Assunción
Célia Calvo – UFU
Cristina Scheibe Wolff – UFSC
Dilma A . de Almeida – UFU
Edmundo Fernandes Dias – Unicamp
Eurelino Coelho UEFS
Gilmar Arruda – UEL
Heloisa de Faria Cruz – PUC/SP
Jaime de Almeida - UnB
João Klug - UFSC
Jorge Luiz Ferreira - UFF
José Fernando Kieling – UFPel
Jozimar Paes de Almeida – UEL
Marcelo Badaró Mattos – UFF
Mário Maestri - UPF
Osvaldo Coggiola – USP
Paulo Pinheiro Machado – UFSC
Paulo Roberto de Almeida - UFU
Paulo Zarth - Unijuí
Pedro Paulo Funari – UNICAMP
René Ernani Gertz – PUC/RS
Sidney Munhoz – UEM
Sílvia Helena Zanirato – UEM
Théo L. Piñeiro - UFF
Virgína Fontes – UFF
APRESENTAÇÃO
CONFERENCIAS
ARTIGOS
Virgínia Fontes2
Em primeiro lugar, gostaria de falar sobre minha imensa felicidade de estar aqui, na
Unioeste, Universidade com a qual mantenho estreito contato apesar de ser a primeira vez
que aqui venho. Participei desde os primórdios do convênio interinstitucional com a UFF,
mas não pude vir – por razões alheias à minha vontade – na época dos primeiros cursos.
Participei entretanto intensamente das atividades de orientação e de bancas de diversos
colegas daqui e tenho mesmo a impressão de já conhecer a cidade, através das dissertações
e teses que tive o prazer de acompanhar de forma bem próxima. Além desses espaços mais
formais e institucionais, ganhei também laços de grande amizade, construída em debates,
longas tardes e noites de estudo e em encontros festivos – com chopp e conversa, em
almoços coletivos e jantares animados. Assim, me sinto em casa... e faço questão de
mencionar, em especial, Carla Luciana Silva e Gilberto Calil, mais que amigos,
companheiros.
Agradeço pois a honra de estar com vocês neste VIII Simpósio em História que tem
um certo sabor especial, de vitória: comemoramos o novo Curso de Mestrado em História
da Unioeste, com votos de longa vida, de sucesso e, sobretudo, de coerência intelectual e de
defesa da Universidade Pública, laica, gratuita e de qualidade.
Vamos, pois, a nosso tema, História, poder e práticas sociais. Há muitas maneiras
de abordar as inúmeras questões que o tema suscita, assim como há diversos caminhos
teóricos para seu tratamento. Vou levantar algumas desses temas e problematizá-los um
pouco, de forma a que pensemos juntos sobre algumas dessas possibilidades, e, em seguida,
nos centraremos no primeiro ponto.
1
Conferência de abertura do VIII Simpósio em História da UNIOESTE – História, Poder e Práticas
Sociais, ocorrido entre 24 a 27 de outubro de 2005.
2
Professora do Programa de Pós-Graduação em História da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Email: vfontes@superig.com.br.
1. A relação entre a História como uma prática social e o poder. Que laços unem
nossa prática, a de historiadores, com o poder? Podemos partir de dois
caminhos: o da história de nossa disciplina e o das maneiras pelas quais os
historiadores lidam com o poder. Retornaremos a este ponto mais adiante.
2. As concepções tópicas do poder. Há uma forte tendência a conceber o poder
como se estivesse “acima” e separado da vida social, enquanto as práticas
sociais estariam figuradas como se estivessem “abaixo”. Essa disposição tópica
caracteriza o pensamento liberal, que vê o poder como resultando de pactos (ou
do grande pacto, o Leviatã) que, uma vez instaurado, se autonomizaria frente ao
conjunto das demais relações sociais. Pensar o poder, ao contrário, nos parece
exigir pensar as relações sociais que não somente o instauram, mas que
permanentemente o reconstróem. É nas relações sociais – econômicas, políticas,
culturais, organizativas, de cotidiano – onde se implanta e se exerce a
desigualdade como condição de existência, que se originam os meios de coerção
para assegurar a desigualdade.
3. O poder externalizado. Derivada, em grande parte, da modalidade anterior,
alguns tendem a pensar o poder isoladamente do conjunto (da totalidade) das
relações sociais. Muitas vezes nos deparamos com interpretações do poder como
se fosse externo às relações sociais (providencialismo, por exemplo); nesse viés,
o poder constituiria uma “esfera própria” ou “específica” de existência, sendo
abordado isoladamente. Aqui se apóia a suposição de senso comum de que tudo
‘derivaria’ do poder, que se torna, assim, a-histórico, isento de processo, numa
seqüência linear de auto-desdobramento infinito.
4. O desafio histórico de explicar e compreender o poder na totalidade histórica.
Uma quarta possibilidade seria tratar o desafio que significa para nós, os
historiadores, explicar (e compreender) os processos históricos que instauram
formas específicas de poder derivadas das relações sociais – e portanto das lutas
e das práticas. Enfrentar este desafio exige superar as linearidades, quer sejam
sociológicas (que às vezes o analisam como instantâneos fixos ou como
desdobramentos lineares), quer sejam temporais (como concebem a história
como um longo fio de tempo contínuo, esquecendo suas contrações, acelerações,
rupturas bruscas e, também, as persistências do velho no interior do novo). Este
desafio exige pensar a totalidade das relações sociais (a objetividade e a
subjetividade nas quais nos constituímos), analisar o chão social no qual toda e
qualquer forma de poder lança raízes. Exige identificar as formas cristalizadas
que, por parecerem naturais e corriqueiras, permeiam toda a vida dos seres
singulares, como as formas diferenciadas dos Estados e sua íntima conexão com
as diferentes maneiras de assegurar, consolidar e legitimar a dominação de
pequenos grupos sobre a maioria, assentada sobre a exploração. Mas também
exige decifrar a razão pela qual essa dupla, dominação/exploração se apresenta,
muitas vezes, como seu próprio contrário! Como se fosse vontade subjetiva
externa à história (vontade divina), ou, mais complexo ainda, como se fosse o
próprio desejo dos dominados e dos explorados – o de submeter-se “livremente”
ao jugo social que lhes é imposto. Esta é a característica mais perversa do
capitalismo, ao empurrar, pela massiva expropriação na qual se sustenta e da
qual retira sua seiva (o sobretrabalho), a imensa maioria da população para uma
procura incessante de trabalho (expresso como se fosse emprego, contrato
estável, direitos), acreditando que o faz... “livremente”. Esta imagem alterada,
falsificada de si, apenas apresenta a percepção de uma parte da sociedade –
percepção daqueles que se beneficiam desse processo – como se expressasse a
realidade efetiva da grande maioria. Este movimento perverso – e complexo –
aparece hoje também na questão democrática, onde o fato de votar parece querer
responsabilizar a grande maioria pela expropriação política que lhe retira seus
direitos, a começar pelo próprio contrato de trabalho, espraiando-se sobre a
destruição de conquistas de cunho universalizante – saúde, educação, habitação,
alimentação, dignidade, direito à vida, etc...
Como se pode observar, qualquer das vias que tomemos para abordar o tema implica
desafios similares. Retornemos, pois, ao primeiro ponto, para aprofundá-lo um
pouco mais, relacionando a prática social dos historiadores ao poder.
1. A relação entre a História como uma prática social e o poder
Como todos sabem aqui, o termo história tem inúmeros significados, é polissêmico
e essa riqueza de significados deriva do intenso uso social – e da importância - que adquiriu
com o tempo. Como exemplos, a palavra história pode designar namoro (“Fulano está de
história com Sicrana”); pode significar objeto ou coisa (“que história é essa na sua
roupa?”); confusão, complicação (“não me venha com histórias”). No dicionário Houaiss,
estão listadas 15 acepções... Para nosso intuito, podemos classificar as acepções
diretamente ligadas às atividades dos historiadores em dois grandes grupos: no primeiro,
nos referimos aos processos sociais passados ou em curso; no segundo grupo, designamos a
atividade de conhecimento que se exerce sobre o conjunto daqueles processos. No primeiro
sentido, a matéria prima e, no segundo sentido, a atividade (a “fábrica”) de explicações. No
primeiro sentido, o movimento no qual estamos imersos; no segundo sentido, a procura da
reflexão sobre as grandes linhas e as grandes direções nas quais esse movimento nos
impele. Nosso trabalho, dos historiadores, nos move a nos interrogar sobre o significado
desse fluxo do qual participamos, assim como sobre as possibilidades que se descortinam
para nós, como seres coletivos que somos.
Por exemplo, em nossos dias podemos nitidamente identificar a catástrofe social e
humana que se abate sobre nós. Vivemos sob relações sociais que realizam também uma
destruição brutal (mas extremamente lucrativa) da própria natureza. Esse processo hoje
envolve inclusive privar de água a maioria da população do planeta, através da privatização
das fontes e mananciais e de sua mercantilização. A miséria social, a degradação humana, a
destruição dos elos afetivos, a mercantilização das almas (corações e mentes) e a inutilidade
da grande maioria dos objetos mercantis dos quais estamos cercados são características que
se impõem à nós, de forma assustadora. Porém nossa reflexão deve ir adiante, analisando as
formas de construção histórica dessa barbárie, identificando as possibilidades existentes de
exercício de nossa historicidade efetiva e a capacidade de transformação social que
subsiste.
As duas atividades – viver historicamente e pensar e escrever a história – não estão
totalmente imbricadas. As formas de escrever, pesquisar, explicar, pensar e sentir a história
se alteram segundo os períodos e momentos históricos e segundo o ponto de vista social no
qual nos localizamos.
Nossa forma contemporânea de pensar a história (tanto o processo real quanto a
disciplina histórica) nasceu estreitamente ligada com a justificativa do poder e dos
poderosos. Em outros termos, a disciplina acadêmica história se configura, desde os
primórdios renascentistas (com Maquiavel, O Príncipe e, principalmente, em sua História
de Florença e Guicciardini, História da Itália e História de Florença – esta última
publicada apenas em 1859), muito próxima ainda da genealogia das famílias reais (traços
marcantes dos textos, digamos proto-históricos anteriores) mas, sobretudo, como uma
reflexão sobre o poder, ligando-o diretamente ao Estado e aos homens que encarnavam este
poder, os príncipes e os guerreiros.
Com muitas oscilações, a disciplina História se consolidaria somente no século XIX,
quando se constituiu como um corpus de conhecimentos incorporando a crítica erudita,
uma definição, ainda que muito frágil e descritiva, do que poderia ser sua matéria-prima (os
“fatos históricos”) e uma profunda desconfiança com relação à filosofia (e, portanto, com
relação à explicação e à compreensão). Lastreada na descrição e, em sua forma mais
literária, em narrativas épicas, permaneceria muito próxima das grandes questões suscitadas
a partir do poder, pensado como algo em si. A História, concebida dessa forma, seria a
disciplina avalista da construção do Estado-nação moderno (juntamente com o direito),
investigando no passado as linhagens do “povo”, que doravante se impunha, ao lado das
linhagens nobiliárquicas. Encontramos, assim, grandes relatos dos povos anglo-saxônicos,
dos gauleses, dos germânicos como protagonistas de uma unidade específica cujo percurso
era apresentado de forma linear, congregando uma matriz histórica (temporal), um
território, uma forma de ser (identidade) e uma unidade política que figurava como se
tivesse sido, desde sempre, a meta a atingir. A Revolução inglesa e, principalmente, a
Revolução francesa, com a irrupção do povo comum nos processos políticos (isto é, dos
não-nobres, dos burgueses, mas também do “populacho”, do que era até então apontado
como a “ralé”), exigia sua incorporação no grande painel histórico até então reservado às
famílias nobres. A construção das nações seria, em parte, obra de historiadores. Escrever a
nação era inscrevê-la na História. As nações resultavam de um processo complexo, fruto de
uma intensa aspiração à igualdade, expressa nas reivindicações populares e,
simultaneamente, derivavam de tradições inventadas, incorporando subalternamente a
grande maioria. A nação, lugar de luta, se mirava numa tradição inventada (e produzida
também por historiadores), onde uma comunidade de desiguais inventaria uma igualdade
fictícia, a de “nacionais”.
O estado burguês moderno que se consolidava no século XIX extraía sua
legitimidade, em grande parte, da nova disciplina que ele apoiava, sustentava e difundia,
através, por exemplo, da criação dos Institutos Históricos nacionais (implantado no Brasil
em 1838). Os historiadores tinham o augusto papel de naturalizar a nação e de demonstrar
sua indissociabilidade do Estado. Em muitos casos, isso implicou na destruição de
culturais regionais, cujo caso mais evidente foi o da Itália. Para o tema que nos interessa, o
poder, vale lembrar que o Estado era considerado como seu lugar “natural”, o condutor
“natural” da nação, como sua expressão imediata. Assim, a nova disciplina reatava os laços
com as tradições anteriores, agora alargadas – a História era, sobretudo, a história dos
homens no poder do Estado. Não mais suas genealogias nobiliárquicas, mas as estratégias e
ardis dos grandes homens, sua psicologia e suas batalhas. O povo, dignificado como
“origem”, permanecia como mero coadjuvante. Uma prática social – dos historiadores –
distanciada das grandes massas e próxima dos aparatos governamentais produzia a
legitimação dos Estados paralelamente à consolidação de tradições nacionais. Uma história
de base eurocêntrica, colonizadora e “civilizadora” exaltava os países centrais (e suas
“raças”), enaltecendo seus “povos” os quais, entretanto, deveriam manter-se distantes dos
cenários de poder nos quais ela se desenvolvia.
Num século como o XIX, povoado de revoltas populares e de grandes revoluções
(como a Comuna de Paris, em 1871), essa maneira de apresentar a história seria fortemente
contestada pelos movimentos operários e populares. Em seguida, essa crítica seria
consolidada pela poderosa reflexão de Marx.
Abria-se uma profunda cisão no mundo dos historiadores, agora já plenamente
profissionais. O eixo principal até então dominante, a narrativa dos grandes feitos, dos
grandes homens, a exaltação abstrata das qualidades dos povos (os alemães, os franceses, os
ingleses), que se completava com a exposição dos supostos vícios e da degradação dos
povos subalternizados3, seria fortemente questionado. Uma nova prática social, feita por
3
. Não se pode esquecer que, enaltecidos enquanto origem nacional, os setores populares (mesmo os
“nacionais”) continuavam desconsiderados, apresentados como brutos, incompetentes, incapazes de
dirigir-se, devendo depender, portanto, de seus governantes.
grupos sociais concretos, que se organizavam e combatiam as práticas sociais naturalizadas
da exploração e da produção de desigualdades, inclusive simbólicas (a própria classe
operária, então reunida em enormes instalações fáusticas), demandava e exigia outra forma
de pensar a história. Esta se evidenciaria doravante como um processo de transformação,
resultante não da vontade singular dos dirigentes, mas do caudal volumoso das inúmeras e
anônimas lutas sociais. Pensar historicamente passava a exigir a compreensão da forma
social da dominação de classes, como lugar de lutas e de conflitos no interior da própria
sociedade (e não apenas de batalhas épicas entre indivíduos singulares com seus projetos de
poder). O mundo da economia, até então reservado dos olhares populares como se fosse um
lugar técnico, se evidenciava como encharcado de política. A fala técnica (e cada vez mais
matematizada) da economia era desnudada como o discurso específico da ocultação das
relações sociais que sustentavam a dominação de classes. Expor a economia como um
concentrado de relações sociais, como lugar de exploração social e de produção (e não um
mundo feito unicamente de “coisas”), resultava de – e impunha – uma crítica completa do
que era exibido como “necessidade”4.
Agora, o próprio poder (o Estado) deveria ser explicado, não se limitando mais à
fonte de explicação. Marx demonstrava claramente que o poder não é uma coisa em si, mas
deriva da exigência de coerção homogeneizada (e naturalizada por seus ideólogos)
engendrada pelas diferentes formas históricas de extrair sobretrabalho, e, para tanto, de
organizar a vida social. Para Marx, o poder deriva portanto da organização da dominação
de classes, ou do modo de produção (mais precisamente, dos modos de ser, maneira mais
próxima de sua formulação).
A prática dos historiadores, ou a atividade histórica como prática social tornava-
se, também, lugar explícito de luta social. O século XX demonstraria o quanto essa luta
atravessaria o mundo dos historiadores e, a rigor, todo o conjunto das disciplinas sociais. A
neutralidade fictícia de uma descrição dos fatos se mostrava como seleção parcial e
arbitrária.
4
Podemos entender isso com um exemplo anacrônico, mas tristemente pertinente: o episódio da
“blindagem” de Henrique Meirelles e da defesa da “independência” do Banco Central. Um jornal como O
Globo defendeu explicitamente a intocabilidade legal do dirigente do Banco Central como forma de
assegurar a manutenção de uma política econômica que não mais se submetesse à política na qual todos
podem, ainda que subalternamente, participar. O interesse dos setores financeiros dominantes foi assim
apresentado como necessidade social.
Não poderemos fazer, neste curto espaço de tempo, uma longa apresentação das
grandes questões da historiografia do século XX, mas uma das mais importantes polêmicas
foi a que opôs uma ciência histórica neutra e apassivadora a uma história engajada e
fortemente crítica. Basta lembrar dos primórdios dos Annales5, quando Marc Bloch
aprofundou, a partir de uma leitura muito sagaz das classes sociais, a compreensão do
mundo medieval e de suas formas de ser; quando os primeiros textos de Lucien Febvre
apontam para a materialidade das relações culturais (como o problema da descrença em
Rabelais).
Os Annales, porém, de local de luta pelo reconhecimento de uma leitura histórica
engajada, totalizante, explicativa e crítica se transformaram numa instituição forte e
consolidada, espécie de espelho no qual se mirava a historiografia francesa contemporânea.
Plenamente integrados à lógica do Estado francês, num viés republicano (contra a força
ainda remanescente da Ecole de Chartes e de seu viés conservador e, até mesmo,
monarquista) paulatinamente perderiam sua força contestadora e crítica. Gradualmente, o
foco das análises se modificaria, para instaurar uma espécie de “revolução permanente” de
técnicas de pesquisa que se distanciou grandemente dos grandes questionamentos sobre o
conjunto da vida social que o originaram.
Permito-me transcrever uma citação um pouco extensa de Pierre Bourdieu, um dos
filhos da EHESS – Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, instituição sob o controle
do grupo dirigente da revista Annales, num texto redigido no final dos anos 70:
...a classe dominante “nada tem a esperar das ciências sociais, a não
ser, no melhor dos casos, uma contribuição particularmente preciosa para a
legitimação da ordem estabelecida e um reforço do arsenal dos instrumentos
simbólicos de dominação. (...) o que está em jogo na luta interna pela autoridade
científica no campo das ciências sociais, isto, o poder de produzir, impor e
inculcar a representação legítima do mundo social, é o que está em jogo entre
as classes no campo da política” (...) “A idéia de uma ciência neutra é uma
ficção, e uma ficção interessada, que permite fazer passar por científico uma forma
neutralizada e eufêmica, particularmente eficaz simbolicamente porque
particularmente irreconhecível, da representação dominante do mundo social.
Desvendando os mecanismos sociais que asseguram a manutenção da ordem
estabelecida, cuja eficácia propriamente simbólica repousa no desconhecimento de
5
Originalmente, Annales d’histoire économique et sociale; depois Mélanges d’histoire sociale; em seguida
Annales. Economies, Sociétés, Civilisations (1945-1993) e, finalmente, após 1994, Annales. Histoires,
Sciences Sociales.
sua lógica e de seus efeitos, fundamento de um reconhecimento sutilmente
extorquido, a ciência social toma necessariamente partido na luta política.”6
Essa luta é ainda hoje constitutiva do mundo das práticas historiográficas e sociais
dos historiadores. Utilizando termos próximos aos de Bourdieu, o que divide as ciências
sociais (e a história) é a admissão – ou não – da divisão social e, portanto, da luta social.
Assim, enquanto para alguns a vida social é local de harmonia (visão irenista) ou da
sobreposição de indivíduos, para outros é lugar de divisão e de luta de classes, divisão
funda e instauradora de uma determinada maneira de ser, de existir e de pensar que conflita
com a vida real da maioria, com as experiências e processos efetivos de sua vida. Essa
divisão conforta a exploração através reprodução generalizada de seus mecanismos de
dominação, como a própria violência simbólica.
No entanto, essa luta constitutiva das ciências sociais – e da história, ou da
historiografia - vem mudando de forma, se alterando, se metamorfoseando nas últimas
décadas.
Antes porém de comentarmos alguns dos recentes desdobramentos dessa complexa
relação entre prática historiadora e poder, vale retornar um pouco ao campo do marxismo e
a algumas de suas dificuldades. A revolução soviética, ao entrar na fase de cristalização e
de enrijecimento do período stalinista, produziu também seus historiadores oficiais,
similares aos dos países capitalistas. Mais grave ainda, a mitificação do poder stalinista
forjava uma caricatura do próprio marxismo. Este era brandido como teoria necessária e, ao
mesmo tempo, esterilizado. Suas exigências críticas eram podadas e, com isso, uma espécie
de tecnicismo analítico de manuais se generalizava no mundo soviético. A reflexão
histórica produzida dessa forma cumpria uma função legitimadora – e não mais
questionadora – ainda que falando em nome do marxismo. O uso do referencial do
marxismo, amputado de sua força profundamente subversiva, tanto intelectual quanto
socialmente, abriria espaço para ecletismos diversos, que ocorriam nos países capitalistas
mas também nos pós-revolucionários, gerando marxismos pragmáticos, economicismo,
messianismo, politicismos, que conviviam perfeitamente (e disputavam espaço) com os
ecletismos fundados em outras áreas teóricas. Os embates tendiam a se limitar à ocupação
6
P. Bourdieu, O campo científico. In: Bourdieu, P. Sociologia. SP, Ática, 1982. (p. 147-8). Itálicos do autor,
PB; negritos VF.
de espaços no interior das universidasdes e academias, perdendo sua força social. Se
academicizavam e se tecnificavam (pragmatismos diversos), ou, em outra vertente, se
esterilizavam na pura erudição. Este não foi, felizmente, um processo monolítico. Ao lado
de uma vertente que se fossilizava, brotavam novos e originais pensadores, em diferentes
regiões do mundo e que, partindo de plataformas similares (com base em Marx),
descortinavam novos horizontes.
Vou referir-me apenas a dois destes pensadores. O mais importante, sem dúvida, foi
Antonio Gramsci, com sua arguta denúncia do reducionismo dos manuais e,
principalmente, do mecanicismo e do economicismo no interior do marxismo. Não era
historiador de ofício. Reintroduzia a cisão entre o mundo oficial dos historiadores e a
reflexão histórica. Podemos dizer que Gramsci (como Marx), é um historiador sem o ser.
Refaz e reconstrói a explicação da vida social italiana (elabora a categoria de
transformismo; renova a reflexão dialética apresentando a relação histórica entre o norte e o
sul da Itália); esclarece de maneira incisiva as modalidades de organização do estado
capitalista contemporâneo, pensando de forma original a questão da totalidade (hegemonia
e coerção; sociedade civil e sociedade política); inaugura a compreensão do
“americanismo”, cuja hegemonia era então incipiente. Mantendo-se muito próximo às
reflexões de Marx e de Lênin, não os toma como textos canônicos e, assim, analisou a
maneira como o Estado – e seu aparato – se erigia a partir da vida social, a partir da luta
entre as classes, das formas organizativas que a elas se ligam, da produção de visões de
mundo e da cultura. Mostrou como as classes se articulavam na sociedade civil e como o
Estado se cristalizava como relação entre forças profundamente desiguais, nascidas no chão
fundamental da produção da vida (“a hegemonia nasce da fábrica”).
Como exemplo de historiador de ofício que retomou explicitamente Marx e Gramsci
para sua prática de se trabalho, um dos mais importantes foi E. P. Thompson. Mas – quiçá
para fugir do oficialismo a que muitos historiadores são induzidos – Thompson sempre
recusou o mundo das academias, sendo um professor do setor de extensão (aulas para
adultos e para operários), concentrando suas pesquisas nos processos de constituição das
classes sociais como modo de ser (priorizando a experiência como forma de articulação
entre objetividade e subjetividade). Em Thompson, a questão do poder liga-se diretamente
às classes sociais, às formas de subordinação do mundo do trabalho.
* * *
7
O artigo de Fukuyama, publicado em 1989, foi difundido em todo o mundo pela John M. Olin
Foundation, instituição estadunidense que gasta milhões de dólares para favorecer um giro à direita no
ensino das ciências sociais e que financiou também François Furet, historiador francês contestador da
Revolução francesa e que foi um dos diretores de Annales, em sua nova etapa. Ver Fontana, J. La historia
después del fin de la história. Barcelona, Ed. Crítica, 1992, p. 7.
que a tudo produz e sustenta. Nos arriscamos a não ver o fundamento das divisões sociais
na extração crescente de sobretrabalho para nutrir classes sociais dominantes e conter a
rebeldia social. Não devemos, pois, passar ao largo das lutas e práticas transformadoras,
assim como do movimento histórico que efetivamente exercem. Nosso desafio é o de
mostrar as entranhas, mostrar como se enraízam, na vida social e na história, as formas
específicas e peculiares de que se veste o poder de classes em cada momento, a maneira
como o convencimento e a coerção revestem e aderem às transformações no mundo do
trabalho. Vivemos um dos momentos de maior subalternização do trabalho e de intensa
extração real (e não fictícia, nem resultante de uma forma de ver o mundo) de mais-
trabalho, inclusive sob formas de trabalho compulsório, de tráfico de mulheres e de
crianças, de trabalho infantil, além de uma cascata hierarquizada de subordinação, que vai
desde as formas contratuais até as modalidades mais precarizadas de trabalho.
Se tivermos a ousadia de reconhecê-lo, talvez tenhamos a capacidade de combatê-lo.
Nosso papel social é difícil e muitas vezes ambíguo. Nossa relação é ao mesmo tempo
subordinada (como trabalhadores) e combativa, se pensarmos em nossa função tal como
Gramsci pensou o papel dos intelectuais. Somos responsáveis pela socialização do
conhecimento e das lutas que o atravessa, somos organizadores de uma forma de ver e
pensar e sentir o mundo. Quem sabe, assim, conseguiremos avançar na explicação e na
compreensão de nosso mundo, de sua historicidade transformadora necessária e, dessa
forma, sejamos mais que historiadores, mas também sujeitos plenamente históricos.
Bibliografia adicional:
Anderson, Benedict. Nação e consciência nacional. (Comunidades imaginadas). SP, Ática,
1989.
Anderson, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. Porto, Afrontamento, 1976.
Bloch, Marc. La société féodale. Paris, Albin Michel, 1968.
Duayer, M. e Moraes, Maria Célia M. “Neopragmatismo: a história como contingência
absoluta”. Tempo. Revista do Departamento de História da UFF. Vol. 4, 1997.
Fontana, Josep. – Historia, analisis del pasado y proyecto social. Barcelona,
Critica/Grijalbo, 1982.
Foucault, Michel. Microfísica do poder. 5ª ed., Rio, Graal, 1985.
Gramsci, A. Cadernos do Cárcere. Rio, Civilização Brasileira, 2001 a 2002 (6 volumes).
Hobsbawm, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780. Rio, Paz e Terra, 1990.
Hobsbawm, Eric J. e Ranger, T. A invenção das tradições. Rio, Paz e Terra, 1997.
Lefebvre, Georges – El nacimiento de la historiografia moderna. Barcelona, Martinez-
Roxa, 1974.
Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos (Manuscritos de Paris). In: Os Pensadores.
SP, Nova Cultural, 1982.
Meszáros, I. Para além do capital. SP. Boitempo, 2002.
Thompson, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio, Paz e Terra (3 volumes).
As instituições de proteção do patrimônio cultural:
gestão política e participação comunitária8
Resumo
O conceito “patrimônio cultural” passou por transformações de sentido nos últimos
anos. De um discurso patrimonial referido aos grandes monumentos artísticos do passado,
interpretados como fatos destacados de uma civilização, se avançou para uma concepção do
patrimônio como o conjunto dos bens culturais que são referentes das identidades coletivas.
Ele agora compreende as múltiplas paisagens, arquiteturas, tradições, festas, gastronomias,
expressões de arte, documentos, sítios arqueológicos, ritos, músicas, expressões
reconhecidas e valorizadas pelas comunidades e organismos governamentais na esfera
local, estadual ou nacional. Essa nova concepção não pode deixar de ser associada ao
processo de “mundialização” e a tentativa de homogeneização de hábitos e consumos em
face ao vertiginoso ritmo de transformação e trocas que se processa na contemporaneidade.
Os bens que hoje formam o patrimônio têm permitido a cada sociedade reconfigurar seus
elementos de identidades e de pertencimento a um tempo e lugar. Esses bens conformam o
patrimônio de uma comunidade a partir de diversas perspectivas, fortalecem o sentido de
pertencimento e impulsionam a participação coletiva ao recompor o tecido social, recuperar
a herança e definir os caminhos do que virá. Com base nesses preceitos neste texto me
proponho a apresentar algumas reflexões em torno da gestão do patrimônio cultural, que
permitam a participação comunitária e seu entendimento como um instrumento importante
para a construção da cultura de cidadania.
Introdução
Por patrimônio cultural entendem-se os diferentes modos de vida e de expressão dos
seres humanos, as manifestações materiais e imateriais que afirmam e promovem a
identidade cultural de um povo.
8
Texto-base da conferência de encerramento do VIII Simpósio em História da UNIOESTE – História,
Poder e Práticas Sociais, ocorrido entre 24 a 27 de outubro de 2005.
9
Professora da Universidade Estadual de Maringá. E-mail: sizani@uol.com.br.
Esse entendimento, bem como as medidas de proteção destinadas a salvaguardar o
patrimônio são resultantes de uma formulação lenta e gradual da cultura no mundo
ocidental. É claro que se pode encontrar desde a Antiguidade objetos valorados e
conservados, bem como medidas jurídicas para sua proteção, advindas de motivações de
ordem cultural, política, econômica e religiosa. Todavia, uma reflexão crítica acerca dos
valores históricos, artísticos e culturais dos bens considerados patrimônio e a busca de
meios para sua conservação ocorreram em épocas mais recentes.
Foi em finais do século XVIII, sobretudo a partir da Revolução Francesa, que se
elaborou uma outra sensibilidade quanto a proteção e conservação de bens dotados de valor.
Se no decorrer da Revolução houve a depredação dos signos pertencentes ao passado
monárquico, ela instigou, por outro, o desejo de conservação de elementos considerados
‘testemunhos irrepreensíveis da história’, os monumentos que faziam referência à memória
do país, considerados então de interesse público, cujo conhecimento e desfrute deveria ser
disposto a todos os cidadãos. Buscaram-se então ações políticas para a conservação desses
bens, entre as quais uma administração encarregada de sua conservação e da preparação dos
instrumentos jurídicos e técnicos para esse fim (CHOAY, 2001, p. 95).
Assim, a partir do século XIX podem ser encontradas as primeiras medidas para a
proteção do patrimônio e o surgimento dos conceitos modernos de conservação e
restauração, forjados diante da necessidade de se evitar novas destruições.
O século XIX também transformou o conhecimento histórico em conhecimento
científico e, nesse processo, os monumentos considerados por seus valores históricos,
cognitivos, econômicos e artísticos, passaram a ser valorados principalmente pelo valor
histórico, que se tornou preponderante para o reconhecimento de um bem como um
patrimônio. Os monumentos tornaram-se testemunhos das etapas do desenvolvimento
evolutivo da humanidade (GONZÁLEZ-VARAS, 2003, p. 37-38).
Naquele contexto, a atribuição de valor ao monumento amparava-se em critérios
estéticos ou históricos. As obras de arte eram consideradas dotadas de muito mais valor do
que um objeto de uso utilitário, com isso, as produções das classes subalternas raramente
apareciam como bens cuja conservação devesse ser contemplada, o que favoreceu a perda
de inúmeros objetos considerados não relevantes (IDEM, pp. 43-44). O bem considerado
patrimônio era preservado como uma figura museal, isolada de uso, disponível apenas para
a contemplação (CHOAY, 2001, p. 181).
A aceleração da urbanização nas décadas iniciais do século XX mudou o
entendimento a respeito do que é uma cidade. Esta passou a ser compreendida como um
tecido vivo, com espaços que podem ser conservados e, ao mesmo tempo, integrados à
vida, conciliando sua morfologia com novos usos. A cidade tornou-se então um nível
específico da prática social na qual se vêm paisagens, arquitetura, praças, ruas, tradições,
festas; um lugar de expressão da memória coletiva, de identidades compartilhadas pelos
diferentes habitantes que a integram e que não é um todo homogêneo e articulado, mas
antes um mosaico muitas vezes sobreposto, que expressa tempos e formas diferenciadas de
viver (IDEM, p. 200-236).
A compreensão de que a cidade é composta por edificações e por pessoas implicou
na reformulação do conceito de patrimônio, uma vez que nos bens a serem preservados se
incorporou o valor cultural, a dimensão simbólica que envolve a produção e a reprodução
das culturas, que se expressa nos modos de uso dos bens.
A partir da segunda metade do século passou a haver um interesse cada vez maior
aos aspectos nos quais se plasma a cultura de um povo. As línguas, os instrumentos de
comunicação, as relações sociais, os ritos, as cerimônias, os comportamentos coletivos, os
sistemas de valores e crenças passaram a ser vistos como referenciais culturais dos grupos
humanos, signos que definiam a cultura de um povo e que necessitavam de salvaguarda.
Frente a isso se ampliou a noção de monumento histórico como elemento condensador de
valores, que expressa as capacidades criativas de uma cultura. Surgiu assim a definição de
bem cultural como a manifestação ou testemunho significativo da cultura humana
(GONZÁLES-VARAS, 2003, p. 44).
A ampliação do conceito permitiu a compreensão de que os signos das identidades
de um povo não podem ser definidos tendo como referência as culturas ocidentais, assim
como a cultura campesina não pode ser vista como menor em face às atividades industriais.
O reconhecimento da mudança conceitual se fez presente nos fóruns internacionais
destinados a refletir sobre a preservação de bens culturais ou patrimônio cultural. A
Convenção de Haia de 1954, patrocinada pela UNESCO, empregou o conceito dessa forma.
A partir de então ele passou a ter o sentido de objetos e estruturas herdados do passado,
com valores históricos, culturais e artísticos, bens que representam as fontes culturais de
uma sociedade ou de um grupo social e que podem ser materiais ou imateriais.
Ao longo das duas décadas seguintes, a essa definição incorporaram-se as noções de
cultura e natureza, compreendidas como complementares e formadoras das identidades dos
povos. O patrimônio cultural converteu-se no conjunto de elementos naturais ou culturais,
materiais ou imateriais, herdados do passado ou criados no presente, no qual um
determinado grupo de indivíduos reconhece sinais de sua identidade (CASTILLO RUIZ,
1998, p. 22).
Ao mesmo tempo em que houve essa mudança, houve também um processo de
aceleração da ocidentalização, “uma americanização dos costumes, que caracterizam uma
maneira de viver, de produzir, de consumir, de vestir, de comer e de dilapidar” (MARIN,
2005) Não obstante, a ocidentalização do mundo não deixou de ser sempre confrontada
com a resistência cultural. A valorização da diversidade cultural surgiu então como a
expressão positiva de um objetivo geral que procura a valorização e a proteção das culturas
do mundo, frente ao perigo da uniformização.
A questão que passou a ser colocada foi a de como proteger os valores ancestrais da
diversidade cultural do “rolo compressor” da padronização cultural. Isso porque esse
mesmo processo de globalização acarretou o afastamento do Estado das atribuições que
lhes eram próprias, entre as quais a gestão dos bens culturais.
As transformações políticas, sociais e econômicas havidas em diferentes partes do
mundo tornaram bastante complexa a manutenção da responsabilidade do Estado em gerir e
conservar os bens culturais. Essa complexidade, assim como a privatização crescente,
acabou por acarretar uma necessidade de compartilhar responsabilidades e envolver outros
segmentos da sociedade nessa tarefa. Nesse contexto, a conservação do patrimônio natural e
cultural passou a ser reconhecida como um componente essencial do processo de
planejamento integrado, ciente de que os múltiplos campos de interesse e as conseqüentes
situações de conflito que envolve a gestão, não tornam fácil essa empreita.
Baseada na compreensão dessas transformações e na necessidade de redirecionar a
gestão dos bens culturais de uma forma mais eficaz, a Constituição Brasileira de 1988
estabeleceu as competências locais para a gestão do patrimônio. Ficou definido que o
município pode instituir legislação própria que proteja os bens históricos e regulamente o
seu uso e conservação.
Assim, conforme o art. 30, inciso IX, compete ao município “promover a proteção
do patrimônio histórico – cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora
federal e estadual”. A partir desse dispositivo o poder local pode estabelecer políticas para
gerir a conservação dos
I - conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
ecológico e científico;
II - museus, as casas de cultura ou de memória, os arquivos, as obras, objetos,
documentos e edificações que reflitam e registrem a história, a cultura e a arte do povo e da
região;
III - criações científicas, tecnológicas, artísticas, artesanais e folclóricas, os
monumentos e estátuas erguidas em praça pública;
IV - festas religiosas populares e as manifestações profanas peculiares ao
Município;
V - bens tombados por Lei Municipal e Estadual, localizados dentro do Município.
Análise e Avaliação
Monitoramento e Controle
Negociação
Esta tarefa, por sua vez, compreende a mediação dos conflitos, dos interesses
e objetivos dos atores envolvidos com o patrimônio cultural da cidade. Nele se
empregam técnicas de construção de consenso visando parcerias para tornar o
planejamento efetivo e eficaz. Pode ser executada mediante a criação legal de um
Fórum de proteção dos bens culturais da cidade, composto por representantes e por
todos os atores envolvidos no processo e pela adoção dos termos negociais da
parceria.
Proposições
Com.
Fórum de Munic.
Gestão dos Patr. Cult.
Bens Cult.
A tarefa dos organismos propostos por esse arranjo é a de integrar todos os setores da
administração municipal que atuem em prol dos bens culturais e assim promover
melhorias no sistema de gestão das atividades voltadas para esse fim.
Referências bibliográficas
ABSTRACT: It Worries, in this article, with the study of the construction of one
invented tradition, ‘Annales School’, in France, by the maintenance strategies of a
historiographical hegemony, with the ones that they were known as the third generation
of the group in the 70ths and 80ths.
KEY WORDS: Annales Magazine; School of the Annales; founder report; French
historiography.
10
Este texto é uma versão reformulada de parte do primeiro capítulo de uma pesquisa concluída no final de
2003. Foi elaborada entre 1998 e 2002, e se originou no Programa Especial de Treinamento (PET) do
curso de História da Unesp, Campus de Franca. A pesquisa foi orientada pela Prof.ª Dr.ª Aparecida da
Glória Aissar. O texto completo é intitulado: A recepção da “Escola dos Annales” no Estado de São
Paulo: da FFCL\USP a FHDSS\UNESP. Partes da pesquisa já foram publicadas sob a forma de artigos.
11
Mestre pelo programa de pós-graduação em História da Unesp, Campus de Franca, com financiamento da
CAPES. Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
(UEMS), Campus de Amambaí. E-mail: diogosr@yahoo.com.br
12
Mestre e Doutor pelo programa de pós-graduação em História da Unesp, Campus de Franca, com
financiamento da CAPES. Professor da Rede Pública Municipal de Campinas/SP. E-mail:
jrafsantos@yahoo.com.br
A revista Annales foi fundada, em janeiro de 1929, por dois historiadores que
despontavam no campo dos estudos históricos, na universidade de Estrasburgo. No período
a instituição incorporava um grupo de cientistas sociais, que anos depois seriam inovadores
em suas áreas de pesquisa. Não foi nos primeiros números que a revista havia sido notada
internacionalmente, mas a partir deles que o projeto do grupo despontava como crítica
direta, e alternativa possível, à “Escola metódica” na França (CAIRE-JABINET, 2003).
Com os desdobramentos dos conflitos gerados pelas guerras mundiais ocorridas nas
primeiras décadas do século XX e as transformações do cenário político e econômico
mundial, que as críticas levantadas, a partir da revista (pelo então movimento gerado pela
Annales), passariam a ser reconhecidas, pelos historiadores franceses e de outros países. E
as inovações da revista e o projeto do grupo viriam a servir de inspiração em outras
iniciativas. Na década de 1940, com a criação da IV seção de estudos históricos
(posteriormente transformada em VI seção) da Escola Prática de Altos Estudos, de Paris, o
movimento inseria-se institucionalmente na França, começando a ser denominado como
uma ‘escola’ (HUNT, 1992: 1-11).
Quando a revista Annales foi fundada, Marc Bloch e Lucien Febvre já haviam
absorvido parte do debate que ocorria nas primeiras décadas do século XX, e estavam
lecionando na Universidade de Estrasburgo. M. Bloch havia passado por universidades
francesas e alemãs (entre 1908 e 1910) e se familiarizava com os métodos da lingüística e
da sociologia, além de publicar textos e artigos. L. Febvre se familiarizava com as
discussões da época e desenvolvia a sua crítica contra a ‘história dos vencidos de 1870’.
Embora ambos pretendessem constituir carreira acadêmica nas principais universidades
francesas, somente em 1933 L. Febvre conseguia uma vaga no Collège de France, e em
1936, M. Bloch alcançava uma vaga na Sorbonne. Enquanto M. Bloch recebia a influência
dos Anais de Sociologia e de E. Durkheim, L. Febvre a recebia da Revista de Síntese
Histórica e de H. Berr (REIS, 2000: 65-90). Assim, enquanto M. Bloch enfatizava em sua
análise, a estrutura sobre os eventos – como exemplo se poderia mencionar A sociedade
feudal (elaborada entre 1930 e 1940) –, L. Febvre enfatizava a análise estrutural de uma
época, a partir de acontecimentos ou personagens, tal como fez em Martin Luter, um
destino (de 1928) e em O problema do anacronismo no século XVI: a religião de Rabelais
(de 1942). Mas foi com Apologia da História ou o ofício de historiador, obra póstuma e
inacabada, publicada originalmente em 1949, que Marc Bloch se expressou de forma
sistemática sobre os limites e os campos da pesquisa histórica. Enquanto, numa outra base,
Lucien Febvre reuniu parte dos artigos e resenhas que publicou nos primeiros anos do
periódico, sob o título Combates pela história (de 1953), com o qual demonstrava sua
insatisfação em relação aos estudos históricos produzidos, particularmente na França, entre
o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Em especial, aqueles
elaborados pela historiografia (que de modo genérico se denominava) positivistai.
Na história do movimento, embora repudiassem a história dos acontecimentos,
voltada aos eventos políticos e construída, em parte, pela ‘escola histórica alemã’ e pela
‘escola metódica francesa’, não deixaram de aproveitar daquelas as suas contribuições à
pesquisa histórica, ao refazerem diagnósticos e interpretações sobre fontes ‘oficiais’, e
abrirem caminho para o estudo e a interpretação de fontes, até aquele momento, não
incorporadas ao corpus documental do historiador (BOURDÉ & MARTIN, 1983). É sabido
que as críticas sobre os metódicos (REIS, 1999) transparecem melhor do que as
contribuições que deixaram, porque para se colocarem como uma alternativa no estudo das
sociedades passadas, os Annales acabaram por silenciar o que de profícuo foi feito pela
historiografia oitocentista (BOUTIER & JULIA, 1998; SILVA, 2001). Se por um lado, a
historiografia ‘positivista’ fora repudiada pelos Annales (ainda que não de forma completa)
e seus elos sejam pouco visíveis num primeiro olhar, as relações, entre a historiografia
francesa, em especial à dos Annales, e o marxismo, aparecem também como amistosas.
Marx e o marxismo sempre foram heranças difíceis de serem incorporadas nas
universidades francesas. Mesmo trazendo questionamentos sobre as formas de se estudar as
sociedades passadas da maneira como os metódicos (e positivistas) as haviam pesquisado,
por trazerem junto ao seu suporte metodológico um projeto político de transformação
social, o marxismo também foi, por isso, criticado pelos Annales (LOPES, 2002;
CHAUVEAU & TÉTARD, 1999).
Nesse sentido, L. Febvre, que firmou seus combates contra a história metódica,
embora continuasse a pesquisar seus temas, mas sob outra ótica, junto com M. Bloch, que
desenvolveu uma abordagem mais estrutural e criticou as concepções sobre a história da
época, inovaram com algumas teses: a “história-problema”, a “história total”, a
“interdisciplinaridade”, o “alargamento do campo das fontes históricas” e o “fato histórico
como construção teórica” (REIS, 2000: 73-85). Por meio das contribuições que receberam
das Ciências Sociais, junto com outros integrantes do grupo nesse período, desenvolveram
áreas como a história econômica, a história social e a geo-história, que igualmente estavam
sendo desenvolvidas em outros países. Nesse momento, eram elaboradas diversas teses na
França, por meio de monografias regionais, em que as principais fontes pesquisadas foram:
documentos pessoais e correspondências, censos populacionais, registros paroquiais, fontes
literárias. Foi a época das grandes coleções sobre a história das civilizações, na França.
Sendo nas décadas de 1950 e 1960, proliferadas com as coleções de história social. Esse foi
o momento em que os fundadores da revista buscavam firmar novos campos de pesquisa e
ocupar postos de comando dentro dos meios universitários franceses, ainda dominados
pelos metódicos (BURKE, 2002). Nos anos 1930 a revista Annales, de Estrasburgo passa
para Paris. No entanto, os “Annales mudam porque em torno deles tudo muda também: os
homens e as coisas; em uma palavra, o mundo. Já o de [19]38 não era mais o de [19]29”
(MOTA, 1978: 174).
Dentro desse contexto social que surgiu o pensamento de Fernand Braudel, ao
buscar sintetizar as abordagens de L. Febvre e M. Bloch e desenvolver teoricamente uma
interpretação do tempo histórico, expressando-se de forma sistemática no artigo ‘História e
Ciências Sociais: a longa duração’ de 1958 (REIS, 1994).
Em 1958, com o nascimento da Quinta República, pode-se até falar de uma
verdadeira política das ciências sociais rumo à institucionalização. Esse impulso
representa um novo desafio para os historiadores (...) ao qual será preciso
responder tanto no plano institucional, em que a concorrência é acerba, quanto
no teórico, para mostrar a capacidade de adaptação da escrita histórica (DOSSE,
2001: 23).
Da análise sobre as fontes quantitativas, estudadas até aquele período sobre padrões sociais
e econômicos, passou-se a dar maior preferência aos estudos de longa duração de modo a
perceber a psicologia social, a mentalidade e o imaginário de sociedades passadas
(TÉTARD, 2000). Destacando-se, nesse sentido, as atitudes culturais, mais que os quadros
sócio-econômicos.
A nova tarefa do historiador já não consistirá em ressaltar as acelerações e
mutações da história, mas sim os agentes de reprodução que permitem a
repetição idêntica dos equilíbrios existentes (...) História se escreve agora no
plural e sem maiúscula: ela renuncia a realizar um programa de síntese para
melhor se desdobrar com vistas aos múltiplos objetos que se oferecem a seu
olhar sem limites (DOSSE, 2001: 26-9).
Se no período de 1929 a 1946, e no de 1946 a 1968, tal perspectiva não fazia parte da
maioria dos trabalhos publicados (e no corpo central das orientações do grupo), a partir do
final dos anos 60, um grande número de pesquisas, foram desenvolvidas sob a perspectiva
de estudo das mentalidades e do imaginário das sociedades passadas (LE GOFF, 1998).
Embora a maior parte desses trabalhos estudasse a cristandade ocidental na época
medieval, houve trabalhos que pesquisaram o desdobramento daquelas mentalidades nos
séculos XVI, XVII e XVIII, como foi o caso das obras de Robert Mandrou e Phillipe Ariès,
pioneiras na recuperação do estudo das mentalidades de sociedades passadas, nos anos
1950 e 1960 na França, porque inspiraram uma retomada em diversas pesquisas sobre essa
linha de estudos históricos – que haviam sido anteriormente produzidos por Marc Bloch e
Lucien Febvre, ainda que sob perspectivas distintas (GURIEVITCH, 2003). Nos anos 1960
e 70, os estudos sobre a história das mentalidades e a história do imaginário social
contribuíram no desenvolvimento de metodologias de pesquisa, com novos padrões de
análise sobre as fontes quantitativas, seriais, demográficas, fundamentalmente produzidas
em cartórios e paróquias. Nessa fase muitos trabalhos se baseavam e desenvolviam
metodologias para a história oral (VAINFAS, 2002: 13-51). Embora nesse período a revista
não possuísse mais uma direção centralizadora, mas sim colegiada, o grupo teve grande
repercussão na mídia e com o público francês e de outros países.
Para Rogério Forastieri da Silva (2001), ao mesmo tempo em que, muitas vezes,
não ocorria um debate, no campo historiográfico internacional entre grupos franceses,
alemães, italianos, norte-americanos e ingleses, algumas vezes até se desconhecendo uns
aos outros, o sucesso atingido pelas primeiras fases da revista Annales fez com que, grosso
modo, a terceira geração do grupo construísse um relato pertinente aos seus objetivos, tanto
que os justificassem dentro e fora da França.
Assim, levanta-se a possibilidade de fabricação de uma imagem na década de
1970 sobre os Annales que viria a constituir-se como uma tradição. Destarte, conforme
havia dito Eric Hobsbawm, na introdução do livro: A invenção das Tradições, “muitas
vezes ‘tradições’ que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando
não são inventadas”. Assim:
... por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente
reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza
ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento
através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em
relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade
com um passado histórico apropriado (...). Contudo, na medida em que há
referência a um passado histórico, as tradições ‘inventadas’ caracterizam-se por
estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial. Em poucas palavras,
elas são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a
situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição
quase que obrigatória (HOBSBAWM, 1997: 9-10).
Por fim, resta notar a ausência de autores como Maurice Agulhon, Michel Vovelle, Philippe
Ariès e Alain Gerreau, que estavam abrindo campos, que nos anos subseqüentes se
tornariam férteis à pesquisa histórica, e apenas nos anos 1980 foram incorporados ao
movimento dos Annales.
Desde os anos 1970, pelo menos, que o hábito, de tempos em tempos, na França,
de se voltar a História e a sua escrita (com vistas a propor quais os caminhos que se
tornariam pertinentes ao pesquisador e quais procedimentos de análise das sociedades
passadas deveriam ser revistas na pesquisa histórica), se tornou recorrente, como uma
estratégia de constituição de um discurso historiográfico, em busca de hegemonia nos
setores e lugares produtores de pesquisas históricas, dentro e fora da França, isto é, na
própria história das historiografias internacionais (BÉRIDA, 1995; DOSSE, 2003).
Até então, a ‘Nova História’, como foi efetivada, era apenas uma expectativa e
não um caminho a se chegar. Nos períodos anteriores os projetos foram distintos. Quando
Fernando Braudel (1902-1985) dirigiu o periódico, entre 1956 e 1968, desenvolviam-se
projetos junto ao grupo dos Annales, que viriam a possuir vínculos com a ‘Nova História’,
mas eram essencialmente divergentes desta. Conforme disse o próprio Fernand Braudel nos
anos 1970, sobre o movimento:
...apesar de sua vivacidade [os Annales], nunca constituíram uma escola, no
sentido estrito, isto é, um sistema de pensamento fechado sobre si mesmo. Ao
contrário. A senha de entrada é a paixão pela história, nada mais – porém é
muito –, e, confundindo-se com essa paixão, igualmente a pesquisa de todas as
suas novas possibilidades, a própria mudança da problemática segundo as
necessidades e as lógicas do momento. Porque passado e presente mesclam-se
inextricavelmente. Sobre esse ponto, todos os diretores sucessivos dos Annales
estão de acordo(BRAUDEL, 2002: 30).
Por certo, esta não foi à primeira vez que Fernand Braudel analisou o grupo ao
redor da revista Annales. Em 1957, logo após o desaparecimento de Lucien Febvre da
direção do periódico (ocorrido em 1956), Braudel faria o seguinte comentário no primeiro
número da revista daquele ano:
En moins de trente ans de leur propre histoire, les Annales de Marc Bloch et de
Lucien Febvre ont connu un essor et un reyonnement exceptionnels. Elles ont
oussi connu d’exceptionnelles difficultès. La mort tragique de Mar Bloch en
1944; il y a quelques mois à peine, la mort brusque de Lucien Febvre. Mais les
Annales se doivent de continuer (...) Ni Marc Bloch, ni Lucien Febvre n’ont en
la volanté ou l’illusion d’avoir fondé une Ecole, avec ses formules et ses
solutions (BRAUDEL, 1957: 1)ii.
Naquele editorial intitulado ‘Os Annales continuam’, F. Braudel falava das características
dos Annales no tempo de Febvre e Bloch, e ressaltava que não tiveram a pretensão de
limitar o movimento em uma escola. Para ele esta idéia foi, a princípio, supostamente
elaborada com a fundação da IV (depois VI) seção da Escola Prática de Autos Estudos.
Mas apenas retrospectivamente teria sido construída.
Entretanto, se a idéia de ‘escola’ para os Annales foi muito criticada, não foram
poucos os autores que adotaram esta tradição discursiva para pensar o desenvolvimento do
movimento ao redor da revista Annales, em suas diferentes fases, tanto na França como em
outros países. Traian Stojanovitch (1976) foi um dos pioneiros a interpretar o grupo dos
Annales enquanto um paradigma, caracterizando-o dentro do movimento geral da nouvelle
histoire, na França, em quatro fases: a) de 1900 a 1920, cujo período foi caracterizado
genericamente de fase de ‘crise da consciência histórica’, em que houve a criação de
diversos periódicos, em muitas áreas do saber, e de expansão de debates nas Ciências
Sociais, criticando-se procedimentos de pesquisa da ‘escola histórica alemã’ e da ‘escola
metódica francesa’, principalmente nos Anais de Geografia, nos Anais de Sociologia e na
Revista de Síntese Histórica; b) de 1929 a 1946, com a fundação da revista “Annales de
História Econômica e Social” e dos combates travados por Marc Bloch e Lucien Febvre,
junto com outros intelectuais daquele período, pois, muitos dos quais não fizeram parte do
periódico recém inaugurado e nem por isso deixaram de trazer grandes contribuições à
pesquisa histórica; c) de 1946 a 1968, com a expansão institucional, a partir da VI seção da
Escola Prática de Autos Estudos e a denominação do periódico, agora como: “Annales.
Economias, Sociedades, Civilizações”, tendo a sua frente Fernand Braudel na
administração do periódico, e em instâncias universitárias. Segundo este autor o período
posterior à saída de F. Braudel, junto aos acontecimentos de ‘maio de 1968’, na França,
resultaram numa revisão das metas e orientações, até então, seguidas internamente pela
revista.
Mesmo entre aqueles que herdaram a tradição historiográfica dos Annales mais
diretamente, como foi o caso de Jacques Revel (1989, pp. 13-41), isso não o privou de ter
uma visão crítica sobre o movimento. Quando, em 1979, publicou um artigo intitulado
‘História e Ciências Sociais: os paradigmas dos Annales’, a princípio uma crítica dirigida à
interpretação de Stojanovich, procurava revelar as peculiaridades do movimento,
aproveitando os ensejos da comemoração dos cinqüenta anos de fundação da revista.
Ressaltava a contribuição da Sociologia durkheimiana para o desenvolvimento das
propostas do movimento na década de 1930, e demonstrava a variedade de procedimentos
de pesquisa, então utilizados pelos membros do movimento. Já na década de 1990, em duas
entrevistas concedidas a professores universitários do Brasil, assim se referiu sobre os
Annales:
... a Escola dos Annales não é propriamente uma escola, mas ao mesmo tempo
sei que há traços reconhecíveis em sua produção, que alias tem se transformado
ao longo do tempo, renovando a sua agenda (...) Por outro lado, os Annales
renovaram-se inúmeras vezes (...) o que não significa admitir uma falta de
coerência. Diria que se trata de algo mais plástico, preocupada sempre em pensar
as relações entre História e Ciências Sociais (...) No entanto, de uns 20 anos para
cá, muitas coisas mudaram nos Annales e também, é claro, em torno da revista
(...) Gostaria de começar dizendo (...) que não existe, no meu entender, ‘a escola
dos Annales’, enquanto muitos utilizam esse modo cômodo de chamá-la. O
movimento historiográfico fundado pela revista de Bloch e Febvre baseou-se em
convicções gerais ambiciosas e, ao mesmo tempo, simples: por um lado, a de que
a história é uma ciência social, o que não é evidente em muitas tradições
historiográficas. E por outro lado, a de que as disciplinas que compõem as
ciências sociais tendem a se cruzar, a se confrontar, a se enriquecer mutuamente
(...) Os Annales não pararam de redefinir sua posição, ao mesmo tempo em
função da evolução interna da disciplina-mãe, a história, e também porque as
relações entre a história e as ciências sociais (...) mudaram (DAHER, 2001: 192-
3 e 201-2).
1929-45 – 1ª Geração 1946-68 – 2ª Geração 1968 – 1988 (?) – 3ª 1988/9 (?) – 4ª Geração.
Geração.
Principais Lucien Febvre (1878-1956) Fernand Braudel (1902-1985)Jacques Le Goff; Marc Jacques Revel; André
representantes Ferro; Emmanuel L. R. Burguière; Roger Chartier.
Marc Bloch (1886-1944) Ladurie.
Colaboradores H. Pirenne; M. Halbwachs; H. E. Labrousse; P. Vilar; R. P. Nora; M. Vovelle; G. J-C. Schmitt; F. Hartog; M.
Hauser; P. Monbeig; A. Mandrou; Ch. Mozaré; etc. Duby; D. Roche; P. Ozouf; R. Remond; etc.
Demageon; etc. Chaunu; F. Furet; etc.
Inspiradores/ Paul V. de La Blache; Claude Lévi-Strauss; Michel Foucault; Michel De Pierre Bourdieu; Norbert Elias;
Discussões Ferdinand Saussure; Karl H. Marx; Certeau; Peter Burke; Louis Marin;
Ch. Seignobos; Ch. Langlois; Maurice Dobb. Paul Veyne; Sigmund Hayden White; Carlo
Emile Durkheim. Freud; Jules Deleuse; Lois Ginzburg; Geovani Levi; R.
Althusser; Nicos Polantzas; Willians; Lynn Hunt;
Phillipe Ariès; Eric
Hobsbawm; Paul E.
Thompson; Perry Anderson;
Cornelius Castoriadis;
Michele Perrot.
Acontecimentos I e II Guerra Mundiais; Crise Congressos internacionais; Movimento estudantil de Queda do muro de Berlim em
da bolsa de valores em 1929; Inauguração de centros de 1968; Feminismo; 1989; Fim da URSS;
Questionamentos sobre as pesquisa; avanços nos Homossexualismo; Globalização;
Filosofias da História; combates pela história; movimento negro e das Questionamentos de regimes
Discussões sobre as origens do minorias; políticos; conflitos religiosos;
Capitalismo;
Propostas História-problema; História Simultaneidade de tempos Um tempo imóvel no Renovação do campo político;
total; Interdisciplinaridade; (curto, médio, longo); A social? Debate sobre o estilo do
Alargamento do campo das história total é a história das História Total ou História Historiador (narrativa);
fontes históricas; O fato civilizações? Geral? Revisão dos estudos
histórico como construção biográficos;
teórica;
Novas Áreas História Econômica e Social; História Econômica; História História das Mentalidades; Nova História Cultural;
Geo-história; Quantitativa; História História Imóvel; História História das representações
Demográfica; História Serial; Antropológica; História sociais; Nova História Política;
Oral; História do Nova História Biográfica;
Imaginário;
Disciplinas Geografia; Sociologia; Economia; Geografia; Psicologia Social;
Auxiliares Psicologia; etc. Antropologia; etc. Lingüística; Crítica
Literária; etc.
Títulos do Annales de História Annales. Economias, Annales. História, Ciências
Periódico. Econômica e Social (1929-43) Sociedades, Civilizações Sociais (1994)
(1946-93)
Fontes Documentos pessoais; Diários; Registros Paroquais Entrevistas Fontes Literárias; Censos
Correspondências; Fontes (nascimentos, batismos, Livros (historiografia) eleitorais; populacionais;
Literárias; Censos casamentos, óbitos) Censos populacioanais; Entrevistas; etc.
populacionais; Fontes Registros Cartoriais Registros paroquiais e
Oficiais; etc. (inventários, testamentos, Cartoriais; etc.
nascimentos, casamentos,
óbitos)
Censos populacionais, etc.
Fontes: DOSSE, 1994; REIS; 1994; 1999; 2000; BURKE, 1997; 2002; 1992; AGURRE ROJAS, 1999; 1995;
BOUTIER & JULIA, 1998; FONTANA, 1986; HOBSBAWM, 1998; 2002; SILVA, 2001; STOJANOVICH,
1976.
Com base no quadro acima se nota, de imediato, uma contradição entre o discurso
e a prática de pesquisa daquele grupo que dirigiu a revista Annales, depois de 1968, e que
está relacionada à própria história escrita por eles sobre o movimento (que envolveu
diversos grupos ao redor do periódico). Há em toda história dos Annales (que vai da criação
do periódico até seu momento atual) uma tradição de rupturas em meio a continuidades,
isto é, a substituição de discursos, de ‘uma geração’ sobre a outra ao se contraporem
posições, mas que se desdobra dentro de um mesmo projeto, construído, principalmente,
por Marc Bloch e Lucien Febvre. Ou seja, se na prática de pesquisa historiográfica dos
integrantes que compunham o grupo nos anos 1960 e 1970 existia uma crítica sobre a idéia
de progresso material, no relato sobre a história do movimento dos Annales a idéia de
progresso foi adequada naquele discurso, na medida em que a história da historiografia
referida por aqueles, desdobrava-se da ‘escola histórica alemã’ e da ‘escola metódica
francesa’ à ‘escola dos Annales’, até vir, enfim, culminar com a ‘Nova História’ francesa
dos anos 60 (SILVA, 2001).
Por outro lado, quando se volta ao período inicial da revista, entre as décadas de
1930 e 40, nota-se (no pouco que é ainda conhecido da correspondência entre Lucien
Febvre e Marc Bloch) não uma afinidade total entre os editores e outros membros do grupo,
mas uma grande diversidade de pensamentos. Não menos controvertidas foram as relações
travadas entre Fernand Braudel e outros intelectuais colaboradores e críticos do movimento,
no período posterior a Segunda Guerra Mundial, bastando para tanto, apenas como um
exemplo entre outros possíveis, se verificar o clima amistoso entre Braudel e Robert
Mandrou depois da morte de Lucien Febvre, em 1956, no setor administrativo do periódico;
ou ainda entre os debates públicos de Braudel com Claude Lévi-Strauss.
Enfim, ainda existe a sobreposição de uma representação construída sobre o
grupo, aos fatos ‘vividos’ por aqueles que administraram o periódico em suas primeiras
fases. A tal ponto, que se passou a lembrar de Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand Braudel
e dos Annales daquele momento, a partir das obras escritas como uma referência aos
pioneiros e como uma forma de justificar as posições ulteriores do periódico. Portanto, as
obras que compuseram o relato ‘oficial’ sobre os Annales e que são a representação de
eventos e circunstâncias históricas precisas, atingiram um consenso relativo abrangente a
ponto de suplantar àqueles fatos precisos. Evidentemente existe a representação, mas não se
pode esquecer as circunstâncias históricas que lhe deram origem. Por que a representação
silenciou a história da qual ela se originou? Porque a história é escrita segundo relações de
força retórica e poder de ação (GINZBURG, 2002), e o poder emanado por aqueles que
falam de determinados lugares sociais, e que, portanto, são reconhecidos por seus pares, se
torna não apenas o discurso ‘oficial’, mas também, a própria história existente daquelas
circunstâncias e eventos do passado (CHAUVEAU & TÉTARD, 1999).
Alinha-se, desse modo, a idéia de ‘escola’ nos Annales, não apenas, uma
correspondência direta ao periódico criado em 1929, mas também, imagens, em torno das
quais, construiu-se sobre a direção da VI seção da Escola Prática de Autos Estudos que
estaria, desde, pelo menos, a década de 1940, envolvida sobre uma perspectiva
interdisciplinar, e, portanto, sendo um canal e um veículo de circulação das idéias
desenvolvidas no interior do grupo, em cada uma de suas diferentes fasesiii.
Todavia, se as circunstâncias históricas viabilizam o aparecimento de formas de se
escrever a história, ao mesmo tempo em que se questionava formas anteriores, deve-se
notar, que por traz dos procedimentos de pesquisa anunciados como inovadores, existia
todo um projeto político, que não apenas procurava camuflar as contribuições de projetos
historiográficos anteriores, mas, muitas vezes, reduzir outras inovações que ocorriam de
modo simultâneo em outros países (DOSSE, 2003, 2004), na tentativa de criar uma
hegemonia nacional e internacional, no campo historiográfico.
Portanto, a história sobre o movimento dos Annales até agora conhecida foi à
história construída a partir daquele discurso historiográfico que se tornou hegemônico no
interior do grupo, na década de 1960, e que coexiste junto a uma história ainda pouco
conhecida sobre os Annalesiv. Pois, esta só virá a ser escrita na medida em que o período de
memória coletivav que ainda cerca o grupo se dissipar. Porque torna a escrita da história
ainda emotiva e comprometida com certas posições, por parte, essencialmente, dos
membros ainda vivos da ‘terceira geração’ e que, em alguns casos, continuam a ocupar
cargos administrativos importantes no periódico e na VI seção da Escola Prática de Autos
Estudos em Ciências Sociais. E mais, daí então, com a publicação de artigos, manuscritos e
correspondências trocadas entre os membros que compunham o movimento nas suas
primeiras fases, será viável a elaboração de outros relatos sobre a história dos Annales, e
que procurem, além de complementar os existentes, dar uma melhor compreensão sobre a
história do grupo em todas as suas fases, demonstrando os pontos convergentes e os
distanciamentos, entre a ‘história vivida’ pelas pessoas que fizeram parte do movimento,
nas duas primeiras ‘gerações’, junto à ‘terceira geração’ que passou a escrever a ‘história
conhecimento’ a respeito dos Annales.
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1 . Segundo José Carlos Reis (1994), a História sob a influência das Ciências Sociais produziu uma terceira
revolução na compreensão do tempo histórico. A primeira havia sido feita pela cristandade ocidental, ao
criticarem a concepção circular dos gregos e delimitarem linearmente a interpretação do tempo, com um
passado e um futuro organizados segundo um projeto político, fundamentado numa filosofia da história. A
segunda foi produzida pelos filósofos iluministas, no século XVIII, ao criticarem a religião e a fé e
secularizarem a sua concepção, embora tivessem mantido uma interpretação linear do tempo, na
compreensão que faziam do progresso material. No inicio do século XX, houve uma terceira revolução na
interpretação do tempo histórico, produzida sistematicamente pelo grupo dos Annales, ao criticarem a
abordagem ‘acontecimental’ e a postura das ‘filosofias da história’ (por projetarem perspectivas
teleológicas), com uma abordagem estrutural dos acontecimentos, a partir de uma história problema, que
recebia influências e mantinha intercâmbios com as Ciências Sociais.
2 . Tradução: “Em meados de [19]30, os Annales de Marc Bloch e de Lucien Febvre sofreram uma mudança
excepcional. Eles também encontraram dificuldades excepcionais. A morte trágica de Marc Bloch em 1944;
a morte brusca de Lucien Febvre [em 1956]. Mas os Annales continuaram se desenvolvendo... Nem Marc
Bloch, nem Lucien Febvre tiveram a vontade ou a ilusão de fundar uma escola, com suas fórmulas e suas
soluções.”
3 . Segundo Josep Fontana: “A escola dos Annales teve uma função renovadora importante nos anos que se
seguiram a Segunda Guerra Mundial. A viragem que Lucien Febvre havia realizado para facilitar a
sobrevivência da revista nos tempos da ocupação alemã a preparou para entrar no mundo do pós-guerra
como uma opção que tinha um prestígio progressista, mas que havia eliminado claramente as marcas do
marxismo. Foi a partir do momento do seu acesso ao ‘poder’ na seção VI da École Pratique des Hautes
Études que os homens dos Annales, dirigidos por Lucien Febvre, encontraram, desde 1947, um instrumento
de projeção, nos cursos que contaram com a participação de Febvre, Labrousse, Braudel, Leroi-Gourhan,
Lévi-Strauss, Raymond Aron, Barthes, Bourdieu, Derrida, Le Goff, Taton, Pierre Vilar... Ernest Labrousse,
com seu propósito de combinar o estudo das estruturas e das conjunturas, e Fernand Braudel, com seu
modelo de encadeamento de ritmos temporais distintos, deram à escola a base teórica para o cultivo de uma
história social adequada às demandas do momento, cujo efeito foi plenamente aceitável nos anos da guerra
fria, durante os quais pôde ser vista como uma substituta do marxismo” (FONTANA, 1998: 8-9).
4 . De acordo com a tese de Paul Veyne (1998) – em Como se escreve a história – segundo a qual não existe
a ‘História’, mas sempre ‘histórias de...’, ou seja, quando aquele autor se pergunta: o que é a história,
segundo a construção do discurso do historiador, que seleciona não tudo o que ocorreu no passado, mas os
fragmentos que dele restou e pôde consultar, portanto, a história escrita pelo historiador não é a ‘História’,
‘que só poderia ser escrita por Deus’, mas simplesmente, histórias possíveis, isto é, ‘histórias de...’.
5 . Para Maurice Halbwachs (1990), a memória coletiva resulta de um quadro histórico de uma época. É uma
construção social que dá sentido a identidade de um grupo de pessoas, que ao mesmo tempo estão limitadas
as circunstancias sociais de sua época, e por isso entendem aquela história rememorada como ‘real’; sendo
esses atores sociais resultados e resultantes daquela atmosfera psicológica que construiu suas personalidades
individuais.
Deslocamentos e mutações na Historiografia Contemporânea – a Biografia
e outros campos históricos13
ABSTRACT
This article attempts to clarify and discuss some aspects related to the modalities of
History, criticizing the categories in which ones these modalities are elaborated, and
organizing a panoramic view of the various fields in which ones the historical knowledge is
divided nowadays. Among others, the article emphasizes the domain of the Historical
Biography. Otherwise, the aspects to be discussed are diverse, and include the objects,
sources and approaches more common in the fields presented here.
Key Words: Fields of History, historical methodology; historical writing, Biography.
13
O presente artigo remete, como referência principal, a um livro publicado recentemente pelo autor, e que se
refere a um estudo das várias modalidades da História. BARROS, José D’Assunção. O Campo da História –
Especialidades e Abordagens, Petrópolis: Vozes, 2004, 222 p.
14
Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Professor da Universidade Severino
Sombras (USS) de Vassouras, nos Cursos de Mestrado e Graduação em História, onde leciona disciplinas ligadas
ao campo da Teoria e Metodologia da História. E-mail: jose.assun@globo.com
com as outras, suas relações interdisciplinares, suas fontes e objetos privilegiados (BARROS,
2004).
A tese central daquele trabalho é a de que existem três grandes grupos de critérios que
presidem a divisão da História em modalidades mais específicas, e a de que muito da confusão
sobre o que é uma sub-especialidade ou o que é outra, ou sobre como enquadrar uma dada
obra neste complexo caleidoscópio de sub-especialidades que coincide com o campo
disciplinar da História, está no fato de que algumas coletâneas de balanceamentos
historiográficos misturam inadvertidamente critérios de classificação sem alertar devidamente
o leitor, que acaba perdendo a oportunidade de desenvolver uma maior clareza sobre a rede de
modalidades que organiza o pensamento historiográfico na atualidade.
A chave para compreender estes vários campos da História, conforme a argumentação
que desenvolvemos na referida obra, está em distinguir muito claramente as divisões que se
referem a dimensões (enfoques), as divisões que se referem a abordagens (ou modos de fazer
a História), e as divisões intermináveis que se referem aos domínios (áreas de concentração em
torno de certas temáticas e objetos possíveis).
Para registrarmos algumas exemplificações, podemos dizer que o primeiro grupo de
critérios que gera divisões internas na disciplina histórica e que se refere ao que chamamos de
dimensões corresponde àquilo que o historiador traz para primeiro plano no seu exame de uma
determinada sociedade: a Política, a Cultura, a Economia, a Demografia, e assim por diante.
Desta maneira, teríamos na História Econômica, na História Política, na História Cultural ou
na História das Mentalidades campos do saber histórico relativos às dimensões ou aos
enfoques do historiador. Um historiador cultural, por exemplo, estuda os fatos da cultura; um
historiador político estuda o poder nas suas múltiplas formas; um historiador demográfico
orienta o seu trabalho em torno da noção que lhe é central de “população”.
Um segundo grupo de critérios para estabelecer divisões no saber histórico é o que
chamamos de abordagens, referindo-se aos métodos e modos de fazer a História, aos tipos de
fontes e também às formas de tratamento de fontes com os quais lida o historiador. São
divisões da História relativas a abordagens a História Oral, a História Serial, a Micro-História
e tantas outras. A História Oral, por exemplo, lida com fontes orais e depende de técnicas
como a das entrevistas; a História Serial trabalha com fontes seriadas – documentação que
apresente um determinado tipo de homogeneidade e que possa ser analisada sistematicamente
pelo historiador. A Micro-História refere-se a abordagens que reduzem a escala de observação
do historiador, procurando captar em uma sociedade aquilo que habitualmente escapa aos
historiadores que trabalham com um ponto de vista mais panorâmico, mais generalista ou
mais distanciado.
Por fim, podemos pensar divisões da História que chamaremos de domínios, e que se
referem a campos temáticos privilegiados pelos historiadores. O objetivo deste artigo será
precisamente o de refletir sobre os vários domínios da História que têm surgido e desaparecido
no horizonte de saber desta complexa disciplina que é a História. Estamos falando de
domínios quando nos referimos a uma História da Mulher, a uma História do Direito, a uma
História de Sexualidade, a uma História Rural, ou a uma História da Vida Privada.
Tentaremos esclarecer a seguir este grupo de critérios.
“muchos italianos piensan que micro historia es historia local, debo decir que
esto es una locura total. Para ellos uno puede estudiar una comunidad o la
historia de una persona, a lo mejor alguien con un mal patológico y presentan su
trabajo como micro histórico sin serlo. Justamente, un amigo mío, un
historiador español, Jaime Contreras, ha llamado a esa historia, la historia
basura. Me parece que hay que diferenciar entre micro historia y la historia
basura, o la historia pequeña que no es interesante por que no es generalizable.
Es decir aquella micro historia que busca a través del microscopio las formas”
(LEVI, 2000).
“Por outro lado, acho que só se pode escrever uma boa biografia se esta for
sobre um personagem de quem se acredita ser capaz de chegar bem perto. Pois
bem, antes do século XIII a ausência de fontes confiáveis tornava essa
empreitada impossível. Decidi então ficar no século XIII, onde três
personalidades se destacavam não apenas por sua importância, mas sobretudo
por causa das fontes disponíveis sobre eles: São Francisco de Assis, o
imperador germânico Frederico II e São Luís” (LE GOFF, 1996).
O problema central, como assinala Jacques Le Goff, é o das fontes. A biografia tem de
ser coberta por muitos lados, tem que dar a perceber aspectos da vida pública e da vida
privada, tem de trazer à tona os gestos teatralizados do indivíduo proeminente, mas também os
seus gestos espontâneos. Tanto um tipo de gesto como o outro – o teatralizado e o espontâneo
– são reveladores de práticas e representações específicas. Em seguida à oportunidade especial
oferecida pelas fontes, Le Goff acrescenta um segundo aspecto fundamental para as novas
escolhas biográficas: um problema adequadamente colocado.
Existe portanto um perigo que espreita o biógrafo dos personagens ilustres, e que já o
biógrafo dos personagens anônimos pode facilmente contornar. O indivíduo célebre – um rei,
um líder, um santo – tem despejada sobre a sua memória, que vai se construindo já no seu
próprio tempo, uma espécie de luz falsa (ou um feixe de luzes falsas). O indivíduo que nasce
na notoriedade, ou que a adquire em função de alguma situação-limite, começa a ser
construído coletivamente em paralelo à sua existência física e concreta. As fontes nos dão os
sinais precisamente desta construção. Elas são a parte mais visível desta construção.
Mas o historiador-biógrafo pode se beneficiar precisamente deste caráter construtivo,
desde que esteja dela consciente. Ele pode se valer, como fontes, dos trabalhos dos biógrafos
da época, que são co-responsáveis (conjuntamente com toda a coletividade) pela construção
do indivíduo imaginário que chega até o historiador através dos arquivos. Assim, também
Jacques Le Goff teve o seu interlocutor nesta empreitada:
“Em primeiro lugar, os textos laudatórios não escondiam, apesar de tudo, alguns
de seus defeitos. Nós sabemos, principalmente graças às confidências de seu
confessor, dispensado do segredo da confissão para o processo de canonização,
quais eram as tentações de São Luís e como ele lutava para não sucumbir a elas!
Uma série de historietas revelam-nos o temperamento de um homem muito
voltado para a carne, dividido entre a tentação e o escrupuloso respeito às
proibições da Igreja... Em seguida, nós dispomos do testemunho mais do que
excepcional de um companheiro próximo do rei, Jean de Joinville, autor de
Uma História de São Luís” (LE GOFF, 1996).
São Luís mostra-se aqui, portanto, a sede de uma expressão coletiva. Os movimentos
pela paz (a “paz de Deus”), em um jogo de tensões com os movimentos pela guerra (as
cruzadas), falam eloqüentemente através dele. São Luís, tanto o indivíduo concreto como o
indivíduo imaginário, mostra-se aqui como construção de uma época – produto de um trabalho
coletivo que deve ser decifrado pelo historiador. É aliás este tenso diálogo entre a paz e a
guerra que Jacques Le Goff se permite recuperar, porque ele é um diálogo que se projeta
dentro de São Luís mas que, na verdade, corresponde a um diálogo que é inerente à sua
própria sociedade:
“Na época, fazer a paz entre cristãos e partir em cruzada contra os "infiéis" não
parece ser absolutamente contraditório. É preciso lembrar que São Luís está
profundamente impregnado pela concepção cristã de guerra definida por Santo
Agostinho. Segundo este, é justa toda guerra feita aos pagãos ou que vise
restabelecer a justiça onde existir injustiça (invasão territorial, por exemplo).
Aliás, é unicamente neste caso que Santo Agostinho admite a guerra entre
cristãos. E finalmente, para limitar as guerras, Santo Agostinho pretende que
elas dependam da ordem política, ou seja do Príncipe, único a ter o direito de
declarar a guerra e fazer a paz. Uma idéia que inspirará muito São Luís. Ao
abolir a guerra entre os fidalgos, mais uma vez ele acerta em dois alvos: pacifica
o reino e fortalece consideravelmente o poder real” (LE GOFF, 1996).
Vemos aqui como se cruzam todas as grandes questões da época no interior do
biografado. No caso, a desfeudalização, a centralização estatal, as aspirações imaginárias da
cristandade pela paz, a construção e o monopólio de um novo sentido de justiça, a oposição e
a alteridade em relação ao inimigo muçulmano sem falar na intertextualidade que se
derrama sobre os modos de pensar a política e a vida a partir de Santo Agostinho ... todos
estes fios encontram o seu lugar nesta trama.
“finalmente, partir em cruzada também significa para São Luís uma maneira de
perpetuar a tradição de seus ancestrais, os reis cristãos, que remonta a 1095.
Suas outras motivações são de ordem religiosa, porque São Luís teve uma visão
da cristandade que compreende, do ponto de vista territorial, a Europa, onde o
cristianismo se instalou, mas também a Terra Santa, local de suas origens e da
presença mística do Cristo. Ao mesmo tempo em que São Francisco de Assis
preconiza na Terra Santa uma cruzada pela palavra, São Luís realizará uma
cruzada militar. Entretanto, no momento da entrega aos muçulmanos do resgate
que deveria libertá-lo, São Luís havia obrigado os de seu círculo a entregar-lhes
uma quantia espertamente retirada no momento da transação. Um senso de
justiça quase universal para a época...” (LE GOFF, 1996).
Construir uma biografia, desta forma, remete à necessidade de não apenas instaurar um
diálogo entre o indivíduo e a sociedade de sua época, mas também de dar voz aos diálogos que
atuam na própria constituição do indivíduo que vai sendo biografado. Este indivíduo também
constrói a si mesmo a partir destes diálogos, e reconstruí-los também faz parte do trabalho do
historiador. O indivíduo biografado, enfim, é ponto de encontro de muitos imaginários, de
muitas práticas e representações, de intertextualidades diversas, e tudo isto se agita no
redemoinho formado tanto pelas circunstâncias como pelos grandes processos históricos e
coletivos, de média ou de longa duração. A biografia sobre São Luís realizada por Jacques Le
Goff é representativa, postulamos, de um modo novo de biografar que é o da atual
historiografia profissional.
Será oportuno encerrar esta reflexão sobre os domínios historiográficos e este ensaio
chamando atenção, mais uma vez, para o fato de que – como qualquer campo de saber – a
História está fadada a permanentes transformações no interior do seu espaço disciplinar. Os
rearranjos internos serão sempre possíveis. E mais, o que está dentro da História um dia, como
objeto de estudo possível, pode se ver repelido para o seu exterior no outro dia. Será eficaz,
para retermos uma maior compreensão acerca das variâncias da disciplina historiográfica,
retomar um célebre trecho de A Ordem do Discurso, onde Michel Foucault esclarece como
ninguém o que é uma disciplina (em geral):
Este sistema anônimo, contudo, como faz notar Foucault logo adiante, está em
permanente mutação porque é aberto a expansões – na verdade ele depende para existir de
desencadear expansões. Conforme ressalta o filósofo francês, “para que haja disciplina é
preciso, pois, que haja possibilidade de formular, e de formular indefinidamente, proposições
novas” (FOUCAULT, 1996: 30).
E no entanto existe um incessante jogo entre o interior e o exterior da disciplina, e
entre um campo de estudos e o seu campo de objetos. A História (campo de conhecimento)
jamais será constituída por tudo o que se pode dizer de verdadeiro sobre a História (campo dos
acontecimentos). Para que uma proposição pertença à disciplina “História” de uma época, é
preciso que ela responda às condições desta disciplina tal como a definem ou definiram os
seus praticantes de então. A História, como qualquer outra disciplina, estará sempre repelindo
para fora de suas margens determinado conjunto de saberes, proposições e domínios que em
momento anterior poderiam ter estado ali, e que em um momento subseqüente da história dos
saberes e dos discursos já não estão. Ou, como registra Michel Foucault para todas as
disciplinas científicas em geral:
RESUMO
Sabendo que foi dentro da corrente marxista que se processou a maior parte das discussões
teóricas e políticas sobre o “problema do campesinato” em países capitalistas, com grande
influência na academia brasileira, o objetivo deste artigo é analisar a forma com que o
campesinato e a questão agrária se estruturaram como objetos de estudo para as ciências
humanas no século XX, a partir da aceitação ou rejeição das teses de Karl Marx e das
transformações econômicas e sociais ocorridas, sobretudo, fora do mundo acadêmico.
Optou-se pela análise dentro do campo da historiografia marxista brasileira, entre as
décadas de 1930 e 1980, tentando entender os motivos pelos quais esta área do
conhecimento não incorporou as discussões e novos conceitos sobre a ‘questão camponesa’
que estavam sendo formulados em outros campos.
Palavras-chave: campesinato, questão agrária, debates.
ABSTRACT
The objective of this article is to analyze the form that the “peasantry” and agrarian
question have rendered itself as objects of study for humans sciences in the XX century,
with point of start: the accept or rejection of the Karl Marx’s thesis and the economic and
social transformations that occurred over all outside of the academic world. The option was
made for the analysis over all inside the Marxism field, not forgetting that in this tendency
that the majority of the theoretical and politic discussions were made and it was the most
important influence for the debates in the Brazilian academic.
Key words: peasantry, agrarian question, debates.
16
Max Weber também travou uma discussão a respeito da especificidade ou não da economia da Grécia
Antiga, que em certo sentido pode ser considerada camponesa. Cf WEBER, Max. General Economic
History. New York. Colliers. 1961. Para uma revisão deste debate sobre o Oikos ver POLANYI et al.
Trade and Market in the early empires. New York. The Free Press. 1957.
relação entre o camponês e o capitalismo, a que chamou de questão camponesa, a
conclusão que Marx expressa no 18 brumário é de que
"Os pequenos camponeses constituem uma imensa massa, cujos membros vivem em
condições semelhantes mas sem estabelecerem relações multiformes entre si. Seu
modo de produção os isola uns dos outros, em vez de criar entre eles um intercâmbio
mútuo (...) a grande massa da nação francesa é assim, formada pela simples adição
de grandezas homólogas, da mesma maneira por que batatas em um saco constituem
um saco de batatas (...) na medida em que existe entre os pequenos camponeses
apenas uma ligação local e em que a similitude de seus interesses não cria
organização política, nessa exata medida não constituem uma classe" (MARX, 1969:
115).
17
Michael Duggett, baseando-se sobretudo nos Grundrisse [MARX, 1991] matiza a forma taxativa exposta
em Marx dizendo que se deve considerar a dificuldade teórica deste em conceituar o campesinato como
classe ou não a partir de um instrumental que se aplicava bem para o proletariado urbano e para os clubes
da burguesia, mas não para camponeses dispersos em um vasto país. A essa busca por rigor teórico e
intervenção política atravessa toda a produção teórica marxiana sobre o campesinato, mas não foi
concluída a ponto de ter sido possível, após sua morte, que diversos intelectuais no campo do marxismo
formulassem conclusões ou opiniões distintas a respeito dos mesmos textos (DUGGETT, 1976).
18
LENIN, V. O desenvolvimento do capitalismo agrário na Rússia, original de 1899. O mir russo
funcionava como controlador e distribuidor de terras segundo critérios costumeiros que não obedeciam ao
código civil russo. Ao analisar a situação em que as famílias camponesas mais ricas eram beneficiadas na
distribuição das terras porque com freqüência agregavam novos membros, Lênin concluiu que essa
situação estaria contribuindo para a diferenciação social e a criação de classes sociais antagônicas no meio
rural russo (Moura, 1986). Segundo Hamza Alavi, foi por esse motivo que, mesmo mudando suas táticas
capitalismo no campo implicaria na extinção pela diferenciação social dos camponeses
feudais em burguesia agrária, pequenos burgueses ou proletários rurais. Essa proposição
poderia não ter tido tanta repercussão não fosse o sucesso político de Lênin após 1917. A
partir daquele momento, suas teses tiveram decisiva influência nas posteriores gerações de
marxistas no que concerne ao debate sobre campesinato e capitalismo, e seus escritos
dominaram as análises de sociedades camponesas na III Internacional e nos movimentos
comunistas do Leste Europeu19 (Shanin, 1980:54; Hegedüs, 1984).
Essa concepção marxista dominante compreendia o desenvolvimento histórico em
etapas: do feudalismo ao capitalismo e deste ao socialismo. A partir dela, o VI Congresso
da III Internacional, realizado em 1928, determinou uma estratégia revolucionária a ser
adotada por todos os países do terceiro mundo: a realização de uma revolução burguesa,
nacional e democrática, de caráter anti-imperialista e anti-feudal, que primeiro alçaria esses
países à condição de capitalistas para depois poderem, com suas massas proletárias no
campo e na cidade, chegarem ao socialismo (Araújo, 2002). Veremos mais adiante a
repercussão dessas políticas no Brasil.
Com raras exceções, as correntes marxistas hegemônicas neste campo político
exacerbaram as interpretações que Marx fez sobre a França e a Inglaterra no século XIX
para todo o mundo. A preocupação com a problemática da transformação capitalista no
campo foi expressa em dois debates conceituais: a diferenciação do campesinato e a
especificidade ou não de um 'modo de produção camponês' (SHANIN, 1980: 53). Tudo
isso a partir do critério de propriedade ou expropriação da terra como definidor dos grupos
sociais camponeses, e as possibilidades de sua organização política mecanicamente
decorrentes.
É claro que isso não aconteceu sem matizes nem contradições. Porque o significado
político do conceito camponês garantiu uma periodicidade em seu próprio uso, sempre
refletindo a história social em sentido amplo, mas, também, uma dinâmica específica do
pensamento acadêmico. A exemplo disso, podemos perceber que até o começo do século
XX, na Europa do Leste, a sociologia rural e a economia agrária contribuíram enormemente
para os trabalhos sobre a especificidade da economia camponesa. Como passavam por um
políticas em 1905, os bolcheviques jamais chegaram a conseguir uma base sólida junto ao campesinato
russo (Alavi, 1969: 311). Sobre esse assunto ver também Hegedüs, 1984.
19
Isso não quer dizer que a obra de Lênin não possa ter mudado no que trata do campesinato. Mas essa
discussão já foge dos objetivos deste capítulo. Para aprofundar as discussões, ver Shanin, 1980, parte 3.
momento de profundas mudanças econômicas (industrialização) e políticas (ascensão dos
movimentos nacionalista, populista e socialista), o debate sobre o conceito e repercussões
do campesinato que se produziu neste período formou a maior parte do instrumental
conceitual e ideológico relevante de que hoje dispomos, sendo bons exemplos os trabalhos
de Galeski (1972) e Chayanov (1966).
20 Alexander Chayanov, russo, foi professor e trabalhou no Instituto Agrário de Moscou ainda nos tempos do czar, sendo Ministro da Agricultura depois da
revolução de 1917 e durante toda a década de 20, quando organizou cooperativas agrícolas de pequeno e médio porte na URSS. Terminou eliminado pelos
expurgos de Stálin. Um balanço de sua biografia e pesquisas pode ser encontrado em Abramovay, 1998: cap 3, e Araújo, 2002, e na palestra proferida por
Theodor Shanin em http://www.msses.ru/shanin/chayanov.html.
outros países latino-americanos onde sobreviveram comunidades indígenas. A definição
conceitual dos homens e mulheres que trabalham no campo brasileiro foi, portanto, fonte de
polêmicas, geradora de muitos debates dentro e fora das ciências humanas.
Mesmo assim, nas décadas de 1930 e 40 não houve propriamente uma discussão
nacional sobre a questão agrária. Isso porque o Estado, que se instaurava com o golpe de
1930, em grande parte pactuava com as oligarquias rurais, que mantinham seu velho estilo
de produzir e dominar. Se esse pacto, por um lado, não impediu que os capitais gerados no
setor primário passassem a viabilizar o processo de industrialização crescente, fazendo com
que esses antigos "donos" do Estado perdessem a partir de então sua posição dominante
dentro desse aparelho, por outro condicionou essa subordinação geral do setor agrícola à
não intervenção estatal direta sobre ele. Isso se materializou economicamente no assim
chamado "complexo rural"21, que possibilitou a manutenção por mais algum tempo das
formas de propriedade, poder e trabalho tradicionais (Oliveira, 1987; Martins, 1981; Facó,
1976; Leal, 1949; Medeiros, 2002).
Os estudos sobre homens e mulheres pobres das áreas rurais mudaram
completamente seu teor a partir dos anos 50. Essa mudança teve relação direta com o
afrouxamento da costumeira 'obrigatoriedade da não modernização' no campo brasileiro,
que começava a ser posta em xeque nos anos do desenvolvimentismo. A crença geral de
que o país alcançaria em pouco tempo o "primeiro mundo" se chocava frontalmente com a
situação de "atraso" e "arcaísmo" na zona rural, para usar os termos da época. Assim, a
partir desses anos, malgrado a vontade do setor latifundista mais conservador de que a
questão agrária continuasse a não existir, crescia o debate sobre as possibilidades de
transformações no universo rural, tanto da "esquerda-revolucionária" quanto do Estado. Ao
mesmo tempo, esses anos presenciaram a progressiva publicização tanto a partir da
identidade política de camponês quanto dos problemas que enfrentava, produto de um
conjunto de lutas sociais por certos direitos trabalhistas, sociais e agrários dessa categoria
que se firmava enquanto classe social (Medeiros, 2002).
O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1977) trabalha com a noção de identidade
como um produto de lutas. Para ele, a representação que os grupos fazem de si mesmos e
dos outros contribui, em grande parte, para fazer deles aquilo que eles são e o que fazem.
21
Por complexo rural entendemos um conjunto intrincado de atividades agrícolas e manufatureiras
indissoluvelmente ligadas e internalizadas nas fazendas, que reproduziam em nível local os setores
agrícolas e manufatureiros que eram a base da economia colonial brasileira. Mais detalhes em Silva, 1996.
Essa representação, por sua vez, não é um dado ou um simples reflexo, mas fruto de ações
de construção que se realizam a cada momento, nas lutas entre os grupos para imporem a
representação do mundo social mais de acordo com os seus interesses. Dessa forma, uma
das facetas da dominação estaria, justamente, na imposição de uma representação do mundo
social. Ela incidiria sobre a produção da identidade social do dominado. Os grupos
dominados se constituem, assim, naquilo que Bourdieu chama de uma “classe-pour-autri”,
isto é, uma classe que conta com uma verdade objetiva de si mesma que não foi ela quem
produziu. E de todos os grupos dominados, aquele onde isto se colocaria de forma mais
evidente seria o campesinato (Grynspan, 1987:86). Entenderemos o processo de disputa
entre mediadores políticos segundo a teoria de Pierre Bourdieu, que nos diz que as lutas
travadas no campo político têm uma dupla determinação: ao mesmo tempo são lutas entre
os seus agentes (os próprios mediadores) pelo poder, e são também lutas pelos grupos
sociais que se encontram fora do campo.
Moacir Palmeira, antropólogo do Museu Nacional da UFRJ, em um texto e um
artigo publicado na coletânea Igreja e Questão Agrária (Palmeira, 1985, 1975), se ocupou
de duas questões: o porquê da diferença na periodização dos sindicatos de trabalhadores
rurais em relação aos sindicatos urbanos no Brasil, e o papel da CONTAG e do
sindicalismo rural na formação da identidade política camponesa. Privilegiando a análise
de relações de poder, o autor defendeu que foi a diferenciação política do campesinato e a
redefinição das relações entre este e o Estado que possibilitaram a “internalização da luta de
classes”. Parte desse processo complexo se deveu à substituição de mediadores tradicionais
por novos, capazes de introduzir novas diferenciações sociais no seio da comunidade
camponesa tradicional. Por fim, a autor concluiu que foi a mobilização política que gerou o
campesinato no Brasil como uma identidade política nova. Algumas das hipóteses
sugeridas nesse pequeno artigo de Moacir Palmeira parecem ter suscitado uma série de
novas questões para estudos posteriores, como demonstra sua constante citação.
É nesse ponto da conjuntura política e econômica brasileira, momento de intensas
transformações, que se situam os debates sobre a “questão camponesa” dentro do Partido
Comunista Brasileiro. Um dos primeiros pesquisadores comunistas a tentar definir a
especificidade desse grupo social foi Caio Prado Jr., ainda na década de 1940, com a
intenção de
"dar à expressão campesinato um conteúdo concreto e capaz de delimitar uma
realidade específica, dentro do quadro geral da economia agrária -- trabalhadores e
pequenos produtores autônomos que, ocupando embora a terra a títulos diferentes --
proprietários, arrendatários, parceiros... -- exercem sua atividade por conta própria.
Esse tipo de trabalhadores, a que propriamente se aplica e que se deve reservar a
designação de camponeses, forma uma categoria econômica e social caracterizada e
distinta dos trabalhadores dependentes que não exercem suas atividades produtivas
por conta própria e sim a serviço de outrem (...) (PRADO JR., 1966, 204/5)".
22
É importante notar, porém, que em resenha do livro Manual de Economia Política, publicado pelo
“Instituto de Economia da Academia de Ciências da URSS” (tradução espanhola), presente no n. 5 da
Revista Brasiliense (maio-junho de 1956), Caio Prado Júnior já acusava a impropriedade do uso do
“modelo colonial” que analisava a questão agrária brasileira em termos de “restos feudais”. No entanto,
nesse texto de 1956, não apontaria com tanta veemência, como aconteceria nos artigos de 1963 e 1964, os
erros políticos provocados ao se considerar a existência de um importante setor camponês no Brasil
(FRIED DA SILVA, 2005).
23
Caio Prado Júnior, “O Estatuto do Trabalhador Rural”, Revista Brasiliense, n. 47, maio-junho de 1963, p.
1.
verificados nos “setores mais atrasados do país” como permanências do longo período de
utilização da mão-de-obra escrava no Brasil24.
A negação da existência dos camponeses no Brasil por Caio Prado Júnior pode ser
considerada um desenvolvimento de formulações anteriores nas quais defendeu que o
Brasil seria capitalista desde a origem, premissa que fundamentou toda uma corrente de
interpretação historiográfica que se consolidou a partir da Universidade de São Paulo
(USP). A partir de uma visão circulacionista, todo um conjunto de pesquisadores concluiu
que o Brasil participou de uma suposta fase comercial do capitalismo através de sua
inserção no circuito mercantil formado no Atlântico com a expansão marítima européia
iniciada na passagem do século XV para o XVI. Inserção com um papel bem definido, qual
seja, o de fornecer matérias-primas produzidas em grandes propriedades monocultoras que
se utilizavam largamente de mão-de-obra escrava.
Em linhas gerais, Caio Prado Júnior lançou as bases desse modelo interpretativo no
livro Formação do Brasil Contemporâneo. No texto “O sentido da colonização”, o autor
apontava os “objetivos” que, na sua opinião, nortearam a montagem da colônia portuguesa
na América, isto é, servir como espaço de exploração. Podemos perceber ainda hoje uma
relativa influência da tese do “capitalismo desde a origem”, principalmente entre os
historiadores paulistas. Sem podermos avançar na discussão sobre os modelos
interpretativos de nosso passado colonial, é importante apenas ressaltar que o debate entre
Caio Prado Júnior e os intelectuais que defendiam a “tese feudal”, entre eles Alberto Passos
Guimarães, passava por uma disputa sobre o passado do país, pois era na história colonial
que buscavam alicerçar suas posições.
Em concordância com Carlos Maurício Fried da Silva, em importante balanço da
obra de Caio Prado Jr sobre a questão agrária (2005), consideramos que a negação da
existência da “classe camponesa” no Brasil no pensamento de Caio Prado Júnior já se
encontra devidamente superado na historiografia, principalmente com as pesquisas que se
desenvolveram inspiradas na idéia de “brecha camponesa” presente na obra de Ciro
Cardoso e Jacob Gorender, demonstrando a existência de setores camponeses nos períodos
24
Idem, ibidem, p. 12.
colonial e imperial da história do Brasil 25, quando se desenvolveu novo modelo explicativo
que se convencionou denominar de “modo de produção colonial-escaravista”26.
Mas também é importante frisar, sobretudo em um balanço historiográfico, que a
peremptória negação da existência de uma agricultura camponesa no Brasil sustentada por
Caio Prado Júnior nos seus dois textos publicados na Revista Brasiliense nos anos de 1963
e 1964 não é encontrada nos seus artigos anteriores presentes nessa mesma revista. Antes,
Caio Prado Júnior reconhecia a existência dos camponeses no Brasil e a importância da
desconcentração da propriedade fundiária como política de reforma agrária para o país27.
Mesmo nestes últimos textos, o reconhecimento, mesmo que indireto, da existência de um
setor camponês pode ser percebido na importância que deu à reforma agrária entendida
como parcelamento das grandes propriedades e posterior distribuição para os “trabalhadores
sem terra”28.
Carlos Maurício Fried da Silva (2005) sustenta que o próprio raciocínio do autor se
modificaria durante os anos. Nos principais artigos produzidos sobre a questão agrária, nos
anos de 1960 e 1962, além de colocar como primeira tarefa da reforma agrária a
desapropriação das grandes propriedades de terra e não a extensão da “legislação social-
trabalhista” para os “trabalhadores rurais”, Caio Prado Júnior defendeu que uma maior
oferta de terras criaria melhores condições para o desenvolvimento das lutas dos
empregados rurais por melhor remuneração. Já nos textos produzidos nos anos de 1963 e
1964, defenderia o contrário, isto é, que a ampliação dos direitos trabalhistas para o campo
levaria ao parcelamento da terra, já que a aplicação dessa legislação encareceria a mão-de-
25
O Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense concentrou um
grande número de trabalhos que percorreram essa trilha aberta por Ciro F. S. Cardoso. Nesse sentido,
podemos destacar as pesquisas de Márcia Maria Menendes Motta, Nas Fronteiras do Poder: conflito e
direito a terra no Brasil do século XIX, 1998; Hebe Mattos de Castro, Ao Sul da História, 1987; Sheila de
Castro Faria, Terra e Trabalho em Campos de Goitacases (1850-1920), 1986; entre outros, que, em
grande medida, comprovaram empiricamente a existência dos camponeses na formação do Brasil.
26
Uma síntese interessante sobre essa discussão pode ser encontrada na introdução do livro de João Fragoso
& Manolo Florentino, O Arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil
no Rio de Janeiro (1790-1840), 1993.
27
Carlos Maurício Fried da Silva (2005) se refere ao uso do termo “servil” e à expressão “semifeudalismo”
que aparecem em alguns momentos nos diferentes textos de Caio Prado Júnior produzidos no período
pesquisado.
28
Caio Prado Jr. Contribuição para a análise da questão agrária no Brasil, in Revista Brasiliense, n. 28,
março-abril de 1960) e Nova Contribuição para a análise da questão agrária no Brasil in Revista
Brasiliense, n. 43, setembro-outubro de 1962.
obra, exigindo, assim, dos grandes proprietários investimentos em tecnologia para
compensar o aumento dos custos com aumento da produtividade29.
Como observamos, Caio Prado Júnior não ficou imune ao clima conturbado
daqueles anos, produzindo interpretações divergentes de acordo com o avanço da
conjuntura. O que, aliás, não deve ser entendido como nenhum demérito, mas sim como
característica da evolução do pensamento social brasileiro ocorrida naqueles intensos anos
das décadas de 1950 e 1960. Mesmo para além do circuito comunista, se pudermos resumir
o ambiente intelectual e político de 1950 até 1968, poderíamos enxergar que, para a
sociedade civil brasileira daquele momento, a questão agrária era um problema que deveria
ser superado por um movimento nacional de transformação, mesmo sabendo dos rumos
diversos que cada grupo (trabalhistas, comunistas, católicos, proprietários) imprimia a essas
mudanças. Havia um consenso nacional no desejo de democratização interna,
industrialização e justiça social, e isso marcava o paradigma da questão agrária naquele
momento.
Mas, a partir do golpe militar, o debate sobre a questão agrária perdeu sua
polarização e deixou de ser propriamente um debate. Isso porque a repressão às oposições
políticas e a aplicação sem meios-termos do receituário da "modernização conservadora" no
campo se tornou a proposta claramente vencedora. Isso gerou uma grande crise e forçou
uma reestruturação das teses de esquerda, motivada pela tentativa de compreender, ou
mensurar, os efeitos desta modernização para as classes sociais envolvidas no processo, e
depois, revisitar as teses das décadas de 50 e 60 sobre a questão (PRADO JR, 1966).
De fato, o governo ditatorial implantado sabia bem a quem agradar e, já no final dos
anos 70, o Estado tinha sido eficaz no aprofundamento das relações capitalistas no campo:
aumento de produtividade e do mercado interno, internalização do D1 agrícola nos
complexos agroindustriais, diferenciação do campesinato tradicional, criando uma situação
bem diferente da que havia antes de 1950. Nestes anos, a concepção de Reforma Agrária
em curso se tornou praticamente sinônima de "política de terras", e isso também se explica
com o termo 'modernização conservadora': processo em que transformações na base técnica
e econômica não tiveram correspondência nos planos social e político. Disso decorreram
'conseqüências perversas', dentre elas a expropriação de milhares de famílias por empresas
capitalistas ou pela especulação fundiária das metrópoles em expansão, concentração das
29
Id., ibid., p. 10.
propriedades, disparidade das rendas, êxodo rural, aumento da exploração tanto dos
empregados rurais quanto dos minifundistas, deterioração da qualidade de vida da
população rural e do meio-ambiente (SILVA, 1996; STÉDILE, 1994; LEITE &
PALMEIRA, 1998).
Neste contexto, começaram as discussões de alguns grupos de pesquisadores
brasileiros, sobretudo antropólogos do Museu Nacional, sobre o problema específico do
desenvolvimento capitalista aqui, onde a 'modernização conservadora' se dera a revelia
tanto de grupos de oposição política quanto de grande parte dos pesquisadores do tema.
Estas mudanças no universo rural brasileiro eram fato social que tinha que ser mais bem
entendido, e para isso foram buscados os conceitos e teorias já dados no cenário intelectual
da época, marcadamente no campo do marxismo europeu. Dentre os trabalhos que
começaram a ser produzidos aqui no início dos anos 70 sobre sistemas econômicos
camponeses,
Concordamos aqui que o uso ou não do conceito de camponês para designar um tipo
social no Brasil se relaciona com a subestimação (ou não) da penetração do capitalismo no
campo levando à proletarização rural; e também com a prioridade da pequena propriedade
em projetos de reforma agrária, para saber se a reivindicação básica dos rurícolas é a posse
da terra ou o aumento de salário. É essa problemática que dá o caráter extra acadêmico
deste “debate agrarista”, e suas profundas motivações políticas (VELHO, 1979).
É fundamental conhecer os trabalhos de José de Souza Martins como balizas deste
debate, ele que se apresenta como o fundador da sociologia rural no Brasil. Professor da
USP por quarenta anos, durante boa parte deste período se dedicou a pesquisar e pensar as
transformações no mundo rural brasileiro, que, para ele, eram sintomáticas das
características peculiares que assumiu o desenvolvimento capitalista no Brasil. Os novos
conceitos criados por ele, somados à inversão das premissas com que tradicionalmente era
tratado o mundo rural, fazem de sua obra um divisor de águas do “debate agrarista”
brasileiro30.
Analisando criticamente o que já havia sido produzido de conhecimento sobre o
mundo rural brasileiro, Martins concluía que este era marcado por uma análise simplificada,
onde predominavam análises evolucionistas e economicistas, preocupadas em explicar a
sociedade brasileira sob a ótica de modelos europeus, ou a partir de categorias estranhas que
não correspondiam à realidade social brasileira. Sua crítica estava baseada principalmente
na existência de uma leitura ortodoxa do marxismo realizada por muitos autores no Brasil,
amplamente dominante naqueles anos. A seu ver, as leituras “apressadas” das obras de
Marx apresentavam uma sociedade que evoluía linearmente em modos de produção, como
se o modo de produção fosse unicamente caracterizado pelo processo de trabalho. Essas
análises desconsideravam o processo de exploração e as formas de dominação e sujeição,
estas sim definidoras do modo de produção. Para essas teorias, a mesma mentalidade que
regeria o capitalista urbano regeria o capitalista do mundo rural. Martins afirmava que estes
equívocos, presentes em muitos estudos sobre o mundo rural, continuavam a separar aquilo
que o capital já unificara, o rural e o urbano. Além disso, Martins ressaltava que essas teses
careciam de pesquisas empíricas, de investigações teoricamente fundamentadas, “em que o
pesquisador tem o domínio tanto do método de investigação quanto do método de
explicação” (Martins 1986: 100).
Martins partia de algumas hipóteses principais para compreender a dinâmica do
rural. Sua tese central é de que a complexidade do capitalismo no Brasil se expressa, no
mundo rural, pelos diferentes ritmos e tempos deste desenvolvimento (Soto 2002: 105).
Neste sentido, ele relativizava as teses de Marx em “O Capital” e se utilizava mais dos
“Grundrisse” (1991), para provar que os modos de produção coexistem e se transformam
em ritmos diferentes.
Para provar essa tese, Martins fez uma série de estudos empíricos na região da
fronteira, ratificando que era possível a produção capitalista de relações não-capitalistas
30
É importante frisar que as obras de referência citadas na bibliografia não esgotam nem de longe o conjunto
da produção de José de Souza Martins nem de suas reflexões, já que ele escreveu mais de 195 textos, entre
livros e artigos publicados. Aqui se faz um recorte para um das fases de trabalho do autor, que versa sobre o
“debate agrarista”. Para os interessados na obra desse autor, há também uma tese e uma dissertação que
versaram sobre este autor e discutiram suas balizas teóricas principais (Soto 2002 e Alves 2003), e uma
entrevista concedida pelo próprio Martins para a revista Informe, no segundo semestre de 2004.
(Soto 2002: 106,144-146). Distinguiu os termos não-capitalista e pré-capitalista,
abandonando esse último por estar este carregado de evolucionismo (Soto 2002: 144).
Criticou os evolucionistas, dizendo que
“O que define a natureza de um processo não é seu resultado, mas o modo como foi
obtido, isto é, o modo de produção do excedente econômico. No caso da escravidão,
o resultado pode ser capitalista (na produção de mercadorias), mas o modo de obtê-
lo não é.” (Martins 1997:96)
Por isso, ele postula que não dá para avaliar só o resultado, mas sim todo o processo
social em si, porque só é possível dizer que o capital é progressista e o camponês é
reacionário se se tem uma visão já teleológica e dogmática do processo de expropriação
(Soto 2002:186). Segundo Martins,
“Seria pura imbecilidade tentar convencer o camponês que está sendo despejado,
cuja casa está sendo queimada pelo jagunço e pela polícia, de que deve aceitar tal
fato como uma contingência histórica, como ocorrência que é ruim para ele, mas que
é boa para a humanidade (...) pois é o que vai permitir o desenvolvimento do capital,
daquele mesmo que o antagoniza patrocinando violências”. (Martins 1981:13 apud
Soto 2002: 191-2)
Por último, o autor defende que não são as relações de assalariamento que
caracterizam o capitalismo no campo, mas sim a instauração da propriedade privada da
terra, isto é, a mediação da renda capitalizada entre produtor e sociedade (Soto 2002: 124,
143; Martins 1975). Para ele, o campesinato surge na transição do trabalho escravo para o
livre, com a lei de Terras de 1850 e a imigração estrangeira (Martins 1979). É a propriedade
privada da terra que provoca as contradições sociais e crises no campo e dá origem à
questão agrária. O movimento de expropriação, gerado pela penetração da propriedade
privada capitalista, é o que dá início à questão agrária, pois gera migração para terras mais
distantes, migração para as cidades ou resistências à expulsão (Soto 2002: 126-127).
de sentido" pudesse ter em relação às outras" (...) no caso, as análises do eixo Rio-São Paulo.
(OLIVEIRA, 2001).
restrito levando a necessidade de "ir a campo", fazer entrevistas ou buscar novos meios
alternativos aos arquivos, métodos estes que continuam sendo mais habituais às outras
ciências sociais (HOBSBAWM, 1998).
Assim, a historiografia brasileira 'dos de baixo', ao priorizar o olhar para grupos
sociais não dominantes nem determinantes, optou pelos caminhos que considerou melhores
para elucidação de processos históricos e seus problemas teóricos: os escravos na colônia,
os homens livres e pobres no império e o proletariado urbano na primeira república. Estas
vertentes são fruto de um amadurecimento muito benéfico do olhar que incidia sobre estes
grupos sociais e dos métodos que os tratavam, graças à trajetória de debates internos ao
campo historiográfico e às influências de outros campos disciplinares, sobretudo da
antropologia (PEDROZA, 2003; NEGRO, 1997; SERNA & PONS, 1993).
Mas, ao mesmo tempo, enquanto a historiografia se encarregaria de pensar um
passado com possibilidades de futuro, ou, em outras palavras, as origens do que (e de
quem) construiria o futuro, ficou relegado à antropologia o estudo sobre grupos que "não
fizessem diferença" no conflito com o capitalismo mundial (índios, bruxas, camponeses).
Pelas mesmas razões por que o camponês foi considerado marginal e residual na
produção, a avaliação de suas representações e ações na análise política sempre foi
minimizada. A minoridade conferida à ação política do camponês está presente em
diversas tendências de interpretação sobre o meio rural brasileiro. É ilustrativo
relembrar as análises que explicavam o comportamento político do camponês como
patológico ou certas concepções da esquerda que julgam o camponês um indivíduo
preso a ficções alienantes, cabendo aos ativistas a tarefa magistral de "ensiná-lo"
(Moura, 1986: 52)
Considerações finais
Espero ter conseguido percorrer com o/a leitor/a um pouco da trajetória histórica dos
estudos sobre campesinato na historiografia brasileira. Mas este artigo tem muitas
limitações. Dentro deste limite de páginas, seria muito difícil fazer uma discussão mais
completa, das principais obras sobre o campesinato dos fisiocratas até toda a produção
acadêmica atual. Por isso, o recorte necessário que fiz tentou pontuar as principais
discussões sobre a “questão camponesa” dentro da historiografia de vertente marxista
brasileira, com suas principais influências internacionais, inflexões políticas e alguns
debates com outras escolas.
Essa linha-base exclui, deliberadamente, tanto os fisiocratas quanto todos os
trabalhos que, baseados em referenciais teóricos mais diversificados, e atuais, já se colocam
outros problemas que não as questões básicas pensadas pelos marxistas durante pelo menos
um século (quais sejam, a extinção/diferenciação do campesinato pelo capitalismo).
Busquei pontuar o início dessas mudanças em meados da década de 1970, com o início da
discussão sobre o modo de produção escravista colonial e o novo papel dos homens livres e
pobres na história.
A idéia era que esta “revisão de bibliografia contextualizada” pudesse explicar as
razões das preferências da historiografia pela análise de outros grupos de trabalhadores que
não o campesinato. A hipótese que aventei é de que, malgrado as origens comuns destes
estudos em fins do século XIX, a ossatura já consolidada dos campos acadêmicos com o
ressurgimento do interesse pelo tema, na década de 1960, fez com que os interesses e
problemáticas da historiografia tivessem se distanciado deste recorte.
Por isso, nos dias de hoje, no debate sobre campesinato falta que os historiadores e
historiadoras vejam que podem contribuir com o hábito de desnaturalizar o que parece
dado desde sempre, pela busca de articulação entre os diferentes fenômenos, pelo costume
de pensar processos, integrando tempo e lugares diferentes (FONTES, 1998: 2). Se já nos
atrasamos ou ignoramos este debate, considero este silenciamento uma falta grave.
Primeiro, porque me parece considerar como “poeira da história” um campo tão crucial
para nosso devir quanto o é a questão agrária nos países de terceiro mundo. Depois, porque
algumas vozes já têm há muito nos alertado que em fatias acadêmicas o verdadeiro
conhecimento nunca se dará, e não parece ser esse isolamento o caminho para qualquer
proposta supradisciplinar de sucesso (SANTOS, 1989). Enfim, o campesinato precisa de
reflexão histórica. Não de qualquer uma, mas daquela que
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RESUMO
Após as vitórias sobre Marco Antônio e Crasso em Actium, Augusto implementou mudanças na
política militar, ao ser aclamado imperador de Roma, centralizando o comando do exército sob seu
controle. O objetivo deste artigo é demonstrar que sua política contribuiu para a construção de uma
nova ordem militar, cuja influência estendeu-se por toda a história política de Roma.
PALAVRAS-CHAVE: Augusto, Exército Romano, Política Romana
ABSTRACT
After the victories over Marcus Antony and Crassus in Actium, Augustus implemented changes of
the military policy and centralized the command of the Army under his control immediately after
he was acclaimed emperor of Rome. The aim of this article is to demonstrate that his policy
contributed to construct a new military order and its influence was spread throughout the political
history of Rome.
KEY-WORDS: August, Roman Army, Roman Policy
Então, ele recrutou tropas e doravante governou o Estado, primeiro com Marco Antônio e
Lépido, depois só com Marco Antônio durante doze anos e, finalmente, sozinho por
quarenta e quatro anos ( Suetônio, VIII, 3).
Na idade de dezenove anos, recrutei, por iniciativa própria e com os meus próprios
recursos, uma armada que me permitiu dar liberdade ao Estado que era oprimido por uma
facção. Como recompensa, o Senado, por meio de seus decretos honoríficos, admitiu-me
em seu círculo, no consulado de Caius Pansa e de Aulus Hirtus, dando-me o direito de falar
no mesmo nível dos consulares, e ainda, conferiram-me o imperium” ( Res Gestae, I, 1-233)
Quando ela adentrou o palácio, no desejo de agradá-la, presenteou-a com regalos que não
se pode dizer de porte pequeno, nem de pouco valor: a Cele-Síria, Chipre e grande parte da
Cilícia; somada à região da Judéia produtora de bálsamo e parte da Arábia Nabatéia que
33
As traduções são de responsabilidade da autora.
confina com o mar Exterior. Estes presentes provocaram indignação nos romanos.
(Antônio, XXXVI, 2)
No quadro retratado por Tácito, a fonte relata como a falta de liderança no partido
Juliano propiciou a Augusto a ocupação desse vazio no comando, utilizando para isso do
emprego da força militar. Ao instaurar o medo na sociedade, por intermédio de uma
vigilância permanente, Augusto intimidava os mais acomodados, enquanto conquistava
novas regiões com o uso da força militar, dessa forma, ele pode reduzir o preço do milho e
com isso, obter o apoio popular. A importância do exército na constituição do Império é
sentida na eliminação dos opositores e na conquista de novos territórios proporcionaram a
Augusto sua ascensão e a conseqüente centralização do poder em suas mãos.
O exército de Augusto
Com o recebimento das honras conferidas após a batalha de Ácio, Augusto unificou
os exércitos, alcançando-se à condição de líder supremo da corporação. No parecer de
Southern (2001: 197), a liderança de Augusto devia-se ao fato de que, embora a sua posição
fosse a de Princeps, o primeiro entre os cidadãos, e de Imperator, comandante supremo do
exército, seu comportamento era modesto e comedido. A legitimidade de seu comando
estaria na auctoritas inerente à sua posição e invocada por Augusto, o que explicaria o fato
de ele não ter criado um posto equivalente ao que ocupava no exército. Concluímos que
Augusto não ambicionava incorporar sua imagem à do exército ocupando o mais alto posto
dentro da corporação, seu intento era afirmar-se como um civil, cujo poder de imperium lhe
conferia o comando do exército, deixando claro que os soldados lhe deviam obediência,
uma vez que ele representava a sociedade civil. Dessa forma, colocava a sociedade civil
acima do corpo militar, invertendo a ordem estabelecida no período das guerras civis.
No comando da corporação militar, ainda que Augusto propagasse a paz em sua
ideologia estatal nos seus monumentos e construções (MACDONALD: 1986: 146), ele não
podia romper com o que Finley (1985: 80) denominou de “Estado de conquista”. A Pax
Romana, como concluiu Woof (1993: 172), não estava relacionada com a ausência de
guerras , mas significava um período em que os acordos militares eram de caráter
terminativo ou preventivo. Para Woolf (Idem: 176), esse período representava a unidade do
povo romano e o sentimento de humanitas criado pelo poder romano em seus assuntos
políticos, relacionando a Pax ao seu Principado (Idem: 178). Pois como Le Bohec (1994:
207-208) apontou, a ideologia imperial estava embasada no trinômio: vitória, paz e
prosperidade.
Na prática, a política romana mantinha a sua natureza expansionista pautada no seu
poderio militar, assim, o exército permanecia uma peça fundamental na política de Augusto.
É preciso considerar que Augusto escreveu nas Res Gestae que:
Eu tornei o mar pacífico e livre de seus piratas. Nesta guerra eu capturei cerca de 30.000
escravos os quais tinham escapado de seus donos e pegado em armas contra a República, e
eu os devolvi aos seus donos para a punição” (Res Gestae, XXV,1)
A crer nos números de Augusto, conclui-se que seu exército era numeroso e bem
armado para dominar tantos escravos. A questão principal é compreender como Augusto
conseguiu tantas vitórias militares, sem conhecer profundamente os assuntos de guerra?
Colaboraram para o seu sucesso os conselhos e as ações militares de Agripa, e,
fundamentalmente, a presença atuante do exército nas conquistas do imperador, alcançada
pela profissionalização de seus membros através do pagamento do soldo e da
implementação de uma rígida disciplina militar. Além dessas medidas, outra de grande
importância foi a redução do número de legiões do exército que passou de cinqüenta para
vinte e oito, redistribuindo-as em locais estratégicos visando a proteger as fronteiras do
Império e a montar um sistema de segurança interna de Roma.
Augusto foi o primeiro a criar um exército permanente com vinte e oito legiões, mas
no ano de sua morte incluía vinte e cinco permanentes, com aquartelamento regulares,
efetivos e nomes definidos. Três legiões – XVII, XVIII e XIX – tinham sido aniquiladas no
desastre de Varus e esses números jamais voltaram a ser usados. Com o pagamento do
soldo, houve a profissionalização do exército e, como o soldado dependia da instituição,
validou-a desenvolvendo um espírito corporativo imprescindível à coesão nas ações bélicas.
A dedicação exclusiva ao serviço militar favoreceu a criação de novas técnicas que
viabilizaram a conquista de territórios antes considerados inexpugnáveis (KEPPER, 1998:
160-161).
Entretanto, somente o pagamento do soldo não geraria resultados tão positivos à
armada romana, fez-se necessária a organização interna da corporação, com o
estabelecimento de regras visando à criação de uma disciplina, ou seja, de uma ideologia
militar que garantisse a fidelidade do soldado ao seu Imperador. O exército imperial
diferenciava-se, em muitos aspectos, do exército republicano, porém nota-se a permanência
de práticas correspondentes ao período da República, como nos relata Suetônio:
Ele efetuou muitas mudanças e introduziu inovações no exército, ao mesmo tempo em que
reviveu alguns costumes antigos. Ele exigiu rigorosa disciplina. E foi com muita relutância
que ele permitia que mesmo seus generais visitassem suas esposas, mas somente na época
do inverno. (Suetônio, XXIV,1)
O soldado de Augusto
Á medida que o Império crescia, aumentava a necessidade de efetivo militar para as
guerras de conquista, bem como para a garantir o domínio das províncias conquistadas. O
número de ricos cidadãos romanos mostrou-se insuficiente para a demanda do exército,
assim foi preciso incluir os pobres nas fileiras militares. Conforme Carrié (1991: 90), o
exército ao abrir-se aos pobres e aos proletários, em busca de prestígio, de promoção no
estatuto social e de salários, sem o sentimento de cidadania de outrora, dissociava o ofício
das armas do ofício do nobre cidadão. Segundo o autor, tal característica do Exército de
Augusto será a marca inovadora e permanente da versão do soldado romano.
Como formação militar, o soldado recebia um treinamento inicial que consistia em
marchar diariamente a fim de aperfeiçoar o passo militar. Nos meses de verão, o soldado
marchava vinte milhas romanas que deveriam ser concluídas em cinco horas, nessa estação,
os soldados também praticavam a natação. Outros exercícios como a corrida, salto, treino
com armas e carregamento de bagagens também eram executados pelo soldado (WATSON,
1985: 54-55). O estágio seguinte compreendia o aprimoramento das técnicas adquiridas
durante o primeiro treinamento. O soldado recebia um treinamento físico específico
desenvolvendo as habilidades com as armas, bem como aprendia a montar cavalos, sendo
capaz de executar várias acrobacias com o animal (Idem: 61).
Após o treinamento inicial, o soldado era preparado para o combate em campo
marchando corretamente por longas rotas com pesadas bagagens, aprendendo técnicas de
sobrevivência em ambientes hostis e reconhecendo o território, estes soldados eram
conhecidos como as mulas de Mário (muli Mariani). O objetivo básico desses treinamentos
era conferir ao exército romano superioridade militar sobre o bárbaro nos embates. O
soldado formado poderia aspirar a funções diferenciadas, entre elas, a de immunes, um
soldado que era excluído dos serviços inferiores do acampamento (Idem: 75).
A despeito das mudanças implementadas por Augusto no exército, vários aspectos
da antiga organização militar atuavam conforme a tradição, de acordo com Carrié (op.cit.:
91) dois princípios fundamentais foram mantidos: o conceito de cidadão-soldado,
reinventado para soldado-cidadão e a exclusividade dos cargos de comando conferida às
classes superiores. Ao exigir soldados com formação literária e aritmética para os cargos
superiores, a seleção social que subjazeu no processo de escolha do comandante favoreceu
a permanência dos bem-nascidos nos postos mais elevados e com salários diferenciados
(TELLEGEN-COUPERUS, 1993: 81). O soldado, com conhecimentos literários e
aritméticos, pertencia ao grupo dos principales, dentre as diversas funções desempenhadas,
a mais comum era a de escrivão (librarius legionis), contudo, o cargo que despertava o
interesse do soldado qualificado era o de Centurião (WATSON, op.cit.: 77).
O soldado de Augusto recebia 225 denários por ano, a mesma quantia paga por Júlio
César, não se sabe ao certo qual o valor pago aos comandantes das legiões. Os vigiles
recebiam o mesmo valor dos soldados e as forças auxiliares, dependendo da função, poderia
receber de 100 a 225 denários por ano. Já um integrante da Guarda Pretoriana percebia a
quantia de 450 denários por ano (Idem: 95-99). Em um outro estudo no qual foram
analisados papiros referentes ao pagamento dos soldados estacionados no Egito, Alston
(1994: 121) concluiu que os auxiliares recebiam o suficiente para o pagamento das despesas
com a sobrevivência e com as armas de guerra.
O exército romano empregava o sistema de premiações e punições para estimular a
coragem do soldado e manter a disciplina do acampamento. A cerimônia da condecoração
servia para recompensar o soldado pela sua marcada contribuição a Roma, na qual ele
poderia receber colares (torques), bandanas (armillae) e discos (phalenae). O grupo dos
principales recebia coroas diversas como corona áurea, corona vollaris ou a corona
muralis. Castigos exemplares eram aplicados aos soldadoos que rompessem com a
disciplina militar, como por exemplo, o decimation, punição na qual dez homens de uma
cohorte eram escolhidos para que fossem apedrejados ou golpeados pelos demais soldados
da legião (Idem: 115-119).
Os severos castigos aplicados nos soldados indisciplinados e a rigorosa rotina
militar contrapunham-se à imagem que os cidadãos civis faziam do soldado-cidadão, visto
como dispendiosos, fanfarrões, enfim, um desperdício do erário. No entanto, o salário do
soldado de Augusto, se comparado ao pago na época dos Gracos, 112 denários e meio,
parece superior, entretanto, como observou Watson (op. cit.: 89), de 125 a. C. até o governo
de Júlio César, o soldado recebia o salário após descontar o alimento e as armas
consumidos, mas não pagava as vestimentas, enquanto na época dos Césares, havia a
dedução dos gastos com vestuário, alimentação e armamentos, cujos preços eram
reajustados mais amiúde, onerando as despesas do soldado (Idem: 89).
No entender de Carrié (op. cit.: 91), a exclusão do exército da sociedade civil foi a
razão preponderante para que esta perdesse o contato com a realidade militar, construindo
“verdades” a partir do imaginário popular civil sobre o soldado. Esse pensamento abstruso
dos civis transformou o soldado numa abstração na qual “o soldado é um miles, termo
singular com valor coletivo.” A visão equivocado do soldado alimentada pelos civis
contrapõe-se à narrativa de Suetônio na qual a disciplina era fundamental para o exército:
Depois das guerras civis, ele nunca chamou nenhum dos membros das tropas de
“companheiro”, nem na Assembléia e nem num edito, mas sempre “soldados” (...)
pensando que esse termo tão bajulador “companheiros” não condizia com a disciplina
militar, com a tranqüilidade dos tempos tanto no Estado como em seus assuntos privados
(Suetônio, XXV, 1)
O impacto dos salários pagos aos militares na economia dos locais em que estavam
estacionados nas fronteiras é percebido pelo aparecimento de cidades em torno dos
acampamentos. A importância do soldado na dinamização da economia dos vilarejos
ocorreu devido à sua condição de consumidor e, principalmente, pela sua atuação como
agente responsável pelo aumento da disponibilidade de crédito na região, o que se dava por
meio da concessão de empréstimos aos seus habitantes. O soldado operava como um agente
econômico, como concluiu Carrié (op. cit.: 111), na qualidade de consumidor ou na de
emprestador de pequenas somas, o soldado alimenta e propaga as formas monetárias da
economia. Nesse contexto, o soldado desempenhava um papel importante para o
crescimento econômico do Império, bem como para o fortalecimento das relações entre os
romanos e os provinciais.
Para Carrié (Idem: 108), outra contribuição dos soldados para o fortalecimento do
Império Romano estava na aculturação dos soldados oriundos das províncias, dessa forma,
eles atuavam como um agente de unificação cultural, já que o exército romano propagava a
sua “cultura militar”. A maior parte das legiões estavam estacionadas nas regiões menos
desenvolvidas do Império, e, em certa medida, os soldados poderiam ser considerados os
pioneiros da civilização romana. Segundo Watson (op. cit.: 144), os soldados eram o
elemento-chave para a romanização do Império. As influências da cultura romana nas
localidades onde havia legiões romanas apareciam nos hábitos alimentares, nas construções
e na religião de seus habitantes.
A lealdade do soldado a Augusto compõe o pilar da disciplina militar romana. Sua
fidelidade era assegurada pela propaganda estatal augustana, pelo pagamento do soldo, pelo
juramento prestado nas Sete Colinas e ainda, pelo sentimento de orgulho de ser membro do
exército da maior potência do mundo antigo. Embora, como apontou Keppie (1996: 382), a
excessiva confiança no potencial militar de algumas legiões auxiliares poderia funcionar
contra o Império, como por exemplo, na revolta da Panônia em 6 d.C. na qual os auxiliares
da Dalmácia voltaram-se contra o seu comandante romano Maroboduus.
Restringir a lealdade do soldado de Augusto ao recebimento do soldo, constitui-se
em uma visão tão equivocada quanto a de limitar o mérito de seu exército aos resultados de
caráter meramente militar, pois desconsidera a sua função dinamizadora da economia, tais
análises limitam o seu papel na disseminação da cultura romana pelos lugares mais
longínquos do Império além de sua importância na ocupação territorial do Império. Ainda
de acordo com Keppie (op. cit.: 377), em 16-14 a. C., Augusto e Agripa supervisionaram
um programa de colonização e assentamento de colonos nas províncias, provavelmente,
aqueles que lutaram em Ácio. Em suma, nota-se que Augusto percebeu no exército o apoio
necessário para o desenvolvimento de sua política imperialista, valorizando-o, prática
repetida por seus sucessores.
Conclusão
Sem desconsiderar a propaganda imperial presente nas artes cênicas, na literatura,
nas construções, nos monumentos, é preciso avaliar que a violência percebida na época
republicana não se dissipou com a mudança de governante, ela permaneceu, o que mudou
durante o Principado de Augusto foi o bem-sucedido controle da violência ainda existente,
bem como a eliminação dos grandes opositores e a cooptação dos pequenos.
Visto que a violência já estava entranhada na mentalidade dos romanos, foi
necessária a adoção de medidas eficazes para refreá-la, tais como; instauração de uma
milícia interna para controlar os ânimos mais exaltados, a criação de uma guarda pessoal
para o Imperador – Guarda Pretoriana - a fim de garantir-lhe estabilidade no poder. Além
dessas medidas, também pode-se destacar o posicionamento das legiões em territórios
estratégicos do Império para a proteção das fronteiras enfim, a violência no território
romano permanecia sob o controle do Imperador, que estava sob a égide do exército.
Em suma, desde a sua decisão de tomada do poder até a criação do Principado,
Augusto encontrou no exército a ferramenta mestra para operar mudanças na sociedade
romana, adotando políticas ordenadoras e voltadas para o desenvolvimento econômico e
social de Roma. O seu êxito deveu-se à eficiente política de propaganda imperial aliada à
uma rígida estrutura de segurança pessoal e do Império cujo pilar precípuo era a disciplina e
a fidelidade do Exército de Augusto. Tais procedimentos políticos estavam presentes nas
estratégias políticas dos imperadores subseqüentes a ele.
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DA ANTIGÜIDADE AO MEDIEVO:
O CRISTIANISMO E A ELABORAÇÃO DE UM NOVO MODELO CARITATIVO
RESUMO
A elaboração de um novo modelo caritativo é apontada por vários especialistas como um
dos mais significativos marcos da transição da Antigüidade ao Medievo. O evergetismo
clássico mostrava-se pouco viável no conturbado período das migrações germânicas, sendo
paulatinamente substituído pela caridade cristã. Este modelo caritativo, instigado pela
busca da intercessão divina e da remissão dos pecados, colocava a Igreja como
intermediária entre a recepção e a redistribuição dos donativos. Nesse sentido, percebe-se
que a caridade cristã foi um importante veículo de legitimação do poder político e
econômico da Igreja, e em especial, do episcopado.
PALAVRAS-CHAVE: pobreza, caridade, episcopado
ABSTRACT
The elaboration of a new charity model is pointed out by several specialists to be one of the
most expressive signs of transition from Antiquity to Middle Ages. The classical
evergetism was not much feasible during the restless period of Germanic migrations, being
replaced by the Christian charity. This new charity model, instigated by the search of
divine intercessions and by redemption of sins, placed the Catholic Church as an
intermediary between reception and redistribution of donations. In this way, Christian
charity became an important legitimation vehicle of political and economical power of the
Catholic Church, and particularly, of the bishopric.
KEY-WORDS: poverty, charity, bishopric.
O Evergetismo
O termo evergetismo é um neologismo derivado do grego cujo significado
aproximado seria “atitude beneficente”. Embora o conceito tenha sido utilizado por André
BOULANGER na década de 1920 e por Henri-Irinée MARROU na de 1940, é Paul
VEYNE em sua obra “Le pain et le cirque”, de 1976, que o desenvolve. (MAGNANI, 2005:
269). Na tradução ao inglês de que dispomos, VEYNE define evergetismo como “the
manifestation of an ‘ethical virtue’, of a quality of character, namely magnificence”.
(VEYNE, 1990: 14). Algumas críticas têm sido feitas recentemente ao conceito de
VEYNE, como enfatizar o argumento de manipulação das massas pela elite, desconsiderar
a diversidade social e colocar uma ênfase excessiva no aspecto político. (GARRAFFONI,
2004: 82). Embora matizado por suas limitações, o termo continua sendo utilizado por
muitos especialistas, visto que remete a uma idéia fundamental para o entendimento do
processo caritativo romano – a reciprocidade. Se os aristocratas romanos praticavam uma
atitude beneficente para a plebe, tal ato não era fortuito; desejavam receber algo em troca –
o reconhecimento de seu status.
Para entendermos a real dimensão do ideal de caridade romano temos de considerar
que foi justamente entre os notáveis municipais, mais que entre os nobres senadores de
Roma, que o evergetismo assumia seu verdadeiro caráter. Esse processo era favorecido pelo
fato de que as milhares de cidades que formavam o Império Romano possuíam uma relativa
autonomia face ao poder de Roma. Conforme VEYNE, os romanos “distinguiam mal
funções públicas e dignidade privada, finanças públicas e bolsa pessoal. A grandeza de
Roma era propriedade coletiva da classe governante e do grupo senatorial dirigente; assim
também cada uma das milhares de cidades autônomas que formavam o tecido do Império
era coisa dos notáveis locais”. (VEYNE, 1989: 103). É esse sentimento de posse da ciuitas,
esse anseio de ser um homem público por excelência que norteava os potentados locais na
prática do evergetismo. Quando um dignitário local ascendia a uma magistratura, era de
praxe que promovesse espetáculos, doasse uma volumosa soma ao erário da cidade ou
empreendesse a construção de um pomposo edifício público. Caso não estivesse em boas
condições financeiras no momento, comprometia-se por escrito a levar a cabo essas ações
um dia, pessoalmente ou por meio de seus herdeiros. (VEYNE, 1989: 104). Tais atitudes,
sob a ótica estritamente econômica, não eram muito compreensíveis, mesmo considerando
que, através das benesses de seu cargo, um nobre que desempenhava uma magistratura
tivesse oportunidade de retirar muito mais do que gastara pelo bem da cidade. Mais
enigmáticos seriam os casos daqueles que promoviam benefícios à ciuitas
independentemente de assumirem qualquer tipo de função pública. Banquetes, jogos e
construções de edifícios eram, amiúde, ofertados por livre e espontânea vontade de alguns
indivíduos.
Civismo e ostentação, eis as raízes do evergetismo numa sociedade em que as
esferas pública e privada estavam inexoravelmente intrincadas. O civismo remete a uma
idéia de dever para com sua sociedade que, no mundo romano, geralmente estava associada
à ciuitas. Dada sua estreita relação com o poder, os ricos sentiam-se naturalmente figuras
públicas. Convocavam seus concidadãos para participar das mais diversas comemorações e
não perdiam uma oportunidade para exercer, e demonstrar, seu civismo em prol de sua
cidade. Já a ostentação remete à idéia de demarcação social. Para um dignitário local,
contribuir para o bem da sua ciuitas também era contribuir para seu honor. Conforme Maria
Helena da Rocha PEREIRA, o conceito de honor
tem uma ligação muito clara à vida política romana, que se traduz, quer nas formas de
reconhecimento público [...], quer na própria expressão cursus honorum, que marcava a
progressiva ascensão dos cidadãos aos cargos principais da Urbe. [...] Reconhecimento
público do mérito, que actua como estímulo, e tem, por conseguinte, uma função
pedagógica na cidade. (PEREIRA, 1984: 336).
Embora influenciado por aspectos monetários, o evergetismo não era norteado por
uma racionalidade econômica, mas pela ostentação e civismo. Assim como muitos
dignitários em cidades com dificuldades econômicas se esquivavam de seus deveres
nobiliárquicos, outros tantos, em cidades mais prósperas, exerciam mais ativamente o
evergetismo. Petrônio traz excelentes exemplos do ostentatório mecanismo do evergetismo.
Durante um banquete, um dos convidados relata que seu amo patrocinaria um grande
espetáculo de gladiadores. Seu pai ao morrer, deixara-lhe trinta milhões de sestércios.
Desse modo, “se gastasse quatro mil, seu patrimônio nada sentiria, e seu nome seria
lembrado para sempre.” (Pet. Sat. XLV). Portanto, se, num primeiro momento, o patrono
desembolsava uma grande soma de dinheiro, recebia, do mesmo modo, uma grande
projeção social, tanto entre a plebe, como entre seus pares, assegurando seu honor. Porém,
se o espetáculo, desagradasse aos espectadores, longe de atingir a glória, o patrono tornava-
se motivo de chacota, conforme o caso de um evergeta que promoveu um pífio jogo de
gladiadores, que Petrônio descreve:
A caridade cristã
Até princípios da quarta centúria, a comunidade cristã respondia por cerca de dez
por cento da população do Império, mais concentrados no Oriente que no Ocidente, muito
mais nas cidades que no campo. (ORLANDIS, 1989: 42). A caridade cristã se desenvolveu
face às dificuldades com que se debatiam os membros dessa escassa comunidade de
cristãos no alto império. Tinha o intuito, num primeiro momento, de sustentar viúvas,
órfãos, doentes e todos os cristãos que se encontravam com algum tipo de necessidade. Tal
como os judeus, os cristãos também se viam na obrigação de atender aos seus necessitados,
visto que eram ignorados pela magnanimidade romana. Contudo, por volta do século III os
cristãos estabeleceram a caridade também aos seus sacerdotes, para que pudessem
desempenhar de maneira mais apropriada as liturgias. Antes da conversão do Império ao
cristianismo eram esses os dois deveres materiais dos cristãos – auxiliar seus irmãos de fé
nos momentos de dificuldades e sustentar o clero. (BROWN, 2002: 24). Desenvolvia-se,
dessa maneira, como uma rede de solidariedade entre membros de uma comunidade
numericamente pouco significativa durante os primeiros séculos do Império.
Essa situação se transformou com a rápida disseminação do cristianismo e com a
associação entre Igreja e Império fomentada por Constantino. Em pouco mais de três
séculos de existência, o cristianismo se converte em religião majoritária do Império
Romano. Dois séculos depois da adoção do cristianismo como religião oficial de Roma, não
há mais registros de pagãos confessos. O poder episcopal, cuja atuação era restrita e difusa,
é fomentado a partir de Constantino, quando a Igreja é instigada a ingerir em assuntos que
até então eram de competência exclusiva do poder público. Uma das mais significativas
atribuições, que exemplifica essa projeção política do episcopado, foi sua paulatina inserção
nos assuntos judiciários. Do foro privilegiado, concedido pelo Código Teodosiano, os
bispos, já na segunda metade do século IV, haviam alcançado o título de defensor ciuitatis.
Mesmo após o período das invasões germânicas, os bispos não perderam sua influência
como autoridades citadinas. Pelo contrário, no vácuo institucional deixado pelo
esfacelamento da máquina administrativa romana, os bispos ampliaram sua esfera de
atuação, passando a gerir questões de ordem administrativa e a interferir mais ativamente
em assuntos da vida política. Tal situação se devia, certamente, pela projeção ideológica da
figura do bispo. Porém, mais significativo, é que “o episcopado soube garantir a expansão
de sua influência sobre clérigos em funções administrativas e com a prática da assistência
material e jurídica às populações urbanas necessitadas”. (SILVA, 2002: 82). Em outras
palavras, a interação do bispo com as comunidades urbanas era maior que a das elites
administrativas romanas. Os bispos estavam mais atentos aos problemas daquela
comunidade, e poderiam atuar de maneira mais constante na resolução de problemas
quotidianos. É o caso de bispos como Idácio de Chaves e o Papa Leão I que, na qualidade
de maiores autoridades municipais, negociam com chefes Suevos, Visigodos e Hunos para
tentar evitar o saque de suas cidades.
Desse modo, o poder imperial viu na aliança com a Igreja um meio de aliviar as
tensões sociais que as comunidades urbanas em crise geravam. (BAJO, 1986: 193).
Amenizar o problema de uma indigência generalizada era algo de suma importância para se
manter a paz social, especialmente num contexto de crise social, instabilidade política e
ameaças de invasões. Isso se fez não apenas através da mensagem escatológica do
cristianismo como também, e principalmente, através da prática caritativa cristã. E, nesse
quesito, a Igreja era muito mais eficiente que os potentados locais. Estes, embora
desejassem promover benesses públicas para o bem da “sua” cidade, não dispunham,
principalmente a partir da crise do século III, de suficientes recursos para bancarem os
exorbitantes gastos de tais celebrações. A Igreja, colocando-se como mediadora entre ricos
e pobres, angariava pequenas mas constantes doações que, ao fim e ao cabo, permitiam
auxiliar os pobres mais freqüentemente e sem causar a bancarrota de ninguém. Outra
vantagem era que o sistema caritativo eclesiástico era muito mais abrangente, o que
permitia assistir aos mais necessitados. Ademais, devido às perturbações político-
econômicas originadas no período das migrações germânicas, boa parte da aristocracia
romana dirigiu-se às uillae, cabendo quase que exclusivamente ao episcopado garantir a
assistência social no meio urbano, onde a pobreza era mais nítida. Assim, com a
desestruturação do sistema administrativo da parte ocidental do Império, na quinta centúria,
evidencia-se a atuação cívica do episcopado em favor da romanitas/christianitas, de que a
caridade era uma das principais dimensões.
Percebendo tais vantagens no assistencialismo cristão, o Império concedeu uma
série de incentivos e privilégios à Igreja, justificados, em sua maioria, no auxílio que esta
prestava os pobres. É o caso da lei, decretada por Constantino e recolhida sob o número
16.2.6 no Código de Teodósio, que eximia clérigos de determinadas taxas para que eles
cuidassem dos pobres. Desse modo, foi como protetores dos pobres que os bispos definiram
sua função social e justificaram suas regalias, tornando a pobreza uma das mais importantes
alegorias para o imaginário social da época. Nesse sentido, um especialista asseverou que,
“in a sense, it was the Christian bishops who invented the poor.” (BROWN, 2002: 08). De
fato, conforme sugeriu Michel MOLLAT, “os pobres”, como categoria social definida, não
existiam no mundo clássico romano. Foi com o discurso cristão que a pobreza passou a ser
o grande elemento de identificação de uma pessoa desprovida de um bem material ou
espiritual. (MOLLAT, 1998: 10). Conforme esses autores, pode-se concluir que a divisão
da sociedade entre ricos e pobres é uma ideologia cristã, cujo objetivo era legitimar os
privilégios eclesiásticos situando a Igreja como intermediador necessário entre os dois
grupos para a manutenção da paz e da ordem social.
Obviamente que a transição de um modelo caritativo a outro não aconteceu de
imediato. Já existia certo viés moral, e não cívico, de beneficência em alguns autores
sofistas, cínicos e estóicos do mundo clássico, que a entendiam como uma dimensão da
humanitas. Marco Aurélio, em suas Meditações, indaga: “Por que, se praticaste um bem,
beneficiando alguém, buscas como um desmiolado uma terceira coisa ainda – mostrar que o
fizeste ou obter compensação?” (Mar. Aur. Medit. VII, 73). Não obstante, a Igreja, tentava
avocar para si a exclusividade da prática caritativa. Além de elaborar um circuito
institucionalizado de caridade, condenava oficialmente os espetáculos promovidos pelo
evergetismo, alegando que os mesmos traziam funestas conseqüências para as almas das
pessoas. Isidoro de Sevilha, por exemplo, condena os espetáculos pois sua raiz estaria na
idolatria, (Isid. Etym. XVIII, 16, 3); e afirma que aqueles que assistem aos jogos circenses
servem ao culto dos demônios. (Isid. Etym. XVIII, 27, 1). Mesmo assim, a mudança foi
gradual, e os espetáculos patrocinados pelo evergetismo sobreviveram aos primeiros
séculos do cristianismo, como o realizado em Zaragoza no início da sexta centúria. (Chron.
Caesarg. 85a). A continuidade de eventos desse tipo justifica a releitura de um antigo
cânone proibindo os clérigos de assistirem aos espetáculos, conforme compilação anotada
por Martinho de Braga no Concílio II de Braga.
Ademais, mesmo de forma velada, podemos perceber certa continuidade do
sentimento evergeta no âmbito da comunidade cristã. O que se nota é que houve a
prosseguimento de atividades evergetas “tradicionais”, como a promoção de festas e a
construção de edifícios, embora modificadas por elementos cristãos. Antes de orações
solenes, quando era lida a lista dos que levavam oferendas ao altar, os nomes eram
aclamados como na época da munificência cívica. Assim, no cânone 19 do Concílio de
Mérida de 666 recomendava-se aos presbíteros que procurassem “recitar ante o altar
durante a missa os nomes daqueles que tenham construído basílicas ou tenham trazido ou
trazem algo a estas santas igrejas”. Tal normativa era um meio de estimular as doações da
aristocracia local, acostumada aos mecanismos do evergetismo clássico. Segundo relata
Peter BROWN, por volta da passagem da quarta à quinta centúria, o senador Paulinus
promoveu um grande banquete aos pobres em plena basílica de São Pedro no aniversário de
morte de sua mulher. (BROWN, 1981: 36). Do mesmo modo que os banquetes evergetas
persistiam, a contribuição privada na construção de prédios públicos, que fora uma das mais
importantes dimensões do evergetismo clássico, continuará a existir no evergetismo cristão.
Conforme Mark WHITTOW:
Leaving aside private houses, one has to keep in mind that there had been a dramatic
change in the sorts of public building wealthy Romans wanted to pay for. In the first and
second centuries A. D. leading citizens had wished to build public baths, gymnasia, stadia,
theatres and temples. By the sixth century, fashion and cultural values had changed.
However wealthy, these men were no longer interested in such structures. [...] The
Christian Romans of the sith century wanted to display their wealth and status by building
monasteries, hospitals old peoples’ homes, orphanages and, above all, churches. Therefore
these are the buildings which reflect late Roman urban wealth. (WHITTOW, 1990: 18).
Considerações Finais
O evergetismo romano sustentava-se na idéia de cidadania – era dirigido aos
cidadãos de cada ciuitas e seu objetivo era exaltar o civismo e a honra de um patronus da
cidade. Política e economicamente pouco viável no conturbado contexto da Antigüidade
Tardia, o evergetismo foi gradualmente substituído pelo ideal de caridade cristão. Embora a
ideologia cristã tenha valorizado sobremaneira a figura do pobre, este continuou a ser visto
como um dado natural. O discurso cristão passou longe da promoção da igualdade social.
Ao contrário, valorizou a exclusão econômica do pobre, atribuindo-lhe uma série de
virtudes peculiares, em especial a da humildade. Sua mensagem escatológica lhe prometia a
Cidade de Deus como recompensa aos infortúnios deste mundo. Assim, o cristianismo não
objetivava suprimir as desigualdades sociais, mas torná-las suportáveis através da caridade,
mantendo a estabilidade da ordem social, na qual reside a paz. (MOLLAT, 1988: 47).
Tal escopo só poderia ser atingido, segundo os bispos, pela mediação eclesiástica.
Na cidade de Mérida, após o bispo Masona ter feito uma ampla obra caritativa, seu biógrafo
assevera que “ninguém, nem mesmo um pobre era visto fatigado pela necessidade ou
desejava algo mais, de modo que os pobres, assim como os ricos, tinham abundância de
todas as coisas boas, e todo o povo na terra parecia regozijar no céu, graças aos méritos de
tão grande pontífice.” (VSPE. V, 2, 16). Note-se que todo o povo é dividido entre ricos e
pobres, as duas categorias sociais em que a ideologia cristã repartiu a sociedade. E todo o
povo só poderia regozijar no céu graças aos méritos de tão grande pontífice, graças à
intercessão episcopal; que propiciava um meio para os ricos praticarem a caridade através
de sua vasta obra caritativa e amenizava a miséria dos pobres.
Portanto, a caridade cristã tornava a pobreza suportável, não apenas do prisma
econômico, como também da perspectiva da moral, minimizando as tensões sociais.
Tornou-se, um meio ideológico de controle socioeconômico que a Igreja avocou para si,
pelo qual seu patrimônio aumentava continuamente e seus membros ganhavam cada vez
mais poder. Um dos mais significativos exemplos da contradição entre o discurso cristão e
a política da caridade levada a cabo pelo episcopado encontra-se no décimo-terceiro cânone
do Concílio de Mácon, que condenava a prática de alguns bispos soltarem cachorros ferozes
nas pessoas que buscavam seu auxílio, “pois o bispo deveria resguardar os hinos aos
latidos, e as boas obras às mordidas venenosas”. (Conc. Matisc. c. 13). Esses indícios
sugerem que o pobre, na transição da Antigüidade ao Medievo, teve um papel fundamental
em ambos os modelos caritativos. Não como sujeito, mas como lucrativo objeto da
caridade.
Nessa direção, podemos concluir que, teoricamente, a caridade cristã
institucionalizada deveria redimir os pecados dos doadores e lhes garantir determinada
graça ao mesmo tempo em que atenuava, mas não suprimia, as desigualdades econômicas.
Contudo, na prática, notamos que a busca de intercessão divina fomentou uma elaborada
política da caridade nos grandes centros urbanos, onde os maiores beneficiários eram os
bispos e os grupos cujos interesses os prelados representavam. Essa vigorosa relação de
patrocinium episcopal encontrou na caridade cristã seu principal veículo de legitimação,
pelo qual o poder político e econômico dos bispos tendeu a fortalecer-se cada vez mais.
Não resta dúvida, portanto, que o episcopado foi o grande agente da transformação de um
sistema caritativo a outro, ou – conforme a feliz expressão de Fer BAJO – do câmbio do
modelo de assistencialismo do panem et circenses para o do panem et religio. (BAJO,
1986: 194). Reflexo inconteste de novas interações sociais, novos modelos culturais, e
novas relações de poder, a gradual elaboração de uma nova concepção sobre o pobre e de
um novo modelo de caridade espelha a própria transição da Antigüidade ao Medievo.
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and Present. Oxford, n. 129, nov. 1990. p. 03-29.
ANEXO
Endereço para contato: Rua Alcebíades Plaisant, n. 198. Bairro Água Verde. Curitiba-PR.
CEP: 80620-270.
Tel.: (41) 3342-3035
E-mail: brunozetola@hotmail.com
Pelo Direito à Cidade:
Articulações e Aprendizados na Luta Política dos Trabalhadores Ocupantes de Terra
Urbana na Cidade de Uberlândia/MG.∗
RESUMO
A proposta do artigo é problematizar a maneira pela qual a experiência vivida contribuiu
para a reelaboração dos valores dos trabalhadores ocupantes de terra do Bairro Dom Almir
na cidade de Uberlândia, buscando também avaliar a importância da luta política com fonte
de aprendizado para esses trabalhadores.
PALAVRAS – CHAVE: trabalhadores, aprendizados, cidade, luta política.
ABSTRACT
This article studies how current practices contributed to the re-elaboration of the values of
workers in the Dom Almir district in Uberlandia, also aiming to evaluate the importance of
political battles as a learning tool for those workers.
KEY WORDS: workers, learning tools, city, political battle.
∗
O presente texto faz parte da minha Dissertação de Mestrado intitulada: “Pelo Direito a Cidade:
Experiência e Luta dos Ocupantes de Terra do Bairro Dom Almir – Uberlândia (1990-2000)”. Programa
de Pós-Graduação em História.Universidade Federal de Uberlândia, 2001.
∗ ∗
Professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa - PR. E-mail:
rmspetuba@bol.com.br
FONTE: SÁ, Cláudio Oliveira Ribeiro de. Autoconstrução e Assentamentos Urbanos em Uberlândia–MG: Em
Questão os Bairros Dom Almir e Prosperidade. Uberlândia-MG:UFU, 1999. (Monografia).
Digitalizado e reformulado objetivando destacar o Bairro D. Almir.
Nós, moradores do Acampamento D. Almir, há mais de oito meses, nos dirigimos a V.Sa.
para esclarecer a situação de miséria em que vivemos e exigir uma solução imediata para os
nossos problemas.
Somos hoje mais de 400 famílias que, a exemplo de outras milhares são excluídas de um
dos direitos elementares garantidos em Lei, que é o direito à moradia. Por isso resolvemos
acampar próximo ao bairro Dom Almir. Neste acampamento estamos vivendo uma série de
dificuldades: falta de água, transporte, assistência médica, escola, saneamento básico, etc.
Nesse sentido apresentamos as seguintes reivindicações:
Que seja desapropriada imediatamente a área, demarcados os lotes e assentadas todas as
famílias;
Ligação de água urgente;
Materiais para a construção de três cômodos e um banheiro;
Que seja negociado com carência e de acordo com as condições das famílias o pagamento
dos lotes e dos materiais de construção;
Atendimento médico e medicamentos no local;
Instalação de uma creche urgente;
Instalação de uma escola para garantir o ano letivo das crianças;
Doação de barracas, enquanto não iniciam as construções;
Regularização do transporte com mais ônibus e maior freqüência;
Instalação de energia elétrica;
Doação de cobertores e agasalhos.
34
Boa parte desta documentação referente ao processo de luta e organização dos trabalhadores ocupantes de
terra do Bairro Dom Almir foi se incorporando a esta pesquisa trazida pelos próprios depoentes em
especial Sr. Sebastião Correa e Sr. Djalma Morais de Souza. O primeiro era o atual Presidente da
Associação de moradores no início desta pesquisa e o segundo foi quem organizou os trabalhadores da
segunda ocupação da área. Essas fontes: abaixo – assinados, requerimentos, cartas, fichas de cadastro das
famílias na área entre outras, foram guardadas, muitas vezes em condições precárias, pelos próprios
trabalhadores.
35
Documento endereçado, em 18/01/1992, à Srª. Niza Luz, Secretária Municipal de Trabalho e Ação Social
na época.
Ao assumirem as reivindicações expressas no documento, como fruto de uma
situação de privação experimentada por mais de 400 famílias, eles se colocaram como um
sujeito social coletivo, forjado nessas vivências mútuas, e trouxeram para si a legitimidade
de uma interlocução direta com o poder público. Essa postura estava embasada em
concepções sobre o que vinha a ser o poder e o papel político da administração pública
local, “o dever do político é ele trabalhar na comunidade, certo? Fazer o que ele precisa
fazer e o que ele prometeu, ele tem que ajudá”. (36)
Essa visão não levava a uma atitude de mendicância ou de uma muda e passiva
expectativa em torno da “boa vontade política” da Prefeitura, pelo contrário, foi no
convencimento da legitimidade e da justeza de seus direitos, aliados à dureza das condições
materiais vividas, que os acampados se puseram em confronto com essas autoridades e, no
desenrolar desses confrontos, forjaram uma visão política contestadora propondo uma nova
leitura da questão urbana em Uberlândia.
Essa nova leitura era o desdobramento lógico de uma outra postura subjacente no
teor dessa carta. Ela expressava o desejo, o interesse e os projetos de cidade na ótica de um
sujeito coletivo, que recolocava a ocupação de terras e o acampamento urbano de famílias
trabalhadoras como um lugar e uma fala que emergiam de dentro da cidade dando-lhe
concretude a expressar-se em forma de carência e segregação social no espaço geográfico e
no cotidiano desses trabalhadores.
Essa nova leitura não surgiu pronta, ela era a expressão de um conjunto de
trajetórias comuns vividas no dia a dia da cidade, brotava dos espaços físicos, sociais e
culturais compartilhados pelo conjunto da classe trabalhadora. Espaços que falavam de uma
cidade diferente daquela propagandeada pelo poder público, existente apenas para a elite
econômica e política ou, em alguns momentos, para a classe média ávida em sonhos de
consumo e de ascensão social propiciados pelas benesses do capital.
36
Entrevista concedida por Felismina Pereira em abril de 1999.
para atração de Instituições de Ensino Superior Privado, com vista a uma formação em
grande escala, de mão-de-obra especializada, entre outros.
Obviamente, por sua natureza capitalista, esse projeto não visa ao usufruto de toda a
população, mas busca impor-se como aspiração de todos.
37
Nestes livros, as autoras apresentam gráficos e dados estatísticos sobre o crescimento da população
brasileira nas últimas décadas, abordando a questão das migrações internas, do êxodo rural e das
condições de vida das classes trabalhadoras nas cidades brasileiras. Os dados apresentados baseiam-se nos
dados fornecidos pelo IBGE, mais especificamente no: Anuário Estatístico Brasileiro, 1977 a 1982,
IBGE. Ver também: CEM – Centro de Estudos Migratórios. Migrações Internas no Brasil: a peregrinação
de um povo sem terra. São Paulo: Paulinas, 1986.
inacessível para a maioria dos seus moradores, funcionando como forte fator de exclusão do
direito à cidade.
“... falava assim que aqui tinha muito serviço, na época tinha mesmo, só que daí prá cá,
nada saiu, não saiu serviço... quando aparece é limpeza de rua, mas gente é demais, num
chega prá todo mundo né? Prá mulher quando aparece é um servicinho de um salário, ás
vezes a mulher tem seis, oito filho quê que um servicinho de um salário dá, né? Num dá prá
nada”.(39)
38
Este texto foi produzido a partir da exposição da professora no encontro “A Moradia em Uberlândia” em
28/03/93.
39
Felismina Pereira, abr./1999.
“Então... uma coisa que eu tô achano é que duns tempo prá cá os político... de primeiro eu
tinha minha barraquinha de comida, eu vendia muita comida, é que eu esqueci a época, eu
sei que naquela época eu depositei até o meu dinheiro, eu tinha meu dinheiro d’eu comê,
d’eu dá aos meus filhos, de vestir...Hoje a gente num tem mais uma poupança, cabô com a
poupança que a gente tirava o juro e deixava o principal... hoje num tem mais poupança,
num tem mais nada. É pro povo ficá aí que nem cachorro... Uma cachorrada no mundo
sofreno!”. (40)
Mas, voltando ao teor da carta enviada à Prefeitura, pode-se refletir também para o
significado político inscrito na argumentação que aponta o direito a moradia como sendo
fundamental e garantido em Lei.
40
Entrevista concedida por Maria Joana Lima em outubro1999.
agora se amalgamavam num sujeito coletivo, em movimento baseado em interesses mútuos
e objetivos definidos.
Essa tendência foi marcante na trajetória de luta dos movimentos sociais urbanos da
década de 80, quando uma pluralidade de material foi produzida pelos movimentos de
moradia, expressando a complexidade e a riqueza das lutas empreendidas.
“Eu quero deixar claro – e que não fique nenhuma dúvida-, que invasores, na minha
administração não terão nenhum apoio”. (41)
Para o poder público, a ocupação era constituída por pessoas que não pertenciam à
cidade o que o desobrigava de qualquer compromisso e responsabilidade política e social
41
“Virgílio reafirma que não dará apoio a invasores sem-teto”. Jornal Correio do Triângulo. Uberlândia,
21/01/1992
com elas, “... o nosso compromisso é com a população de Uberlândia e os invasores não são
população de Uberlândia”.
Nesse discurso, o que existe em Uberlândia são apenas conturbações sociais e não
processos políticos de luta; os sujeitos emergentes da experiência da cidade que cresce são
escamoteados, dissimulados em relações predeterminadas, e desaparecem nos discursos
subjacentes a essas relações.
“Uberlândia sempre foi uma cidade aberta. O indivíduo chega aqui e ninguém pergunta de
onde ele veio, mas o que ele faz. Se é trabalhador integra-se a cidade em pouco tempo...”.
(42)
Está claro o fato de que a cidade oficial reserva seus espaços a quem sempre viveu
de acordo com os mecanismos por ela ditados. É claro, também, que, dentro deste
entendimento, os desempregados, ou os que nunca sequer chegaram a colocar-se no
mercado de trabalho, não são considerados trabalhadores, eles são “sobrantes”, restos
incômodos, que só aparecem nas estatísticas da crise ou nas páginas policiais... sobras de
uma cidade moderna, resíduos inevitáveis do crescimento urbano e do progresso gerador de
desigualdades, ambos intrínsecos à lógica do sistema capitalista.
42
Revista Flash. n. 10, Uberlândia, SET\88.
“... na época era o seu Virgílio, esse seu Virgílio que tá aí... é uma pessoa que eu... a moda
do outro, é um grande administrador, mas só que ele... ele num tem coração, pessoa que só
vê o lado dos ricos, se nóis tem o que nóis tem hoje foi a base da pressão mesmo e com o
apoio de todos os outros segmentos da sociedade”. (43)
“Quando nóis tava no São Jorge fizemos várias passeata ali e depois disso, a gente tivemos
várias vezes dentro da Prefeitura, através da multidão, ia muita gente, ia 50,60 100,150
pessoas...” (44)
“Cerca de 100 pessoas, moradores acampados do bairro Dom Almir após realizarem uma
curta passeata pela avenida Afonso Pena ocuparam, em companhia do deputado estadual
Gilmar Machado(PT) e da vereadora Nilza Alves(PPS), ontem a ante-sala do prefeito
Virgílio Galassi na tentativa de conseguir uma audiência”. (45)
Pelo que se pode perceber, essa ocasião não foi uma exceção nas relações entre o
poder público municipal e os moradores do Dom Almir. Durante o período de negociação,
o Prefeito adotou uma postura clara de jamais receber a Comissão dos sem teto:
“O prefeito Virgílio Galassi (PDS), segundo informou seu assessor de Gabinete, recusou-
se a receber a imprensa para falar do movimento dos acampados do bairro Dom Almir. Ele
confirmou que a audiência fora marcada como o Deputado Gilmar Machado(PT) porém
com a restrição de que não receberia a comissão de moradores. ‘O prefeito já disse que
não recebe invasores’, reiterou”.(46)
43
Entrevista concedida por Djalma Moraes em abril de1999.
44
Idem.
45
“Moradores ocupam ante-sala da PMU tentando audiência”. Jornal Correio do Triângulo. Uberlândia,
17/03/92.
46
Idem.
Esse posicionamento causou momentos de muita indignação e exasperação entre os
moradores, mas a postura do Prefeito não foi jamais aceita como a palavra final, nem
tampouco a Comissão de Frente composta pelos moradores perdeu sua autoridade e
legitimidade diante nos impasses e conflitos das negociações, pelo contrário, foram os
momentos de acirramento dessa tensão que levaram a Comissão a enfrentar e organizar o
embate, utilizando-se dos argumentos disponíveis e aumentando o seu respaldo diante das
negociações com o poder público.
“... porque aquela comissão era respeitada, a gente tinha apoio lá dentro ...esse apoio vinha
do seguinte: da maneira como as pessoas da própria comissão negociava com a própria
prefeitura, porque dentro da prefeitura se num tiver umas pessoas que num tem assim, num
vô dizê uma inteligência, mas um argumento, porque contra um argumento num existe
nada, se você tem um argumento certo, você consegue as coisa, né?Então naquela época
aquelas pessoas que tava ali, elas tinha argumento prá conseguir dobrar o prefeito,os
vereador, os secretários...”.(47)
Mas, além desses, outros argumentos foram usados para “dobrar” o prefeito,
vereadores e secretários, e expressam o grau de determinação e entendimento político dos
acampados no embate que se desenrolava:
“Uai, ali tinha muita coisa: às vezes eles falava que num dava, às vezes eles jogava prá
frente, ficava empurrando com a barriga, certo? Então os argumento mais que a gente usava
era a pressão, propriamente a pressão, né? porque naquela época nóis era o quê?nóis era
47
Djalma Moraes, abr./1999.
mais de 400 pessoas, a gente representava 400, 600 pessoas, então imagine você, 600
pessoas dentro de uma Prefeitura, o quê que se faria ali? Então era assim mais ou menos,
mais na pressão e no argumento certo, porque ou o prefeito fazia ou a gente fazia o
movimento.”(48)
48
Entrevista concedida por Haroldo da Silva em outubro de/2000.
49
Idem.
questionamentos, reivindicações e disputas que versavam sobre a ordem e a desordem
urbana na ótica desses trabalhadores.
Além disso, a recusa insistente por parte do poder público em reconhecer em o
movimento de ocupação de terra, como ação legítima dos trabalhadores em busca de
moradia, e em dialogar com seus representantes, teve dois desdobramentos políticos muito
importantes:
O embate configurou-se como um campo de reafirmação do sujeito político
coletivo, no confronto com o poder público, forjou-se um processo que politizou e
organizou de forma crescente a ocupação, essa negativa em reconhecer sua existência
colocou-os em movimento, levando-os a aprimorar seu discurso e a articular suas ações no
campo prático.
Nas suas idas à Prefeitura, na ocupação das ante-salas do gabinete do prefeito, dos
secretários municipais, da tribuna no plenário da Câmara Municipal, na organização das
passeatas, nas palavras de ordem, no debate com os responsáveis pelos serviços públicos e
na defesa de suas pautas de reivindicações, eles foram desmistificando os motivos da ação e
da razão do Estado; foram percebendo os jogos de interesses privados no trato da “coisa
pública”, deparando-se com as demandas clientelistas e eleitoreiras, aprendendo o
complexo movimento das relações de força presentes nas disputas e nas decisões políticas,
administrativas e judiciais e avaliando o uso que poderiam fazer da força de pressão que
tinham acumulado.
Foi justamente diante da recusa em ter sua presença reconhecida pela administração
pública municipal que o movimento reforçou sua identidade como sujeito político,
aumentando-a em força inversamente proporcional à negativa da qual era alvo.
Além disso, foi por esses impasses gerados pelos posicionamentos da Prefeitura que
os acampados procuraram mediadores nesse diálogo necessário com a administração da
cidade, enriquecendo o percurso desse aprendizado de experiência social mediante as
conexões políticas engendradas.
Nessa gama de relações estabelecidas, aquela existente com a Igreja Católica
aparece em vários momentos nas fontes, sejam elas orais ou escritas.
A postura da Igreja Católica, ou pelo menos de setores dela, em relação à ocupação
do Bairro Dom Almir em Uberlândia, não era uma postura isolada, mas dizia respeito a
todo um processo no qual ela foi se constituindo como um referencial, fosse em nível de
produção de uma determinada matriz discursiva50, amplamente adotada pelos movimentos,
desde o início da década de 80, e que apontava para a humanização da cidade, fosse como
sujeito legitimador de outras organizações sociais desse campo.
A Igreja vinha promovendo, desde a década de 80, uma série de Encontros, em nível
nacional, para discutir a questão do solo urbano, e contribuiu no processo que levou a
reelaboração de concepções sobre a questão urbana e o direito a cidade.
Em agosto de 1990, dias após a ocupação, os jornais anunciavam uma reunião entre
(51)
uma comissão de vereadores e o prefeito para discutir a situação dos “invasores” de
terrenos no Parque São Jorge, pois o prefeito negava-se a receber os próprios trabalhadores
que procuraram o Legislativo para tentar mediar a situação.
“Sair para onde? Essa era a pergunta feita por todos os sem casa que ocupam um terreno da
Empresa Municipal de Construção Popular (EMCOP) no Parque São Jorge IV. Os dois
últimos dias foram tensos para as 200 famílias depois que a Justiça deu parecer favorável a
liminar de reintegração de posse para a Prefeitura. Reunidos em pequenos grupos eles
50
A idéia de “Matrizes Discursivas” trabalhada nesta pesquisa está referenciada na obra de:
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em Cena: Experiências e Lutas dos Trabalhadores da
Grande São Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. (Capítulo III).
51
A Comissão era formada pelos vereadores Normy Firmino (PSDB), Calcir José (PFL) e Nilza Alves
(PCB).
esperavam aflitos a chegada a qualquer momento de um oficial de Justiça ou mesmo da
Polícia para conduzir os trabalhos de retiradas dos barracos”. (52)
Segundo o Sr. Haroldo, os boatos que chegavam até o acampamento eram de que a
Prefeitura tinha tanta certeza de que conseguiria o parecer favorável ao seu pedido, que já
havia colocado 22 caminhões de prontidão em frente ao Fórum da cidade, só esperando o
Juiz assinar a ordem para efetuar o despejo, o que de fato aconteceu: “Aí o Dom Estevão
entrou na frente e disse: _ ‘ Virgílio, você num vai fazer isso não!”.(53)
“Segundo Virgílio Galassi, no ano passado foi feito um acordo com a Igreja Católica para a
Prefeitura absorver o problema da invasão que já existia em Uberlândia, mas com o
compromisso de que aquela seria a última vez que a Administração Municipal iria interferir
no assunto. Isso, no entanto, não aconteceu e segundo o Prefeito, o mesmo grupo de
52
“Posseiros do Bairro São Jorge ainda não sabem para onde ir”. Jornal Correio do Triângulo. Uberlândia,
14/08/1990.
53
Sr. Haroldo da Silva, out./2000.
agitadores que promoveu a primeira promoveu esta segunda, agora nas proximidades do
bairro Dom Almir”.(54)
Para o Sr. Virgílio Galassi, administrador público eleito pelo povo, o problema dos
ocupantes de terra não exigia políticas públicas coerentes com a gravidade do quadro social
de miséria e privação e sim medidas de assistencialismo e caridade. Na sua opinião, as
Entidades ou Instituições que exigissem ação por parte da administração municipal
deveriam pagar, do seu próprio bolso, as medidas que recomendavam ao poder público,
pois estas se constituíam em mera demagogia de pessoas que criavam o problema para a
Prefeitura Municipal resolver.
A mentalidade estreita e conservadora expressada na fala do Prefeito em relação ao
trato das questões sociais na cidade demonstra, claramente, o grau de articulação que se
fazia necessário na disputa empreendida pelos acampados. Estes perceberam, sem demora,
a importância da aliança com os segmentos sociais que pudessem respaldá-los ou mesmo
mediá-los no processo de disputa que então se colocava.
Essa percepção deu aos trabalhadores a clareza política de que a estratégia de sua
resistência não poderia ser construída solitariamente. Ignorados pelo poder Executivo
recorreram ao Legislativo, negligenciados por este, buscaram outras formas de conexão
com a sociedade e, na impossibilidade de serem ouvidos seriamente por seus interlocutores,
somaram sua voz a outras:
54
“Virgílio reafirma que não dará apoio a invasores sem-teto”. Jornal Correio do Triângulo. Uberlândia,
21/01/1992.
55
“Bispo interfere e apóia acampados do Dom Almir”. Jornal Correio do Triângulo. Uberlândia,
Município, garantindo a não realização de novas ocupações de terra. A resposta da Igreja
não tardou: “Ora é a Prefeitura que anuncia em suas propagandas uma cidade de leite e
mel”. (56)
Esse episódio demonstra o nível de articulação adquirido entre os acampados do
Dom Almir e os demais setores da sociedade. Em muitos momentos, esses setores fizeram-
se ouvir e compraram a briga com o poder público em nome dos acampados, não porque
eles não tivessem condições de fazê-lo ou fossem incapazes de conduzir sua luta, mas como
estratégia construída no interior do próprio movimento de resistência e reivindicação.
Essa relação com a Igreja foi construída num rico movimento de aproximação e
distanciamento, afinidade e exasperação. Momentos em que os trabalhadores foram
construindo sua experiência política, numa oscilação entre a autonomia coletiva e a relação
de dependência, apoio e proteção, como deixa entrever o abaixo assinado dos acampados,
endereçado ao próprio Dom Estevão:
56
Idem.
57
Abaixo Assinado endereçado a D. Estevão.
que se vinha empreendendo entre as “autoridades constituídas” e aquela construída no ir e
vir das relações cotidianas entre os acampados e os seus apoiadores.
O recado bastante claro foi dado “... somos gente humilde, mas não somos pessoas
desligadas do mundo”. Não estar desligado do mundo podia ter uma série de significados,
na base, creio que essa postura indicava uma atitude de autonomia construída no processo
de luta e negociação do acampamento, e essa autonomia era vivenciada no sentido de
admitir e até buscar a ajuda e a parceria de outros atores sociais nos embates travados, mas
com um posicionamento de que essa parceria era construída com base nas necessidades
advindas dos próprios acampados.
No início dos anos 90, o apelo á articulação nacional em torno da questão urbana e
do direito à cidade vivia ainda o seu auge devido ao processo constituinte, no qual vários
movimentos urbanos haviam se envolvido, numa intensa mobilização em torno da Emenda
Popular da Reforma Urbana.
Como aponta Laverdi, “... a luta para ampliar a participação de diversos grupos
sociais na definição de políticas para as cidades brasileiras recobre uma trajetória
interessante de construção de lutas, formulações de projetos e denúncias, articulações de
formas organizativas diversas e de um renovado aprendizado político”.
(LAVERDI,1998:55).
Essa noção do direito à cidade também não apareceu elaborada de repente, mas foi
se constituindo no universo das pequenas lutas diárias, desde a época da ocupação. Essas
lutas punham em evidência a disputa por um espaço urbano diferenciado, não aquele onde
somente têm prioridade os projetos arquitetônicos de grandes praças e avenidas. A cidade
em disputa era aquela das passarelas seguras, dos horários viáveis de transporte coletivo, do
postinho de saúde, da creche, da escola e da polícia eficiente dentro do bairro.
Nas falas dos entrevistados, fica claro que a ação de alguns parlamentares tanto da
esquerda quanto da direita, foi importante no processo, sendo que alguns moradores, ao
fazerem o balanço da experiência, até chegam a afirmar que sem esses parlamentares a luta
não teria dado no que deu, e a situação poderia ser muito pior hoje. Eles apontam a
conquista da água, da escola e outros como fruto da ação direta de alguns vereadores e
deputados.
Pode-se ter mais indícios dessa postura, quando se acompanha a fala do Sr.Djalma
sobre as estratégias das ações realizadas dentro da Câmara Municipal de Uberlândia, no
período em que os trabalhadores ainda se encontravam no Vila Rica:
“Por exemplo, a gente tinha o apoio do Leonídeo (Bouças, do PFL) que no caso, já mexia
os pauzinhos deles lá dentro da Prefeitura (...) a gente não procurava político de esquerda
prá num dizê que a gente tava apoiano eles e contra o Prefeito, porque em política existe
tudo isso aí... a gente procurava assim... fora da Prefeitura ou fora do conhecimento deles
né? por exemplo, tinha o Gilmar Machado, na época ele era Deputado Estadual (PT), então
quê que a gente fazia? A gente trocava uma idéia com ele, ele falava o quê que a gente
tinha que fazê né? e a gente ia lá e depois dava um retorno, ele apoiava a gente mais por
fora (58)”.
“Prezada Senhora.
Nós da Comissão de Moradores do acampamento Dom Almir, vimos a presença de V.Sa.
reivindicar que as inscrições dos lotes urbanizados, situados no Seringueiras, seja
suspendido, para os moradores do mesmo, até passar as eleições.
O motivo é muito sério: os nomes com relação a estas inscrições estão sendo usados na
politicagem de alguns políticos oportunistas, e estes, afirmam que estão conseguindo a
urbanização dos lotes, para todos nós acampados.”(59)
“nóis num tinha preguiça de cercar candidato... – O fulano vai fazer um comício no
Alvorada, vamo lá conversa com ele. E nóis ia e fazia aquela comissão de frente e ia pedir
os benefício pro nosso bairro, nóis sempre luto por isso, nóis nunca teve essa vergonha, a
gente sempre lutô por isso”.(60)
Parte dessa postura advinha da clareza que os moradores possuíam de que o número
de famílias acampadas representava um potencial eleitoral considerável. Como já foi dito
anteriormente, ao entrarem em contato com o mundo das razões políticas estatais, eles
descobriam, sem demora a força de pressão política que poderiam exercer na disputa,
inclusive, eleitoral.
“... aí com o passar do tempo veio a época das eleições e eles queria mais voto, né? Porque
tinha muita família aqui, era interesse deles próprio, aí nóis conseguimo arrumar a água”.(61)
“... Vinha e filmava, colocava as criancinha prá entrá dentro do barro e coisa e tal, prá fazê
proveito político, que vinha a época das política na frente, né?”.(62)
59
Reivindicação enviada à Secretária de Habitação e Meio Ambiente, endereçada a Srª. Cleuza Rezende.
60
Entrevista concedida por Ireny Alves dos Santos em abril de1999.
61
Djalma Moraes, abr./1999.
62
Entrevista concedida por João Batista Naves em outubro de 2000.
eram utilizadas “prá fazê proveito” em campanhas, discursos e promessas, que
dificilmente se concretizariam ou se reverteriam em favor do bairro.
Porém isso não quer dizer que permanecessem passivos ou submissos diante
desse discurso, muito pelo contrário, os acampados puseram-se em movimento
também durante o processo eleitoral e fizeram valer, dentro de suas possibilidades,
aquilo que eles julgavam como suas reais necessidades.
Indo aos comícios, conversando com candidatos e até fazendo campanha, eles
conseguiram, em alguns momentos, reapropriar-se de uma lógica que deveria traduzir-
se em clientelismo e cooptação e tiraram eles mesmos proveito da situação que então
se desenhava.
“Quando nóis chegou aqui, aquele povo das Mansões Aeroporto disse que era uns
desordeiros que tinha chegado prá cá, que ia fazê um abaixo-assinado prá tirá nóis daqui
que só tinha barraco preto, tava enfeiano as Mansões Aeroporto”.(64)
“O povo do Alvorada num gostava de nóis porque dizia que o povo do Dom Almir
tinha os pé sujo”. (65)
63
O documento foi assinado pelas seguintes entidades: Associação dos Mutuários da Habitação e
Moradores de Uberlândia (ASMUTHAM - UDI); Associação de Moradores do Conjunto Alvorada
(AMCA); Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal de Uberlândia (ADUFU/SS); Sindicato
dos Trabalhadores do Serviço Público Municipal de Uberlândia (SINTRASP); Sindicato dos Docentes de
Escolas de Ensino Superior (SINDEES); Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações de Minas
Gerais; Sindicato dos Trabalhadores em Indústrias de Alimentação e Afins de Uberlândia; Sindicato
Regional dos Trabalhadores em Educação do Terceiro Grau; Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da
Construção do Mobiliário de Uberlândia; Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas
Gerais (SIND-UTE/Uberlândia); Pastoral Operária, Associação dos Moradores do Bairro Residencial
Dom Almir (AMBDA).
64
Entrevista concedida por Haroldo da Silva em outubro de 2000.
65
Entrevista concedida por Sebastião Corrêa em abril de1999.
São muitos os depoimentos reveladores dos conflitos entre os moradores do
bairro Dom Almir e seus vizinhos. Isto se deu, em grande parte, porque, na maioria
das vezes os moradores dos outros bairros assimilavam o discurso presente na
imprensa da época e que refletia as posturas e opiniões do poder público sobre o
significado das ocupações para Uberlândia. A noção de um bando de baderneiros,
ladrões e vadios vindos de outras cidades para pesar em cima da sociedade
uberlandense e enfear a bela cidade moderna, alcançou ressonância considerável entre
os próprios trabalhadores.
“Inclusive num vou te mostra muito longe não, naquela época que nóis mudamo prá
aqui, o Alvorada já era um arraialzinho, um conjuntozinho mas tinha escola, nóis
fomo usar a Escola e disse que num aceitava esses sujo lá, nóis saía daqui e ia prá
avenida e chegava lá o ônibus tinha dia que num parava, o povo de lá brigava prá
num parar prá nóis, dizia: Os sujos do Dom Almir!” (66)
“... foi todo mundo e nóis foi filmano até chegá lá... tinha um trilhozinho aqui de
barro! Nós fomos os pais atrás, com as bandeiras, fazendo o manifesto, nóis fomo prá
conversar com a Diretora, o quê que tava aconteceno que os menino tava reclamando
que eles tavam até jogando ovo choco neles lá... que isso num era prá acontecê, que
escola é pública e fizemo um acordo lá!”. (67)
66
Idem.
Importa ressaltar que este trabalho recupera as relações sob a ótica dos
moradores do bairro Dom Almir, uma possível busca da memória dos habitantes do
Bairro Alvorada poderia ter trazido à tona outras opiniões e experiências.
Por outro lado, observa-se que, diante da negativa do poder público municipal
em dotar o bairro Dom Almir com os serviços públicos urbanos, tais como ônibus,
água, coleta de lixo, escola e posto de saúde, os bairros vizinhos sofreram um real
processo de saturação, materializado na sobrecarga e no desgaste dos seus próprios
serviços.
“A Prefeitura e os vereador, ainda ontem eu escutei no rádio falano, que depois que
apresentou tanta invasão é que atrapaiou mais, é porque estrova controlar as coisas
pros outros”. (68)
67
Maria Joana, out./1999.
68
Entrevista concedida por Maria Abadia de Jesus, 2000.
“Naquela época a gente ficava muito reprimido, por que como diz o outro a gente
num tinha nada, num tinha onde morá, num tinha nem um endereço prá dá num
serviço... Hoje eu me considero um cidadão como outro qualquer !”. (69)
69
Haroldo da Silva, out./2000.
70
Idem.
71
Idem.
Entretanto não foram – e nem deveriam ser – apenas os espaços do poder
instituído que tiveram sua rotina modificada pela ação dos moradores do
Acampamento, eles também ocuparam as margens da rodovia, indo em direção à
Prefeitura, as ruas do centro da cidade com suas passeatas carregando panelas e latas
vazias. Foram notícia nas manchetes dos jornais locais e nos programas de rádio,
fizeram caminhadas rumo ao Bairro Alvorada, ocuparam tempo nos sermões de
missas, tornaram-se alvos de disputas eleitorais, pauta de reuniões em Sindicatos,
Partidos e Entidades Políticas, foram vistos no CEASA, nas máquinas de Arroz do
Bairro Tibery. Nas suas andanças, levaram consigo a denúncia de sua situação,
explicitando a existência da pobreza, da exclusão social e do descaso governamental
em Uberlândia, mas também levaram o movimentar-se incômodo da esperança
persistente de trabalhadores que se puseram em luta pelo direito à cidade.
Aqui compartilho mais uma vez com a visão de Eder Sader, que aponta os
movimentos sociais como sujeito social e histórico, promovendo a reelaboração e a
revalorização do cotidiano dos trabalhadores, efetuando uma espécie de alargamento
do campo da política tradicionalmente instituída e politizando as questões do
cotidiano dos lugares de trabalho e moradia. (SADER, 1988).
“Eu me senti... que nessa época, antes d’eu lutá aqui, eu achava que eu num era
ninguém mas, depois disso eu acho que eu sô alguém, porque eu ajudei muita gente,
ajudei a salvar muita gente, gente que ia até perdê a vida, eu acho que eu fui... eu sô
uma pessoa!”.
Então, o que fico na memória é que eu com tudo que eu num tenho um estudo, eu
num tenho um dinheiro, eu num tenho um nada, mas eu sou alguém!”. (72)
72
Ireny dos Santos, abr./1999.
O processo vivido, as dificuldades superadas e a sensação de apesar de todos os
revezes, ter conseguido um lugar para morar e construído o seu espaço dentro da
cidade mediante própria organização e participação na luta, trouxe para os moradores
do Bairro Dom Almir uma sensação de orgulho e auto-estima, que se traduz na
compreensão de sua importância como pessoa, na reafirmação de sua “humanidade”
dentro de um sistema que de tudo faz para espolia-la.
“O que eu sinto hoje é que eu tô melhor e quando eu vejo os outros debaixo da lona,
aquilo me dói, me dá vontade de chorá e parece que quando eu chego lá eu enxergo
pouco, vê aquela escuridão de lona... se eu pudesse ajudava os outros a construir”. (73)
“Ah, eu aprendi só a raciocinar... aprendi muita coisa, aprendi a ser mais humano
com as pessoas, procurar relevar muitas coisas que a gente passa nessa vida da
gente... às vezes ajuda um que tá em dificuldade, né? Eu entendo mais do que
antigamente, as vezes até de política mesmo eu entendo muito, porque antigamente...
às vezes eu num tinha esse entendimento e hoje em dia eu sei como se faz um projeto,
como se veta um projeto, então a gente sabe muita coisa, né?”. (74)
73
Felismina Pereira, abr./1999.
74
Djalma Moraes, abr./1999.
Para as mulheres, o significado ainda vem acrescido de um outro sentido, o da
revalorização do seu cotidiano e de sua capacidade de envolver-se com atividades que
extrapolam o ambiente doméstico:
“Porque eu nunca tinha trabalhado nesse tipo de serviço, né? Meu serviço era de
ajudar em casa, marido, filho e a patroa lá fora... eu nunca tinha parado prá, por
exemplo, perder horas, déias e noites de sono prá ajuda o próximo e aqui eu já passei
por isso. Então hoje, se disse assim:- Dona Ireni tem uma ocupação lá em tal lugar e
precisa da senhora. Eu acho que eu vô, eu ia sim! (75)
“A associação é uma coisa que tem de ser muito registrada, muito organizada e o
trabalho que a gente tinha que fazer acho que a gente já fez, foi trazer o benefício de
cada um pegar sues lotes, foi de trazer a água, trazer a luz, trazer a escola, posto de
saúde, a creche, então agora é pôr a Associação prá fazer outras coisas, mas tá difícil,
porque hoje em dia... igual eu te falei, o pessoal que morava aqui, que veio do Vila
Rica prá cá, já foi embora prá bem dizer , todo mundo. È outras pessoas, com outras
cabeças, o pessoal quer é ter sua casa, suas coisas, num tá nem aí com o que tá
aconteceno lá fora, então é mais difícil. Prá te dize a verdade era bom luta num bairro
como esse, parece que cê trabalhava com vontade, cê via as pessoas precisano e ocê
ia busca aquilo, agora hoje em dia não, pessoal que tá aqui maioria compro direito
dos que foi embora, então é poucos que tem esse ideal. (76)
76
Idem.
caminho seguido aqui não foi justamente o inverso, pois é a partir do final da década de
1990, que outros pesquisadores vão começar a visualizar a ação do MST no Bairro Dom
Almir, no sentido de organizar ocupações em áreas rurais próximas a cidade de Uberlândia.
“Eu acho bom, porque assim... só pra muitas e muitas pessoas saber que a gente
existe , da intenção que a gente tem, a intenção da gente é boa não é ruim. E eu espero
assim, que aquilo que eu passei, os pedaço ruim..., eu espero que ninguém mais passe
prá chegar onde eu cheguei”.
“Então a história foi essa... eles achava que nóis era bandido e nóis num era bandido,
nóis tava procurano a moradia. Por que todo mundo tem que ter essa dignidade de ter
o seu lugá de morá, prá se esconde da chuva e do sol!
BIBLIOGRAFIA
LAVERDI, Robson. Pelo Direito de Morar: Experiências de Luta pela Reforma Urbana.
Dissertação de Mestrado, São Paulo: PUC/SP, 1998.
RODRIGUES, Arlete Moisés. Moradia nas Cidades Brasileiras. São Paulo: Contexto, 1994.
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: Experiências e Lutas dos
Trabalhadores da Grande São Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
RESUMO
Esse artigo procura discutir a adoção de tecnologias da eletricidade na cidade de São Paulo
ao longo dos trinta primeiros anos do século passado. Seguindo algumas idéias propostas
por Thomas Hugues, esse artigo busca uma melhor compreensão da adoção de algumas
novas tecnologias trazidas pela empresa canadense Light & Power que impôs os seus
projetos, com o auxílio das forças políticas de São Paulo, à população de cidade, induzindo
o momentum tecnológico da eletricidade na cidade.
PALAVRAS-CHAVE: Tecnologia, política e sociedade.
ABSTRACT
This article aims to discuss the adoption of electric technologies in the city of São Paulo
during the first 30 years of 20th century. Following some ideas proposed by Thomas
Hugues, this article finds a better understanding of the adoption of some new technologies
brought by the Canadian company Light & Power that imposed its projects with the help of
São Paulo’s political forces, to the city inhabitants, inducing the technological momentum
of electricity in the city.
KEYWORDS: technology, politics and society.
Introdução
*
O presente artigo é parte do primeiro capítulo da tese do autor: A cidade e as máquinas. Bondes e
automóveis nos primórdios da metrópole paulista. 1900-1930. PUC-SP, 2005.
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Doutor em história pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Email:
macsavio@uol.com.br.
No entanto, o papel dessa empresa foi muito além daquele relacionado à gerência e
manutenção de uma rede de bondes e de distribuição de energia elétrica. O papel da Light
foi também o de criar uma cultura técnica voltada à eletricidade, além de incentivar, em
larga escala, a adoção de novos produtos relacionados a essa forma de energia. Esse
processo de difusão tecnológico, no entanto, foi um processo centralizado na empresa e que
respondeu apenas aos anseios da companhia canadense em maximizar os seus lucros. Esse
processo de desenvolvimento e disseminação tecnológica foi chamado pelo historiador
americano Thomas Hugues de momentum. O objetivo desse artigo é o de procurar uma
melhor compreensão desse fenômeno, a adoção e o desenvolvimento de uma determinada
tecnologia, além de abordar de que forma algumas tecnologias se adaptam a um ambiente
diferente ao qual foram originalmente desenvolvidas. Esse processo de transferência, longe
de ser linear, expressa as características das sociedades onde esses novos sistemas técnicos
são aplicados e as relações dessa sociedade com esses sistemas.
No caso de São Paulo, difusão da eletricidade realizou-se de forma monopolista e
exclusivista, refletindo a organização política local, que tratava o bem público como uma
extensão dela mesma, além de impor decisões de forma vertical a toda á sociedade excluída
de quaisquer formas de participação. O momentum da eletricidade em São Paulo refletiu,
então, as formas com as quais a sociedade paulistana se organizava, resultando numa
manifestação extremamente destrutiva dessas novas tecnologias, que antes de
representarem uma melhoria, eram sentidas como uma forma de exclusão pela grande
maioria da população da cidade, que experimentava essas novas forças principalmente em
sua forma negativa.
Com a concessão em mãos Gualco e seu sócio partem numa peregrinação em busca de
Gualco entra em contato com um dos empreiteiros conhecidos seus, e que também
no mundo dos negócios canadenses, mas também com importantes contatos nos Estados
conhecido seu, William MacKenzie, um bem sucedido advogado e um dos homens por
Tendo analisado a concessão, MacKenzie viu em São Paulo uma boa oportunidade
para expandir os seus negócios. Juntamente com o engenheiro americano Fred Stark
Pearson, de 40 anos de idade – letrado no mundo da tração elétrica –, MacKenzie decide
levar o negócio adiante e para isso conta com a ajuda de um amigo de Pearson, o também
engenheiro Robert Calthrop Brown, eleito para ir a São Paulo e levantar as potencialidades
do empreendimento. Em São Paulo, Brown vê uma cidade com grande potencial de
crescimento e, principalmente, uma cidade carente de uma infra-estrutura de serviços, o que
garantiria ao portador de uma concessão para o preenchimento dessa lacuna um grande
mercado em potencial. O resultado do relatório produzido por Brown foi a criação da São
Paulo Railway Light & Power Company, no dia 07 de abril de 1899, com o capital inicial
de seis milhões de dólares, divididos em ações de 100 dólares cada.
A empresa, em seus primórdios, não possuía um quadro fixo de funcionários. A sua
diretoria era composta por membros escolhidos dentro do escritório de advocacia de
William MacKenzie, apenas com o propósito de preencher os requisitos legais para a
formação de tal companhia. No entanto, a formação dessa empresa possibilitou a William
MacKenzie a mobilização do capital necessário para o início dos investimentos no Brasil,
cujo primeiro passo foi a contratação de um serviço jurídico que possibilitasse o rápido
início dos trabalhos em São Paulo, além de limpar o caminho da empresa de quaisquer
possíveis competidores locais. Os nomes escolhidos não poderiam ser mais apropriados:
Carlos de Campos, filho do então presidente de São Paulo, e Antônio Pinto Ferraz,
professor do Largo São Francisco e consultor jurídico do London and Brazilian Bank.
Com a fundação da companhia e com um serviço de advocacia que garantiria o
serviço da empresa no Brasil, a Light estava pronta para iniciar as suas atividades no país,
trazendo junto de si vultuosos capitais e o que de mais moderno havia em tecnologia na
área de transportes e transmissão de energia, além da experiência dos homens que dirigiam
uma companhia similar no Canadá. Através de Alexander MacKenzie – nome escolhido
para, junto de F. S. Pearson e R. C. Brown, dirigir a firma em São Paulo –, foram dados os
primeiros passos da Light no Brasil. Os empreendedores trataram de garantir os terrenos
necessários para a construção de sua usina geradora – comprando áreas circunjacentes à
Cachoeira do Inferno, a cerca de 36 quilômetros da capital, no rio Tietê, na cidade de
Parnaíba –, além dos terrenos necessários para iniciar as suas operações de transportes de
passageiros na cidade de São Paulo. Obtidos esses terrenos e as necessárias autorizações
junto ao governo Campos Sales para a operação da companhia canadense no Brasil, faltava
apenas o último passo, adquirir a concessão de Gualco e Souza.
A compra da concessão repentinamente tomou um caráter de urgência já que
naqueles dias o italiano Antônio Gualco adoeceu gravemente. Com o risco de morte de um
dos proprietários da agora preciosa concessão, que mobilizara tantos recursos e custara
tanto trabalho, tornava-se urgente legalizar a situação da Light junto à Prefeitura da cidade
de São Paulo, o que foi feito no dia 28 de setembro de 1899. Nesse dia, Alexander
MacKenzie e F. S. Pearson se dirigiram à casa de Gualco na rua Piratininga, 18, no bairro
da Liberdade, onde oficializaram a compra da concessão originalmente de propriedade de
Gualco e Souza e que, daquele momento em diante, pertencia á São Paulo Tramway Light
& Power Company, que despendeu para isso a soma de £ 7750, 00, um bom dinheiro à
época. Nada mal para uma concessão que não custou mais do que alguns milhares de réis e
alguns pequenos problemas junto à Câmara Municipal. Pouco tempo após a transferência
do contrato seu idealizador e principal promotor, Francisco Antônio Gualco, faleceu sem
poder contemplar as realizações do maior empreendimento realizado na cidade até aquele
momento, resultado de uma história em que ele foi um dos principais protagonistas.
A chegada da empresa canadense em São Paulo gerou um misto de admiração e
revolta. Em todos os cantos o assunto que mais se comentava era o da chegada dos bondes
que não seriam puxados por burros e da energia elétrica. Juntamente com a ansiedade que a
chegada dessa nova tecnologia trazia, caminhava uma sensação de que a empresa canadense
representava apenas um bando de espoliadores que estavam interessados em conseguir tirar
dinheiro da municipalidade paulistana. Entre essas pessoas encontravam-se vários
vereadores e nomes ilustres, incluindo aí o prefeito da cidade, Antônio Prado.
Alertado dessa situação, Alexander MacKenzie deu o primeiro passo para debelar as
resistências daquele que seria o homem chave para o sucesso do empreendimento. Com o
apoio de um ex-cônsul do Brasil no Canadá, José Custódio Alves de Lima, Alexander
MacKenzie organizou uma visita de Antônio Prado à agência local do London and
Brazilian Bank, em São Paulo. Na agência, o prefeito foi informado que, pelas mãos de
William MacKenzie, fora depositado em Londres fundos suficientes para cobrir todas as
operações da empresa em São Paulo, incluindo não apenas a construção da rede de bondes,
mas também de uma usina hidrelétrica para abastecer a cidade de luz e força
(MacDOWALL, D, idem:44).
começou uma nova luta, desta vez contra a sua concorrente e aquela que viria ser a sua
maior rival na cidade nos primeiros anos do século XX, a Companhia Viação Paulista,
detentora dos direitos de transporte por bondes no município, e disposta a usar de todos
os seus recursos e de sua influência para derrotar a empresa canadense. A Cia. Viação
Paulista via na concorrência da Light, e com plena razão, a sua ruína, já que não possuía
muito menos com as novas tecnologias que ela trazia para a cidade. Desde os primeiros
momentos, a Cia. Viação Paulista passou a usar de todas as armas que possuía para
tentar barrar a instalação da empresa canadense na cidade. O primeiro passo foi dado na
empresa canadense sob a alegação de que a Cia. Viação possuía os direitos exclusivos
para o transporte de passageiros na cidade de São Paulo. A luta judicial pelo direito de
argumentos acerca das qualidades de cada uma das empresas, da qualidade dos serviços
Os anos da administração Prado foram o que podemos chamar de anos heróicos para a
Light & Power. Ao longo desse período a companhia organizou e expandiu o serviço de
bondes para as mais remotas partes da cidade, além de consolidar a sua presença como
principal empresa do município, monopolizando não apenas os serviços de transportes,
mas também os de luz, força, telefonia e gás. Graças a essa enorme gama de serviços
prestados e a esse gigantismo que caracterizou as primeiras décadas da empresa no
Brasil, a Light passou a ser conhecida por alcunhas que davam conta de sua força e de
sua imagem perante a opinião pública. A mais conhecida de todas, que até hoje chama a
atenção dos estudiosos do período, é aquela que caracteriza a empresa como um polvo, o
“polvo canadense”, que estende os seus tentáculos por toda a cidade e controla tudo
aquilo ao seu alcance.
É o caso que hontem, por occasião da forte chuva que tivemos á tarde, tive o
grande desgosto e enorme prejuízo material de, ao chegar á minha casa, encontrar
diversos commodos completamente innundados d’agua, com roupas, moveis,
quadros, reposteiros e cortinas totalmente damnificados e, ainda mais, o reboque
das paredes humidecido, com grave risco de despegar-se todo. (...). Procurando,
aflictissimo, a causa de tal fatalidade, verifiquei – confesso que sem surpreza – que
a origem de tudo fora o péssimo serviço de collocação dos fios da Light, cujos
empregados, quebrando e desviando as telhas, abrem enormes fendas e gotteiras
nos telhados. (Diário Popular, 16/01/1902).
O mais pratico e talvez o mais consolador dos meios para se resistir a um tal
terramoto, é a propria Light mandar para a Ponte Grande algumas bandas de musica
e uns fogos de artificio, para ir alegrando os passageiros que ella convida a ir
apreciar o começo do diluvio paulista... (...). Uma enchente na Ponte Grande e a
terra em combustão pelo choque de um cometa!... (A Platéa, 26/02/1907).
O dia-a-dia dos usuários dos bondes também mudou com a chegada da Light que, ao
que tudo indica, disseminou modismos e influenciou na difusão da propaganda pela cidade.
Pouco tempo após o início das operações da empresa já surgiam as primeiras propostas de
utilização do bonde como meio de propaganda. Essa propaganda foi assumindo, com o
passar dos anos, um caráter mais e mais agressivo, trazendo anúncios de pílulas, xaropes,
pomadas, vinhos finos, e consigo comentários acerca de assuntos pouco agradáveis à vista
de parte do público. Na ausência desse tipo de anúncio, os espaços eram preenchidos por
promoções da empresa, tais como “Já foram à Ponte Grande ver a enchente?” (A Platéa,
20/02/1907). Alguns chegavam a comentar que a empresa trazia consigo uma febre de
anglicismos que invadiam a língua falada no município. Expressões como up-to-date,
fashionable, smart, five o’clock tea, low tennis, football, graças às promoções da companhia
canadense, passaram a fazer parte do cotidiano dos bondes. Ficava evidente que, após a
chegada da Light, São Paulo nunca mais seria a mesma.
Essa nova realidade se fazia sentir no comportamento dos passageiros que
utilizavam os bondes, que rapidamente se transformou no meio de locomoção predileto das
classes mais abastadas da cidade. Além de representar o novo e o moderno, o serviço de
bondes afastava, graças às regulamentações de bem se trajar e de bem se portar, boa parte
das classes menos abastadas, que, além de todas as restrições que enfrentavam para o uso
do novo meio de transporte, não podiam arcar com os novos preços, que eram o dobro dos
praticados pela velha Cia. Viação. Esses novos passageiros de bonde cultivavam aquilo que
um cronista nos anos de 1920, Amadeu Amaral, chamou de psicologia dos bondes. Numa
série de artigos publicados pelo jornal A Notícia, no início do ano de 1907, um cronista,
identificado apenas como Seu Figueiredo, tece uma série de comentários sobre a complexa
e nova psicologia, anos depois abordada por Amadeu Amaral, que exigia não apenas um
comportamento mais ágil, como também uma maior maleabilidade nos padrões morais,
requisito fundamental para se dividir o banco com outros passageiros. Comentando acerca
dessa nova psicologia, o autor aborda uma série de problemas relativos ao andar de bonde,
tratando de assuntos tão diversos como os malabarismos dos passageiros quando da
arrancada repentina dos carros (A Noticia, 16/01/1907), ou então sobre doenças às quais
inconscientemente estão expostos os passageiros dos bondes, ao inalarem as grandes
quantidades de poeira, levantadas graças à velocidade exagerada em que se movimentam os
carros da empresa (Idem, 17/01/1907).
Ao final dos artigos, Seu Figueiredo, se dispõe a escrever um livro que pudesse
auxiliar os passageiros dos bondes de São Paulo. Seria não bem um livro, mas um manual,
cujo nome dava bem a medida do que era um passeio de bondes pela cidade no início do
século XX, Gymnastica Applicada ao Bonde. Essa nova psicologia, acompanhada de uma
nova maleabilidade corporal, era o sinal dos novos tempos advindos com a Light, cujos
ritmos demoraram algum tempo para serem absorvidos por grande parte da população que,
primeiramente, tinha de lutar para ter acesso a esse serviço, para não ser por ele desterrada.
A consolidação da Light & Power na cidade de São Paulo foi um processo que passou
não apenas pela ocupação das ruas, distribuição das redes, popularização dos serviços e
destruição da concorrência. A consolidação da empresa canadense também passou pelo
aliciamento político e pela criação de demandas, não apenas para os seus serviços de
transporte ou de energia elétrica, mas também demandas para o desenvolvimento de
pesquisas relacionadas à eletricidade, potenciais fontes de geração de energia e,
principalmente, formação de mão-de-obra especializada em assuntos relacionados com a
engenharia elétrica. Em ambos os casos a empresa contou com um forte poder de
persuasão: o seu poder econômico.
Quando de sua chegada a São Paulo os homens por trás da companhia canadense
tiveram extrema preocupação e cuidado para costurar alianças que lhes valessem algumas
facilidades nos meios políticos locais. A presença de Antonio Gualco, um amigo próximo
da família Campos, uma das mais influentes no Estado de São Paulo, foi um fator decisivo
para a aceitação da empresa canadense e para que o contrato original de transportes por
tração animal firmado entre o município e a Cia. Viação Paulista fosse rasgado. O que os
homens da Light procuravam eram pessoas influentes na comunidade com as quais a
empresa pudesse obter um bom relacionamento e, com isso, conseguir algumas vantagens
nas negociações que viessem a ocorrer com a municipalidade. O próprio Brown,
engenheiro-chefe e um dos diretores da companhia, tinha clara a necessidade de encontrar
aliados certos junto a comunidade local. As discussões acerca de que aliados encontrar em
São Paulo eram feitas sem a menor cerimônia entre os membros da empresa no Brasil e os
membros da empresa no Canadá ou mesmo nos Estados Unidos.
A estratégia da empresa foi a de encontrar aliados que pudessem, sempre que necessário,
fazer o lado da balança pender ao seu favor. Isso foi de grande eficiência quando de sua
chegada, aproveitando-se do misto de alegria e fascinação por São Paulo ser alvo de
vultosos capitais internacionais, porém, com o passar dos anos, e com o fascínio inicial
sendo substituído por desconfiança, a companhia canadense começou a adotar uma
estratégia que mais do que se aliar aos nomes certos era a de fazer com que os nomes
certos chegassem ao poder.
Existem poucas fontes que dão conta de tal estratégia, muitas delas relegadas apenas
aos jornais de linha mais independente e que chamavam a atenção para o “perigo yankee”.
Esse perigo, cuja atenção dos poderes públicos foi chamada logo nos primeiros dias da
empresa, após a unificação dos contratos, se manifestava no comportamento despótico e
monopolista da companhia que a todo custo procurava garantir o máximo de influência em
todas as áreas da capital. Os primeiros sinais de alerta foram dados no ano de 1906, quando
um jornal do município (A Platéa, 06 e 07/12/1906) chama a atenção para os projetos da
Light em Santo Amaro. Com o objetivo de construir uma barragem que servisse de
reguladora do fluxo de águas para a sua usina em Parnaíba, a empresa canadense começou a
pressionar a Prefeitura da então cidade de Santo Amaro para lhe conceder total liberdade
em realizar desapropriações dos terrenos para a área daquela que viria ser a represa de
Guarapiranga. O objetivo da companhia era o de, após a conclusão de suas obras, especular
com os terrenos por ela comprados, para conseguir bons lucros no mercado imobiliário da
cidade, que desde a sua chegada vivia dias muito agitados.
O fato é que o caso ganhou certa repercussão e acabou sendo explorado por parte da
imprensa paulistana, levantando suspeitas sobre a atitude da companhia, queixas de
proprietários de terra prejudicados pelas desapropriações e uma ação no Senado Paulista
que aprovou o projeto da empresa em Santo Amaro, sob os auspícios de alguns lentes da
Escola Politécnica. Esse caso fez com que a Light, talvez como retribuição aos “homens
fortes” em que podia confiar, iniciasse um processo de aliciamento de eleitores, no que
se tornaria um escândalo eleitoral na cidade de São Paulo.
No entanto, não era apenas na arena política que a companhia procurava afirmar-se
na cidade, mas também junto aos responsáveis pela formação das elites locais, mais
especificamente, das elites que estariam ligadas á produção científica e que seriam de
fundamental importância para o desenvolvimento de uma força de trabalho nativa, o que
pouparia um bom dinheiro da empresa na contratação de mão-de-obra estrangeira; além de
criar um conjunto de idéias que colocassem o principal produto da Light, no caso a
eletricidade, como o centro da nascente economia industrial paulistana. Trata-se da Escola
Politécnica. A Escola Politécnica foi fundada no ano de 1893 e iniciou os seus cursos a
partir de 1894. Essa instituição representou, ao longo da Primeira República, um dos mais
importantes centros de pesquisa do país. A Escola era para São Paulo não apenas um centro
de estudos, mas um centro de representação e de afirmação da superioridade dos paulistas
em relação ao restante da federação, principalmente em relação à sua concorrente direta, a
Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Como uma das formadoras de quadros para o Partido
Republicano Paulista, já que os filhos dessa elite cafeeira formavam uma parte significativa
dos alunos de instituições como a Politécnica, o papel da Escola ia muito além da ciência e
esbarrava na política, já que aquela instituição forneceu importantes quadros para a vida
pública paulista e brasileira.
As relações entre a companhia canadense e a Politécnica começaram cedo. No dia
29 de maio de 1901, quando o engenheiro F. S. Pearson visitou pela primeira vez as
instalações da instituição, iniciou-se uma relação que se estenderia ao longo dos primeiros
trinta anos do século. Guiado por alguns professores e alunos, Pearson conheceu o prédio
que abrigava a instituição e fez à Politécnica uma oferta irrecusável: instalar um motor
elétrico e fornecer gratuitamente energia elétrica assim que as operações da usina de
Parnaíba se iniciassem. O diretor da escola Politécnica, Paula Souza, lisonjeado com o
interesse e as declarações de Pearson, aceitou o presente e deu o primeiro passo para que a
cadeira do que hoje chamamos engenharia elétrica iniciasse as suas atividades
(NAGAMINI, N, 1994:64). Esse fato, aparentemente de importância secundária, foi um
momento chave para se entender o rápido sucesso da difusão da energia elétrica na cidade
de São Paulo e, posteriormente, no resto do Estado. Juntamente com o início da cadeira de
eletrotécnica, se iniciava em São Paulo um processo de difusão da eletricidade e uma
campanha pelo uso dessa forma de energia, incluindo aí a difusão de artefatos elétricos
diversos, tais como lâmpadas, panelas elétricas, motores elétricos, aquecedores de água,
dínamos e uma infindável série de objetos que passariam, nas décadas seguintes, a fazer
parte do dia-a-dia dos cidadãos paulistanos.
Esse processo de adoção de uma tecnologia, que tanto pode decretar a sua rápida
expansão, quanto o seu atraso, ou mesmo a sua morte prematura (ARTHUR, W. D.
1998:1906-112), teve na empresa canadense o principal núcleo de propulsão, sendo ela a
única responsável pela criação do momentum (HUGUES, T. 1989: 141-174). Uma
determinada tecnologia atinge o seu momentum quando um conjunto de fatores, que são
aparentemente independentes, se conjugam. A tecnologia ganha apoio de homens e de
instituições e começa a suscitar um campo de pesquisa, seja em instituições científicas, ou
em indústrias. Esse campo de pesquisas e as idéias a ela relacionadas tendem a se espalhar
sociedade afora e a tornar o caminho de adoção de determinada tecnologia mais fácil
quando comparada a outras formas de manifestação técnica. Os trabalhos de Thomas
Hugues tratam de vários exemplos de como a tecnologia da eletricidade atingiu o
momentum em diversos locais. Alguns dos exemplos dados pelo historiador americano são
de grande utilidade para uma melhor compreensão do fenômeno que ocorreu na cidade de
São Paulo no início do século XX. Esses exemplos são as cidades de Londres e Chicago.
A cidade de Londres era, no início do século XX, um dos maiores centros industriais
e financeiros do mundo. Apesar disso a cidade demorou, desde as primeiras aplicações das
tecnologias de eletricidade, quase 70 anos para substituir inteiramente o seu sistema de
iluminação a gás por eletricidade. Essa situação ocorreu por uma sobreposição da política
por sobre a tecnologia. A tradicional organização político-administrativa londrina dividia a
cidade por diversas autoridades locais, cada qual responsável pela administração de uma
parte do que para nós seria o município. A primeira requisição para o fornecimento de
eletricidade para a cidade de Londres foi feita pela empresa English Electric Light
Company, proprietária dos direitos de uso no Reino Unido da tecnologia desenvolvida por
Thomas Edison em Merlon Park. No início de 1882 a companhia construiu o primeiro
grande gerador na cidade de Londres, sob o viaduto Holborn, usando a mesma tecnologia
aplicada com sucesso na cidade de Nova Iorque (Idem, 54-78), entrando em funcionamento
naquele mesmo ano, no dia 25 de abril. A partir desse momento teve início uma infindável
série de problemas que retardariam o uso da eletricidade em larga escala na cidade de
Londres por mais de três décadas.
O principal problema ocorria pela peculiar forma de organização político-
administrativa no Reino Unido. Para a construção da canalização subterrânea na cidade e a
necessária intervenção nas ruas, iniciou-se uma discussão para a criação de uma lei que
valesse não apenas para a cidade de Londres, mas também para todo o país, transformando
uma questão local em uma questão para o Parlamento Britânico. O problema para
desenvolver uma regulamentação se dava pelo fato dos conselhos municipais terem a
autonomia de decidir qual a melhor forma de lidar com questões como, no caso da
eletricidade, a construção de dutos para a instalação dos fios de transmissão, até qual a
corrente a ser adotada por um sistema de distribuição. Esse fato resultou numa grande
disseminação de pequenas companhias e na não adoção de um padrão único que
beneficiasse uma grande companhia como a English Electric Light, que viu frustrados os
seus esforços para a criação de uma empresa que centralizasse os serviços de fornecimento
de força e luz (Idem: 227).
Esse problema de definição de uma legislação, que ao final de contas ficou sob a
jurisdição dos diversos conselhos municipais, resultou na impossibilidade da instalação de
grandes empresas que investissem grandes somas de capital na construção de centrais
elétricas para o fornecimento de energia para a cidade. Essa contradição entre a política e
tecnologia se aguçou com o novo desafio que representava a eletricidade para uma cidade
como Londres, o que resultou na impossibilidade dessa nova tecnologia atingir o seu
momentum na cidade até o final da Primeira Guerra Mundial. Um paradoxo para uma
cidade que concentrava as maiores instituições científicas do mundo à época. Os problemas
enfrentados pela tecnologia da eletricidade na cidade de Londres podem ser resumidas nas
palavras de Lloyd George, respondendo a um pedido para apressar o processo de unificação
dos padrões de transmissão e distribuição de eletricidade: “(...) Isto não é questão de
engenharia, é questão de política” (Idem:203).
O caso de Chicago seguiu um caminho completamente diverso do que o de Londres,
num processo que foi em certos aspectos semelhantes aos de São Paulo. No início do século
XX a cidade de Chicago possuía uma série de pequenas empresas fornecedoras de energia
elétrica e de força para cidade. A situação passou a mudar com a chegada em Chicago de
Samuel Insull, um ex-funcionário de Thomas Edison que tinha a intenção de unificar os
serviços de distribuição de força e luz na cidade. Valendo-se da peculiar condição política
daquela cidade, Insull, presidente da Chicago Edison Company, iniciou um processo de
monopolização da produção e distribuição de energia elétrica que criou as condições ideais
para atrair grandes investimentos para a sua empresa, usando muitas vezes para isso de
ações não lícitas.
Com grande influência na política local, Insull conseguiu que fosse aprovada uma
legislação que desse à empresa uma concessão de longo prazo, no caso de 50 anos, além de
separar os serviços de força e luz dos serviços de transportes (Idem:206). Isso possibilitou
que a empresa incentivasse o surgimento de uma demanda para força e luz, permitindo a
aplicação em larga escala das novas tecnologias relacionadas á eletricidade. O resultado
dessa combinação foi a criação de um sistema que envolvia as necessidades sociais e de
mercado, redes de financiamento, inovações tecnológicas, engenharia, design e técnicas
administrativas (Idem, 216). O momentum da eletricidade em Chicago representou a síntese
de diversos modelos e foi possível por um misto de desregulamentação no fornecimento de
força e luz e de uma acirrada competição na área de distribuição e transportes, além é claro
de um grande movimento junto ás universidades dos Estados Unidos para o
desenvolvimento de estudos relacionados com a eletricidade (Idem, 250).
O caso de São Paulo, apesar de guardar certas semelhanças com o caso de Chicago,
seguiu um modelo de desenvolvimento distinto. Quando uma empresa como a Light &
Power Company se instala numa cidade sem quaisquer melhoramentos relacionados com os
serviços os quais ela se propõe a fornecer, diferentemente dos casos de Londres e Chicago,
é natural o fornecimento de uma série de incentivos para que o público use os seus serviços.
No entanto, o que a companhia canadense incentiva na cidade de São Paulo e, por
conseqüência, no Estado, é a adoção das tecnologias da eletricidade, fazendo com que essas
tecnologias se imponham sobre as outras, de forma a tornarem-se um paradigma (DOSI, G.
1998:387-420) a sempre ser levado em conta. Em outras palavras, o momentum da
eletricidade em São Paulo foi capitaneado por apenas uma única empresa, que impôs os
seus ritmos e projetos – amparada numa legislação permissiva e num executivo claudicante
– a toda a população da cidade.
O papel da Escola Politécnica nesse processo, ao contrário das grandes
universidades dos Estados Unidos que participavam com pesquisas e formação de mão-de-
obra especializada, foi a de chancelar os projetos apresentados pela companhia junto à
Prefeitura Municipal, em casos como os da iluminação, ou mesmo o da construção da
represa de Guarapiranga, que tanto escândalo gerou na cidade pela forma como os
processos de desapropriação estavam sendo conduzidos. A Escola Politécnica, através de
alguns artigos em sua revista, ou mesmo através de artigos de seus professores nos jornais,
acabou por colocar-se ao lado da empresa canadense e a dar um respaldo científico aos
intentos da Light. As relações entre a empresa canadense e a Escola Politécnica são, no
entanto, apenas uma parte do processo de formação do momentum da eletricidade em São
Paulo. Além da necessidade de se criar um consenso ao redor da eletricidade entre os meios
público e científico, foi também necessário difundir a nova tecnologia sociedade afora. Esse
trabalho de difusão também tem na Light o seu centro motivador.
Antes da instalação da empresa canadense no Brasil, um dos homens que serviram
de ponte para a coleta de informações sobre São Paulo e também como um intermediário
nas negociações junto à Câmara de Vereadores da cidade foi James Mitchell. Esse
americano que se radicou no Brasil em fins do século XIX era o representante da empresa
de material elétrico estadunidense General Electric, a maior empresa do ramo no mundo
àquela época. Como representante daquela empresa, Mitchell era o nome ideal para servir
de ponte com a Prefeitura e para tratar dos processos de compra e importação dos materiais
necessários para o funcionamento da nova companhia de bondes em São Paulo. O papel de
Mitchell como representante da General Electric no país e intermediário entre a empresa
canadense e a empresa estadunidense, lhe valeu sucesso como comerciante, o levando a
abrir uma loja que levava o seu nome na cidade de São Paulo, a famosa Casa James
Mitchell, a única casa autorizada a vender material elétrico em nome da Light & Power Co.
A Casa James Mitchell era a responsável pela venda de motores para empresas interessadas
em trocar o vapor pela eletricidade, era a responsável pela venda de medidores elétricos,
além da distribuição de lâmpadas e de uma variada gama de produtos relacionados à
eletricidade, que podiam ser usados no dia-a-dia das donas de casa paulistanas, desde que, é
claro, pudessem arcar com as despesas com a compra desses artefatos elétricos. O papel da
casa James Mitchell era, entre outras coisas, o de gerar demanda para o consumo de energia
elétrica, ou seja, criar um movimento na sociedade paulistana que fosse capaz de
transformar a eletricidade num elemento corriqueiro no cotidiano do município.
Essa difusão da eletricidade, que teve o seu início com a inauguração do tráfego de
bondes em 07 de maio de 1900, fez com que, poucos anos após o seu início, as tecnologias
relacionadas com a eletricidade atingissem o seu momentum em São Paulo. É difícil
determinar o momento exato desse acontecimento. Certamente ele está relacionado com a
inauguração da usina de Parnaíba em 23 de setembro de 1901. A inauguração dessa usina
proporcionou á empresa canadense vender seus motores e oferecer a eletricidade como uma
alternativa ao vapor e à gasolina, além de concorrer para a iluminação publica e difundir e
iluminação privada. Para esse processo foi decisiva a participação da Escola Politécnica e
da casa James Mitchell. A primeira forneceu o seu discurso científico como salvaguarda
para a adoção da nova tecnologia, a segunda ofereceu os equipamentos e incentivou o uso
de produtos que utilizassem a eletricidade como força motriz.
Seguindo o esquema de Hughes para descrever o processo de desenvolvimento de
uma determinada tecnologia para atingir o seu momentum, nos primeiros anos do século
XX, a eletricidade atingiu no município aquilo que o autor chama de massa, a base de
produção da energia elétrica – no caso a usina de Parnaíba –; ganhou um movimento, que
pode ser notado num processo de difusão do uso da eletricidade sociedade afora; e uma
direção, a substituição de outras formas de força pela força elétrica, incluindo nisso também
a substituição da iluminação a gás por iluminação elétrica. No entanto, esse processo de
construção do momentum, por ter sido o resultado da ação de um único grupo de interesses,
levou a uma série de contradições que perduraram ao longo de toda a Primeira República,
isso graças à ação monopolista da empresa canadense. Essas contradições se manifestavam
no grande número de pessoas que eram, dia após dia, vitimadas pela eletricidade e pelo
grande número de pessoas que eram excluídas do acesso à energia elétrica. Essa situação
levou a um sutil embate entre a população da cidade e as formas de utilização dessa nova
tecnologia, o que se manifestava no confronto direto, com ataques contra tudo o que
representasse a Light & Power na cidade de São Paulo, até formas de burlar as regras de uso
impostas pela companhia e se utilizar dessa nova tecnologia sem a devida remuneração para
a empresa, numa prática popularmente conhecida como “gato”.
Os “gatos” eram uma prática aparentemente comum à época, causando constantes
transtornos à empresa. Nos primeiros dez anos do século XX era normal encontrar relatos
sobre pessoas que se apropriam ilegalmente da eletricidade, através de ligações
clandestinas, com o intuito de iluminar a sua casa, geralmente usando apenas uma lâmpada
que ficava acessa ao longo do dia. A empresa, através de James Mitchell, o responsável por
essa área, procurava de todas as formas coibir esse tipo de prática, usando de estratégias
como o desconto para os consumidores que pagavam as contas em dia, até ameaças de
prisão e de corte de energia para aqueles que de alguma forma burlassem as regras.
Conclusão
Referencias bibliográficas
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Paulo: MacGrall Hill do Brasil/EDUSP.
RESUMO
Esse estudo enfoca as judias que imigraram no período que se estende do final da Segunda
Guerra Mundial até 1956, quando o general Gamal Abdel Nasser ascendeu ao poder do
Egito. Os judeus que viviam na Europa, Oriente Médio e África do Norte, proibidos de
imigrar para Israel, acabaram transferindo-se para outros países, entre os quais o Brasil.
Embora ainda vigorassem no país restrições à entrada de imigrantes, as cidades brasileiras
receberam, terminada a Segunda Grande Guerra, os sobreviventes do Holocausto, os
refugiados da Europa Ocidental e Oriental e, dos países banhados pelo Mediterrâneo. A
metodologia escolhida para alinhavar a multiplicidade cultural do grupo étnico judaico foi
a História Oral que através das entrevistas captou os discursos de 22 empreendedoras. Este
trabalho revela outras verdades femininas, que os discursos patriarcais teimam em
minimizar e permite questionar o papel das mulheres nas relações de poder entre os
gêneros.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero, Imigração, Judeus.
ABSTRACT
This study is focused upon Jewish women emigrants, comprising the period preceding the
Second World War until 1956, when General Abdel Nasser came to power in Egipt. The
Jews who then lived in Europe, The Middle East and North Africa, and who were
forbidden to emigrate to Israel, ended up by moving to many other countries, including
Brazil. Although some restrictions to the entrance of immigrants were still in effect in the
country at the time, the Brazilian cities received, by the end of the Second World War,
survivors of the Holocaust and refugees from the Western and the Eastern European
countries, and also those from the countries bathed by the Mediterraneam sea. The
methodology chosen to delineate the multiple cultural aspects of this Jewish ethnic group
was Oral History, through interviews which collected the discourses of 22 entrepreneurial
women. This study reveals other female truths consistently minimized by a patriarchal
discourse, and enables to question the part that women usually take in the relations of
power between genders.
78
Mestre em Língua Hebraica, Literatura e Culturas Judaicas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, com a dissertação “Histórias Recontadas: Judias Imigrantes
Empresárias em São Paulo (1945-1956)”. Participante do grupo de Pesquisa “Mulheres Proprietárias”, do
Departamento de História Econômica da Universidade de São Paulo e do grupo de Pesquisa “E/Imigrantes”,
do Departamento de Psicologia Social da Universidade de São Paulo. E-mail: mariefelice_w@yahoo.com.br
Recentes estudos sociológicos vêm mostrando a importância das mulheres e a
valorização dos estudos sobre suas conquistas no mercado de trabalho. Nenhuma das
pesquisas, entretanto, abordou as mulheres judias que, inseridas no contexto familiar,
ousaram empreender ações em busca de soluções econômicas, visando o lucro para garantir
suas necessidades e a de seus familiares. Com este trabalho, pretendemos preencher esta
lacuna.
Os estudos realizados sobre a imigração de judeus em nosso país concentram-se em
núcleos de famílias e, em particular, na figura masculina, único partícipe de
empreendimentos econômicos e pela manutenção da estrutura familiar. Como chefes de
família ou como profissionais são responsabilizados, inclusive pela inserção do grupo no
meio social, restando às mulheres o papel de figurantes e elemento passivo no enredo
familiar dos grupos culturais judaicos.
O tema abrange o período que se estende do final da segunda guerra Mundial até
1956, quando no Egito e outros países árabes apoiaram a ascensão ao poder o General
Gamal Abdel Nasser, rompendo as antigas e amistosas relações entre muçulmanos e judeus.
Do outro lado, a cidade de São Paulo apresentava amplas possibilidades e perspectivas
econômicas a imigrantes que buscassem terras politicamente tranqüilas da América.
A pesquisa excluiu o período vivenciado pelas imigrantes judias durante o
Holocausto, o que facilitou a participação no estudo. Os judeus que viviam nas terras
atingidas pelo Nacional Socialismo estavam proibidos de emigrar para Israel e,
transferiram-se para outros países da Europa e América, entre os quais o Brasil. Embora
ainda vigorassem restrições oficiais à entrada de imigrantes, as cidades brasileiras
receberam, terminada a Segunda Guerra, os sobreviventes do Holocausto e os refugiados da
Europa Ocidental e Oriental, bem como os banhados pelo Mediterrâneo.
Para nossos objetivos a História Oral foi a metodologia escolhida para compor as
histórias de vida de mulheres que imigraram a São Paulo, entre 1945 e 1956 que
trabalharam, visando o lucro, apoiadas em seu próprio capital. Embora não assumam sua
autoria, elas romperam com os papéis tradicionais femininos mantendo a harmonia na
esfera familiar pautada numa organização patriarcal. Esta diretriz permitiu incluir as
minorias, tornando-se um instrumento fecundo para compreender o universo desse estudo.
A pesquisa qualitativa foi a técnica utilizada, visando a criação de espaço na história deste
grupo étnico “valendo como revisão de situações estabelecidas, pois, quase sempre, ela
propõe alterações interpretativas que contrastam com a ordem vigente” (MEIHY, 2000:
15).
A primeira grande dificuldade encontrada para esse estudo foi a composição da
amostra. As mulheres casadas até o presente, não aceitam assumir seus papéis de
empreendedoras. Desta maneira, o objeto da pesquisa ficou quase ausente, visto que era
exigido como pré-requisito: ser mulher, judia, imigrante na cidade de São Paulo no período
e de ter exercido o papel de empresária79, independente do sucesso do empreendimento.
Essa constatação impele a certos questionamentos, como a possível falta de espaço
social ao empreendedorismo feminino ou a perpetuação do modelo conservador da
sociedade patriarcal judaica. E eventuais diferenças entre as imigrantes judias originárias
dos três principais grupos culturais.
Ainda que só no plano discursivo, há o desafio da releitura ou, re-ouvir as histórias
que poderão contribuir para contradizer os discursos normativos, encarados como naturais,
talvez, por corresponderem a uma narrativa patriarcal que até aqui permanece preservada
pelas próprias mulheres.
Para definir o grupo de 22 mulheres judias, a “auto-identificação“ (RATTNER,
1977: 132). serviu como referencial, abrangendo um universo das laicas ou não religiosas às
ortodoxas. A discussão sempre atual sobre o significado de identidade judaica converge
para a questão dos valores que geram diferentes processos identificatórios deixou de ser
analisado no momento.
As entrevistas foram individuais, na residência da família ou no escritório, e o
tempo de duração não foi limitado, mas estendeu-se, em média, por três horas. As mulheres
exigiram a omissão de suas identidades, pedindo a utilização de nomes fictícios. Tampouco
aceitaram a gravação de suas falas, ficando suas falas restritas às anotações. Ainda, uma
nova surpresa diante da presença inesperada do marido ou filho, no momento da entrevista,
o discurso se alterava. Diante disso, marcávamos novos encontros para melhor elucidação
da história.
79
“Pessoa ou grupo de pessoas que inicia e ou administra uma empresa, assumindo a responsabilidade por seu
funcionamento e eficiência”. (SANDRONI, 1987: 138/139).
Além das trajetórias de vida, oralmente obtidas, consultamos o acervo do Arquivo
Histórico Judaico Brasileiro, de São Paulo, de onde pudemos incorporar depoimentos orais,
ali registrados.
Diante desse panorama inquietante, que se traduziu numa minimização sobre as
iniciativas abre-se espaço para discussão sobre o exercício dos papéis femininos em conflito
com o âmbito público, mostrando-se um novo som, em meio ao silêncio sobre as iniciativas
das mulheres que parecem ousar e criar o avesso do homem.
Cenário
O povo judeu viveu disperso por séculos entre outras sociedades e manteve sua
unicidade na religião, filosofia, valores éticos, morais e ancestralidade, somando uma
pluralidade cultural resultante de sua participação em contextos nacionais diversos. Embora
a religião seja vista como o fio-mestre da unidade desse povo, a organização social
contemporânea abriu espaços para a valorização de outros conceitos, geradores de
diferentes processos identificatórios, como os preceitos ortodoxos, conservadores, liberais,
a filosofia ético-moral, a matrilinearidade e, após 1948, a identificação ideológica e política
com o Estado de Israel.
Considerando as diferenças culturais, pouco conhecidas, apresento um rascunho
referente à localização dos diferentes grupos culturais judaicos nos países de origem das
imigrantes aqui apontadas.
Ashkenazita:
As mulheres que vieram da Europa Central e Oriental, constituem-se no maior
número de entrevistadas deste trabalho, assim, iniciamos pelo grupo lingüístico-cultural
identificado com o iídiche - ashkenazitas.
A maioria dos judeus da Europa conheceu o período de consolidação das revoluções
do século XVIII tendo participando do “Estado Burguês”. Este cenário é o da modernidade,
determinante na separação definitiva entre as esferas do público e privado. Nas sociedades
tradicionais judaicas, as relações sociais caracterizam-se pela:
(...) intimidade, comensalidade, solidariedade primária afetiva, emocionalidade, padrões
rigorosos de controle social, núcleo familiar organizado em torno da parentela sanguínea
que constitui além de sua função reprodutiva biológica, uma unidade de produção
econômica e de consumo coletivo (LEWIN, 1996: 448).
(...) pai é formal, de acordo com os costumes e a lei judaica, mas o domínio real do espaço
doméstico pela prática da vivência cotidiana é da ”iídiche mame”. Ela manipula os recursos
materiais e simbólicos existentes no interior da família (....)
(...) A aceitação pela família desse direito significa o reconhecimento implícito de sua
autoridade (....) explicando (....) segundo a visão tradicional da vontade divina (....) não
percebendo ou não querendo assumir explicitamente o papel de interventora. (LEWIN,
1996: 452).
Apoiando-se no texto citado, a mãe, a responsável pela definição dos papéis e das
urgências, estabelece as partes com certo grau de autonomia. É seu dever acompanhar os
estudos, sobretudo dos filhos homens, conforme a cultura e a religião enfatizam (pois, é a
garantia da continuidade comunitário-judaica). Esses encaminhamentos são fundamentais
por definirem responsabilidades, ao mesmo tempo, em que hierarquizam as relações na
futura geração.
O estudo talmúdico para os homens, por exemplo, é tão valorizado a ponto de as
mulheres improvisarem algum trabalho remunerado para garantir as despesas e poupar o
esposo dessa preocupação, sem levá-lo a interromper os estudos. Acrescenta-se um
reconhecimento social da família que tem um sábio (o conhecedor dos mistérios do
sagrado, o estudado), que é vista como nobre e abonada, dada a capacidade de prover o
filho por tantos anos. Na ausência do filho, o mito de mulher fraca e dependente configura-
se; no contrário, isto é, no completo, em sua maternidade, a máxima e plena força
manifesta-se numa existência, vista como altruísta, provedora e protetora.
Essas mulheres ora mães, ora esposas, são pessoas que irão concomitantemente
participar dos processos sociais do período nas pequenas cidades da Europa Central e
Oriental. Aos poucos, o mundo judaico vai ganhando novas formas e o espaço privado
invadido por distintas necessidades, abrindo oportunidades à mulher.
A sobrevivência econômica, a profissionalização, o proletariado, as novas
exigências de competência individual, a secularização da sociedade, entre outros fatores,
foram dissolvendo os muros que continham esse universo público separado e distante da
realidade privada judaica do período.
Personalidades consagradas da comunidade judaica viviam, em sua maioria, nas
grandes cidades, sobretudo, da Europa Ocidental inseridas no cotidiano laico, lutando pela
renovação mundial que incluía a integração judaica.
O Iluminismo, ideologia predominante na Europa Ocidental do século XVIII,
ventilou a filosofia judaica para além de sua religião, vislumbrou novas abordagens, releu o
judaísmo tradicional criando novos paradigmas.
Muitos judeus do Ocidente, pertencentes às camadas médias da população, puderam
engajar-se em universidades, imprensa e na literatura, indústrias, bancos e até trabalharam
em repartições públicas ou comércio, integrando-se à sociedade laica, usufruindo os direitos
iguais para o exercício da cidadania recém-conquistada. Os filhos de famílias abastadas
foram aceitos nas universidades européias e aos demais restaram os estudos orientados
dentro do corpo da comunidade.
80
- Movimento ideológico surgido em finais do século XIX na Europa Ocidental que propunha a criação de
um Estado para o povo judeu.
como porta-vozes do grupo que protegiam, puderam mostrar sua força, inteligência e
competência para resistir e vencer em tempos de guerra, enquanto os homens permaneciam
escondidos, fugindo da possibilidade de serem arrancados dali e submetidos a trabalhos
forçados.
Sefarditas e Orientais
Em países da Europa Ocidental e Oriental e nos banhados pelo Mediterrâneo
existiam, sobretudo, judeus sefarditas, tais como: França, Itália, Turquia, Chipre, Grécia,
Bulgária Tunísia, Líbia, Marrocos, Argélia e Egito, provenientes da Península Ibérica, e
identificados pelo idioma ladino. Próximos, os judeus orientais viviam no mundo árabe:
Palestina, Iraque, Síria, Líbano e Egito falando, em geral, o idioma árabe. O grupo sefardita
representava no século XII, 90,0% da população judaica mundial, caindo em 1700 para
50,0%, como conseqüência de emigrações forçadas, ficando reduzida a 10,0% em 1930.81
No Oriente Médio, de modo geral, os judeus concentraram-se nas grandes cidades,
pois contavam com o apoio dos califas, no endosso às oportunidades de estudos e ao
exercício de cargos de confiança, como apontam os censos demográficos do Professor
Hayim Cohen (LEFTEL, 1997: 49). No Egito, o composto cultural de judeus:sefarditas,
orientais e ashkenazitas, gerou um espírito cosmopolita ao conjugar o Ocidente e o Oriente.
A relação entre os judeus sefarditas que emigraram para o Oriente e se defrontaram
com uma comunidade judaica local seguiu: “(...) três cursos distintos: assimilação total aos
autóctones, preservação completa ou parcial da cultura dos exilados e a influência direta e
recíproca entre os dois grupos” (BEN AMI, 2003: 35), que Ianni (2000: 16 e 202) viria a
81
SEPHARADIC POPULATION FIGURES THOUGH HISTORY – rufina@netactire.co.za
A comunidade sefardita vai caracterizar-se no Oriente Médio, pela manutenção da
cultura e tradições da origem e pela tendência mundial e cíclica entre integração e
secularização ou o forte apego religioso.
Os sefarditas como os orientais valorizavam a religião e primavam pela educação
religiosa aos filhos, que começava antes mesmo da escola regular. Os meninos eram
encaminhados ao “Kutab” (LEFTEL, 1997: 26), (quarto para estudos, equivalente ao
“chedder” entre os ashkenazitas), dirigido às crianças do sexo masculino e sobretudo, aos
mais abastados que poderiam sustentar os filhos em dedicação total aos estudos, por longos
períodos. No estágio escolar seguinte, os demais ingressavam nas escolas laicas.
Já, no início do século XX, a “Alliance Israélite Universelle” oferecia espaço aos
judeus com a uma educação ocidental, era a possibilidade do aprendizado de idiomas, como
o francês, o inglês ou italiano, habilitando-os ao mercado de trabalho. Era uma organização
internacional de origem francesa que acreditava numa tendência espiritual nova, mais
aberta (LEFTEL, 1997: 54), e de forte interesse cultural.
A difusão cultural possibilitou que, nas primeiras décadas do século XX, as cidades
cosmopolitas do Oriente Médio estivessem misturando os vários idiomas, utilizando o
francês em casa, o árabe com os criados e o inglês nas melhores escolas e ainda, não raro,
encontravam interlocutores armênios, turcos e iranianos.82 Assim, os judeus orientais eram
percebidos como integrados à comunidade local, que era tolerante ao exercício da
religiosidade, a população era agregada, não havia grande separação entre judeus e outros.
A partilha da Palestina, determinada pela ONU, intensificou nos países árabes
posturas nacionalistas. Em 1948, no Egito, onde vivia a maior comunidade judaica do
Oriente Médio, responsável pelo incremento comercial, industrial e bancário, fazendo parte
dos grupos que alavancaram a economia do país, inclusive, em cargos político-
administrativo, Senado e Câmara dos Deputados. Alguns, “chegaram a manter ligações
próximas com a aristocracia egípcia muçulmana, e os mais pobres, de modo geral vindos
das áreas rurais logo se identificaram com a proposta israelense, para onde buscaram
imigrar” (DECOL, 1999: 182), recorrendo a subterfúgios dados os impedimentos impostos
pela Liga Árabe.
Os sefarditas distinguiram-se dos outros dois grupos culturais significativos para
este estudo, por contar com maior participação efetiva feminina nas sinagogas e serviços
82
REVISTA MORASHÁ - SETEMBRO, 1995, P.51
religiosos. As moças aos 12 anos, também, faziam sua iniciação religiosa e apresentavam-
se oficialmente à comunidade. A liturgia sefardita contava com canto de coros mistos que
permeava todo o serviço religioso, num diálogo em que se alternavam fiéis e coro. Incensos
eram usados e dos salmos eram frisadas as entrelinhas compostas, permeando de
simbologias o universo místico da maioria das mulheres sefarditas. Esse grupo cultural
abriu espaço para a participação feminina nos estudos religiosos, trazendo a
institucionalização do “Bat-mitzva” (festa da maioridade feminina) no Brasil.
As mulheres orientais permaneceram em suas casas concentradas no grupo familiar
feminino e suas várias gerações que se desdobravam em afazeres femininos como a
educação dos filhos, a cozinha, os trabalhos manuais e artesanais. No grupo, expressavam-
se livremente os sentimentos, mas, mantidos numa atmosfera hermética do universo
feminino. As casadas, mães, avós e tias eram as interlocutoras desse universo para o mundo
masculino e público. A literatura e a música eram as aptidões diferenciadas e aceitas dentre
as práticas permitidas às bem-educadas, às recatadas moças de olhar baixo preparadas para
o casamento indicado e acertado entre as famílias.
Novos Horizontes
O extermínio de 6.000.000 de judeus pelo Nacional-Socialismo Alemão, mais de
um terço de sua população mundial (DELLA PERGOLA, 1986), resultou em grande
número de sobreviventes, desalojados, refugiados de uma Europa destruída e sem destino.
Na busca por alternativas de sobrevivência, imigraram legalmente para o Brasil e outros
países, estimulados pelas múltiplas possibilidades que essas economias, em expansão,
poderiam oferecer.
Do grupo imigrante, as mulheres judias, provenientes de vários países, onde
vivenciaram circunstâncias hostis ao exercício da religião e das tradições judaicas, ao
imigrarem encontraram no sudeste brasileiro, um período de crescimento demográfico e
econômico, circunstâncias favoráveis às iniciativas profissionais.
A maioria dos imigrantes de São Paulo era formada de italianos, seguida de
portugueses e espanhóis e, em menor escala, japoneses, sírios, libaneses, poloneses, judeus,
armênios e alemães. A cidade também contava com um movimento migratório de outras
regiões brasileiras, criando tons diversos ao sotaque paulista. Essa multiplicidade étnica
modificou o tecido sociocultural, compondo uma nova urbanidade.
O censo de 1950 apontava para a cidade de São Paulo os números de 2.198.096
habitantes, demonstrando a multiplicação de sua população em relação a 1,32 milhão de
habitantes 1940 (CARIGNATO, 2002: 94-95). Este crescimento populacional é fruto de
movimentos migratórios que, ao final de 1959 já somava mais 700.000 (LESSER, 2000:
26), novos imigrantes.
Os dados da tabela mostram o número total de imigrantes na cidade de São Paulo no
período entre 1945 e 1956.
Destaques da Pesquisa
As judias que se instalaram em São Paulo, originárias da Europa Central e Oriental,
eram ashkenazitas; as de origem Ibérica, sefarditas de países da Europa Ocidental e Oriental
e das terras do Mediterrâneo e, o terceiro grupo, o oriental, proveniente dos países árabes,
entre os quais, Líbano, Síria, Egito e Iraque. Este estudo reflete uma participação maior de
imigrantes de origem ashkenazita - 17 participantes - garantindo 10%, proporcionalidade
dos demais grupos culturais, garantindo a significância.
A partir de 1945, os efeitos da política discriminatória contra os judeus tornaram-se
mais flexíveis, mas, ainda os vistos eram outorgados caso a caso. As solicitações de entrada
eram analisadas pela diplomacia brasileira, ponderando-se sobre a qualificação do
solicitante, apesar da manutenção da exigência da “carta de chamada” (documento de
convite ao estrangeiro com especialização profissional de interesse do residente e desde que
fosse para o exercício da atividade profissional junto e sob responsabilidade deste).
Nem sempre donos de seu destino, os emigrantes vagaram entre acasos e
fatalidades. No entanto, os diversos deslocamentos impostos aos judeus ao longo de sua
história, cunharam características na estrutura comunitária que favoreceram uma rápida
acomodação aos novos sistemas econômicos, culturais e políticos. A estruturação do
trabalho, em condições de escassez de recursos, cristalizou moldes baseados em
organizações familiares, perpetuando um comportamento dinâmico de inserção contra a
marginalização.
Num contexto de crescimento, rapidamente, as imigrantes ousaram agir. Buscaram
soluções econômicas para resolver a questão premente da sobrevivência, sempre
considerando a família a razão da mobilização e em contrapartida, contando com ela. Entre
as entrevistadas, 50,0% confirmam ter iniciado seu negócio com envolvimento de
familiares e ou parentes. As demais deixam brechas interpretativas em seus discursos sobre
a diminuta valorização da consangüinidade, ampliando o sentimento de família para além
dessa fronteira, passando a absorver os companheiros ou irmãos de viagem (schifsbrider)
como gesto de solidariedade, amalgamado a família. Salientamos ainda a força de
identificação com a origem, pois em mais de 40,0% o apoio veio de fora do grupo étnico.
“Na casa de meu tio, tínhamos almoços com os “irmãos de viagem”83, a família que
pudemos reconstruir.....”84.
83
A expressão “irmãos de navio” refere-se aos companheiros de travessia oceânica, consolidada em relações
familiares, independentes de laços de consangüinidade.
84
Luiza ,aos 22 anos, casada, empreendeu uma produção artesanal de roupas para os filhos seus e de
amigas. Relato de Luiza a Marie Felice Weinberg ou MFW em São Paulo, 2000.
Este nome, como os que se seguem são fictícios, de modo a preservar a identidade das entrevistadas, em
acordo a exigência das mesmas. Os textos das entrevistas encontram-se na dissertação de mestrado na área
de Língua Hebraica, Literatura e Culturas Judaicas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, defendida em 03/09/2004, sob o título: “Histórias Recontadas: Judias
“Eram aqueles que chamamos de família que trabalhavam, e a maioria morava junta. No
começo, as compras fazíamos para todos, sem divisão.”85
Enquanto os imigrantes criavam uma nova São Paulo, é interessante constatar que,
não tinham percebido que estavam fazendo parte de uma importante transformação
socioeconômica na cidade. Mas esta trajetória foi fruto de muito trabalho e não raro sem
discriminação. “Ser imigrante é não ter nada a perder”, definiu uma das entrevistadas87 e
sem a preocupação com a imagem e seus papéis sociais, sentiam-se livres para tentar fazer
o que fosse possível. Assim, fizeram self-made-men (IANNI, 1965: 36), ou melhor, self-
made-women, como este trabalho vem constatando.
Para esses indivíduos, em sua maioria, as profissões exercidas eram relacionadas às
funções desempenhadas pela família em sua terra de origem, atividades próprias do
proletariado-urbano como: alfaiates, sapateiros, costureiras,. Outro papel importante e que
já vinha sendo desempenhado pelos imigrantes de anos anteriores, era o “Klinteltichik”,
mascate ou prestamista, que era adequado aos recém-chegados que necessitavam fazer sua
rede de conhecimentos, partindo dos clientes de seus fornecedores.
Neste espaço, reconstruiu-se a família que passou a ser composta, também, dos
irmãos de navio de travessia do oceano em direção ao Novo Continente. A convivência
com os pares, aqueles que se percebem, tendo os mesmos objetivos, transforma o individual
no projeto de todos. Cada um começa a identificar-se com o outro e com os anseios,
complementando solidariamente as atividades e fortalecendo o grupo (VELHO, 1980: 33).
Essa construção social foi tecida, mesmo que, inconscientemente, pelos novos imigrantes
que elaboraram, na geografia da cidade, o projeto de inserção econômica, ao mesmo tempo
em que consolidavam sua identidade.
88
Claudete, 28, casada e com filhos, faz e vende, desde então, doces artesanais. Relato a MFW em SP,
2000.
Conta uma das sefarditas entrevistadas, ou ainda, na declaração de uma de origem
oriental: “Tínhamos um plano arrojado que era baseado no interesse pelas pedras
brasileiras, já que nossa família trabalhava com ourivesaria, há varias ‘gerações.”89
A participação das três mulheres de origem sefardita e duas orientais, que aceitaram
contar sobre a luta pela sobrevivência é o resultado participativo possível de entrevistadas
de uma estrutura familiar judaica, acentuadamente, mais patriarcal e conservadora, se,
comparada com as mulheres oriundas da Europa Central e Oriental.
Acentua-se, ainda, como conseqüência da divisão dos papéis as questões sobre a
propriedade do capital, do prover e representar a família, tidas como atribuições
masculinas. Mesmo tendo como referência de origem, as mães das entrevistadas, que em
41,0% dos casos, já trabalhavam fora de casa com remuneração, podendo servir de
modelo para as iniciativas e alternativas de rentabilidade, porém, sempre relacionadas as
atividades ditas femininas. “Eu dava aula de órgão, que aprendi com as freiras italianas”,
comentário da sefardita Isabel.
Dentre comentários das ashkenazitas, podemos destacar a fala de Sofia: “As
mulheres ajudavam nas colheitas de morango, e as mais fracas cuidavam dos idosos e
doentes. Eram enfermeira.”
Regina relata: “Éramos feirantes de meias, e minha irmã, que era linda, trabalhava
como balconista”. NItza conta que: “Tínhamos um negócio de mulheres há muitas
gerações, fazíamos corsette e soutien e cintas.”
No universo pesquisado, houve grande resistência das entrevistadas em se
identificarem como empreendedoras, apesar das iniciativas econômicas realizadas.
Assim, cuidados semânticos foram necessários para o entendimento de palavras que não
raro podem ser tomadas como sinônimas: “trabalhar” e “ajudar”, característica do
patriarcalismo, cuja ótica atrela a identidade da mulher a seu marido.
Luiza acrescenta: “Eu comecei a costurar, não era trabalho. Depois fiz para as
amigas, e foi virando uma pequena produção, e o meu marido cuidava disso, eu só dava as
idéias. Deu certo, e assim é.”
Consideramos empresárias aquelas que arriscaram seu próprio capital investindo ou
transformando-o em produtos e serviços diversos (SANDRONI, 1987: 138-139), pelo uso
89
Margareth, 32, viúva com filhos projeto familiar de joalheria, hoje de envergadura internacional. Relato a
MFW em SP, 2000
de atributos próprios, independentes da participação de outros nas distintas fases do
processo.
Miriam diz: “Eu comecei sozinha para pagar a feira. Quando começou a dar certo,
é que meu marido largou seu emprego para me ajudar com as vendas.”
Para a ashkenazita Sofia, “Conhecemos um austríaco muito necessitado vendendo
um lote de couro de muito boa qualidade. Eu não deixei meu marido revender tudo, e
resolvi inventar como o meu pai fazia. Devo a ele a nossa fábrica de bolsas e carteiras.”.
A oriental Juliette declara:
Comecei vendendo meus próprios tapetes. Depois passei a importar através de contatos
com amigos de lá e com a ajuda do meu filho, que fazia as viagens. Assim que a situação
do meu marido se estabilizou, ele pediu que eu parasse com o negócio. Vendi o negócio
para um conterrâneo, mas continuo com uma participação. Até hoje eu falo para o
meu marido que recebo dinheiro do meu filho para as minhas bobagens pessoais.
90
Shochet é aquele que aplica o abate de animais e aves (shechitá), prescrito pelas leis dietéticas para que a
carne seja considerada “kosher” (apta ao consumo). UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e
Tradições, p. 241.
As mulheres entrevistadas foram as que, efetivamente, trabalharam e manifestam
opiniões compatíveis com o grupo familiar. Para garantir a possibilidade de exercer
atividades profissionais, preservando o código de conduta estabelecido dentro da família e
comunidade, a maioria delas criou esquemas, nos quais o “respeito” ao marido e pai
(autoridade masculina) fosse preservado.
“Tem que saber levar. Há artifícios como a subserviência” comenta uma
ashkenazita Luiza: “No meu caso, eu não tive opção, mas eu fazia isso escondido dos
amigos do meu marido”.91
Essas mulheres mesmo sendo responsáveis pela estabilidade econômico-familiar
submetem-se ao código patriarcal que receberam como modelo, exemplificado pela
autoridade do irmão mais velho, de família de origem oriental:
Segundo Margareth: “Não era bonito, mas no meu caso, eu estava cumprindo um
plano familiar. O meu irmão estava na Suíça montando a rede de lojas na Europa para as
jóias que eu aqui fabricaria”.
Pelo depoimento acima, não se surpreende que elas se recusem a serem
reconhecidas como empresárias, banalizando e minimizando suas iniciativas
empreendedoras e entregando esse mérito a seus maridos.
Samantha afirma que: “A mulher, que tem sucesso, não pode perder a humildade,
principalmente, com o marido. Guarde este lema!.”
Dentre as entrevistadas, Isabel, uma sefardita, fez questão de contar a respeito do
êxito de seu novo empreendimento. O lançamento do livro de culinária, fruto de seu
sucesso nas festas ao longo de sua história, que só poderia coroar a “Terceira Idade”.
Nem todas as entrevistadas, tiveram êxito nas atividades econômicas que
empreenderam, porém, de acordo com os códigos culturais, o efeito nos estudos e a
ascensão econômica dos filhos refletem a medida de sucesso valorizada pelo grupo
estudado.
Para as ashkenazitas como Nitza: “Essa união das pessoas que passaram pelo pior
é o que nos deu força para construir algo melhor para nossos filhos”. Ainda, para
Esmeralda: “O fato de ser imigrante permitia certas ousadias, ao mesmo tempo em que se
abria espaço para novas amizades e contatos.”
91
Relato de Claudete a MFW em SP, 2000. Op. cit. p.15.
Esta visão é compartilhada pela entrevistada Juliette, de origem oriental: “Tinha o
espírito de não ter nada a perder.”
Por ser um grupo étnico que valoriza o êxito econômico, há um comportamento
tácito de também buscar soluções independentes da comunidade judaica. Este ponto é
reforçado quando analisamos a rede de relacionamentos apontada pelas entrevistadas para a
implementação do negócio. Dentro do universo pesquisado, a metade dos que participaram
dos empreendimentos, como clientes ou fornecedores, não pertenciam à comunidade
judaica, o que pode demonstrar, também, a iniciativa de ampliar ações, para além das
fronteiras do grupo.
Para Amelie: “A perspectiva de transformar o pequeno negócio iniciado na França
numa fábrica de lingerie que daria sustento a toda família.” Apesar de raramente assumir
o papel de empresária e, muitas vezes, dividir seu êxito com o marido e familiares ou com a
própria sorte, ainda menciona: “A gente precisa ter sorte na vida para tudo.”
Duas entrevistadas ashkenazitas que vivenciaram experiências em países
diferenciados, como na Suécia e Inglaterra, cidades cosmopolitas que valorizam uma
posição feminina de maior liberdade:
Rosa afirma: “A independência é o primeiro passo para a conquista da própria
identidade.” Assim, Samantha considera que: “Para a mulher a escola e o trabalho são
sinônimos de liberdade.”
Na declaração da entrevistada sefardita, Claudete: “Se não fosse a minha cara-de-
pau de entrar nos prédios, eu não teria chegado a lugar nenhum e nós teríamos
passado fome.”, e a oriental Juliette afirma que: “Foi uma questão de visualizar as
oportunidades e uni-las aos relacionamentos.”. Ambas exaltam sua contribuição na
liderança da solução financeira.
A pesquisa buscou avaliar as percepções das entrevistadas, sobre suas contribuições
à cidade de São Paulo por meio de suas iniciativas: Claudette, nascida em Alexandria,
declara: “Aqui não havia trufas de chocolate, só quando alguém recebia presentes de fora.
Passei pela fase onde o industrializado era o mais valorizado, e agora de novo o artesanal
é o bom. Eu sofri, mas sobrevivi.”92
92
Relato de Claudette a MFW em SP, 2000. Op.cit. p. 15.
Seguindo a mesma linha, Margareth que comercializa jóias com pedras brasileiras
em São Paulo e, em outras cidades do mundo, acredita ter influenciado a valorização da
beleza destas pedras, inclusive entre as brasileiras.
O caso que interferiu no padrão estético de decoração de interiores, Juliette conta
que, muito antes dos europeus, os paulistanos já tinham acesso aos tapetes vulgarmente
conhecidos como “persas”.
Sofia, também da Europa, a dona da loja de artigos de couro acredita ter elevado os
produtos paulistanos à categoria européia: “Os produtos de couro, eram simples e de
péssimo acabamento. A minha fábrica trouxe um padrão europeu que transformou a cara
da cidade antiga para a de uma metrópole.”93
A mesma auto-percepção tem Myetta, a primeira e maior fabricante de manteaux do
Brasil, em seu tempo.
De origem alemã, Nitza cita que a empresa contribuiu para a mudança da moda
íntima: “Com o tempo, fui modificando os moldes de minha coleção. As peças foram
ficando cheias de rendas, decotes, bicos e bojo, mas não tanto quanto hoje!”94
Em um período de crescimento da cidade de São Paulo e de novas oportunidades no
mercado de trabalho às mulheres, temos o caso de Samantha, empresária de origem
polonesa, educada na Inglaterra, que considera ter implantado a moda para executivas,
usando a tecnologia de novos tecidos que se mantinham impecáveis, durante a jornada. “Os
modelos de soutien que eu trouxe da França eram ultramodernos, eles modelavam. Não
havia nada parecido aqui”, declara Regina que aprendeu a profissão com sua tia
ashkenazita.
Considerações finais
Sendo o período estudado período econômico favorável face às altas taxas de
crescimento, o mercado produtivo reagiu, criando uma forte demanda. As empresas
crescendo e tornando-se complexas, abriam espaço para a contratação de mão-de-obra
administrativa. No entanto, o papel central familiar continua sendo adequadamente exercido
nas pequenas e médias empresas (PISCITELLI, 1999:13).
93
Sofia, 26, casada com filhos, aproveitou sobras de couro para aplicar conhecimentos técnicos absorvidos
pela observação da atividade profissional do pai, na origem. Relato a MFW em SP, 2000.
94
Nitza, 36, casada com filhos criou uma marca de roupa íntima. Relato a MFW em SP, 2000.
Neste contexto, as imigrantes puderam produzir recursos para resgatar o padrão
familiar de consumo, num contexto social de aumento geral da participação feminina no
mercado de trabalho. Essas atividades eram em sua maioria habilidades desenvolvidas no
ambiente familiar, o que “borra” (BRUSCHINI, 1994: 194) a percepção sobre a capacidade
técnica e o dom, permitindo uma minimização do caráter profissional.
Para os casos estudados, estas mulheres tinham um capital cultural que as
diferenciava e as colocava afinadas com a camada social dominante. Eram preponderantes
nas decisões do processo produtivo, pois criavam e reproduziam os gostos e padrões de
consumo, de acordo com as camadas mais abastadas, consolidando seu papel de mentoras,
ainda que em atividades fortemente relacionadas ao universo feminino.
Diante das conquistas relativas, as mulheres e os familiares começaram a participar
transformando rapidamente em “nosso” o resultado do trabalho, sem caracterizar o dinheiro
ganho como de propriedade da empreendedora. De acordo com Scott (SCOTT, 1990: 86),
constatamos, que as mulheres ainda, necessitam da aprovação dos homens em suas
conquistas comerciais e, assim, mantêm a subordinação à competência do masculino.
Assim, envolvidas com a imagem idealizada de suas funções femininas, abriram
mão do poder e da autonomia financeira para serem reconhecidas em seu papel “maior”:
encaminhar os filhos para serem motivos de orgulho familiar; administrar o orçamento e o
lar, exemplarmente, sem, contudo, deixar de ser a esposa ideal. Neste sentido, este trabalho
mostrou-se diferente de outros estudos sobre empresários, como o de Piscitelli (1999: 97),
que afirma ter encontrado “um tom neutro dentro das atividades de descendência”. Ao abrir
mão, da autoria de suas iniciativas, a maioria permanece omitindo atitudes relativas à
competência do universo masculino.
No entanto, os papéis passaram por mudanças que podem ser constatadas entre as
descendentes, que mesmo não tendo sido envolvidas no negócio familiar, são graduadas e
exercem suas profissões. Fato relevante para os imigrantes, em geral, que apostaram numa
ascensão social, também, via projeto educacional e profissional dos filhos (OSMAN, 1997:
27), exceção feita às filhas de famílias religiosas que se dedicam à vida doméstica. Reforça-
se aí uma característica destas empreendedoras que não projetaram durabilidade de seus
negócios, privilegiando a ambição e vocação de seus descendentes. Esse desdobramento
pode ser justificado por uma percepção de atuação econômica circunstancial e sem
significado.
Surpreendeu-nos, em especial, a banalização demonstrada, nas histórias recontadas
sobre as iniciativas e conquistas alcançadas. E diante de um questionamento mais profundo
a questão da preservação dos segredos sobre as iniciativas femininas foi reafirmada e
apresentada como uma articulação para a manutenção da harmonia familiar, pois esta, ainda
permanece alicerçada no código da família patriarcal-judaica que faz uma clara referência à
divisão de papéis de gênero.
Pelos relatos, verificamos que a diferenciação sobre os graus de conservação das
relações patriarcais judaicas contrapõe-se às personalidades marcantes, que ousaram e com
muita coragem e energia, assumiram riscos. Da ação educativo-idiomática passando pelos
ajustamentos relativos aos mecanismos econômicos, as regras sociais, entre outros
aprendizados. As mulheres teceram, dia a dia a rotina familiar reafirmando o valor da
família. Dessa maneira, mantêm suas iniciativas restritas ao âmbito privado, eternizando a
divisão de papéis de gênero. Diante da densa neblina, que encobre a divisão entre o espaço
público e privado, as histórias permanecem como “segredos nossos”.
A singularidade das histórias que compõem este trabalho dá significado ao reexame
do ângulo da visão e à possibilidade dos ecos na sociedade patriarcal judaica, grifada pela
pequena participação numérica, mas significativa, das vozes vindas entre as sefarditas e
orientais. Mais resistentes às mudanças, ao diferente, tornam inconcebíveis certas
conquistas, mantendo com eufemismos os sorrisos e olhares condescendentes.
A pesquisa pretendeu reler os velhos momentos, embora pareçam novos ou, de fato,
momentos de inflexão que cada fala tem, ao perturbar o movimento previsível dos grupos
culturais judaicos. Desse modo, apoiados, nesta questão, apresentamos algumas nuances
que percorreram o cotidiano das entrevistadas, trazendo a necessidade de reconhecer o
contexto e as possibilidades não somente de ser, mas estar na comunidade. Os resultados
prevalecem na questão de gênero ou sexo, neutralizando outras tantas variáveis, alinhadas
aqui.
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VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: Notas para uma Antropologia da Sociedade
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CAPA: o jeito luterano de atuar com os pequenos agricultores no sul do Brasil95
Tarcísio Vanderlinde96
RESUMO
A idéia do Capa – Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor – é considerada como o sinal
luterano de se envolver com a questão da terra: voz e presença da IECLB – Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – na realidade agrícola brasileira, marcada
por tanta injustiça na terra. A idéia se identifica com a formulação da identidade da Igreja
Luterana no Brasil e preconiza, juntamente com os pequenos agricultores, num processo de
libertação, a construção de uma “nova paisagem” no meio rural.
PALAVRAS-CHAVE: IECLB, mediação, identidade, pequeno agricultor, Capa.
ABSTRACT
The idea of Capa - Small Farmer Support Center – is considered to be a Lutheran sign of
getting envolved with the land issue: the voice and presence of the IECLB – Evangelical
Church of Lutheran Confession of Brazil – in the Brazilian agricultural reality, marked by
so much injustice on the land issue. The Idea finds its identity with the formulation of the
identity of The Lutheran Church of Brazil and, in a liberation process, it commends, along
with the small farmers, the building of a “new landscape” in the rural areas.
KEYWORDS: IECLB, mediation, identity, small farmer, Capa.
95
O artigo em pauta emerge de Tese de Doutorado defendida pelo autor, intitulada “Entre dois Reinos: a
inserção luterana entre os pequenos agricultores do sul do Brasil”.
96
Doutor em História pela UFF (Universidade Federal Fluminense). É professor do CCHEL – Centro de
Ciências Humanas, Educação e Letras, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail:
ebenezer@certto.com.br.
discussão leva em conta novas fontes coletadas durante a fase atual da pesquisa e que
culminou em Tese de Doutorado.
Desde os tempos de Abraão, o povo migrava para a ‘terra prometida’, para Canaã. Ainda
hoje, no Brasil, o povo continua migrando, talvez não pelas mesmas razões. O povo do sul
já procurou os Estados do Paraná, do Mato Grosso e Território de Rondônia. Já migrou até
para países vizinhos! Muitos tentaram voltar. Muitos morreram na peregrinação. Alguns se
deram bem. Outros choram saudade da terra natal. Projetos de colonização levaram, e
continuam levando, muitos de um lugar para outro. Desalojados pela construção de
barragens, as pessoas marcham forçadas rumo às novas áreas. O capitalismo selvagem
impõe técnicas e políticas agrícolas que acabam levando pequenos agricultores ao
desespero, à miséria, à venda de suas terras para pagar dívidas acumuladas, à
marginalização rumo às luzes artificiais das cidades ou aos acampamentos às margens das
estradas, senão ao crime. Até quando o povo migrará ‘porque lhe falta o conhecimento’
(Oséias 4.6)?”(MUSSKOPF,1982:66).
A IECLB tem sua história marcada pela trajetória dos pequenos agricultores. No
tempo presente, apesar do êxodo rural, ainda metade dos membros da Igreja vive em áreas
rurais, enquanto que a realidade demográfica brasileira aponta para uma alta concentração
da população em zonas urbanas. O processo de modernização da agricultura no país afetou
profundamente a vida dos agricultores familiares. Uma forte intervenção do Estado através
do crédito subsidiado para a adoção do novo padrão tecnológico, baseado nos insumos
agroquímicos e na mecanização, rompeu a lógica da agricultura familiar, cuja trajetória foi
de uso intensivo de mão-de-obra e diversificação de culturas agrícolas. A mudança de
relações de produção também resultou em novas relações sociais. A lógica do mundo da
colônia, de que quem trabalha progride, passou a não valer mais. Passou a progredir quem
tivesse acesso ao crédito e condições de desenvolver uma agricultura de capital intensivo.97
Nos anos 80 do século passado, os efeitos negativos do modelo de desenvolvimento
da agricultura brasileira eram evidentes. Houve concentração de terra, degradação do meio
ambiente e aumento das diferenças sociais no campo. A colonização das áreas do Centro-
Oeste-Norte do país, proposta pelo governos militares como uma alternativa para a não-
realização da reforma agrária no Sul, revelou-se como um “grande fracasso”. As cidades
cresceram rapidamente, surgindo os grandes cinturões de favelas. O emprego urbano já não
para ter direito ao pão de cada dia, precisa ser revisto em decorrência das profundas mudanças pelas quais a
sociedade está passando. “O rolo compressor da modernidade avança sem se importar muito com os que
vão sendo esmagados, ou seja, aqueles que não encontram mais espaço para viver dignamente a partir dos
frutos de seu trabalho” (CHRISTMANN, 2003:2).
era mais um forte atrativo para o êxodo rural. O Capa emerge nesta circunstância e, desde a
sua fundação, passa a desenvolver iniciativas para auxiliar os agricultores diante do
contexto de exclusão no campo que se foi instalando(HISTÓRICO DO CAPA, 2003: 18-
19).
Além de buscar, juntamente com os agricultores, o “conhecimento que liberta” e
permitir que o agricultor permaneça em sua pequena propriedade, o Capa surge com o
objetivo de empenhar-se em apoiar e estimular o sindicalismo e desenvolver políticas no
sentido de reduzir o êxodo rural, em especial o dos jovens. Segundo Arzemiro Hoffman, o
trabalho desenvolvido pelo Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor, ao longo de sua
existência, vem demonstrando sua eficácia na construção da cidadania no meio rural. A
consulta às fontes indica que os resultados alcançados pela entidade se viabilizam, pela via
técnica e comunitária. Afirma o pastor que "a construção cidadã de pequenos agricultores
exigiu sempre um esforço pedagógico de perceber o lugar vivencial onde o grupo se
encontra (seu hábitat, seus costumes, suas referências...) para, a partir daí, construir
alternativas viáveis para sua sobrevivência econômica e social” (HISTÓRICO DO CAPA,
2000:1)98
É possível concluir que o propósito do Capa, como uma entidade não-governamental,
vincula-se aos interesses da IECLB em relação mediata, porém não exclusiva, com os
evangélico-luteranos.
O Capa, como entidade mediadora da IECLB, envolve-se com a idéia de que é
possível construir uma nova paisagem no meio rural. Uma paisagem que inclua a inserção
responsável do homem sem necessariamente deteriorar o ambiente onde ele está inserido.
Uma tarefa que não é considerada fácil e exige considerável esforço e sabedoria de todos os
envolvidos na empreitada. A idéia parte da constatação de que a revolução verde não
resolveu qualitativamente o problema alimentar, além de deteriorar significativamente o
meio ambiente com a introdução maciça dos chamados agrotóxicos. As conseqüências disto
foram as mais perversas possíveis, fazendo os agricultores abandonarem práticas saudáveis
de uso do solo em busca do lucro rápido. Este pode ser considerado o cenário em que atua o
Capa. Além de estimular a desintoxicação da terra, preocupa-se também em “reeducar” o
agricultor no sentido de não apenas garantir sobrevivência a ele e à sua família, mas
também proporcionar mais saúde a produtores e consumidores. Esta pode ser entendida
como a “nova paisagem” preconizada pelo Capa. Uma paisagem em que se possibilita a
reconstrução de um ambiente saudável para todos.
A origem do Capa está diretamente ligada à história da IECLB cuja trajetória
acompanha o mesmo movimento que trouxe os imigrantes alemães para as "colônias
velhas", ou seja, as primeiras regiões colonizadas a partir de 1824, na região do Vale dos
Sinos. Com a expansão da fronteira agrícola e o deslocamento de colonos para outras
regiões do Estado/País, a IECLB, também foi ampliando sua área de intervenção.
Primeiramente em direção às "novas colônias" e, mais tarde, para o noroeste do Rio Grande
do Sul e oeste de Santa Catarina, para onde foram "empurrados" os descendentes dos
colonos alemães. Os latifúndios instalados nas terras planas do sul se impunham como uma
barreira intransponível a impedir que a nova corrente migratória para lá se dirigisse.
Na conferência dos pastores regionais realizada nos dias 17 e 18 de maio de 1978, é
criado o Capa, iniciando as suas atividades em 15 de junho de 1979, na cidade de Santa
Rosa/RS, atuando numa área que inicialmente abrangia 112 municípios do noroeste do Rio
Grande do Sul e oeste de Santa Catarina. O Capa, em suas diferentes fases, foi financiado
por entidades da Alemanha. Atualmente, o Capa é financiado pela Associação Evangélica
de Cooperação e Desenvolvimento – EZE/EED99. Apurou-se que os recursos, destinam-se à
formação de um fundo rotativo destinado a pequenos empréstimos aos agricultores
familiares, fundos que seriam ressarcidos posteriormente em produtos agrícolas. Além
disso, os recursos são destinados à manutenção e operacionalização técnica e administrativa
da entidade.
Constatou-se que há uma preocupação, por parte da entidade, em torná-la menos
posteriormente recursos públicos para viabilizar seu trabalho. A organização apóia o
trabalho no campo do desenvolvimento realizado por igrejas e outras ONGs. A entidade
coopera com parceiros em mais de 80 países da África, Ásia, América Latina e Caribe,
freqüentemente por intermédio de Conselhos de Igrejas nacionais e regionais, e com a
assistência de agências especializadas em desenvolvimento(Folder de divulgação da EZE,
s. d.). Em 2001, juntamente com mais três outras organizações ligadas às igrejas
evangélicas na Alemanha se integraram a EDD (Serviço das Igrejas Evangélicas na
Alemanha para o desenvolvimento). A informação consta em correspondência da EDD
endereçada ao Capa, núcleo de Marechal Cândido Rondon, Pr, 11 de junho de 2001.
dependente de recursos externos. Em carta encaminhada pela coordenação do Capa, núcleo
de Marechal Cândido Rondon, PR ao secretário de agricultura do município, ficou explícito
que mais de 90% dos recursos ainda são externos, provindos da solidariedade internacional,
basicamente da EZE (SAAR, 2001).
Nos primeiros anos, as atividades do Capa ficaram limitadas à 3ª Região Eclesiástica
da IECLB, região onde foi idealizado o projeto.100 A intenção, no entanto, era estender o
trabalho a âmbito nacional, utilizando as estruturas existentes da IECLB. Atualmente o
Capa conta com cinco núcleos de atuação no sul do Brasil: Marechal Cândido Rondon e
Verê no Paraná, Erexim, Santa Cruz do Sul e Pelotas no Rio Grande do Sul. O núcleo de
Marechal Cândido Rondon atua no oeste Paranaense enquanto que o de Verê no sudoeste
do mesmo Estado. O núcleo de Erexim tem sua área de abrangência no norte do Rio Grande
do Sul e oeste de Santa Catarina. O núcleo de Santa Cruz do Sul tem sua abrangência na
região central gaúcha, enquanto que o de Pelotas atua no sul daquele Estado. A
concentração de sínodos101 no sul do país revela a região histórica da colonização alemã,
onde ainda permanecem o maior número de famílias e predomina a pequena propriedade. É
interessante observar que os 13 sínodos que se concentram no sul do país equivalem
aproximadamente à área geográfica do Sínodo Brasil Central. Em dados estimados, os 13
sínodos contam com 232.550 famílias-membro, enquanto que o Sínodo Brasil Central conta
com apenas 500 famílias. O número de famílias dos 5 sínodos restantes, perfazem 17.800
famílias. Destaca-se o Sínodo Espírito Santo a Belém com 13.000 famílias. O número
relativamente elevado de famílias-membro neste sínodo mais ao norte do país, deve-se a
colonização luterana que aconteceu no Estado do Espírito Santo (SCHÜTZ, 1999: 75-
77)102.
A rede Capa, de atendimento aos pequenos agricultores localiza-se no sul do país
onde há maior concentração de famílias e pequenas propriedades. De acordo com
informações coletadas junto a coordenação do Capa do Município de Marechal Cândido
Rondon, PR, talvez só em Rondônia e no Espírito Santo poderiam ser desenvolvidos
serviços semelhantes ao que o Capa realiza no sul do país. Para Rondônia teria emigrado
102
Conforme dados disponibilizados pela edição especial do Jornal Evangélico Luterano de outubro de 2002,
a IECLB contava com 644.644 pessoas distribuídas em 1624 comunidades e 422 paróquias nos seus 18
sínodos.
número razoável de pequenos agricultores luteranos do sul, e, quanto ao Espírito Santo,
pela forma de colonização de luteranos lá havida. Mencionou-se que no caso do Estado do
Espírito Santo, este já possuiria trabalho similar ao que é realizado pelo Capa nos estados
do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Em seus cinco núcleos de atuação no sul do
Brasil, o Capa atende hoje cerca de 4,5 mil famílias (JORNAL EVANGÉLICO
LUTERANO, 2001: 1).
O Capa nasce com proposta alternativa de produção e consumo no mesmo momento
em que explodem, na região, ao final dos anos 70, as lutas sociais e políticas que se
constituíram nos quatro principais movimentos de trabalhadores rurais, ou seja, Movimento
Sindical Combativo, Movimento dos Sem–Terra, Comissão Regional dos Atingidos por
Barragens e Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais (NOVA PAISAGEM, 1998).
A proposta do Capa se fundamenta na disseminação de práticas alternativas,
econômica e ecologicamente sustentáveis, questionando o modelo de desenvolvimento e o
papel da extensão oficial, contrapondo-se aos “pacotes” da modernização e aos vínculos de
dependência criados pela integração do pequeno agricultor familiar à agroindústria de
alimentos.
Ao destacar 103 experiências inovadoras no meio rural gaúcho, Markus Brose ressalta
que, no auge da expansão do pacote tecnológico da revolução verde no interior do estado, a
Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB passou a se preocupar cada vez
mais com o crescente número de seus membros que se tornaram migrantes e deixavam as
comunidades rurais, em especial aqueles que se dirigiam a Mato Grosso e Rondônia. Em
meados dos anos 70, foi criado o Centro de Aconselhamento ao Migrante - Cami, que
procurava assessorar estas famílias migrantes. No entanto, diante do vulto que o movimento
de êxodo acabou tomando, a IECLB decidiu tentar atuar junto à origem do problema, já que
a causa desta situação não estava nas famílias dos produtores, mas no modelo então vigente
no campo (BROSE, 2000:169).
Cabe ressaltar que a entidade, em seu modus operandi, dá relevância à informação,
que é feita de forma diversa, ou seja, nas reuniões, ou através de outros meios de
comunicação. Neste caso, os panfletos explicativos e cartilhas são de uso corrente entre os
associados103. Sobre o informativo técnico-rural “Nova Paisagem”, registre-se que começou
103
Vale destacar, neste contexto, o desenvolvimento do projeto Terra Solidária, em curso no núcleo de
Marechal Cândido Rondon, que visa possibilitar que os agricultores concluam o ensino básico através de
módulos ministrados periodicamente. Entre outros objetivos, este projeto visa preparar agricultores como
a ser publicado em dezembro de 1979. Em 1988, ainda como suplemento do Jornal
Evangélico, atingia um público de 12.000 leitores. Registra-se, igualmente, o programa de
rádio que era produzido pelo Centro de Produção da Material (CEM), gravado nos estúdios
da Instituição Sinodal de Assistência, Educação e Cultura (ISAEC) em São Leopoldo,
transmitido por 20 emissoras, em espaços patrocinados por empresas comerciais locais.
De acordo com Vilmar Saar, o surgimento do núcleo do Capa no oeste do Paraná
aconteceu em função de um esforço comunitário envolvendo membros e obreiros da
IECLB, e, considerando que a região é de caráter predominantemente agrícola. Segundo
Saar, o Capa faz um trabalho a partir de organização de grupos de pequenos agricultores,
desenvolvendo paralelamente serviços técnicos de apoio à produção, comercialização,
divulgação técnica e relações institucionais, onde a entidade busca as mais diversas formas
de parcerias com outros órgãos e prefeituras. Questionado se o trabalho do Capa, surgindo
sob a égide da IECLB, não estaria apenas voltado aos interesses dos agricultores luteranos,
Vilmar esclarece tratar-se de um trabalho ecumênico, onde não há distinção de
confessionalidade, muito embora a origem possa ser luterana, principalmente em se
tratando dessa área de atuação, ou seja, a agricultura familiar. Vilmar informa que, em
muitos lugares onde atua o Capa, este conta com apoio de lideranças que pertencem a
outras denominações religiosas (SAAR, 2000).
No contexto do serviço pastoral luterano no campo, a criação do Capa e, o
estabelecimento de novas diretrizes pastorais a partir do ano de 1979 é saudado como um
importante passo na mudança da posição da Igreja, evidentemente dentro de um processo
antecedido por diversas discussões teológicas. Werner Fuchs104 se refere ao Capa como um
bom exemplo de combinação entre assistência técnica e organização sociopolítica (SAUER,
105
Lembrado pela equipe coordenadora do Capa-Erexim,RS, ao responder a questionário sobre “Os dois
reinos”, elaborado por este historiador. Erexim, Abril, 2003.
A construção do sagrado nos processos de mediação
A mediação do Capa
106
Para maior aprofundamento Cf. NEVES, Delma Pessanha. O Desenvolvimento de uma outra agricultura: o
papel dos mediadores sociais. In: FERREIRA, Ângela Duarte Damasceno e BRANDENBURG, Alfio
(org.). Para pensar outra agricultura. Curitiba: EdUFPR, 1998.
No que se refere às formas de resistência articuladas pelos mediados, Delma Pessanha
Neves nos ensina a prestar atenção nas “querelas” que emanam num processo de mediação.
Algo que, às vezes, só é possível de perceber após um largo período de observação numa
pesquisa participante. Neste caso, as condições de pesquisa podem influir numa maior ou
menor identificação deste particular. Como já vimos, o individualismo é apontado pela
entidade mediadora como uma resistência que traz resultados negativos no processo
mediador, podendo inclusive comprometer o alcance dos objetivos propostos. Uma
entrevista pode, às vezes, esconder formas de resistência subterrâneas, passíveis de serem
identificadas apenas a partir de uma observação mais apurada. Quando o agricultor diz que,
na aplicação da metodologia e das técnicas aprendidas na mediação do Capa, precisa dar
um passo para atrás, é porque pode estar se utilizando de algum expediente que é indicado
pela entidade, porém por razões diversas não viável para o agricultor.
Na pesquisa realizada entre agricultores associados ao Capa - núcleo oeste do Paraná,
se considerados apenas os depoimentos orais aqui destacados, foi possível perceber que a
avaliação da entidade mediadora é de maneira geral positiva. Se verificadas as dificuldades
que os agricultores apresentaram para continuar viabilizando sua atividade, o Capa é
considerado uma espécie de “tábua da salvação”. Na opinião de um agricultor entrevistado,
que acompanhou a história do Capa no oeste do Paraná desde o início, talvez o trabalho
desempenhado pela entidade mediadora não fosse suficiente como se queria, pois sempre se
sonha ter mais ajuda do que é possível, numa alusão à estrutura de atendimento limitada da
entidade (STOEF, 2000). O interesse em se dedicar à agroecologia é viabilizado
tecnicamente pela ação mediadora do Capa (HEDEL, 2000). A deterioração da terra e as
condições de saúde fazem com que o agricultor familiar se volte para a agroecologia. Porém
as condições favoráveis do mercado aos produtos agroecológicos é outro motivador no qual
é percebida positivamente a inserção do Capa. O Capa é reconhecido como uma entidade
que cria espaços para que os agricultores inclusive estudem, possibilitando a conclusão de
cursos interrompidos em outros momentos (BOCK, 2000). A produção orgânica trouxe a
condição de viabilizar as atividades na propriedade familiar. O Capa é visto, nas palavras de
um agricultor, como um local de assistência técnica especializada e diferenciada que se
adequa aos seus interesses, possibilitando-lhe saúde, uma vez que o afastou da manipulação
de produtos químicos tóxicos ao organismo (KAISER, 2000). Mesmo que desenvolva a
agroecologia em caráter experimental e não se dedique integramente a ela, o trabalho do
Capa é reconhecido como uma entidade mediadora que apresenta “muito conhecimento”, e
que atende às expectativas do agricultor(BESEN, 2000).
A metodologia do Capa, é explicada na óptica da própria entidade, a partir da idéia
que “revela” o jeito de fazer acontecer. Como entidade que promove ou realiza uma
atividade social, ela entende que deve caminhar “na frente para guiar, ao lado para
animar” ou “atrás para impulsionar”. No entanto, ela mesma coloca estas proposições em
questionamento ao remeter ao leitor a indagação sobre qual deveria ser o papel e postura de
uma entidade que não possui fins em si mesma? Com esta indagação a entidade chama uma
certa neutralidade ou imparcialidade sobre ela mesma na condução das ações entre os
mediados. A entidade entende que realiza suas ações embasadas numa metodologia que
parte da realidade dos agricultores, respeitando sua cultura e seus desejos. É propositiva,
mas sempre parte do que eles possuem em termos de infra-estrutura, mão-de-obra e
recursos financeiros, o que permite que as questões do que e como fazer são definidas
conjuntamente com as famílias envolvidas (REVISTA DO CAPA, 2002:7).
Chamam atenção aqui os aspectos contraditórios que envolvem os processos de
mediação em que mediadores e mediados partem em busca de um novo saber. Ao mesmo
tempo que é desqualificado o individualismo do agricultor, “lugar” onde podem estar
escondidos aspectos de sua cultura, afirma-se que as proposições partem dos mediados
havendo respeito às peculiaridades do grupo, como cultura e desejos, por exemplo. A forma
de relação entre mediados e mediadores, além de subjetiva, caracteriza-se como
estruturalmente contraditória, indicando um processo que deve ser constantemente gerido,
uma vez que não pode ser superado plenamente. A aceitação do discurso mediador do Capa
não garante que os mediados, e mesmo os mediadores, não lidem com reinterpretações e
reapropriações diversas. No discurso da parceria que procura valorizar a cultura do
agricultor, o conteúdo acaba sendo valorizado conforme os momentos e contextos do
processo. O que é indesejado no processo acaba sendo desqualificado. O processo é
conduzido sempre tendo em mente o fortalecimento da nova identidade do grupo mediado.
É adequado lembrar que a ação dos mediadores não deve ser reduzida a uma
intercessão ou a uma interligação. Ela só se produz por novas construções e modos de
gestão das contradições derivadas da posição de intercessão. Daí a relação contraditória que
se estabelece nos processos. Os mediadores não se encontram tão distanciados do processo
para que se identifiquem apenas como elo de união de mundos diferenciados. Na
“parceria”, inevitável às vezes de ser contornada, são os próprios mediadores que
constroem as representações dos mundos sociais que pretendem interligar e o campo de
relações que viabiliza este modo específico de interligação. Significados diversos num
processo contraditório de difícil superação vão-se ordenando para viabilizar o trabalho
mediador. Neves lembra que na defesa dos interesses de suas instituições, mediadores
podem desconhecer que uma prática política orientada por objetivos emancipatórios
remonta a projetos de reordenação do mundo social construídos em outros contextos e
mediante outros objetivos. De qualquer forma, a mediação do Capa se fundamenta numa
concepção que ultrapassa a dimensão economicista do processo, não se resumindo a uma
“teologia da contestação”, como também discutiu José de Souza Martins em outros
contextos de mediação (MARTINS, 2000). Percebe-se aí também a crença de que a ação
que se constrói entre mediadores e mediados pode criar as condições favoráveis para a
transferência de ensinos e técnicas (numa perspectiva solidária) que, personificada num
exercício de cidadania, conduza a uma prática social amancipatória, autônoma e
antiexcludente. O trabalho mediador do Capa pode ser considerado pertinente, na medida
em que contribui no processo reflexivo para uma objetivação mais adequada e apreensível
de novas forças “invisíveis” e “incompreensíveis” que interferem no mundo dos mediados e
que, embora exteriores, acabam sendo consideradas imprescindíveis para a construção de
um novo modo de vida.
O desencadeamento de ações da entidade a partir da realidade é entendido como um
diferencial significativo relacionado a outras entidades congêneres. Busca-se assim atuar a
partir da realidade das famílias em seus grupos, somando esforços e priorizando ações
conjuntas e compartilhadas, a fim de que os resultados do trabalho possam ser
multiplicados. Esse “jeito de fazer acontecer” é entendido pela entidade como algo que a
diferencia da maioria das demais entidades que atuam com agricultura familiar. A
organização na defesa do seu jeito de atuar conclui que a maioria das demais entidades
tende a centrar suas ações em um só aspecto, enfocando só a organização, apenas a
produção ou só objetivam a comercialização. Ações que, se desenvolvidas numa forma
fragmentada, acabam não dando conta de toda a diversidade que constitui o universo da
agricultura familiar. Trabalhar a agricultura familiar nas suas diversas dimensões visa à
construção de sujeitos de um projeto alternativo de desenvolvimento rural. A entidade
entende que suas ações contemplam a organização comunitária, a assessoria técnica à
produção agroecológica e o apoio à comercialização. A busca de parcerias e do
comprometimento de demais entidades sociais denuncia o propósito da ONG de atuar
articuladamente. Ela indica, como uma questão central de sua missão, comprometer os
poderes públicos com um novo projeto de desenvolvimento da agricultura familiar, baseado
na sustentabilidade e na solidariedade.
A assessoria técnica para a produção agroecológica é justificada pelo Capa como
imprescindível entre as famílias de agricultores tendo em vista os efeitos da agricultura
convencional.107 A entidade mediadora, no entanto, entende que sua ação vai além de uma
mera assistência técnica. Neste caso, atua com uma visão integral das unidades produtivas,
das propriedades e das próprias famílias. Respeitando-se as condições naturais e da família,
é elaborado um plano de reconversão e de produção da propriedade e definido “o que
fazer”. Na formação integral dos agricultores, o novo saber leva em conta a retomada da
concepção do amor à “mãe-terra” e o despertar da consciência de que a terra retribui
generosamente o cuidado que a ela for dedicado. A idéia da inconveniência da agricultura
convencional é freqüentemente utilizada para valorizar a atividade agroecológica. A
agroecologia surge como alternativa a um mundo intoxicado e doente e, mais do que
produzir e preservar a natureza, constitui um “ato de responsabilidade cristã” (GIESEL,
s.d.). O Capa entende que, diferentemente das práticas da agricultura convencional, onde
geralmente se vendem “pacotes” prontos, na agroecologia precisam-se construir processos
produtivos e sociais. Na defesa de sua proposta mediadora, o Capa salienta que não leva
propostas prontas, mas analisa e planeja, juntamente com as famílias, o processo de
produção. Todos os aspectos, incluindo limitações e fraquezas e potenciais, são analisados.
O Capa se considera um parceiro onde o objetivo maior é construir um processo que leve à
autonomia e à emancipação das famílias onde elas possam estar planejando, executando e
monitorando o seu sistema de produção (REVISTA DO CAPA, 2002:9).
A construção de um outro saber, objetivo perseguido nos processos de mediação
pelos agentes, resulta de fato da relação dialética que ocorre entre estes e os mediados,
107
Na visão da entidade mediadora e dos agricultores por ela assistidos, agricultura convencional é aquela
que emergiu a revolução verde e se caracteriza pelo uso maciço de adubos químicos e agrotóxicos.
indicando um processo que deve ser administrado constantemente, uma vez que apresenta
dificuldade de superação plena. Porém, mesmo que se considere a mão dupla no processo
de mediação, ele apresenta resistências peculiares, explícitas ou dissimuladas nem sempre
previstas no curso das atividades. A mediação do Capa pode ser inserida no processo de
construção de uma outra agricultura, que se fundamenta mais em laços de solidariedade
entre mediados e mediadores e na preservação do meio ambiente do que na economia de
mercado. Neste caso, a mediação pressupõe uma prática que não pode apenas se pautar na
suposta inocência das boas intenções e dos compromissos, mas que deve ser
constantemente questionada ou colocada sob avaliação e reordenação, se de fato os
objetivos a ela atribuídos são desejados e se, de fato, o horizonte vislumbrado é a
construção de novas formas de cidadania e de participação social e política.
(...) Somos uma Igreja que afirma em seu nome e autodefinição ser uma Igreja de Jesus
Cristo no Brasil. Com esta constatação assumimos que somos parte de uma sociedade
multifacetada, multiétnica, multicultural e pluralista. A IECLB se define como uma Igreja
que quer encarnar a realidade brasileira. Como seres humanos, não estamos dispensados de
nosso estado de pecadores. Isto significa que nossas instituições também participam nos/dos
males do mundo. Por isso destacamos o princípio luterano da ‘eclesia semper reformanda’ (a
Igreja deve estar se reformando).109
Conclusão
A idéia que resultou na formação do Capa emergiu das discussões realizadas pela
IECLB em relação à problemática da terra no Brasil. É talvez uma das discussões mais
relevantes se considerada a busca da identidade dessa Igreja e a sua inserção na realidade
social brasileira. A idéia do Capa não é descolada da discussão geral sobre reforma agrária,
mas circula melhor na comunidade luterana por se identificar mais com a história da
formação daquela Igreja no Brasil.
Ao final dos anos 70, A IECLB, através de seu conselho diretor, estabelece a reforma
agrária como uma das suas prioridades de reflexão e ação. O Concílio da Terra aconteceu
em 1982 e, entre outros assuntos, considerou-se pertinente a inserção da Igreja no assunto
se consideradas as Sagradas Escrituras e os ensinos de Lutero. A terra é de Deus, e como tal
mereceria atenção social e teológica devida. Mesmo antes do concílio, como também
depois, o assunto voltou em pauta reiteradas vezes.
108
Registre-se parceria recente entre Capa e Comin – Conselho de Missão entre os Índios, da IECLB. Através
de parceria, o Capa passou a desenvolver apoio técnico para plantações entre 17 famílias de Mbya-
Guaranis. A aldeia onde o Capa desenvolve seu trabalho situa-se em Coxilha do Sul, município de Barra do
Ribeiro/RS (BUCHWEITZ, 2003: 72-78). Além do envolvimento com os índios, o Capa integra um
conglomerado de entidades que objetivam implantar uma área de cultivos livre de agrotóxicos na região
impactada pela hidrelétrica de Itaipu e pela modernização agrícola no Estado do Paraná. O Capa nasce no
Rio Grande do Sul no mesmo ano em que explode a luta dos atingidos pela barragem de Itaipu. No tempo
presente, em outra conjuntura, o Capa se torna parceiro da Empresa Binacional juntamente com outras
entidades que buscam com os agricultores, reconstruir, nas condições possíveis, a região impactada. Além
de Itaipu, o projeto recebe apoio do governo estadual que, na resistência contra a disseminação de produtos
geneticamente modificados, pretende tornar o Paraná uma área livre de transgênicos.
109
Trecho da manifestação do Simpósio “Abrindo as portas da Igreja: Afro-brasileiros luteranos, sonho ou
possibilidade?”, citado na fundamentação teológica do projeto de inserção da IECLB entre os quilombolas.
Na formulação do ideário do Capa, pouco se enfatizam termos como “invasão”,
“ocupação”, “acampamentos” e “assentamentos”. Estas concepções relacionadas à reforma
agrária dificultam a discussão sobre o assunto nas comunidades luteranas, o que não
significa concluir que a Igreja só atue em movimentos que tenham a “cara” do Capa.
Porém, mesmo com resistências internas, a Igreja tem avançado neste particular. Há que se
ressaltar que, no jeito luterano de atuar, o Capa tem avançado em áreas de ação até bem
pouco tempo não pensadas entre os luteranos, e não há como pensar isso a não ser como
uma forma de avanço, apesar das resistências.
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Depoimentos orais
Se por um lado, o poder público, muitas vezes, afirmou-se tendo como instrumento a
violência, o autor explicita que, por outro, a população encontrou outros caminhos, como
no caso de João Borges e outros populares que recorreram à própria Câmara a fim de
obter concessões para que pudessem manter sua sobrevivência. A Câmara buscou
legislar sobre a venda de carnes, sobre a prática da caça, sobre a criação de animais,
enfim, toda atividade popular que pudesse fazer frente a uma nova lógica de mercado
que se pretendia impor. Por meio da leitura das atas da Câmara Municipal, Bosi
desvendou as estratégias que, por meio do poder público, tornaram ilegais as atividades
populares que pudessem fazer frente ao mercado que se procurou instituir nesta cidade.
Esta é uma das manifestações do conflito de classes percebidas pelo autor.
Reforma Urbana e Luta de Classes demonstra ainda, que as pretensões econômicas dos
poderes públicos não estiveram apenas centradas na transformação das feições do espaço
urbano.
“Para a classe dominante, não era somente, portanto, uma questão de mudar
o espaço, mas de padronizar também os usos desse espaço e, principalmente,
adequar os comportamentos às suas necessidades e perspectivas sociais.”
(p.210)
Neste sentido, Bosi contribui com uma análise que permite ao leitor enxergar as
múltiplas contradições estabelecidas no urbano, nas disputas para configuração de novos
hábitos e valores num espaço em construção.
Os novos valores implicavam também em novas relações de trabalho. A obra trata de um
processo complexo, uma vez que esta questão não foi específica de Uberabinha. A
interferência nos comportamentos dos trabalhadores, incutindo-lhes a noção de trabalho
assalariado, presumia uma nova noção tempo e de disciplina do trabalho. Revela-nos
ainda como “não havendo mais a prática oficial da coação física, a ‘obrigatoriedade do
trabalho’ requeria outros invólucros”(p.229).
Na análise de Antonio de Pádua Bosi, percebemos que os trabalhadores negros sofreram
de forma talvez mais contundente estas mudanças nas relações de trabalho, mas não
foram os únicos. “De uma forma mais específica, porém, em Uberabinha, era a
vadiagem negra que mais incomodava a ordem e mobilizava as penas dos
legisladores.” (P.238) A obra aponta também, como tais transformações chegaram ao
cotidiano dos trabalhadores imigrantes estrangeiros e migrantes rurais, outro alvo da
legislação e interferência do poder público.
A perspectiva de uma população ordeira e em consonância com os projetos de uma
cidade limpa e garrida, anunciada de forma sistemática pelos memorialistas que são
referência à escrita da história de Uberabinha é desmistificada na obra de Bosi. Dentre os
memorialistas o mais importante talvez tenha sido o cônego Pedro Pezutti.
“É necessário lembrar neste ponto que boa parte do que fora salientado no
livro escrito por Cônego Pezzuti chegaria até a década de 1980, na visão da
historiografia local, como imagem profundamente divulgada e aceita sobre a
cidade: sua vocação para o comércio, para o progresso, para a ordem, para o
trabalho.” (p.65)