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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ – UNIOESTE

CAMPUS DE MARECHAL CANDIDO RONDON

REITOR: Prof. Alcibíades Luiz Orlando


PRÓ-REITOR DE PÓS-GRADUACAO e PESQUISA – Prof. Mário César Lopes
DIRETOR GERAL DO CAMPUS: Prof. Davi Félix Schreiner
DIRETOR DE CENTRO – CCHEL – Prof João Carlos Cattelan
COORDENADOR DO CURSO DE HISTÓRIA: Prof. Valdir Gregory

CONSELHO EDITORIAL
Antonio de Pádua Bosi, Carla Luciana Souza da Silva, Gilberto Grassi Calil, Méri Frotscher
(Coord.), Petrônio José Domingues, Valdir Gregory

CONSELHO CONSULTIVO
Adriana Facina - UFF
Ana Lúcia Vulfe Nötzold - UFSC
Arno Alvarez Kern – PUC/RS
Astor Antônio Diehl - UPF
Bartomeu Meliá – Univ. Católica Assunción
Célia Calvo – UFU
Cristina Scheibe Wolff – UFSC
Dilma A . de Almeida – UFU
Edmundo Fernandes Dias – Unicamp
Eurelino Coelho UEFS
Gilmar Arruda – UEL
Heloisa de Faria Cruz – PUC/SP
Jaime de Almeida - UnB
João Klug - UFSC
Jorge Luiz Ferreira - UFF
José Fernando Kieling – UFPel
Jozimar Paes de Almeida – UEL
Marcelo Badaró Mattos – UFF
Mário Maestri - UPF
Osvaldo Coggiola – USP
Paulo Pinheiro Machado – UFSC
Paulo Roberto de Almeida - UFU
Paulo Zarth - Unijuí
Pedro Paulo Funari – UNICAMP
René Ernani Gertz – PUC/RS
Sidney Munhoz – UEM
Sílvia Helena Zanirato – UEM
Théo L. Piñeiro - UFF
Virgína Fontes – UFF

PARECERISTAS AD HOC DESTE VOLUME:


André Pereira Neto - Fiocruz
Angela Katuta - UEL
Arlene Renk - UNOCHAPECÓ
Celso Castro - FGV
Davi Félix Schreiner - UNIOESTE
Edmundo Dias - Unicamp
Eliane Cardoso Brenneisen - UNIOESTE
Eliézer Rizzo de Oliveira - Unicamp
Frederico Neves - UFC
Gisálio Cerqueira - UFF
Heloísa Reichel - UFRGS
José Ames – UNIOESTE
José Rivair Macedo - UFRGS
Márcia Menendes Motta - UFF
Marcos Broietti - UNIOESTE
Marta de Almeida - MAST
Renan Frighetto - UFPR
APRESENTAÇÃO

É com especial satisfação que apresentamos ao leitor o volume 7 da Tempos


Históricos, publicação científica do Colegiado de História da UNIOESTE – Universidade
Estadual do Oeste do Paraná – Campus de Marechal Candido Rondon, neste ano em que
tivemos a grata notícia da aprovação pela CAPES do projeto de Mestrado em História desta
instituição.
Abrindo esta edição, encontram-se duas conferências proferidas durante o VIII
Simpósio em História da UNIOESTE “História, Poder e Práticas Sociais”, ocorrido entre 24
e 27 de outubro de 2005, cujo tema remete à denominação da Área de Concentração do
recém-aprovado projeto de Mestrado, cujo curso se iniciará em 2006. A conferência de
abertura do evento, da Professora Virgínia Fontes, da Universidade Federal Fluminense,
sintetiza reflexão em torno do tema geral do evento, em que a autora aponta algumas
formas de abordagem do tema, concentrando-se na relação entre a História como uma
prática social e o poder.
A conferência de encerramento do evento é apresentada em forma de artigo pela
professora Sílvia Zanirato, da Universidade Estadual de Maringá, no qual apresenta
algumas reflexões em torno da gestão do patrimônio cultural que permitam a participação
comunitária e seu entendimento como um instrumento importante para a construção da
cultura de cidadania.
A sessão de artigos deste volume reúne nove textos com temáticas e reflexões teórico-
metodológicas bem diversificadas. Reflexões sobre historiografia constituem tema dos três
primeiros artigos. O primeiro, de Diogo da Silva Roiz e Jonas Rafael dos Santos, trata da
“Escola dos Annales” enquanto uma tradição historiográfica inventada e das estratégias de
construção de hegemonia historiográfica. O segundo artigo, de José D´Assunção Barros, faz uma
discussão sobre metodologia e escrita da história, discutindo aspectos relacionados aos diversos
“domínios” da história, em especial ao da Biografia. O artigo que segue, de Manoela Pedroza, tem
como objeto a historiografia marxista brasileira, procurando analisar a forma com que o
campesinato e a questão agrária se estruturaram como objetos de estudo por esta historiografia,
entre as décadas de 1930 e 1980.
Em seguida, apresentamos o artigo de Maria Aparecida de Oliveira Silva que trata
das mudanças havidas no Exército romano, à época do imperador Augusto, as quais teriam
contribuído para a construção de uma nova ordem militar, cuja influência teria se estendido por
toda a história política de Roma. O artigo seguinte, de Bruno Miranda Zétola, trata da transição da
Antigüidade ao Medievo, especialmente no que se refere à substituição do evergetismo clássico
pelo modelo caritativo, o qual se constituiu em importante veículo de legitimação do poder político
e econômico da Igreja, e em especial, do episcopado.
Os artigos que seguem se inserem na temática História & Cidade, muito embora
tematizem a cidade sob abordagens diversas. O artigo de Rosângela Maria Silva Petuba,
sobre a cidade de Uberlândia – MG, aborda a cidade a partir das experiências vividas de
trabalhadores ocupantes de terra de um de seus bairros, avaliando a importância da luta
política como fonte de aprendizado para esses trabalhadores. O artigo seguinte, de Marco
Antonio C. Sávio, trata da cidade de São Paulo, nos primeiros trinta anos do século
passado, procurando discutir a adoção de novas tecnologias da eletricidade trazidas pela
empresa canadense Light & Power, com o auxílio das forças políticas da cidade. O artigo de
Marie Felice Weinberg tematiza São Paulo focalizando a imigração judaica, entre o final da
Segunda Guerra Mundial e 1956, em especial, mulheres empresárias. Através da História
Oral, a autora procura revelar o papel das mulheres nas relações de poder entre os gêneros.
E, por último, a revista traz artigo de Tarcísio Vanderlinde que desenvolve seu
argumento baseado na idéia da existência de mediações entre concepções da IECLB –
Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – e o ideário do CAPA – Centro de
Apoio ao Pequeno Agricultor.
Encerram o volume duas resenhas, a primeira do professor Pedro Paulo Funari,
sobre o livro L’Histoire culturelle, de autoria de Pascal Ory, publicado em 2004, na França,
e a segunda, de Ana Paula Cantelli Castro, sobre o livro Reforma Urbana e Luta de
Classes: Uberabinha/MG (1888 a 1922), publicado por Antônio de Pádua Bosi.
O Conselho Editorial agradece a todos os autores e pareceristas que contribuíram
para que mais este volume fosse publicado.
O conselho ainda informa que já estamos recebendo, até dia 10 de março de
2006, contribuições para o próximo volume, cujo tema do dossiê é “Poder e Práticas
Sociais”. A pré-definição de dossiês temáticos, adotada pelo Conselho Editorial, tem como
objetivo dar continuidade à sua política de qualificação da revista.
O dossiê “Poder e Práticas Sociais” pretende reunir artigos resultantes de pesquisas
que articulem reflexões teórico-metodológicas na área de História, em torno de questões
relativas a poder e práticas sociais. Apreendem-se as relações entre história e poder de
forma ampla, presentes nas diversas dimensões da vida social, política, cultural e
econômica, bem como as múltiplas práticas de contestação, subordinação ou consenso à
ordem social. De outro modo, nas relações entre história e práticas sociais, abrem-se
possibilidades de compreender os processos sociais vividos e construídos por sujeitos,
individuais e coletivos, em meio a tensões e conflitos, historicamente experimentados e
reelaborados.

Profa. Dra. Méri Frotscher


Coordenadora do Conselho Editorial
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

CONFERENCIAS

História, Poder e Práticas Sociais


Virgínia Fontes

As instituições de proteção do patrimônio cultural: gestão política e participação


comunitária
Sílvia Helena Zanirato

ARTIGOS

A invenção de uma tradição: a “Escola dos Annales”


Diogo da Silva Roiz e Jonas Rafael dos Santos

A historiografia contemporânea e seus domínios: deslocamentos e mutações


José D`Assunção Barros

O debate na historiografia marxista brasileira sobre trabalhadores rurais no século XX


Manoela Pedroza

A política do poder: o Exército na era de Augusto


Maria Aparecida de Oliveira Silva

Da Antigüidade ao Medievo: o cristianismo e a elaboração de um novo modelo caritativo –


Bruno Miranda Zétola

Pelo direito à cidade: articulações e aprendizados na luta política dos trabalhadores


ocupantes da terra urbana na cidade de Uberlandia
Rosangela Maria Silva Petuba

A Light & Power e a construção do momentum da eletricidade em São Paulo


Marco Antonio S. Sávio

Imigrantes empreendedoras em São Paulo (1945-1956): Ashkenazitas, Sefarditas e


Orientais
Marie Felice Weinberg

CAPA: o jeito luterano de atuar com os pequenos agricultores no Sul do Brasil


Tarcísio Vanderlinde
RESENHAS

ORY, Pascal. L’Histoire culturelle. Paris: Presse Universitaires de France, 2004.


Pedro Paulo A. Funari

BOSI, Antonio de Pádua. Reforma Urbana e Luta de Classes: Uberabinha/MG (1888 a


1922). São Paulo: Xamã, 2004.
Ana Paula Cantelli Castro
Conferência
História, Poder e práticas sociais1

Virgínia Fontes2

Em primeiro lugar, gostaria de falar sobre minha imensa felicidade de estar aqui, na
Unioeste, Universidade com a qual mantenho estreito contato apesar de ser a primeira vez
que aqui venho. Participei desde os primórdios do convênio interinstitucional com a UFF,
mas não pude vir – por razões alheias à minha vontade – na época dos primeiros cursos.
Participei entretanto intensamente das atividades de orientação e de bancas de diversos
colegas daqui e tenho mesmo a impressão de já conhecer a cidade, através das dissertações
e teses que tive o prazer de acompanhar de forma bem próxima. Além desses espaços mais
formais e institucionais, ganhei também laços de grande amizade, construída em debates,
longas tardes e noites de estudo e em encontros festivos – com chopp e conversa, em
almoços coletivos e jantares animados. Assim, me sinto em casa... e faço questão de
mencionar, em especial, Carla Luciana Silva e Gilberto Calil, mais que amigos,
companheiros.
Agradeço pois a honra de estar com vocês neste VIII Simpósio em História que tem
um certo sabor especial, de vitória: comemoramos o novo Curso de Mestrado em História
da Unioeste, com votos de longa vida, de sucesso e, sobretudo, de coerência intelectual e de
defesa da Universidade Pública, laica, gratuita e de qualidade.
Vamos, pois, a nosso tema, História, poder e práticas sociais. Há muitas maneiras
de abordar as inúmeras questões que o tema suscita, assim como há diversos caminhos
teóricos para seu tratamento. Vou levantar algumas desses temas e problematizá-los um
pouco, de forma a que pensemos juntos sobre algumas dessas possibilidades, e, em seguida,
nos centraremos no primeiro ponto.

1
Conferência de abertura do VIII Simpósio em História da UNIOESTE – História, Poder e Práticas
Sociais, ocorrido entre 24 a 27 de outubro de 2005.
2
Professora do Programa de Pós-Graduação em História da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Email: vfontes@superig.com.br.
1. A relação entre a História como uma prática social e o poder. Que laços unem
nossa prática, a de historiadores, com o poder? Podemos partir de dois
caminhos: o da história de nossa disciplina e o das maneiras pelas quais os
historiadores lidam com o poder. Retornaremos a este ponto mais adiante.
2. As concepções tópicas do poder. Há uma forte tendência a conceber o poder
como se estivesse “acima” e separado da vida social, enquanto as práticas
sociais estariam figuradas como se estivessem “abaixo”. Essa disposição tópica
caracteriza o pensamento liberal, que vê o poder como resultando de pactos (ou
do grande pacto, o Leviatã) que, uma vez instaurado, se autonomizaria frente ao
conjunto das demais relações sociais. Pensar o poder, ao contrário, nos parece
exigir pensar as relações sociais que não somente o instauram, mas que
permanentemente o reconstróem. É nas relações sociais – econômicas, políticas,
culturais, organizativas, de cotidiano – onde se implanta e se exerce a
desigualdade como condição de existência, que se originam os meios de coerção
para assegurar a desigualdade.
3. O poder externalizado. Derivada, em grande parte, da modalidade anterior,
alguns tendem a pensar o poder isoladamente do conjunto (da totalidade) das
relações sociais. Muitas vezes nos deparamos com interpretações do poder como
se fosse externo às relações sociais (providencialismo, por exemplo); nesse viés,
o poder constituiria uma “esfera própria” ou “específica” de existência, sendo
abordado isoladamente. Aqui se apóia a suposição de senso comum de que tudo
‘derivaria’ do poder, que se torna, assim, a-histórico, isento de processo, numa
seqüência linear de auto-desdobramento infinito.
4. O desafio histórico de explicar e compreender o poder na totalidade histórica.
Uma quarta possibilidade seria tratar o desafio que significa para nós, os
historiadores, explicar (e compreender) os processos históricos que instauram
formas específicas de poder derivadas das relações sociais – e portanto das lutas
e das práticas. Enfrentar este desafio exige superar as linearidades, quer sejam
sociológicas (que às vezes o analisam como instantâneos fixos ou como
desdobramentos lineares), quer sejam temporais (como concebem a história
como um longo fio de tempo contínuo, esquecendo suas contrações, acelerações,
rupturas bruscas e, também, as persistências do velho no interior do novo). Este
desafio exige pensar a totalidade das relações sociais (a objetividade e a
subjetividade nas quais nos constituímos), analisar o chão social no qual toda e
qualquer forma de poder lança raízes. Exige identificar as formas cristalizadas
que, por parecerem naturais e corriqueiras, permeiam toda a vida dos seres
singulares, como as formas diferenciadas dos Estados e sua íntima conexão com
as diferentes maneiras de assegurar, consolidar e legitimar a dominação de
pequenos grupos sobre a maioria, assentada sobre a exploração. Mas também
exige decifrar a razão pela qual essa dupla, dominação/exploração se apresenta,
muitas vezes, como seu próprio contrário! Como se fosse vontade subjetiva
externa à história (vontade divina), ou, mais complexo ainda, como se fosse o
próprio desejo dos dominados e dos explorados – o de submeter-se “livremente”
ao jugo social que lhes é imposto. Esta é a característica mais perversa do
capitalismo, ao empurrar, pela massiva expropriação na qual se sustenta e da
qual retira sua seiva (o sobretrabalho), a imensa maioria da população para uma
procura incessante de trabalho (expresso como se fosse emprego, contrato
estável, direitos), acreditando que o faz... “livremente”. Esta imagem alterada,
falsificada de si, apenas apresenta a percepção de uma parte da sociedade –
percepção daqueles que se beneficiam desse processo – como se expressasse a
realidade efetiva da grande maioria. Este movimento perverso – e complexo –
aparece hoje também na questão democrática, onde o fato de votar parece querer
responsabilizar a grande maioria pela expropriação política que lhe retira seus
direitos, a começar pelo próprio contrato de trabalho, espraiando-se sobre a
destruição de conquistas de cunho universalizante – saúde, educação, habitação,
alimentação, dignidade, direito à vida, etc...
Como se pode observar, qualquer das vias que tomemos para abordar o tema implica
desafios similares. Retornemos, pois, ao primeiro ponto, para aprofundá-lo um
pouco mais, relacionando a prática social dos historiadores ao poder.
1. A relação entre a História como uma prática social e o poder

Como todos sabem aqui, o termo história tem inúmeros significados, é polissêmico
e essa riqueza de significados deriva do intenso uso social – e da importância - que adquiriu
com o tempo. Como exemplos, a palavra história pode designar namoro (“Fulano está de
história com Sicrana”); pode significar objeto ou coisa (“que história é essa na sua
roupa?”); confusão, complicação (“não me venha com histórias”). No dicionário Houaiss,
estão listadas 15 acepções... Para nosso intuito, podemos classificar as acepções
diretamente ligadas às atividades dos historiadores em dois grandes grupos: no primeiro,
nos referimos aos processos sociais passados ou em curso; no segundo grupo, designamos a
atividade de conhecimento que se exerce sobre o conjunto daqueles processos. No primeiro
sentido, a matéria prima e, no segundo sentido, a atividade (a “fábrica”) de explicações. No
primeiro sentido, o movimento no qual estamos imersos; no segundo sentido, a procura da
reflexão sobre as grandes linhas e as grandes direções nas quais esse movimento nos
impele. Nosso trabalho, dos historiadores, nos move a nos interrogar sobre o significado
desse fluxo do qual participamos, assim como sobre as possibilidades que se descortinam
para nós, como seres coletivos que somos.
Por exemplo, em nossos dias podemos nitidamente identificar a catástrofe social e
humana que se abate sobre nós. Vivemos sob relações sociais que realizam também uma
destruição brutal (mas extremamente lucrativa) da própria natureza. Esse processo hoje
envolve inclusive privar de água a maioria da população do planeta, através da privatização
das fontes e mananciais e de sua mercantilização. A miséria social, a degradação humana, a
destruição dos elos afetivos, a mercantilização das almas (corações e mentes) e a inutilidade
da grande maioria dos objetos mercantis dos quais estamos cercados são características que
se impõem à nós, de forma assustadora. Porém nossa reflexão deve ir adiante, analisando as
formas de construção histórica dessa barbárie, identificando as possibilidades existentes de
exercício de nossa historicidade efetiva e a capacidade de transformação social que
subsiste.
As duas atividades – viver historicamente e pensar e escrever a história – não estão
totalmente imbricadas. As formas de escrever, pesquisar, explicar, pensar e sentir a história
se alteram segundo os períodos e momentos históricos e segundo o ponto de vista social no
qual nos localizamos.
Nossa forma contemporânea de pensar a história (tanto o processo real quanto a
disciplina histórica) nasceu estreitamente ligada com a justificativa do poder e dos
poderosos. Em outros termos, a disciplina acadêmica história se configura, desde os
primórdios renascentistas (com Maquiavel, O Príncipe e, principalmente, em sua História
de Florença e Guicciardini, História da Itália e História de Florença – esta última
publicada apenas em 1859), muito próxima ainda da genealogia das famílias reais (traços
marcantes dos textos, digamos proto-históricos anteriores) mas, sobretudo, como uma
reflexão sobre o poder, ligando-o diretamente ao Estado e aos homens que encarnavam este
poder, os príncipes e os guerreiros.
Com muitas oscilações, a disciplina História se consolidaria somente no século XIX,
quando se constituiu como um corpus de conhecimentos incorporando a crítica erudita,
uma definição, ainda que muito frágil e descritiva, do que poderia ser sua matéria-prima (os
“fatos históricos”) e uma profunda desconfiança com relação à filosofia (e, portanto, com
relação à explicação e à compreensão). Lastreada na descrição e, em sua forma mais
literária, em narrativas épicas, permaneceria muito próxima das grandes questões suscitadas
a partir do poder, pensado como algo em si. A História, concebida dessa forma, seria a
disciplina avalista da construção do Estado-nação moderno (juntamente com o direito),
investigando no passado as linhagens do “povo”, que doravante se impunha, ao lado das
linhagens nobiliárquicas. Encontramos, assim, grandes relatos dos povos anglo-saxônicos,
dos gauleses, dos germânicos como protagonistas de uma unidade específica cujo percurso
era apresentado de forma linear, congregando uma matriz histórica (temporal), um
território, uma forma de ser (identidade) e uma unidade política que figurava como se
tivesse sido, desde sempre, a meta a atingir. A Revolução inglesa e, principalmente, a
Revolução francesa, com a irrupção do povo comum nos processos políticos (isto é, dos
não-nobres, dos burgueses, mas também do “populacho”, do que era até então apontado
como a “ralé”), exigia sua incorporação no grande painel histórico até então reservado às
famílias nobres. A construção das nações seria, em parte, obra de historiadores. Escrever a
nação era inscrevê-la na História. As nações resultavam de um processo complexo, fruto de
uma intensa aspiração à igualdade, expressa nas reivindicações populares e,
simultaneamente, derivavam de tradições inventadas, incorporando subalternamente a
grande maioria. A nação, lugar de luta, se mirava numa tradição inventada (e produzida
também por historiadores), onde uma comunidade de desiguais inventaria uma igualdade
fictícia, a de “nacionais”.
O estado burguês moderno que se consolidava no século XIX extraía sua
legitimidade, em grande parte, da nova disciplina que ele apoiava, sustentava e difundia,
através, por exemplo, da criação dos Institutos Históricos nacionais (implantado no Brasil
em 1838). Os historiadores tinham o augusto papel de naturalizar a nação e de demonstrar
sua indissociabilidade do Estado. Em muitos casos, isso implicou na destruição de
culturais regionais, cujo caso mais evidente foi o da Itália. Para o tema que nos interessa, o
poder, vale lembrar que o Estado era considerado como seu lugar “natural”, o condutor
“natural” da nação, como sua expressão imediata. Assim, a nova disciplina reatava os laços
com as tradições anteriores, agora alargadas – a História era, sobretudo, a história dos
homens no poder do Estado. Não mais suas genealogias nobiliárquicas, mas as estratégias e
ardis dos grandes homens, sua psicologia e suas batalhas. O povo, dignificado como
“origem”, permanecia como mero coadjuvante. Uma prática social – dos historiadores –
distanciada das grandes massas e próxima dos aparatos governamentais produzia a
legitimação dos Estados paralelamente à consolidação de tradições nacionais. Uma história
de base eurocêntrica, colonizadora e “civilizadora” exaltava os países centrais (e suas
“raças”), enaltecendo seus “povos” os quais, entretanto, deveriam manter-se distantes dos
cenários de poder nos quais ela se desenvolvia.
Num século como o XIX, povoado de revoltas populares e de grandes revoluções
(como a Comuna de Paris, em 1871), essa maneira de apresentar a história seria fortemente
contestada pelos movimentos operários e populares. Em seguida, essa crítica seria
consolidada pela poderosa reflexão de Marx.
Abria-se uma profunda cisão no mundo dos historiadores, agora já plenamente
profissionais. O eixo principal até então dominante, a narrativa dos grandes feitos, dos
grandes homens, a exaltação abstrata das qualidades dos povos (os alemães, os franceses, os
ingleses), que se completava com a exposição dos supostos vícios e da degradação dos
povos subalternizados3, seria fortemente questionado. Uma nova prática social, feita por
3
. Não se pode esquecer que, enaltecidos enquanto origem nacional, os setores populares (mesmo os
“nacionais”) continuavam desconsiderados, apresentados como brutos, incompetentes, incapazes de
dirigir-se, devendo depender, portanto, de seus governantes.
grupos sociais concretos, que se organizavam e combatiam as práticas sociais naturalizadas
da exploração e da produção de desigualdades, inclusive simbólicas (a própria classe
operária, então reunida em enormes instalações fáusticas), demandava e exigia outra forma
de pensar a história. Esta se evidenciaria doravante como um processo de transformação,
resultante não da vontade singular dos dirigentes, mas do caudal volumoso das inúmeras e
anônimas lutas sociais. Pensar historicamente passava a exigir a compreensão da forma
social da dominação de classes, como lugar de lutas e de conflitos no interior da própria
sociedade (e não apenas de batalhas épicas entre indivíduos singulares com seus projetos de
poder). O mundo da economia, até então reservado dos olhares populares como se fosse um
lugar técnico, se evidenciava como encharcado de política. A fala técnica (e cada vez mais
matematizada) da economia era desnudada como o discurso específico da ocultação das
relações sociais que sustentavam a dominação de classes. Expor a economia como um
concentrado de relações sociais, como lugar de exploração social e de produção (e não um
mundo feito unicamente de “coisas”), resultava de – e impunha – uma crítica completa do
que era exibido como “necessidade”4.
Agora, o próprio poder (o Estado) deveria ser explicado, não se limitando mais à
fonte de explicação. Marx demonstrava claramente que o poder não é uma coisa em si, mas
deriva da exigência de coerção homogeneizada (e naturalizada por seus ideólogos)
engendrada pelas diferentes formas históricas de extrair sobretrabalho, e, para tanto, de
organizar a vida social. Para Marx, o poder deriva portanto da organização da dominação
de classes, ou do modo de produção (mais precisamente, dos modos de ser, maneira mais
próxima de sua formulação).
A prática dos historiadores, ou a atividade histórica como prática social tornava-
se, também, lugar explícito de luta social. O século XX demonstraria o quanto essa luta
atravessaria o mundo dos historiadores e, a rigor, todo o conjunto das disciplinas sociais. A
neutralidade fictícia de uma descrição dos fatos se mostrava como seleção parcial e
arbitrária.

4
Podemos entender isso com um exemplo anacrônico, mas tristemente pertinente: o episódio da
“blindagem” de Henrique Meirelles e da defesa da “independência” do Banco Central. Um jornal como O
Globo defendeu explicitamente a intocabilidade legal do dirigente do Banco Central como forma de
assegurar a manutenção de uma política econômica que não mais se submetesse à política na qual todos
podem, ainda que subalternamente, participar. O interesse dos setores financeiros dominantes foi assim
apresentado como necessidade social.
Não poderemos fazer, neste curto espaço de tempo, uma longa apresentação das
grandes questões da historiografia do século XX, mas uma das mais importantes polêmicas
foi a que opôs uma ciência histórica neutra e apassivadora a uma história engajada e
fortemente crítica. Basta lembrar dos primórdios dos Annales5, quando Marc Bloch
aprofundou, a partir de uma leitura muito sagaz das classes sociais, a compreensão do
mundo medieval e de suas formas de ser; quando os primeiros textos de Lucien Febvre
apontam para a materialidade das relações culturais (como o problema da descrença em
Rabelais).
Os Annales, porém, de local de luta pelo reconhecimento de uma leitura histórica
engajada, totalizante, explicativa e crítica se transformaram numa instituição forte e
consolidada, espécie de espelho no qual se mirava a historiografia francesa contemporânea.
Plenamente integrados à lógica do Estado francês, num viés republicano (contra a força
ainda remanescente da Ecole de Chartes e de seu viés conservador e, até mesmo,
monarquista) paulatinamente perderiam sua força contestadora e crítica. Gradualmente, o
foco das análises se modificaria, para instaurar uma espécie de “revolução permanente” de
técnicas de pesquisa que se distanciou grandemente dos grandes questionamentos sobre o
conjunto da vida social que o originaram.
Permito-me transcrever uma citação um pouco extensa de Pierre Bourdieu, um dos
filhos da EHESS – Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, instituição sob o controle
do grupo dirigente da revista Annales, num texto redigido no final dos anos 70:
...a classe dominante “nada tem a esperar das ciências sociais, a não
ser, no melhor dos casos, uma contribuição particularmente preciosa para a
legitimação da ordem estabelecida e um reforço do arsenal dos instrumentos
simbólicos de dominação. (...) o que está em jogo na luta interna pela autoridade
científica no campo das ciências sociais, isto, o poder de produzir, impor e
inculcar a representação legítima do mundo social, é o que está em jogo entre
as classes no campo da política” (...) “A idéia de uma ciência neutra é uma
ficção, e uma ficção interessada, que permite fazer passar por científico uma forma
neutralizada e eufêmica, particularmente eficaz simbolicamente porque
particularmente irreconhecível, da representação dominante do mundo social.
Desvendando os mecanismos sociais que asseguram a manutenção da ordem
estabelecida, cuja eficácia propriamente simbólica repousa no desconhecimento de

5
Originalmente, Annales d’histoire économique et sociale; depois Mélanges d’histoire sociale; em seguida
Annales. Economies, Sociétés, Civilisations (1945-1993) e, finalmente, após 1994, Annales. Histoires,
Sciences Sociales.
sua lógica e de seus efeitos, fundamento de um reconhecimento sutilmente
extorquido, a ciência social toma necessariamente partido na luta política.”6

Essa luta é ainda hoje constitutiva do mundo das práticas historiográficas e sociais
dos historiadores. Utilizando termos próximos aos de Bourdieu, o que divide as ciências
sociais (e a história) é a admissão – ou não – da divisão social e, portanto, da luta social.
Assim, enquanto para alguns a vida social é local de harmonia (visão irenista) ou da
sobreposição de indivíduos, para outros é lugar de divisão e de luta de classes, divisão
funda e instauradora de uma determinada maneira de ser, de existir e de pensar que conflita
com a vida real da maioria, com as experiências e processos efetivos de sua vida. Essa
divisão conforta a exploração através reprodução generalizada de seus mecanismos de
dominação, como a própria violência simbólica.
No entanto, essa luta constitutiva das ciências sociais – e da história, ou da
historiografia - vem mudando de forma, se alterando, se metamorfoseando nas últimas
décadas.
Antes porém de comentarmos alguns dos recentes desdobramentos dessa complexa
relação entre prática historiadora e poder, vale retornar um pouco ao campo do marxismo e
a algumas de suas dificuldades. A revolução soviética, ao entrar na fase de cristalização e
de enrijecimento do período stalinista, produziu também seus historiadores oficiais,
similares aos dos países capitalistas. Mais grave ainda, a mitificação do poder stalinista
forjava uma caricatura do próprio marxismo. Este era brandido como teoria necessária e, ao
mesmo tempo, esterilizado. Suas exigências críticas eram podadas e, com isso, uma espécie
de tecnicismo analítico de manuais se generalizava no mundo soviético. A reflexão
histórica produzida dessa forma cumpria uma função legitimadora – e não mais
questionadora – ainda que falando em nome do marxismo. O uso do referencial do
marxismo, amputado de sua força profundamente subversiva, tanto intelectual quanto
socialmente, abriria espaço para ecletismos diversos, que ocorriam nos países capitalistas
mas também nos pós-revolucionários, gerando marxismos pragmáticos, economicismo,
messianismo, politicismos, que conviviam perfeitamente (e disputavam espaço) com os
ecletismos fundados em outras áreas teóricas. Os embates tendiam a se limitar à ocupação
6
P. Bourdieu, O campo científico. In: Bourdieu, P. Sociologia. SP, Ática, 1982. (p. 147-8). Itálicos do autor,
PB; negritos VF.
de espaços no interior das universidasdes e academias, perdendo sua força social. Se
academicizavam e se tecnificavam (pragmatismos diversos), ou, em outra vertente, se
esterilizavam na pura erudição. Este não foi, felizmente, um processo monolítico. Ao lado
de uma vertente que se fossilizava, brotavam novos e originais pensadores, em diferentes
regiões do mundo e que, partindo de plataformas similares (com base em Marx),
descortinavam novos horizontes.
Vou referir-me apenas a dois destes pensadores. O mais importante, sem dúvida, foi
Antonio Gramsci, com sua arguta denúncia do reducionismo dos manuais e,
principalmente, do mecanicismo e do economicismo no interior do marxismo. Não era
historiador de ofício. Reintroduzia a cisão entre o mundo oficial dos historiadores e a
reflexão histórica. Podemos dizer que Gramsci (como Marx), é um historiador sem o ser.
Refaz e reconstrói a explicação da vida social italiana (elabora a categoria de
transformismo; renova a reflexão dialética apresentando a relação histórica entre o norte e o
sul da Itália); esclarece de maneira incisiva as modalidades de organização do estado
capitalista contemporâneo, pensando de forma original a questão da totalidade (hegemonia
e coerção; sociedade civil e sociedade política); inaugura a compreensão do
“americanismo”, cuja hegemonia era então incipiente. Mantendo-se muito próximo às
reflexões de Marx e de Lênin, não os toma como textos canônicos e, assim, analisou a
maneira como o Estado – e seu aparato – se erigia a partir da vida social, a partir da luta
entre as classes, das formas organizativas que a elas se ligam, da produção de visões de
mundo e da cultura. Mostrou como as classes se articulavam na sociedade civil e como o
Estado se cristalizava como relação entre forças profundamente desiguais, nascidas no chão
fundamental da produção da vida (“a hegemonia nasce da fábrica”).
Como exemplo de historiador de ofício que retomou explicitamente Marx e Gramsci
para sua prática de se trabalho, um dos mais importantes foi E. P. Thompson. Mas – quiçá
para fugir do oficialismo a que muitos historiadores são induzidos – Thompson sempre
recusou o mundo das academias, sendo um professor do setor de extensão (aulas para
adultos e para operários), concentrando suas pesquisas nos processos de constituição das
classes sociais como modo de ser (priorizando a experiência como forma de articulação
entre objetividade e subjetividade). Em Thompson, a questão do poder liga-se diretamente
às classes sociais, às formas de subordinação do mundo do trabalho.
* * *

Nos últimos anos e, em especial, na década de 1990, a relação entre o poder e as


práticas sociais dos historiadores parecem se tornar mais opacas e confusas. Refiro-me ao
período do pós-modernismo, com uma expansão requentada do pragmatismo, período que
se traduz por disputas no interior de um campo de historiadores profissionais cada vez
maior, mais competitivo e crescentemente hierarquizado. Vou sugerir alguns caminhos para
compreender isso.
A evidência dos profundos problemas no mundo soviético levou muitos autores a
criticar fundamente a concepção marxiana de poder, considerando a experiência soviética
como se fosse uma “aplicação” imediata do marxismo. Outros procuraram outras fontes de
rebeldia, como por exemplo a reflexão de Foucault, desencantado com a maneira pela qual
os que se proclamavam contestadores do poder (os Partidos Comunistas) reproduziam
lógicas de dominação em seu próprio interior. Essa constatação o leva a abandonar a
reflexão sobre as formas centrais de constituição do poder dominante (o capital, em
primeiro lugar e o Estado) e a dedicar-se às porosidades, aos micro-poderes, às margens
aparentemente não ‘contaminadas’ pela lógica dominante (loucos, doentes, bruxos,
marginais). Reflexão vigorosa, com profundo impacto sobre os historiadores mas que, no
entanto, virava as costas a dois problemas centrais. No primeiro, abandonava o tema da
historicidade, ou das formas (e sujeitos) da transformação histórica, que constituem o cerne
do marxismo. No segundo ponto, centrando suas análises na questão do poder,
desconsiderava entretanto o fulcro fundamental que expressava o poderio de classe, a
exploração, e sua forma mais visível de convencimento, o Estado. Deixava de lado assim
suas bases fundamentais, as classes sociais. No final da vida, Foucault voltaria a apontar a
questão da “estatalidade” como eixo importante de análise, mas os historiadores que o
seguiram não o fizeram.
As práticas de antipoder propugnadas por Foucault derivaram, entretanto, na
constituição de novas linhagens – e poderosas – de historiadores. Sem mais ter as classes
sociais (ou o Estado) como um problema, alguns assumiram um papel ambivalente:
ocupavam o lugar social da legitimação social do poder dominante através do Estado (e,
portanto, das classes), lugar clássico dos historiadores, porém não mais questionavam sua
própria inserção, dedicando-se ao estudo das margens e deixando de lado o eixo central
que, a rigor, definia inclusive o limite e a extensão de tais margens. O Estado (como
condensação de relações de classe e expressão central desse poder) ficaria secundarizado
nas pesquisas. Esse esquecimento, entretanto, não correspondia ao que ocorria na vida
social e vale pensar sobre o enorme o papel e a constituição, então em curso, do poderio
bélico estadunidense, e em sua íntima conexão com o Estado.
Outros autores confundiram a vulgata marxista (ou o marxismo stalinista) com as
formulações marxianas. Algumas vezes por engano, pois só haviam conhecido a vulgata.
Outras vezes como uma estratégia para reduzir o tamanho do adversário e, dessa forma,
aparentemente derrotá-lo. Nunca Marx morreu tantas vezes como nos últimos 30 anos e,
em especial, neste decênio neoliberal.
Entretanto, não era mais possível supor uma história (ou uma ciência social) neutra.
As ciências chamadas de “naturais” mostravam cada vez mais suas conexões sociais e a
própria física incorporava questões sociais e subjetivas. O que poderia ser um enorme
avanço, com a desnaturalização das ciências e com a exigência mais rigorosa da articulação
entre objetividade e subjetividade levou a um giro peculiar – a suposição de que seria
possível eliminar a própria realidade da reflexão histórica. Dois foram os caminhos
principais utilizados: o do giro lingüístico (e o culturalismo) e o do pragmatismo. No
primeiro, tratou-se de descolar a linguagem da vida social que a possibilita, a molde e a
transforma. Se só podemos expressar o mundo através de representações lingüísticas – e
isso é verdadeiro – derivaram daí que o mundo real não existe, sendo o resultado de
representações e crenças... Não haveria mais ciência, para estes, nem sentido ou significado
histórico. Existiriam apenas culturas, representações, formas incompatíveis, umas com as
outras, de ver o mundo. A dominação e o poder voltaram a ser apresentadas como entidades
abstratas, sem chão social consistente – derivadas diretamente da linguagem, sem vínculo
social, eram mostrados como se fossem puro convencimento (e a filantropia voltou a ser
convocado para corrigir as eventuais distorções). Em outros casos, expressariam
circunstâncias casuais (inteligência, eficácia, competitividade, etc.) e, assim sendo, eram
legitimados. Apresentavam-se como entidades intangíveis, tal como o mercado ou o capital,
desaparecendo o mundo das classes sociais. O Estado voltava a figurar como lugar imediato
da vontade de seus integrantes e de sua capacidade de convencimento (o grande consenso).
A proximidade com a expansão e a oligopolização da mídia neoliberal, difundindo e
naturalizando esta concepção, foi uma das condições e uma de suas mais graves
conseqüências. De maneira peculiar, essa forma de pensar aderia como uma segunda pele à
lógica desenfreada da mercantilização no final do século XX.
O segundo caminho foi o do pragmatismo utilitarista (R. Rorty). Partia também da
impossibilidade de definir uma realidade que desse fundamento à análise. Considerando
todos os fenômenos sociais como pura contingência, abandonava as questões cruciais da
organização da vida social para enveredar pelo estudo do que tivesse utilidade prática mais
imediata.... Onde ser mais útil imediatamente do que coligando-se, por cima, aos poderes
estabelecidos? Onde a “utilidade” aparece de forma mais evidente do que na pregação
filantrópica? O mundo deixa de ser histórico (e transformável) para limitar-se aos remendos
úteis a serem aplicados num tecido social “esgarçado” mas que é apresentado como eterno,
calcado na “natureza humana contingente”.
O terceiro caminho foi o mais propagandístico de todos e, de certa forma,
incorporava os dois primeiros – a negação de qualquer história futura. Teríamos chegado ao
ponto máximo do processo histórico e ele assinalaria o fim da história. Nem é necessário
falar de Fukuyama7.
No entanto, o mundo real continua colocando desafios efetivos. A barbárie não
desaparece porque deixamos de pensar nela ou porque a enfeitamos de filantropia, (quer
derivem de ONGs, de formas associativas empresariais ou confessionais); a violência
fundamental, estrutural, não desaparece porque passamos a pensar unicamente em termos
de um consenso que só tem plena validade para alguns (como fizeram muitos em nome de
um “agir comunicacional”, por exemplo).
Nós, historiadores, estamos imersos em práticas que nos relacionam intimamente ao
poder e a luta social. Se não tivermos uma reflexão crítica, podemos construir belos textos,
mas que naturalizam o mundo; nos arriscamos a fazer derivar todo o poder de sua imagem
mais aparente, o Estado e seus ocupantes (ou de entidades para-estatais internacionais ou,
ainda, de algum Estado específico, como os EUA), esquecendo a extração do sobretrabalho

7
O artigo de Fukuyama, publicado em 1989, foi difundido em todo o mundo pela John M. Olin
Foundation, instituição estadunidense que gasta milhões de dólares para favorecer um giro à direita no
ensino das ciências sociais e que financiou também François Furet, historiador francês contestador da
Revolução francesa e que foi um dos diretores de Annales, em sua nova etapa. Ver Fontana, J. La historia
después del fin de la história. Barcelona, Ed. Crítica, 1992, p. 7.
que a tudo produz e sustenta. Nos arriscamos a não ver o fundamento das divisões sociais
na extração crescente de sobretrabalho para nutrir classes sociais dominantes e conter a
rebeldia social. Não devemos, pois, passar ao largo das lutas e práticas transformadoras,
assim como do movimento histórico que efetivamente exercem. Nosso desafio é o de
mostrar as entranhas, mostrar como se enraízam, na vida social e na história, as formas
específicas e peculiares de que se veste o poder de classes em cada momento, a maneira
como o convencimento e a coerção revestem e aderem às transformações no mundo do
trabalho. Vivemos um dos momentos de maior subalternização do trabalho e de intensa
extração real (e não fictícia, nem resultante de uma forma de ver o mundo) de mais-
trabalho, inclusive sob formas de trabalho compulsório, de tráfico de mulheres e de
crianças, de trabalho infantil, além de uma cascata hierarquizada de subordinação, que vai
desde as formas contratuais até as modalidades mais precarizadas de trabalho.
Se tivermos a ousadia de reconhecê-lo, talvez tenhamos a capacidade de combatê-lo.
Nosso papel social é difícil e muitas vezes ambíguo. Nossa relação é ao mesmo tempo
subordinada (como trabalhadores) e combativa, se pensarmos em nossa função tal como
Gramsci pensou o papel dos intelectuais. Somos responsáveis pela socialização do
conhecimento e das lutas que o atravessa, somos organizadores de uma forma de ver e
pensar e sentir o mundo. Quem sabe, assim, conseguiremos avançar na explicação e na
compreensão de nosso mundo, de sua historicidade transformadora necessária e, dessa
forma, sejamos mais que historiadores, mas também sujeitos plenamente históricos.

Bibliografia adicional:
Anderson, Benedict. Nação e consciência nacional. (Comunidades imaginadas). SP, Ática,
1989.
Anderson, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. Porto, Afrontamento, 1976.
Bloch, Marc. La société féodale. Paris, Albin Michel, 1968.
Duayer, M. e Moraes, Maria Célia M. “Neopragmatismo: a história como contingência
absoluta”. Tempo. Revista do Departamento de História da UFF. Vol. 4, 1997.
Fontana, Josep. – Historia, analisis del pasado y proyecto social. Barcelona,
Critica/Grijalbo, 1982.
Foucault, Michel. Microfísica do poder. 5ª ed., Rio, Graal, 1985.
Gramsci, A. Cadernos do Cárcere. Rio, Civilização Brasileira, 2001 a 2002 (6 volumes).
Hobsbawm, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780. Rio, Paz e Terra, 1990.
Hobsbawm, Eric J. e Ranger, T. A invenção das tradições. Rio, Paz e Terra, 1997.
Lefebvre, Georges – El nacimiento de la historiografia moderna. Barcelona, Martinez-
Roxa, 1974.
Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos (Manuscritos de Paris). In: Os Pensadores.
SP, Nova Cultural, 1982.
Meszáros, I. Para além do capital. SP. Boitempo, 2002.
Thompson, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio, Paz e Terra (3 volumes).
As instituições de proteção do patrimônio cultural:
gestão política e participação comunitária8

Silvia Helena Zanirato9

Resumo
O conceito “patrimônio cultural” passou por transformações de sentido nos últimos
anos. De um discurso patrimonial referido aos grandes monumentos artísticos do passado,
interpretados como fatos destacados de uma civilização, se avançou para uma concepção do
patrimônio como o conjunto dos bens culturais que são referentes das identidades coletivas.
Ele agora compreende as múltiplas paisagens, arquiteturas, tradições, festas, gastronomias,
expressões de arte, documentos, sítios arqueológicos, ritos, músicas, expressões
reconhecidas e valorizadas pelas comunidades e organismos governamentais na esfera
local, estadual ou nacional. Essa nova concepção não pode deixar de ser associada ao
processo de “mundialização” e a tentativa de homogeneização de hábitos e consumos em
face ao vertiginoso ritmo de transformação e trocas que se processa na contemporaneidade.
Os bens que hoje formam o patrimônio têm permitido a cada sociedade reconfigurar seus
elementos de identidades e de pertencimento a um tempo e lugar. Esses bens conformam o
patrimônio de uma comunidade a partir de diversas perspectivas, fortalecem o sentido de
pertencimento e impulsionam a participação coletiva ao recompor o tecido social, recuperar
a herança e definir os caminhos do que virá. Com base nesses preceitos neste texto me
proponho a apresentar algumas reflexões em torno da gestão do patrimônio cultural, que
permitam a participação comunitária e seu entendimento como um instrumento importante
para a construção da cultura de cidadania.

Introdução
Por patrimônio cultural entendem-se os diferentes modos de vida e de expressão dos
seres humanos, as manifestações materiais e imateriais que afirmam e promovem a
identidade cultural de um povo.
8
Texto-base da conferência de encerramento do VIII Simpósio em História da UNIOESTE – História,
Poder e Práticas Sociais, ocorrido entre 24 a 27 de outubro de 2005.
9
Professora da Universidade Estadual de Maringá. E-mail: sizani@uol.com.br.
Esse entendimento, bem como as medidas de proteção destinadas a salvaguardar o
patrimônio são resultantes de uma formulação lenta e gradual da cultura no mundo
ocidental. É claro que se pode encontrar desde a Antiguidade objetos valorados e
conservados, bem como medidas jurídicas para sua proteção, advindas de motivações de
ordem cultural, política, econômica e religiosa. Todavia, uma reflexão crítica acerca dos
valores históricos, artísticos e culturais dos bens considerados patrimônio e a busca de
meios para sua conservação ocorreram em épocas mais recentes.
Foi em finais do século XVIII, sobretudo a partir da Revolução Francesa, que se
elaborou uma outra sensibilidade quanto a proteção e conservação de bens dotados de valor.
Se no decorrer da Revolução houve a depredação dos signos pertencentes ao passado
monárquico, ela instigou, por outro, o desejo de conservação de elementos considerados
‘testemunhos irrepreensíveis da história’, os monumentos que faziam referência à memória
do país, considerados então de interesse público, cujo conhecimento e desfrute deveria ser
disposto a todos os cidadãos. Buscaram-se então ações políticas para a conservação desses
bens, entre as quais uma administração encarregada de sua conservação e da preparação dos
instrumentos jurídicos e técnicos para esse fim (CHOAY, 2001, p. 95).
Assim, a partir do século XIX podem ser encontradas as primeiras medidas para a
proteção do patrimônio e o surgimento dos conceitos modernos de conservação e
restauração, forjados diante da necessidade de se evitar novas destruições.
O século XIX também transformou o conhecimento histórico em conhecimento
científico e, nesse processo, os monumentos considerados por seus valores históricos,
cognitivos, econômicos e artísticos, passaram a ser valorados principalmente pelo valor
histórico, que se tornou preponderante para o reconhecimento de um bem como um
patrimônio. Os monumentos tornaram-se testemunhos das etapas do desenvolvimento
evolutivo da humanidade (GONZÁLEZ-VARAS, 2003, p. 37-38).
Naquele contexto, a atribuição de valor ao monumento amparava-se em critérios
estéticos ou históricos. As obras de arte eram consideradas dotadas de muito mais valor do
que um objeto de uso utilitário, com isso, as produções das classes subalternas raramente
apareciam como bens cuja conservação devesse ser contemplada, o que favoreceu a perda
de inúmeros objetos considerados não relevantes (IDEM, pp. 43-44). O bem considerado
patrimônio era preservado como uma figura museal, isolada de uso, disponível apenas para
a contemplação (CHOAY, 2001, p. 181).
A aceleração da urbanização nas décadas iniciais do século XX mudou o
entendimento a respeito do que é uma cidade. Esta passou a ser compreendida como um
tecido vivo, com espaços que podem ser conservados e, ao mesmo tempo, integrados à
vida, conciliando sua morfologia com novos usos. A cidade tornou-se então um nível
específico da prática social na qual se vêm paisagens, arquitetura, praças, ruas, tradições,
festas; um lugar de expressão da memória coletiva, de identidades compartilhadas pelos
diferentes habitantes que a integram e que não é um todo homogêneo e articulado, mas
antes um mosaico muitas vezes sobreposto, que expressa tempos e formas diferenciadas de
viver (IDEM, p. 200-236).
A compreensão de que a cidade é composta por edificações e por pessoas implicou
na reformulação do conceito de patrimônio, uma vez que nos bens a serem preservados se
incorporou o valor cultural, a dimensão simbólica que envolve a produção e a reprodução
das culturas, que se expressa nos modos de uso dos bens.
A partir da segunda metade do século passou a haver um interesse cada vez maior
aos aspectos nos quais se plasma a cultura de um povo. As línguas, os instrumentos de
comunicação, as relações sociais, os ritos, as cerimônias, os comportamentos coletivos, os
sistemas de valores e crenças passaram a ser vistos como referenciais culturais dos grupos
humanos, signos que definiam a cultura de um povo e que necessitavam de salvaguarda.
Frente a isso se ampliou a noção de monumento histórico como elemento condensador de
valores, que expressa as capacidades criativas de uma cultura. Surgiu assim a definição de
bem cultural como a manifestação ou testemunho significativo da cultura humana
(GONZÁLES-VARAS, 2003, p. 44).
A ampliação do conceito permitiu a compreensão de que os signos das identidades
de um povo não podem ser definidos tendo como referência as culturas ocidentais, assim
como a cultura campesina não pode ser vista como menor em face às atividades industriais.
O reconhecimento da mudança conceitual se fez presente nos fóruns internacionais
destinados a refletir sobre a preservação de bens culturais ou patrimônio cultural. A
Convenção de Haia de 1954, patrocinada pela UNESCO, empregou o conceito dessa forma.
A partir de então ele passou a ter o sentido de objetos e estruturas herdados do passado,
com valores históricos, culturais e artísticos, bens que representam as fontes culturais de
uma sociedade ou de um grupo social e que podem ser materiais ou imateriais.
Ao longo das duas décadas seguintes, a essa definição incorporaram-se as noções de
cultura e natureza, compreendidas como complementares e formadoras das identidades dos
povos. O patrimônio cultural converteu-se no conjunto de elementos naturais ou culturais,
materiais ou imateriais, herdados do passado ou criados no presente, no qual um
determinado grupo de indivíduos reconhece sinais de sua identidade (CASTILLO RUIZ,
1998, p. 22).
Ao mesmo tempo em que houve essa mudança, houve também um processo de
aceleração da ocidentalização, “uma americanização dos costumes, que caracterizam uma
maneira de viver, de produzir, de consumir, de vestir, de comer e de dilapidar” (MARIN,
2005) Não obstante, a ocidentalização do mundo não deixou de ser sempre confrontada
com a resistência cultural. A valorização da diversidade cultural surgiu então como a
expressão positiva de um objetivo geral que procura a valorização e a proteção das culturas
do mundo, frente ao perigo da uniformização.
A questão que passou a ser colocada foi a de como proteger os valores ancestrais da
diversidade cultural do “rolo compressor” da padronização cultural. Isso porque esse
mesmo processo de globalização acarretou o afastamento do Estado das atribuições que
lhes eram próprias, entre as quais a gestão dos bens culturais.
As transformações políticas, sociais e econômicas havidas em diferentes partes do
mundo tornaram bastante complexa a manutenção da responsabilidade do Estado em gerir e
conservar os bens culturais. Essa complexidade, assim como a privatização crescente,
acabou por acarretar uma necessidade de compartilhar responsabilidades e envolver outros
segmentos da sociedade nessa tarefa. Nesse contexto, a conservação do patrimônio natural e
cultural passou a ser reconhecida como um componente essencial do processo de
planejamento integrado, ciente de que os múltiplos campos de interesse e as conseqüentes
situações de conflito que envolve a gestão, não tornam fácil essa empreita.
Baseada na compreensão dessas transformações e na necessidade de redirecionar a
gestão dos bens culturais de uma forma mais eficaz, a Constituição Brasileira de 1988
estabeleceu as competências locais para a gestão do patrimônio. Ficou definido que o
município pode instituir legislação própria que proteja os bens históricos e regulamente o
seu uso e conservação.
Assim, conforme o art. 30, inciso IX, compete ao município “promover a proteção
do patrimônio histórico – cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora
federal e estadual”. A partir desse dispositivo o poder local pode estabelecer políticas para
gerir a conservação dos
I - conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
ecológico e científico;
II - museus, as casas de cultura ou de memória, os arquivos, as obras, objetos,
documentos e edificações que reflitam e registrem a história, a cultura e a arte do povo e da
região;
III - criações científicas, tecnológicas, artísticas, artesanais e folclóricas, os
monumentos e estátuas erguidas em praça pública;
IV - festas religiosas populares e as manifestações profanas peculiares ao
Município;
V - bens tombados por Lei Municipal e Estadual, localizados dentro do Município.

E é com a preocupação de gerir e conservar o patrimônio que entendo a importância


de traçar os principais pontos que embasam um plano de gestão dos bens culturais para a
cidade, ou seja, um conjunto de medidas destinadas à implantação de políticas públicas
municipais capazes de:

1. Estabelecer mecanismos institucionais de gestão dos bens culturais,


2. Realizar um mapeamento e a identificação precisa de todos os bens da cidade,
3. Promover campanhas de educação patrimonial em todo o município, integrando o
tema da conservação nos currículos das escolas locais,
4. Sensibilizar a sociedade para a importância dos bens culturais,
5. assegurar a manutenção e a conservação do que existe de específico,
irreprodutível e não renovável na configuração da cidade.
O Plano de Gestão dos Bens Culturais

O Plano de Gestão é um conjunto normativo constituído de ações e recursos


técnicos, institucionais e financeiros que estrutura todos os procedimentos que devem atuar
na operação e na normatização da gestão dos Bens Culturais, que busca organizar o
desenvolvimento das atividades de criação, conservação e difusão dos bens culturais da
cidade, mediante um quadro temporal de 5 anos, utilizando todos os atores e recursos
disponíveis (Pontual, 2002, p. 115).
Para a sua elaboração é fundamental articular em sua montagem requisitos tais
como o desenho de uma estrutura organizacional com a definição de mecanismos de
participação, negociação e decisão, a constituição de uma equipe técnica, a montagem de
um programa de trabalho que atue na mobilização e sensibilização dos atores envolvidos e
na elaboração de um esquema de divulgação e comunicação do trabalho.
O objetivo central de um plano assim proposto deve ser o de promover a gestão
compartilhada dos bens culturais da cidade de forma a manter a especificidade, diversidade
e autenticidade da morfologia urbana bem como das expressões de vivência e tradições
culturais, integradas às exigências contemporâneas de novos usos e atividades (Pontual,
2002, p. 115). Assim, esse plano deve:

a) Contribuir para a integração de todos os atores públicos e privados envolvidos


na atividade de gestão;
b) Articular as políticas públicas federal, estadual e municipal;
c) Promover um melhor planejamento das atividades de criação, conservação e
difusão dos bens patrimoniais;
d) Associar a atividade com a conservação integrada do patrimônio cultural;
e) Integrar o processo de gestão dos bens patrimoniais ao processo de
desenvolvimento sócio-econômico da cidade;
f) Indicar os mecanismos de negociação e de participação entre os diversos atores
envolvidos na gestão.
A atividade da gestão pode ser organizada mediante um modelo que trabalhe a
diversidade cultural existente na cidade e que também atue na gestão das tarefas simples e
complexas do dia-a-dia, bem como naquelas do planejamento estratégico. Um planejamento
capaz de garantir a execução de quatro tarefas ou fases que se integram e que se interligam
e são consideradas permanentes durante o processo. Essas tarefas são:

Análise e Avaliação

A tarefa de “análise e avaliação” consiste na sistematização de dados e


informações relativos aos bens culturais na cidade, bens materiais e imateriais. Por
meio dela podem ser avaliados a diversidade de formas e funções da configuração
urbana, bem como os valores da tradição cultural dos habitantes da cidade.

Monitoramento e Controle

Essa tarefa compreende uma atividade direcionada para o planejamento do


futuro do desenvolvimento da gestão dos bens culturais na cidade. Tem como
objetivo observar e mensurar o resultado sócio-econômico e de indução do
desenvolvimento de atividades culturais, bem como os impactos e os riscos
impostos ao patrimônio. Deve também propor e orientar ações corretivas à
programação das atividades, no tempo e no espaço da cidade.

Negociação

Esta tarefa, por sua vez, compreende a mediação dos conflitos, dos interesses
e objetivos dos atores envolvidos com o patrimônio cultural da cidade. Nele se
empregam técnicas de construção de consenso visando parcerias para tornar o
planejamento efetivo e eficaz. Pode ser executada mediante a criação legal de um
Fórum de proteção dos bens culturais da cidade, composto por representantes e por
todos os atores envolvidos no processo e pela adoção dos termos negociais da
parceria.
Proposições

As proposições se referem à formulação de alternativas de intervenção técnica,


institucional e financeira relacionada aos bens culturais. Nela se podem construir cenários
que possibilitem avaliar o impacto da intervenção nos bens culturais (Pontual, 2002, p.114).

O plano pode ser ainda mais aprimorado mediante a execução de:

I – Um Plano Diretor Para os Bens Culturais que contemple:

1. A definição, no âmbito do Plano Diretor da Cidade, de políticas destinadas a preservar,


proteger e recuperar o meio ambiente e o patrimônio cultural, histórico, paisagístico,
artístico e arqueológico municipal;
2. A realização de estudos e pesquisas objetivando avaliar a dimensão, composição e
importância dos bens culturais da cidade;
3. A efetivação de projetos que possam priorizar a memória, a história, a contemplação e a
imagem dos bens culturais da cidade.

II – Um Plano de Parceria Público-Privado no qual se organizem ações e tarefas


compartilhadas:

1. A recuperação da história do local e que permita contemplar os bens


arquitetônicos do município;
2. A adequação de um espaço de animação fixa, aberto para a exposição dos bens
culturais, sobretudo os bens imateriais.
3. A devida importância à paisagem natural, proporcionando maior transparência
na relação dos edifícios com essa paisagem.
4. A elaboração de projetos de formação em educação patrimonial,
É importante que tal plano envolva em sua composição atores das esferas municipal,
estadual e federal, ou seja o âmbito governamental, bem como atores oriundos da sociedade
civil tais como representantes de associações profissionais, de associações comunitárias, de
associações de ensino.
Para a organização e o cumprimento das diretrizes é importante que sejam elaborados
convênios de parcerias com vistas à gestão compartilhada e à formulação das normas de
PPP – Parceria Público Privada, estabelecendo-se um conjunto concreto de medidas e de
competências de cada um dos atores.

A gestão dos bens culturais assim proposto pressupõe os seguintes componentes:

a) A criação de um organismo municipal, no âmbito da administração direta,


próprio e específico da Secretaria de Cultura da Cidade, dentro da estrutura
básica da Administração Municipal;

b) A criação e implementação do Conselho Municipal de Patrimônio Cultural –


CMPC, com composição paritária público – privado. Esse Conselho será
responsável pela discussão e aprovação do Plano Diretor dos Bens Culturais da
Cidade, dentre outras tarefas;
c) Criação, instalação e posse de um Fórum de Gestores dos Bens Culturais –
FGBC da cidade. Uma organização aberta, composta por atores públicos e
privados, além de pessoas físicas e jurídicas interessadas na gestão dos bens
culturais. O FGBC necessitará de um calendário periódico de reuniões, de pautas
definidas e de uma coordenação executiva a ser exercida em Colegiado. Suas
tarefas são: indicar ao Conselho as prioridades da criação, conservação e difusão
dos bens culturais, em constante integração com o planejamento das atividades
gerais da cidade como um todo;
d) Criação e Implantação de um Fundo Municipal de Preservação dos Bens
Culturais, vinculado a SEC, recursos oriundos do setor público e privado e
alocados mediante diretrizes do CMPC e do FGBC (ZANIRATO et. alli, 2004).
Gabinete do
Prefeito

Sec. Sec. Sec. Sec. Séc.


Edu. Plan. Turism Ind Cultura

Com.
Fórum de Munic.
Gestão dos Patr. Cult.
Bens Cult.

Diretoria Diretoria Diretoria Diretoria


Eventos Marketing Técnica Adm Fina

A tarefa dos organismos propostos por esse arranjo é a de integrar todos os setores da
administração municipal que atuem em prol dos bens culturais e assim promover
melhorias no sistema de gestão das atividades voltadas para esse fim.

Com isso, tarefas de animação de atores, coordenação de atividades, integração de


planos de trabalho, ações integradas, parcerias público-privado, qualificação do pessoal
técnico, organização institucional moderna e enxuta e compartilhamento da gestão, podem
ser executadas com precípua finalidade de executar essa missão.
Acredito que um plano como esse possa ser orientado pelos princípios de uma nova
postura ética, apreendida do conceito de desenvolvimento sustentável, que visa a atender as
necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das gerações futuras atenderem
às suas próprias necessidades, e que considere a multidimensionalidade da sociedade, em
seus aspectos econômico, político, social, ambiental e cultural.
Para que a gestão do Plano dos Bens Culturais seja sustentável é necessário que ele
seja:

a) economicamente viável, que gere riqueza para sua própria manutenção;


b) ecologicamente equilibrado, que observe a natureza em sua capacidade de
regeneração limitada em face ao crescimento econômico e populacional e
considere os critérios ambientais para preservar os recursos naturais estratégicos;
c) socialmente includente, que através da integração inter e multisetorial das
políticas públicas, da participação social e da implementação de projetos
promova a inclusão social;
d) culturalmente conservador, que seja capaz de preservar o patrimônio natural e
construído;
e) urbanisticamente adequado, que suas normas e leis sejam adequadas à
conservação do patrimônio;
f) administrativamente ético e competente, que seja dirigido do ponto de vista
político por uma liderança competente e que atue democraticamente.

Dentro de tais preceitos, levando em conta ainda os instrumentos institucionais


propostos como o Fórum, o Conselho Municipal e o Fundo, viabilizam-se possibilidades de
sustentabilidade do Plano de Gestão ao mesmo tempo em que se abrem espaços para a
resolução de conflitos entre os grupos e atores sociais envolvidos, de modo a garantir a
legitimidade dos pleitos. Somente assim criam-se mecanismos de concertação de idéias e
práticas para fazer convergir valores e concentrar ações que, em suma, promovam a
conservação integrada do patrimônio cultural da cidade.
Ter uma cidade preservada através de iniciativas públicas e privada demonstra
consciência cultural, bem como a oportunidade de transmitir às gerações futuras o que
somos hoje, dando-lhes referências históricas e fortalecendo os laços em comum.
Omitirmo-nos diante dessas necessárias medidas fará com que nos esqueçamos de quem
somos.

Referências bibliográficas

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2000.


CASTILLO RUIZ, J. Hacia una nueva definición de patrimonio histórico? PH Boletín del
Instituto Andaluz del Patrimonio Histórico, n. XVI, Sevilla, IAPH, septiembre 1996.
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do Patrimônio Cultural Integrado. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2002.
ZANIRATO. Sílvia Helena et alli. A gestão do turismo no Bairro do Recife. Especialização
em Gestão do Patrimônio Cultural Integrado ao Planejamento Urbano da América
Latina. Cátedra UNESCO. CECI. UFPE. Recife, março 2004.
A invenção de uma tradição: “A Escola dos Annales”10

Diogo da Silva Roiz11


Jonas Rafael dos Santos12

RESUMO: Preocupa-se, neste artigo, com o estudo da construção de uma tradição


inventada, a “Escola dos Annales”, na França, por meio das estratégias de manutenção de
uma hegemonia historiográfica, com aqueles que ficaram conhecidos como a terceira
geração do grupo nos anos 1970 e 80.

PALAVRAS-CHAVE: Revista Annales; Escola dos Annales; relato fundador;


historiografia francesa.

ABSTRACT: It Worries, in this article, with the study of the construction of one
invented tradition, ‘Annales School’, in France, by the maintenance strategies of a
historiographical hegemony, with the ones that they were known as the third generation
of the group in the 70ths and 80ths.

KEY WORDS: Annales Magazine; School of the Annales; founder report; French
historiography.

Propõe-se a estudar, neste artigo, a possibilidade de elaboração de um relato sobre


a história do surgimento da revista Annales (que ao longo dos anos agrupou diversos
intelectuais franceses, como também de outras nacionalidades), nas décadas de 1970 e
1980, fundamentalmente, pela ‘terceira geração’ do grupo [1968/9-1988(?)]. Para justificar
um projeto historiográfico proposto depois da década de 1960 e contrapor críticas à ‘Nova
História’ francesa, na medida em que se buscava, com àquele relato fundador, construir
uma possível identidade para o grupo, ao redor da revista Annales, em todas as suas fases.

10
Este texto é uma versão reformulada de parte do primeiro capítulo de uma pesquisa concluída no final de
2003. Foi elaborada entre 1998 e 2002, e se originou no Programa Especial de Treinamento (PET) do
curso de História da Unesp, Campus de Franca. A pesquisa foi orientada pela Prof.ª Dr.ª Aparecida da
Glória Aissar. O texto completo é intitulado: A recepção da “Escola dos Annales” no Estado de São
Paulo: da FFCL\USP a FHDSS\UNESP. Partes da pesquisa já foram publicadas sob a forma de artigos.
11
Mestre pelo programa de pós-graduação em História da Unesp, Campus de Franca, com financiamento da
CAPES. Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
(UEMS), Campus de Amambaí. E-mail: diogosr@yahoo.com.br
12
Mestre e Doutor pelo programa de pós-graduação em História da Unesp, Campus de Franca, com
financiamento da CAPES. Professor da Rede Pública Municipal de Campinas/SP. E-mail:
jrafsantos@yahoo.com.br
A revista Annales foi fundada, em janeiro de 1929, por dois historiadores que
despontavam no campo dos estudos históricos, na universidade de Estrasburgo. No período
a instituição incorporava um grupo de cientistas sociais, que anos depois seriam inovadores
em suas áreas de pesquisa. Não foi nos primeiros números que a revista havia sido notada
internacionalmente, mas a partir deles que o projeto do grupo despontava como crítica
direta, e alternativa possível, à “Escola metódica” na França (CAIRE-JABINET, 2003).
Com os desdobramentos dos conflitos gerados pelas guerras mundiais ocorridas nas
primeiras décadas do século XX e as transformações do cenário político e econômico
mundial, que as críticas levantadas, a partir da revista (pelo então movimento gerado pela
Annales), passariam a ser reconhecidas, pelos historiadores franceses e de outros países. E
as inovações da revista e o projeto do grupo viriam a servir de inspiração em outras
iniciativas. Na década de 1940, com a criação da IV seção de estudos históricos
(posteriormente transformada em VI seção) da Escola Prática de Altos Estudos, de Paris, o
movimento inseria-se institucionalmente na França, começando a ser denominado como
uma ‘escola’ (HUNT, 1992: 1-11).
Quando a revista Annales foi fundada, Marc Bloch e Lucien Febvre já haviam
absorvido parte do debate que ocorria nas primeiras décadas do século XX, e estavam
lecionando na Universidade de Estrasburgo. M. Bloch havia passado por universidades
francesas e alemãs (entre 1908 e 1910) e se familiarizava com os métodos da lingüística e
da sociologia, além de publicar textos e artigos. L. Febvre se familiarizava com as
discussões da época e desenvolvia a sua crítica contra a ‘história dos vencidos de 1870’.
Embora ambos pretendessem constituir carreira acadêmica nas principais universidades
francesas, somente em 1933 L. Febvre conseguia uma vaga no Collège de France, e em
1936, M. Bloch alcançava uma vaga na Sorbonne. Enquanto M. Bloch recebia a influência
dos Anais de Sociologia e de E. Durkheim, L. Febvre a recebia da Revista de Síntese
Histórica e de H. Berr (REIS, 2000: 65-90). Assim, enquanto M. Bloch enfatizava em sua
análise, a estrutura sobre os eventos – como exemplo se poderia mencionar A sociedade
feudal (elaborada entre 1930 e 1940) –, L. Febvre enfatizava a análise estrutural de uma
época, a partir de acontecimentos ou personagens, tal como fez em Martin Luter, um
destino (de 1928) e em O problema do anacronismo no século XVI: a religião de Rabelais
(de 1942). Mas foi com Apologia da História ou o ofício de historiador, obra póstuma e
inacabada, publicada originalmente em 1949, que Marc Bloch se expressou de forma
sistemática sobre os limites e os campos da pesquisa histórica. Enquanto, numa outra base,
Lucien Febvre reuniu parte dos artigos e resenhas que publicou nos primeiros anos do
periódico, sob o título Combates pela história (de 1953), com o qual demonstrava sua
insatisfação em relação aos estudos históricos produzidos, particularmente na França, entre
o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Em especial, aqueles
elaborados pela historiografia (que de modo genérico se denominava) positivistai.
Na história do movimento, embora repudiassem a história dos acontecimentos,
voltada aos eventos políticos e construída, em parte, pela ‘escola histórica alemã’ e pela
‘escola metódica francesa’, não deixaram de aproveitar daquelas as suas contribuições à
pesquisa histórica, ao refazerem diagnósticos e interpretações sobre fontes ‘oficiais’, e
abrirem caminho para o estudo e a interpretação de fontes, até aquele momento, não
incorporadas ao corpus documental do historiador (BOURDÉ & MARTIN, 1983). É sabido
que as críticas sobre os metódicos (REIS, 1999) transparecem melhor do que as
contribuições que deixaram, porque para se colocarem como uma alternativa no estudo das
sociedades passadas, os Annales acabaram por silenciar o que de profícuo foi feito pela
historiografia oitocentista (BOUTIER & JULIA, 1998; SILVA, 2001). Se por um lado, a
historiografia ‘positivista’ fora repudiada pelos Annales (ainda que não de forma completa)
e seus elos sejam pouco visíveis num primeiro olhar, as relações, entre a historiografia
francesa, em especial à dos Annales, e o marxismo, aparecem também como amistosas.
Marx e o marxismo sempre foram heranças difíceis de serem incorporadas nas
universidades francesas. Mesmo trazendo questionamentos sobre as formas de se estudar as
sociedades passadas da maneira como os metódicos (e positivistas) as haviam pesquisado,
por trazerem junto ao seu suporte metodológico um projeto político de transformação
social, o marxismo também foi, por isso, criticado pelos Annales (LOPES, 2002;
CHAUVEAU & TÉTARD, 1999).
Nesse sentido, L. Febvre, que firmou seus combates contra a história metódica,
embora continuasse a pesquisar seus temas, mas sob outra ótica, junto com M. Bloch, que
desenvolveu uma abordagem mais estrutural e criticou as concepções sobre a história da
época, inovaram com algumas teses: a “história-problema”, a “história total”, a
“interdisciplinaridade”, o “alargamento do campo das fontes históricas” e o “fato histórico
como construção teórica” (REIS, 2000: 73-85). Por meio das contribuições que receberam
das Ciências Sociais, junto com outros integrantes do grupo nesse período, desenvolveram
áreas como a história econômica, a história social e a geo-história, que igualmente estavam
sendo desenvolvidas em outros países. Nesse momento, eram elaboradas diversas teses na
França, por meio de monografias regionais, em que as principais fontes pesquisadas foram:
documentos pessoais e correspondências, censos populacionais, registros paroquiais, fontes
literárias. Foi a época das grandes coleções sobre a história das civilizações, na França.
Sendo nas décadas de 1950 e 1960, proliferadas com as coleções de história social. Esse foi
o momento em que os fundadores da revista buscavam firmar novos campos de pesquisa e
ocupar postos de comando dentro dos meios universitários franceses, ainda dominados
pelos metódicos (BURKE, 2002). Nos anos 1930 a revista Annales, de Estrasburgo passa
para Paris. No entanto, os “Annales mudam porque em torno deles tudo muda também: os
homens e as coisas; em uma palavra, o mundo. Já o de [19]38 não era mais o de [19]29”
(MOTA, 1978: 174).
Dentro desse contexto social que surgiu o pensamento de Fernand Braudel, ao
buscar sintetizar as abordagens de L. Febvre e M. Bloch e desenvolver teoricamente uma
interpretação do tempo histórico, expressando-se de forma sistemática no artigo ‘História e
Ciências Sociais: a longa duração’ de 1958 (REIS, 1994).
Em 1958, com o nascimento da Quinta República, pode-se até falar de uma
verdadeira política das ciências sociais rumo à institucionalização. Esse impulso
representa um novo desafio para os historiadores (...) ao qual será preciso
responder tanto no plano institucional, em que a concorrência é acerba, quanto
no teórico, para mostrar a capacidade de adaptação da escrita histórica (DOSSE,
2001: 23).

Sobre a época, assim se expressou Fernand Braudel:


Em 1958 (...) expliquei-me minuciosamente nos Annales sobre a longa duração
(...) E não foi naquele ano que percebi a importância da longa duração, a qual,
se quiserem, descobri ou encontrei em meu caminho. Eu queria apenas, nessa
época distante [da década de 1950 e de 1982/3, quando escreveu o texto], depois
do desaparecimento de Lucien Febvre (...), orientar com certo vigor a revista
Annales numa nova direção, pois esta revista pretende estar, por vocação, na
vanguarda da pesquisa e da mudança, qualquer que seja o preço a pagar, o objeto
ou o setor a escolher, o erro a afrontar. Uma revista assim está condenada a
evoluir, a mudar. Orientei-a, portanto, para a longa duração, que tanto Marc
Bloch como Lucien Febvre não haviam privilegiado ou posto em evidência até
então. No entanto, ela se inseria virtualmente na linha de pensamento de ambos,
não obstante suas afirmações em contrário (BRAUDEL, 2002: 368-69).
Ele se forma em meio às influências de acontecimentos como as duas guerras
mundiais, e de sua experiência com a História Africana e da América do Sul. Com ele os
Annales avançam em seus combates, que se desdobrariam pela economia, sociologia e
antropologia. “Mas parece-me que Braudel encerrou (...) uma fase da escola dos Annales
ainda ligada às velhas tradições e às velhas estruturas universitárias” (LE GOFF, 1989:
215). Com ele o grupo obteve uma expansão pelas universidades e pelas áreas da história
serial, da história quantitativa e da história econômica. A história imóvel, nesse período, era
pouco comentada, desenvolvendo-se, essencialmente, na fase seguinte do grupo. “Com a
era F. Braudel, ocorre também a evolução para uma história cada vez mais imóvel [ainda
que a dinâmica dos tempos curto, médio e longo fosse a base das expectativas a serem
atingidas nas pesquisas, sob um viés econômico, mais até, talvez, do que social]. Ela
rompe, portanto, com a concepção da primeira geração de uma história-ciência da
transformação” (DOSSE, 2001: 22). Nessas áreas abria-se a oportunidade de análises que
visavam pesquisar sistematicamente fontes: cartoriais (inventários, testamentos,
nascimentos, casamentos, impostos, livros de abertura de firmas), correspondências, censos
populacionais, registros paroquiais como: registros de nascimento, casamento e morte, além
de um retorno aos documentos oficiais sobre novas perspectivas de análise (CARDOSO &
VAINFAS, 1997).
Entretanto, na década de 1960 e 70, em função do movimento estudantil de ‘Maio
de 1968’, do estudo das obras de Sigmund Freud (que resultaram nas análises de Lacan,
Deleuse e Derrida) e da expansão do estruturalismo (com Althusser, Passeron, Nicos
Poulantzas, e que culminou na obra crítica de Michel Foucault), houve uma revisão sobre
àquelas orientações (FERRY & RENAUT, 1988).

A agitação intelectual dos anos [19]70, no campo da historiografia, é fruto


também do desconforto provocado pelas práticas políticas do mundo socialista,
cujos vícios e impasses colocaram em discussão a mais bem-sucedida teoria
global da história, o marxismo, que marca profundamente o mundo intelectual
francês desde a primeira metade do século. No campo dos estudos históricos, é
nítida a influência da reflexão marxiana, mesmo em territórios não filiados a essa
proposta, como o grupo dos Annales. São inúmeros os estudos que mostram a
aproximação entre o marxismo e as metamorfoses da historiografia francesa a
partir da ruptura com a escola chamada positivista. Porém, os sinais mais nítidos
dessa aproximação estão nas próprias obras produzidas pelos Annales: a
hegemonia da abordagem econômico-social na primeira e segunda gerações, a
busca insistente da história total, a explicação estrutural como condição
indispensável à exploração de qualquer objeto de investigação. Essas posturas e
esses procedimentos metodológicos não podem ser desvinculados da atmosfera
marxiana que impregnava, direta ou indiretamente, a formação dos intelectuais
franceses (D’ALÉSSIO, 1998: 15-6).

Da análise sobre as fontes quantitativas, estudadas até aquele período sobre padrões sociais
e econômicos, passou-se a dar maior preferência aos estudos de longa duração de modo a
perceber a psicologia social, a mentalidade e o imaginário de sociedades passadas
(TÉTARD, 2000). Destacando-se, nesse sentido, as atitudes culturais, mais que os quadros
sócio-econômicos.
A nova tarefa do historiador já não consistirá em ressaltar as acelerações e
mutações da história, mas sim os agentes de reprodução que permitem a
repetição idêntica dos equilíbrios existentes (...) História se escreve agora no
plural e sem maiúscula: ela renuncia a realizar um programa de síntese para
melhor se desdobrar com vistas aos múltiplos objetos que se oferecem a seu
olhar sem limites (DOSSE, 2001: 26-9).

Se no período de 1929 a 1946, e no de 1946 a 1968, tal perspectiva não fazia parte da
maioria dos trabalhos publicados (e no corpo central das orientações do grupo), a partir do
final dos anos 60, um grande número de pesquisas, foram desenvolvidas sob a perspectiva
de estudo das mentalidades e do imaginário das sociedades passadas (LE GOFF, 1998).
Embora a maior parte desses trabalhos estudasse a cristandade ocidental na época
medieval, houve trabalhos que pesquisaram o desdobramento daquelas mentalidades nos
séculos XVI, XVII e XVIII, como foi o caso das obras de Robert Mandrou e Phillipe Ariès,
pioneiras na recuperação do estudo das mentalidades de sociedades passadas, nos anos
1950 e 1960 na França, porque inspiraram uma retomada em diversas pesquisas sobre essa
linha de estudos históricos – que haviam sido anteriormente produzidos por Marc Bloch e
Lucien Febvre, ainda que sob perspectivas distintas (GURIEVITCH, 2003). Nos anos 1960
e 70, os estudos sobre a história das mentalidades e a história do imaginário social
contribuíram no desenvolvimento de metodologias de pesquisa, com novos padrões de
análise sobre as fontes quantitativas, seriais, demográficas, fundamentalmente produzidas
em cartórios e paróquias. Nessa fase muitos trabalhos se baseavam e desenvolviam
metodologias para a história oral (VAINFAS, 2002: 13-51). Embora nesse período a revista
não possuísse mais uma direção centralizadora, mas sim colegiada, o grupo teve grande
repercussão na mídia e com o público francês e de outros países.
Para Rogério Forastieri da Silva (2001), ao mesmo tempo em que, muitas vezes,
não ocorria um debate, no campo historiográfico internacional entre grupos franceses,
alemães, italianos, norte-americanos e ingleses, algumas vezes até se desconhecendo uns
aos outros, o sucesso atingido pelas primeiras fases da revista Annales fez com que, grosso
modo, a terceira geração do grupo construísse um relato pertinente aos seus objetivos, tanto
que os justificassem dentro e fora da França.
Assim, levanta-se a possibilidade de fabricação de uma imagem na década de
1970 sobre os Annales que viria a constituir-se como uma tradição. Destarte, conforme
havia dito Eric Hobsbawm, na introdução do livro: A invenção das Tradições, “muitas
vezes ‘tradições’ que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando
não são inventadas”. Assim:
... por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente
reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza
ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento
através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em
relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade
com um passado histórico apropriado (...). Contudo, na medida em que há
referência a um passado histórico, as tradições ‘inventadas’ caracterizam-se por
estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial. Em poucas palavras,
elas são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a
situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição
quase que obrigatória (HOBSBAWM, 1997: 9-10).

Para este, a invenção de uma tradição, que envolve a elaboração de práticas e de


um relato fundador que se repita no tempo, ocorre, fundamentalmente, quando os atores
sociais que fazem parte deste relato fundador deixam de desempenhar as suas funções.
Segundo Ângela Alonso:

É da natureza dos movimentos intelectuais e políticos inventarem rótulos de


identidade, como estratégia de diferenciação, bem como uma tradição, um
panteão de heróis e obras de legitimação de suas posições, especialmente em
períodos de mudança social (ALONSO, 2002: 32).

Os movimentos intelectuais e políticos, portanto, ou inventam uma tradição por


meio de um repertório discursivo que os diferenciem de outros grupos, ao mesmo tempo em
que delineiam uma pretendida originalidade teórica e prática, com obras e manifestos de
seus atores sociais originários, ou elaboram retrospectivamente uma tradição discursiva
como forma de definir campos de atuação, em meio às obras e autores das fases iniciais do
movimento, para os quais se preocupam em situar objetivos paralelos, com base numa
identidade comum.
Embora houvesse, no início do século XX, movimentos intelectuais propondo
renovações no campo da pesquisa histórica em vários países, tanto dentro como fora das
universidades, costuma-se verificar (no Brasil e em outros países), preferencialmente,
aquelas proporcionadas pela historiografia francesa. Para tanto, ressalta-se que a Nouvelle
Histoire, isto é, a História sob a influência das Ciências Sociais foi uma criação francesa,
fundamentalmente desenvolvida, a partir da fundação da revista Annales, em 1929, por
Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956), mediante uma inovação quanto ao
conceito de tempo histórico (REIS, 1996; WALLERSTAIN, 1996).
O projeto original de uma nouvelle histoire não partiu de historiadores, mas de
sociólogos durkheimianos. Ao adotarem o ponto de vista desses sociólogos,
traduzindo-os para o discurso histórico, os historiadores dos Annales romperam
com a influência até então predominante da filosofia sobre a história (REIS,
2000: 37).

Antes destes haveriam discussões, principalmente efetuadas entre sociólogos e


antropólogos, sobre as formas como deveriam ser interpretadas as sociedades e os homens
no tempo. Todavia, supõe-se que foi com àqueles pesquisadores, fundadores e
colaboradores da revista Annales, que os estudos históricos efetivamente teriam sido
repensados, e em função disso abertas possibilidades de ‘novas’ leituras sobre o passado.
Para estes, a concepção iluminista sobre o tempo histórico, no século XVIII, e sua recepção
no século XIX pelas principais “escolas históricas” do período: o marxismo, o positivismo
e o historicismo viram as sociedades e os homens apenas enquanto sujeitos históricos
(REIS, 1999). Elas se limitariam a perceber as ações humanas na dinâmica do processo
histórico, sem com isso notarem a possibilidade de verificar naqueles atores sociais, objetos
de pesquisa.
A matriz da revolução historiográfica surgida com a revista dos Annales foi (...)
a elaboração de uma nova concepção de tempo histórico. A história tradicional
foi questionada no momento em que o tempo curto, por ela praticado, foi
considerado insuficiente para a explicação da experiência coletiva dos homens.
Os fundadores da revista e seus seguidores tomaram essa questão como o grande
tema da história e seus ecos perduraram durante décadas (D’ALÉSSIO, 1994:
129-30).

Entretanto, a revolução historiográfica conduzida a partir de uma ‘nova’


concepção de tempo histórico, não manteve apenas continuidades entre os membros das
várias fases do movimento, mas houve também redirecionamentos sobre a interpretação do
tempo. A interpretação do tempo histórico de Lucien Febvre, inaugurada entre as décadas
de 1920 e 1930, não foi a mesma de Fernand Braudel, desenvolvida nos anos 40 e 50, e que
não foi a mesma de Emmanuel L. R. Ladurie, construída nos anos 60 (REIS, 1994).
Se ainda hoje se ressalta os méritos do grupo em torno da revista Annales, que
surgiu naquele contexto, foi, em parte, pelo sucesso que obtiveram depois da segunda
guerra mundial, em função do conjunto de métodos, problemas e fontes propostas ao campo
de pesquisa histórica, quando renovaram intercâmbios entre a História e as Ciências
Sociais, por meio de inovações à interpretação do tempo histórico (REIS, 2000: 29). De
uma abordagem ‘acontecimental’, voltada para os fatos que irrompem em curto espaço de
tempo, antes praticada para estudar homens (que ocupavam funções de destaque nas
instituições que circunscreviam o Estado) e sociedades, passou-se a rastrear movimentos
duradouros, por meio de uma abordagem estrutural (REIS, 2003). Por esse e outros motivos
foram posteriormente interpretados como uma das grandes contribuições, na época, para a
pesquisa histórica. Todavia, se as contribuições que envolvem a “Escola dos Annales” em
suas diversas fases é notoriamente observada, os motivos que levaram a elaboração de um
discurso fundador sobre a história dos Annales foi ainda muito pouco questionado (SILVA,
2001).
Em função da organização institucional e do sucesso alcançado pelos fundadores
da revista, na sua fase do pós-guerra, que houve a elaboração de um relato fundador sobre a
história dos Annales, principalmente, por parte da terceira geração do grupo. Tal relato
indicava que a ‘Nova História’ seria uma criação, essencialmente, francesa, uma vez que
sua expansão estaria fortemente vinculada com os projetos do grupo desde a fundação do
periódico (DOSSE, 2001; 2003). No entanto, os desdobramentos da ‘Nova História’ vieram
a demonstrar que a sua história estava comprometida com um determinado relato da
história geral da historiografia no qual os elos importantes seriam: da ‘história positivista’ à
‘escola dos Annales’ e em direção a ‘Nova História’ (SILVA, 2001).
Para Carlos Antonio Aguirre Rojas:
... mas allá de la continuidad formal que se establece a partir de la publicación
periódica u regular de la revista, durante casi toda su existência, existen sin
embargo claras divergências en torno a los sucessivos proyectos intelectuales
que la han animado, y que dándole vida y continuidad, la han utilizado al
mismo tiempo como foro de proyección y como mecanismo de vinculación y
de debate côn el médio académico exterior (AGUIRRE ROJAS, 1995: 18).

De fato, segundo Daniel Roche (PALLARES-BURKE, 2000: 153-85), a ‘Escola


dos Annales’ não era uma realidade, mas uma fabricação dos anos 80, pois, até meados da
década de 1970 não era assim designada.
Havia, certamente, um movimento ao redor da revista, porém, não era uma
escola; ou seja, não havia uma vontade de definir objetivos muito precisos,
mas, ao contrário, uma grande abertura, sendo a principal a abertura para as
ciências sociais. Ora, tal abertura era muito diferente da que caracterizava os
estudos históricos que se faziam a essa época na Sorbonne, onde havia grandes
mestres representativos da tradição erudita, letrada, positiva... (2000: 158).

Provavelmente, apenas na década de 1970, que se inauguraria, na França, por


meio de projetos-manifestos a ‘Nova História’, sob a direção de Jacques Le Goff e Pierre
Nora, culminando com a organização, em três volumes, da obra: Fazer História, traduzida
para o português (no Brasil), simplesmente, como História, com os subtítulos: novos
problemas, novos objetos, novas abordagens. “Se nos autores ou no espírito da obra
freqüentemente for encontrada a marca da pretensa escola das Annales, isso se deve ao fato
de a nova história ser bastante devedora a Marc Bloch, a Lucien Febvre, a Fernand Braudel
a todos os que continuam a inovação por eles iniciada” (LE GOFF & NORA, 1976: 11). “A
elaboração desses três volumes (...) passou a história dos Annales para um público mais
amplo (...). Não bastava fornecer uma imagem da disciplina tal como ela era; era preciso
pensar em que ela estava prestes a tornar-se” (LE GOFF, 1989: 222). Naquela coletânea
participaram 33 pesquisadores, sendo 30 dos quais parisienses, apenas um provinciano,
ainda que este se trate, nesta época, de Paul Veyne, que viria ser professor do Collège de
France e dois estrangeiros, Jean Starobinski (professor em Genebra) e H. Zerener
(professor em Harvard). Entre os pesquisadores franceses, 11 estavam na VI seção da
Escola Prática de Autos Estudos, então administrada por Jacques Le Goff (substituindo a
Fernand Braudel, que alguns anos antes havia solicitado a sua aposentadoria), outros 12
vinham das diferentes universidades parisienses, que surgiram da fragmentação que se
iniciava com o turbilhão de acontecimentos que envolveram o movimento estudantil em
Paris no ano de 1968, sendo que: de Paris – I vieram 4 pesquisadores; de Paris – IV, 2; de
Paris – VII, 3; de Paris – VIII, 3. Houve ainda aqueles que estavam em instituições de
pesquisa, muito respeitadas, como: do Collège de France, 3; do CNRS outros 3 e do
Instituto de Estudos Políticos mais 1 pesquisador. A maioria estava na faixa de 35 a 40 anos
de idade (BOUTIER & JULIA, 1998: 21-61).
No conjunto eram jovens pesquisadores, alguns já consagrados (em suas áreas de
pesquisa) dentro e fora da França, mas nem por isso aquele elenco de intelectuais estava
completo, seja por parte daqueles que contribuíam diretamente com o periódico, seja entre
os que estavam inovando campos da pesquisa histórica. A ausência de Fernand Braudel,
embora muito notada no período, talvez se explique pela alteração de projetos no
direcionamento do periódico, ruptura de projetos então efetuada por aqueles que assumiram
a administração da VI seção da dita Escola Prática de Autos Estudos e da revista Annales.
Por outro lado, Pierre Vilar, encontrava-se entre aqueles que faziam parte de um elenco de
intelectuais que estavam na faixa dos 50 aos 60 anos de idade e defendiam posições
políticas e metodológicas distintas – como neste autor eminentemente marxista – do
conjunto de pesquisadores que compunham a obra coletiva Fazer História. De fato, este
autor, assim interpretou o grupo:
A palavra ‘Escola’ parece significar que há uma doutrina ensinada e imposta por
mestres. Ora, não foi, de forma alguma, o que se passou em torno da revista dos
Annales. Essa revista simplesmente pediu aos historiadores – dentro do espírito
da síntese histórica, já inaugurado no início do século [XX] – que se ocupassem
das sociedades em geral, tanto de suas bases materiais quanto de seu coroamento
intelectual, sentimental e ideológico, e que olhassem se existem, entre esses três
níveis, relações a estabelecer, problemas a resolver. Jamais uma recomendação
foi feita pelos Annales para que se tratasse dessa ou daquela maneira um
problema colocado. Havia, é verdade, grandes mestres (...) Ocorre que os
Annales foram conhecidos, sobretudo, por suas exclusões (...) Houve, portanto,
um espírito dos Annales, mais que uma escola; e, sobretudo, jamais existiram
‘capelas’ (...) Ou seja, esta abertura dos Annales a outras disciplinas fazia parte
de suas características (...) Além disso, existe em torno da Escola dos Annales
toda uma atmosfera ideológica que faz parte da história de nosso tempo
(D’ALÉSSIO, 1998: 64-5).

Por fim, resta notar a ausência de autores como Maurice Agulhon, Michel Vovelle, Philippe
Ariès e Alain Gerreau, que estavam abrindo campos, que nos anos subseqüentes se
tornariam férteis à pesquisa histórica, e apenas nos anos 1980 foram incorporados ao
movimento dos Annales.
Desde os anos 1970, pelo menos, que o hábito, de tempos em tempos, na França,
de se voltar a História e a sua escrita (com vistas a propor quais os caminhos que se
tornariam pertinentes ao pesquisador e quais procedimentos de análise das sociedades
passadas deveriam ser revistas na pesquisa histórica), se tornou recorrente, como uma
estratégia de constituição de um discurso historiográfico, em busca de hegemonia nos
setores e lugares produtores de pesquisas históricas, dentro e fora da França, isto é, na
própria história das historiografias internacionais (BÉRIDA, 1995; DOSSE, 2003).
Até então, a ‘Nova História’, como foi efetivada, era apenas uma expectativa e
não um caminho a se chegar. Nos períodos anteriores os projetos foram distintos. Quando
Fernando Braudel (1902-1985) dirigiu o periódico, entre 1956 e 1968, desenvolviam-se
projetos junto ao grupo dos Annales, que viriam a possuir vínculos com a ‘Nova História’,
mas eram essencialmente divergentes desta. Conforme disse o próprio Fernand Braudel nos
anos 1970, sobre o movimento:
...apesar de sua vivacidade [os Annales], nunca constituíram uma escola, no
sentido estrito, isto é, um sistema de pensamento fechado sobre si mesmo. Ao
contrário. A senha de entrada é a paixão pela história, nada mais – porém é
muito –, e, confundindo-se com essa paixão, igualmente a pesquisa de todas as
suas novas possibilidades, a própria mudança da problemática segundo as
necessidades e as lógicas do momento. Porque passado e presente mesclam-se
inextricavelmente. Sobre esse ponto, todos os diretores sucessivos dos Annales
estão de acordo(BRAUDEL, 2002: 30).

Por certo, esta não foi à primeira vez que Fernand Braudel analisou o grupo ao
redor da revista Annales. Em 1957, logo após o desaparecimento de Lucien Febvre da
direção do periódico (ocorrido em 1956), Braudel faria o seguinte comentário no primeiro
número da revista daquele ano:
En moins de trente ans de leur propre histoire, les Annales de Marc Bloch et de
Lucien Febvre ont connu un essor et un reyonnement exceptionnels. Elles ont
oussi connu d’exceptionnelles difficultès. La mort tragique de Mar Bloch en
1944; il y a quelques mois à peine, la mort brusque de Lucien Febvre. Mais les
Annales se doivent de continuer (...) Ni Marc Bloch, ni Lucien Febvre n’ont en
la volanté ou l’illusion d’avoir fondé une Ecole, avec ses formules et ses
solutions (BRAUDEL, 1957: 1)ii.

Naquele editorial intitulado ‘Os Annales continuam’, F. Braudel falava das características
dos Annales no tempo de Febvre e Bloch, e ressaltava que não tiveram a pretensão de
limitar o movimento em uma escola. Para ele esta idéia foi, a princípio, supostamente
elaborada com a fundação da IV (depois VI) seção da Escola Prática de Autos Estudos.
Mas apenas retrospectivamente teria sido construída.
Entretanto, se a idéia de ‘escola’ para os Annales foi muito criticada, não foram
poucos os autores que adotaram esta tradição discursiva para pensar o desenvolvimento do
movimento ao redor da revista Annales, em suas diferentes fases, tanto na França como em
outros países. Traian Stojanovitch (1976) foi um dos pioneiros a interpretar o grupo dos
Annales enquanto um paradigma, caracterizando-o dentro do movimento geral da nouvelle
histoire, na França, em quatro fases: a) de 1900 a 1920, cujo período foi caracterizado
genericamente de fase de ‘crise da consciência histórica’, em que houve a criação de
diversos periódicos, em muitas áreas do saber, e de expansão de debates nas Ciências
Sociais, criticando-se procedimentos de pesquisa da ‘escola histórica alemã’ e da ‘escola
metódica francesa’, principalmente nos Anais de Geografia, nos Anais de Sociologia e na
Revista de Síntese Histórica; b) de 1929 a 1946, com a fundação da revista “Annales de
História Econômica e Social” e dos combates travados por Marc Bloch e Lucien Febvre,
junto com outros intelectuais daquele período, pois, muitos dos quais não fizeram parte do
periódico recém inaugurado e nem por isso deixaram de trazer grandes contribuições à
pesquisa histórica; c) de 1946 a 1968, com a expansão institucional, a partir da VI seção da
Escola Prática de Autos Estudos e a denominação do periódico, agora como: “Annales.
Economias, Sociedades, Civilizações”, tendo a sua frente Fernand Braudel na
administração do periódico, e em instâncias universitárias. Segundo este autor o período
posterior à saída de F. Braudel, junto aos acontecimentos de ‘maio de 1968’, na França,
resultaram numa revisão das metas e orientações, até então, seguidas internamente pela
revista.
Mesmo entre aqueles que herdaram a tradição historiográfica dos Annales mais
diretamente, como foi o caso de Jacques Revel (1989, pp. 13-41), isso não o privou de ter
uma visão crítica sobre o movimento. Quando, em 1979, publicou um artigo intitulado
‘História e Ciências Sociais: os paradigmas dos Annales’, a princípio uma crítica dirigida à
interpretação de Stojanovich, procurava revelar as peculiaridades do movimento,
aproveitando os ensejos da comemoração dos cinqüenta anos de fundação da revista.
Ressaltava a contribuição da Sociologia durkheimiana para o desenvolvimento das
propostas do movimento na década de 1930, e demonstrava a variedade de procedimentos
de pesquisa, então utilizados pelos membros do movimento. Já na década de 1990, em duas
entrevistas concedidas a professores universitários do Brasil, assim se referiu sobre os
Annales:
... a Escola dos Annales não é propriamente uma escola, mas ao mesmo tempo
sei que há traços reconhecíveis em sua produção, que alias tem se transformado
ao longo do tempo, renovando a sua agenda (...) Por outro lado, os Annales
renovaram-se inúmeras vezes (...) o que não significa admitir uma falta de
coerência. Diria que se trata de algo mais plástico, preocupada sempre em pensar
as relações entre História e Ciências Sociais (...) No entanto, de uns 20 anos para
cá, muitas coisas mudaram nos Annales e também, é claro, em torno da revista
(...) Gostaria de começar dizendo (...) que não existe, no meu entender, ‘a escola
dos Annales’, enquanto muitos utilizam esse modo cômodo de chamá-la. O
movimento historiográfico fundado pela revista de Bloch e Febvre baseou-se em
convicções gerais ambiciosas e, ao mesmo tempo, simples: por um lado, a de que
a história é uma ciência social, o que não é evidente em muitas tradições
historiográficas. E por outro lado, a de que as disciplinas que compõem as
ciências sociais tendem a se cruzar, a se confrontar, a se enriquecer mutuamente
(...) Os Annales não pararam de redefinir sua posição, ao mesmo tempo em
função da evolução interna da disciplina-mãe, a história, e também porque as
relações entre a história e as ciências sociais (...) mudaram (DAHER, 2001: 192-
3 e 201-2).

Todavia, as reflexões desse autor, compõem uma análise retrospectiva sobre a


recepção de um discurso construído nos anos 1970 e 80. Pois, a história escrita sobre os
Annales pelos integrantes da ‘terceira geração’ do grupo e que, necessariamente, visava
demonstrar o desenvolvimento de um pensamento que se desdobraria e ao mesmo tempo
justificaria o projeto historiográfico do grupo, depois da década de 1960, foi também à base
de um relato fundador, que atingiu um consenso relativo mesmo em parte significativa dos
maiores críticos da ‘Nova História’ (SILVA, 2001).
Por outro lado, George G. Iggers (1988) caracterizou o movimento em duas fases:
uma anterior a 1945, quando esteve em efervescência estudos com aspectos mais
qualitativos, e um segundo momento, para o qual as pesquisas passaram a ter uma
abordagem mais quantitativa, fundamentadas nos estudos de F. Braudel e E. Labrousse.
Peter Burke (1997), ao estudar a história do movimento, dividiu-a em três períodos: a) de
1920 a 1945, quando ainda era pequeno e não ocupava a hegemonia no campo intelectual
francês e seus projetos foram mais subversivos; b) um segundo, de 1946 a 1967,
aproximadamente, quando de discurso subversivo passa a ser o hegemônico, do ataque aos
metódicos (positivistas) franceses, que ocupavam os cargos de comando e do discurso
vigente nas universidades e institutos de pesquisa na França, à defesa das criticas recebidas
pelos remanescentes daquela concepção da pesquisa histórica, tanto quanto a de
profissionais vindos da antropologia e das ciências sociais; c) e um terceiro momento que se
iniciaria com os desdobramentos provocados pelos movimentos estudantis de 1968, nas
universidades francesas (e em outros países), ao trazerem a tona ‘novos sujeitos e fontes’ a
pesquisa e ao discurso historiográfico. André Burguière (1993: 49-55), ainda que não
expressasse propriamente uma divisão no conjunto do movimento (embora tenha notado
mudanças sucessivas entre seus atores principais, no comando administrativo e intelectual
do grupo), vinculou-o a “escola dos Annales”: a revista criada em 1929; a rede de
intelectuais, colaboradores e simpatizantes, que se formou ao redor do periódico e se
transformou, depois da Segunda Guerra Mundial, em instituição universitária, com a VI
seção da Escola Prática de Autos Estudos em Paris; a concepção da história, nas suas
exigências metodológicas, seus objetos e suas relações com as outras ciências do homem.
José Carlos Reis (2000: 91-146), a partir das contribuições dos autores
mencionados acima, assim definiu as fases da ‘Escola dos Annales’: a) de 1929 a 1946, b)
de 1946 a 1968; c) e de 1968 a 1988 [?], período sob a influência inicial do movimento
estudantil de ‘maio de 1968’, que obrigou a reformulação da orientação da revista e a
reorganização institucional. Contudo, vislumbrou também o período que antecedeu a
criação do periódico, como um momento de formação do ‘espírito’ dos Annales, do que se
denominou, de forma genérica, como nouvelle histoire no campo intelectual francês e que,
depois dos anos 1950, desdobrou-se em outros países sob a forma de uma ‘Nova História’.
Para ele, depois de 1988, houve redefinições quanto às fronteiras da interdisciplinaridade e
uma revisão sobre os campos de pesquisa, que culminaram com a mudança no título do
periódico para ‘Annales. História, Ciências Sociais’, em 1994, mas esse momento do grupo
ainda não estaria muito bem definido.
Embora ainda estejam pouco definidas as fronteiras de atuação dos Annales, para
este período, os membros do grupo, dentre os quais, André Burguière, Jacques Le Goff e
Jacques Revel, participantes do comitê de direção da revista, pontuaram, no editorial de
1994, entre os objetivos do periódico: a) o estudo de processos de construção do
conhecimento e das relações sociais; b) e a análise do tempo atual. Foi Roger Chartier quem
ofereceu um painel bastante coerente sobre o clima dos estudos históricos anos antes do
redirecionamento da revista, com as seguintes palavras:
O editorial da primavera de 1988 da revista Annales conclamava os historiadores
a uma reflexão a partir de uma dupla constatação (...) ele afirmava a existência
de uma ‘crise geral das ciências sociais’, percebida no abandono dos sistemas
globais de interpretação (...) o texto não aplicava à história a integralidade de um
tal diagnóstico (...) A história era então vista como uma disciplina ainda sadia e
vigorosa, atravessada, no entanto, por incertezas devido ao esgotamento de suas
aliadas tradicionais (como a geografia, a etnologia, a sociologia) e ao
apagamento das técnicas de tratamento como modos de inteligibilidade que
davam unidade a seus objetos e a seus procedimentos (CHARTIER, 2002: 61).

Portanto, muitas foram às críticas subseqüentes sobre a terceira geração dos


Annales e a ‘Nova História’ (COUTAU-BEGARIE, 1989). Tais críticas – efetuadas desde a
década de 1960, quando ocorreu uma renovação no movimento, em relação aos seus
projetos – podem ser uma das razões para a necessidade da elaboração de um relato
fundador sobre a história dos Annales. Nesse período os combates do grupo foram mais
internos, provavelmente porque não houve uma linha mestra a ser seguida como nos
momentos anteriores, em função das direções centralizadoras (DOSSE, 2004). Um outro
motivo está atrelado com o próprio sucesso dos Annales dentro e fora da França, que veio a
criar a necessidade de elaboração de uma identidade comum ao grupo em todas as suas
fases: daí a denominação de diferentes gerações, daí também a construção da imagem de
uma ‘escola’ em constante processo de desenvolvimento. Ressaltava-se, nesse sentido: os
grandes debates travados pelos administradores do periódico, em suas diferentes fases; as
características do diálogo entre História e Ciências Sociais; os acontecimentos chave que
repercutiram na reorientação e no posicionamento do grupo perante o estudo dos homens e
das sociedades passadas e, enfim, a delimitação das abordagens que acompanhavam os
‘novos’ objetos e os ‘novos’ problemas, levantados a partir das próprias transformações
sociais, observadas pelos ‘novos’ historiadores, em suas pesquisas. (Quadro – 1).
Quadro n. 01: Distribuição das diferentes fases do movimento da Nouvelle Histoire francesa,
representada pelos membros das diversas gerações da ‘escola dos Annales’.

1929-45 – 1ª Geração 1946-68 – 2ª Geração 1968 – 1988 (?) – 3ª 1988/9 (?) – 4ª Geração.
Geração.
Principais Lucien Febvre (1878-1956) Fernand Braudel (1902-1985)Jacques Le Goff; Marc Jacques Revel; André
representantes Ferro; Emmanuel L. R. Burguière; Roger Chartier.
Marc Bloch (1886-1944) Ladurie.
Colaboradores H. Pirenne; M. Halbwachs; H. E. Labrousse; P. Vilar; R. P. Nora; M. Vovelle; G. J-C. Schmitt; F. Hartog; M.
Hauser; P. Monbeig; A. Mandrou; Ch. Mozaré; etc. Duby; D. Roche; P. Ozouf; R. Remond; etc.
Demageon; etc. Chaunu; F. Furet; etc.
Inspiradores/ Paul V. de La Blache; Claude Lévi-Strauss; Michel Foucault; Michel De Pierre Bourdieu; Norbert Elias;
Discussões Ferdinand Saussure; Karl H. Marx; Certeau; Peter Burke; Louis Marin;
Ch. Seignobos; Ch. Langlois; Maurice Dobb. Paul Veyne; Sigmund Hayden White; Carlo
Emile Durkheim. Freud; Jules Deleuse; Lois Ginzburg; Geovani Levi; R.
Althusser; Nicos Polantzas; Willians; Lynn Hunt;
Phillipe Ariès; Eric
Hobsbawm; Paul E.
Thompson; Perry Anderson;
Cornelius Castoriadis;
Michele Perrot.
Acontecimentos I e II Guerra Mundiais; Crise Congressos internacionais; Movimento estudantil de Queda do muro de Berlim em
da bolsa de valores em 1929; Inauguração de centros de 1968; Feminismo; 1989; Fim da URSS;
Questionamentos sobre as pesquisa; avanços nos Homossexualismo; Globalização;
Filosofias da História; combates pela história; movimento negro e das Questionamentos de regimes
Discussões sobre as origens do minorias; políticos; conflitos religiosos;
Capitalismo;
Propostas História-problema; História Simultaneidade de tempos Um tempo imóvel no Renovação do campo político;
total; Interdisciplinaridade; (curto, médio, longo); A social? Debate sobre o estilo do
Alargamento do campo das história total é a história das História Total ou História Historiador (narrativa);
fontes históricas; O fato civilizações? Geral? Revisão dos estudos
histórico como construção biográficos;
teórica;
Novas Áreas História Econômica e Social; História Econômica; História História das Mentalidades; Nova História Cultural;
Geo-história; Quantitativa; História História Imóvel; História História das representações
Demográfica; História Serial; Antropológica; História sociais; Nova História Política;
Oral; História do Nova História Biográfica;
Imaginário;
Disciplinas Geografia; Sociologia; Economia; Geografia; Psicologia Social;
Auxiliares Psicologia; etc. Antropologia; etc. Lingüística; Crítica
Literária; etc.
Títulos do Annales de História Annales. Economias, Annales. História, Ciências
Periódico. Econômica e Social (1929-43) Sociedades, Civilizações Sociais (1994)
(1946-93)
Fontes Documentos pessoais; Diários; Registros Paroquais Entrevistas Fontes Literárias; Censos
Correspondências; Fontes (nascimentos, batismos, Livros (historiografia) eleitorais; populacionais;
Literárias; Censos casamentos, óbitos) Censos populacioanais; Entrevistas; etc.
populacionais; Fontes Registros Cartoriais Registros paroquiais e
Oficiais; etc. (inventários, testamentos, Cartoriais; etc.
nascimentos, casamentos,
óbitos)
Censos populacionais, etc.
Fontes: DOSSE, 1994; REIS; 1994; 1999; 2000; BURKE, 1997; 2002; 1992; AGURRE ROJAS, 1999; 1995;
BOUTIER & JULIA, 1998; FONTANA, 1986; HOBSBAWM, 1998; 2002; SILVA, 2001; STOJANOVICH,
1976.

Com base no quadro acima se nota, de imediato, uma contradição entre o discurso
e a prática de pesquisa daquele grupo que dirigiu a revista Annales, depois de 1968, e que
está relacionada à própria história escrita por eles sobre o movimento (que envolveu
diversos grupos ao redor do periódico). Há em toda história dos Annales (que vai da criação
do periódico até seu momento atual) uma tradição de rupturas em meio a continuidades,
isto é, a substituição de discursos, de ‘uma geração’ sobre a outra ao se contraporem
posições, mas que se desdobra dentro de um mesmo projeto, construído, principalmente,
por Marc Bloch e Lucien Febvre. Ou seja, se na prática de pesquisa historiográfica dos
integrantes que compunham o grupo nos anos 1960 e 1970 existia uma crítica sobre a idéia
de progresso material, no relato sobre a história do movimento dos Annales a idéia de
progresso foi adequada naquele discurso, na medida em que a história da historiografia
referida por aqueles, desdobrava-se da ‘escola histórica alemã’ e da ‘escola metódica
francesa’ à ‘escola dos Annales’, até vir, enfim, culminar com a ‘Nova História’ francesa
dos anos 60 (SILVA, 2001).
Por outro lado, quando se volta ao período inicial da revista, entre as décadas de
1930 e 40, nota-se (no pouco que é ainda conhecido da correspondência entre Lucien
Febvre e Marc Bloch) não uma afinidade total entre os editores e outros membros do grupo,
mas uma grande diversidade de pensamentos. Não menos controvertidas foram as relações
travadas entre Fernand Braudel e outros intelectuais colaboradores e críticos do movimento,
no período posterior a Segunda Guerra Mundial, bastando para tanto, apenas como um
exemplo entre outros possíveis, se verificar o clima amistoso entre Braudel e Robert
Mandrou depois da morte de Lucien Febvre, em 1956, no setor administrativo do periódico;
ou ainda entre os debates públicos de Braudel com Claude Lévi-Strauss.
Enfim, ainda existe a sobreposição de uma representação construída sobre o
grupo, aos fatos ‘vividos’ por aqueles que administraram o periódico em suas primeiras
fases. A tal ponto, que se passou a lembrar de Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand Braudel
e dos Annales daquele momento, a partir das obras escritas como uma referência aos
pioneiros e como uma forma de justificar as posições ulteriores do periódico. Portanto, as
obras que compuseram o relato ‘oficial’ sobre os Annales e que são a representação de
eventos e circunstâncias históricas precisas, atingiram um consenso relativo abrangente a
ponto de suplantar àqueles fatos precisos. Evidentemente existe a representação, mas não se
pode esquecer as circunstâncias históricas que lhe deram origem. Por que a representação
silenciou a história da qual ela se originou? Porque a história é escrita segundo relações de
força retórica e poder de ação (GINZBURG, 2002), e o poder emanado por aqueles que
falam de determinados lugares sociais, e que, portanto, são reconhecidos por seus pares, se
torna não apenas o discurso ‘oficial’, mas também, a própria história existente daquelas
circunstâncias e eventos do passado (CHAUVEAU & TÉTARD, 1999).
Alinha-se, desse modo, a idéia de ‘escola’ nos Annales, não apenas, uma
correspondência direta ao periódico criado em 1929, mas também, imagens, em torno das
quais, construiu-se sobre a direção da VI seção da Escola Prática de Autos Estudos que
estaria, desde, pelo menos, a década de 1940, envolvida sobre uma perspectiva
interdisciplinar, e, portanto, sendo um canal e um veículo de circulação das idéias
desenvolvidas no interior do grupo, em cada uma de suas diferentes fasesiii.
Todavia, se as circunstâncias históricas viabilizam o aparecimento de formas de se
escrever a história, ao mesmo tempo em que se questionava formas anteriores, deve-se
notar, que por traz dos procedimentos de pesquisa anunciados como inovadores, existia
todo um projeto político, que não apenas procurava camuflar as contribuições de projetos
historiográficos anteriores, mas, muitas vezes, reduzir outras inovações que ocorriam de
modo simultâneo em outros países (DOSSE, 2003, 2004), na tentativa de criar uma
hegemonia nacional e internacional, no campo historiográfico.
Portanto, a história sobre o movimento dos Annales até agora conhecida foi à
história construída a partir daquele discurso historiográfico que se tornou hegemônico no
interior do grupo, na década de 1960, e que coexiste junto a uma história ainda pouco
conhecida sobre os Annalesiv. Pois, esta só virá a ser escrita na medida em que o período de
memória coletivav que ainda cerca o grupo se dissipar. Porque torna a escrita da história
ainda emotiva e comprometida com certas posições, por parte, essencialmente, dos
membros ainda vivos da ‘terceira geração’ e que, em alguns casos, continuam a ocupar
cargos administrativos importantes no periódico e na VI seção da Escola Prática de Autos
Estudos em Ciências Sociais. E mais, daí então, com a publicação de artigos, manuscritos e
correspondências trocadas entre os membros que compunham o movimento nas suas
primeiras fases, será viável a elaboração de outros relatos sobre a história dos Annales, e
que procurem, além de complementar os existentes, dar uma melhor compreensão sobre a
história do grupo em todas as suas fases, demonstrando os pontos convergentes e os
distanciamentos, entre a ‘história vivida’ pelas pessoas que fizeram parte do movimento,
nas duas primeiras ‘gerações’, junto à ‘terceira geração’ que passou a escrever a ‘história
conhecimento’ a respeito dos Annales.

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1 . Segundo José Carlos Reis (1994), a História sob a influência das Ciências Sociais produziu uma terceira
revolução na compreensão do tempo histórico. A primeira havia sido feita pela cristandade ocidental, ao
criticarem a concepção circular dos gregos e delimitarem linearmente a interpretação do tempo, com um
passado e um futuro organizados segundo um projeto político, fundamentado numa filosofia da história. A
segunda foi produzida pelos filósofos iluministas, no século XVIII, ao criticarem a religião e a fé e
secularizarem a sua concepção, embora tivessem mantido uma interpretação linear do tempo, na
compreensão que faziam do progresso material. No inicio do século XX, houve uma terceira revolução na
interpretação do tempo histórico, produzida sistematicamente pelo grupo dos Annales, ao criticarem a
abordagem ‘acontecimental’ e a postura das ‘filosofias da história’ (por projetarem perspectivas
teleológicas), com uma abordagem estrutural dos acontecimentos, a partir de uma história problema, que
recebia influências e mantinha intercâmbios com as Ciências Sociais.
2 . Tradução: “Em meados de [19]30, os Annales de Marc Bloch e de Lucien Febvre sofreram uma mudança
excepcional. Eles também encontraram dificuldades excepcionais. A morte trágica de Marc Bloch em 1944;
a morte brusca de Lucien Febvre [em 1956]. Mas os Annales continuaram se desenvolvendo... Nem Marc
Bloch, nem Lucien Febvre tiveram a vontade ou a ilusão de fundar uma escola, com suas fórmulas e suas
soluções.”
3 . Segundo Josep Fontana: “A escola dos Annales teve uma função renovadora importante nos anos que se
seguiram a Segunda Guerra Mundial. A viragem que Lucien Febvre havia realizado para facilitar a
sobrevivência da revista nos tempos da ocupação alemã a preparou para entrar no mundo do pós-guerra
como uma opção que tinha um prestígio progressista, mas que havia eliminado claramente as marcas do
marxismo. Foi a partir do momento do seu acesso ao ‘poder’ na seção VI da École Pratique des Hautes
Études que os homens dos Annales, dirigidos por Lucien Febvre, encontraram, desde 1947, um instrumento
de projeção, nos cursos que contaram com a participação de Febvre, Labrousse, Braudel, Leroi-Gourhan,
Lévi-Strauss, Raymond Aron, Barthes, Bourdieu, Derrida, Le Goff, Taton, Pierre Vilar... Ernest Labrousse,
com seu propósito de combinar o estudo das estruturas e das conjunturas, e Fernand Braudel, com seu
modelo de encadeamento de ritmos temporais distintos, deram à escola a base teórica para o cultivo de uma
história social adequada às demandas do momento, cujo efeito foi plenamente aceitável nos anos da guerra
fria, durante os quais pôde ser vista como uma substituta do marxismo” (FONTANA, 1998: 8-9).
4 . De acordo com a tese de Paul Veyne (1998) – em Como se escreve a história – segundo a qual não existe
a ‘História’, mas sempre ‘histórias de...’, ou seja, quando aquele autor se pergunta: o que é a história,
segundo a construção do discurso do historiador, que seleciona não tudo o que ocorreu no passado, mas os
fragmentos que dele restou e pôde consultar, portanto, a história escrita pelo historiador não é a ‘História’,
‘que só poderia ser escrita por Deus’, mas simplesmente, histórias possíveis, isto é, ‘histórias de...’.
5 . Para Maurice Halbwachs (1990), a memória coletiva resulta de um quadro histórico de uma época. É uma
construção social que dá sentido a identidade de um grupo de pessoas, que ao mesmo tempo estão limitadas
as circunstancias sociais de sua época, e por isso entendem aquela história rememorada como ‘real’; sendo
esses atores sociais resultados e resultantes daquela atmosfera psicológica que construiu suas personalidades
individuais.
Deslocamentos e mutações na Historiografia Contemporânea – a Biografia
e outros campos históricos13

José D’Assunção Barros14


RESUMO

Este artigo busca esclarecer e discutir alguns aspectos relacionados às diversas


modalidades da História, criticando os critérios que presidem estas divisões historiográficas
e sintetizando uma visão panorâmica dos vários campos em que se divide o conhecimento
histórico nos dias de hoje, particularmente no que se refere às divisões historiográficas que
denominaremos “domínios”. Entre outros domínios possíveis, enfatizamos no texto o
domínio da Biografia Histórica. Ao lado disto, são discutidos ainda aspectos diversos,
incluindo os objetos, fontes e abordagens mais comuns a cada um dos campos aqui
discutidos.
Palavras-chave: Campos da História, metodologia da historia; escrita da história,
Biografia.

ABSTRACT

This article attempts to clarify and discuss some aspects related to the modalities of
History, criticizing the categories in which ones these modalities are elaborated, and
organizing a panoramic view of the various fields in which ones the historical knowledge is
divided nowadays. Among others, the article emphasizes the domain of the Historical
Biography. Otherwise, the aspects to be discussed are diverse, and include the objects,
sources and approaches more common in the fields presented here.
Key Words: Fields of History, historical methodology; historical writing, Biography.

A História, nos dias de hoje, divide-se em inúmeras modalidades. Ouve-se falar em


História Cultural, em História das Mentalidades, em História do Imaginário, em Micro-
História, em História Serial, em História Quantitativ... o que define estes e outros campos?
Em obra recente, tivemos por objetivo central precisamente o esclarecimento destas várias
modalidades do saber histórico, discutindo suas singularidades, suas interpenetrações umas

13
O presente artigo remete, como referência principal, a um livro publicado recentemente pelo autor, e que se
refere a um estudo das várias modalidades da História. BARROS, José D’Assunção. O Campo da História –
Especialidades e Abordagens, Petrópolis: Vozes, 2004, 222 p.
14
Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Professor da Universidade Severino
Sombras (USS) de Vassouras, nos Cursos de Mestrado e Graduação em História, onde leciona disciplinas ligadas
ao campo da Teoria e Metodologia da História. E-mail: jose.assun@globo.com
com as outras, suas relações interdisciplinares, suas fontes e objetos privilegiados (BARROS,
2004).
A tese central daquele trabalho é a de que existem três grandes grupos de critérios que
presidem a divisão da História em modalidades mais específicas, e a de que muito da confusão
sobre o que é uma sub-especialidade ou o que é outra, ou sobre como enquadrar uma dada
obra neste complexo caleidoscópio de sub-especialidades que coincide com o campo
disciplinar da História, está no fato de que algumas coletâneas de balanceamentos
historiográficos misturam inadvertidamente critérios de classificação sem alertar devidamente
o leitor, que acaba perdendo a oportunidade de desenvolver uma maior clareza sobre a rede de
modalidades que organiza o pensamento historiográfico na atualidade.
A chave para compreender estes vários campos da História, conforme a argumentação
que desenvolvemos na referida obra, está em distinguir muito claramente as divisões que se
referem a dimensões (enfoques), as divisões que se referem a abordagens (ou modos de fazer
a História), e as divisões intermináveis que se referem aos domínios (áreas de concentração em
torno de certas temáticas e objetos possíveis).
Para registrarmos algumas exemplificações, podemos dizer que o primeiro grupo de
critérios que gera divisões internas na disciplina histórica e que se refere ao que chamamos de
dimensões corresponde àquilo que o historiador traz para primeiro plano no seu exame de uma
determinada sociedade: a Política, a Cultura, a Economia, a Demografia, e assim por diante.
Desta maneira, teríamos na História Econômica, na História Política, na História Cultural ou
na História das Mentalidades campos do saber histórico relativos às dimensões ou aos
enfoques do historiador. Um historiador cultural, por exemplo, estuda os fatos da cultura; um
historiador político estuda o poder nas suas múltiplas formas; um historiador demográfico
orienta o seu trabalho em torno da noção que lhe é central de “população”.
Um segundo grupo de critérios para estabelecer divisões no saber histórico é o que
chamamos de abordagens, referindo-se aos métodos e modos de fazer a História, aos tipos de
fontes e também às formas de tratamento de fontes com os quais lida o historiador. São
divisões da História relativas a abordagens a História Oral, a História Serial, a Micro-História
e tantas outras. A História Oral, por exemplo, lida com fontes orais e depende de técnicas
como a das entrevistas; a História Serial trabalha com fontes seriadas – documentação que
apresente um determinado tipo de homogeneidade e que possa ser analisada sistematicamente
pelo historiador. A Micro-História refere-se a abordagens que reduzem a escala de observação
do historiador, procurando captar em uma sociedade aquilo que habitualmente escapa aos
historiadores que trabalham com um ponto de vista mais panorâmico, mais generalista ou
mais distanciado.
Por fim, podemos pensar divisões da História que chamaremos de domínios, e que se
referem a campos temáticos privilegiados pelos historiadores. O objetivo deste artigo será
precisamente o de refletir sobre os vários domínios da História que têm surgido e desaparecido
no horizonte de saber desta complexa disciplina que é a História. Estamos falando de
domínios quando nos referimos a uma História da Mulher, a uma História do Direito, a uma
História de Sexualidade, a uma História Rural, ou a uma História da Vida Privada.
Tentaremos esclarecer a seguir este grupo de critérios.

Os domínios da História são na verdade de número indefinido. Alguns domínios


podem se referir aos ‘agentes históricos’ que eventualmente são examinados (a mulher, o
marginal, o jovem, o trabalhador, as massas anônimas), outros aos ‘ambientes sociais’ (rural,
urbano, vida privada), outros aos ‘âmbitos de estudo’ (arte, direito, religiosidade,
sexualidade), e a outras tantas possibilidades. Os exemplos sugeridos são apenas indicativos
de uma quantidade de campos que não teria fim, e qualquer um poderá começar a pensar por
conta própria as inúmeras possibilidades.
Tal como dissemos, os critérios de classificação que estabelecem domínios da História
referem-se primordialmente às temáticas (ou campos temáticos) escolhidas pelos
historiadores. São já áreas de estudo mais específicas, dentro das quais se inscreverá o objeto
de investigação e a problemática constituídos pelo historiador.
A maioria dos domínios históricos presta-se a historiadores que trabalham com
diferentes dimensões históricas, e certamente às várias abordagens. Mas existem domínios
que têm muito mais afinidade com uma determinada dimensão, dada a natureza dos temas por
eles abarcados. Assim, a História da Arte ou a História da Literatura são praticamente sub-
especialidades da História Cultural (embora se deva chamar atenção para uma História Social
da Arte, ou uma História Social da Literatura, que não deixam de ser possibilidades dentro da
História Social).
De modo análogo, um domínio como o da História das Imagens (entendida como
história das imagens visuais obtidas a partir de fontes iconográficas, fotográficas, etc) é quase
que um anexo da História do Imaginário. Mas, bem entendido, uma série de imagens visuais
tomadas como fontes históricas sempre poderá dar a perceber qualquer das dimensões que
discutimos atrás, como a História Econômica, a História Política, a Geo-História ou a História
da Cultura Material. Pense-se em uma iluminura de Livro de Oras, [Horas] da qual o
historiador lança mão para perceber aspectos da economia rural no ocidente medieval, as suas
representações políticas, as relações do homem medieval com o seu meio natural ou traços de
sua cultura material; ou pense-se em uma pintura impressionista utilizada para captar aspectos
da História Social na Belle Époque; ou ainda nas cerâmicas gregas utilizadas para levantar
aspectos da História Política da Atenas da Antigüidade Clássica. Mas de uma maneira ou de
outra, em todos estes casos sempre estará ocorrendo um diálogo evidente da História do
Imaginário com uma destas outras dimensões.
Também a História das Representações, por motivos análogos, sempre terá intimidade
com o campo definido como História do Imaginário, embora também se abra a uma História
das Mentalidades. Já a História do Cotidiano, ou a História da Vida Privada, abrem-se a
inúmeros campos de enfoques para além da História das Mentalidades, como a História da
Cultura Material, a História Social a História Econômica ou a História Política (neste último
caso, focando a questão dos micropoderes). Raciocínios similares podem ser encaminhados
para outros domínios igualmente abertos, como a História das Religiões ou a História da
Sexualidade.
Conforme estamos vendo, os domínios tendem a ser englobados por uma dimensão
(são poucos os casos) ou então partilhados preferencialmente por duas ou mais dimensões.
Mas é possível ainda que algum campo que hoje esteja sendo tratado como ‘domínio’, mas
que possua uma abrangência em potencial, possa vir a transformar-se futuramente em uma
‘dimensão’. A História da Sexualidade tem sido pouco estudada em relação à importância da
sexualidade para a vida humana na concretude diária, e é talvez isto o que lhe dá um status de
domínio. Mas seguramente esta poderia ser vista como uma dimensão tão fundamental como a
Economia, a Política ou as Mentalidades. O que ocorre é que estas não apenas são dimensões
significativas que definem a vida humana, elas constituem na verdade ‘macro-campos’, ou
tornaram-se ‘macro-campos’ devido à atenção que lhes prestaram os historiadores e outros
pensadores.
As dimensões, deve-se ter percebido, são sempre macro-campos capazes de se
desdobrar em ambientes internos, de produzir interfaces mais diversificadas, e de darem
margem a um número significativo de obras historiográficas. Além disto, para nos
apropriarmos de uma imagem de Fernando Braudel utilizada com um sentido totalmente
distinto, as dimensões correspondem ao leito do rio, mais perene e abrangente, que só muda
muito lentamente; e já os domínios correspondem às espumas que se fazem e refazem na
duração mais curta da superfície, por vezes atendendo a tendências da moda ou a movimentos
de ocasião (É verdade, contudo, que há domínios extremamente duradouros, conforme
veremos oportunamente).
Voltando ao problema de a História da Sexualidade ser atualmente um domínio
histórico, e não uma dimensão histórica de acordo com o critério que operacionalizamos neste
ensaio, há algo ainda a ser dito. É claro que um novo giro do caleidoscópio historiográfico
pode mudar um dia isto, e a Sexualidade poderá então passar a ser apreendida como
‘dimensão’ historiográfica, inspirando tantas obras como a História Demográfica ou a História
Econômica. Mas por ora ela está apenas nos seus primórdios, mesmo que o seu potencial em
extensão e capacidade de desdobramentos seja inegável – e para confirmar isto basta lembrar
que a primeira História da Sexualidade, definida como uma dimensão mais ampla, foi escrita
por Michel Foucault há alguns anos atrás (FOUCAULT, 1977-1985), sem que haja muitas
experiências no gênero.
O giro do caleidoscópio historiográfico, enfim, ocorre em consonância com as
motivações de uma época, com as suas necessidades sociais, com as suas nem sempre
perceptíveis imposições políticas, com a sua capacidade de colocar determinados problemas
(que geralmente ocorre quando esta sociedade tem a capacidade de resolvê-los, conforme já se
disse alhures).
No século XIX, os historiadores praticamente só prestavam atenção à ‘dimensão
política’, e assim mesmo em um pequenino traço da dimensão política. Marx e Engels
começaram a atentar para a dimensão econômica, mas também para a dimensão social. Os
Annales, no século XX, reforçaram este olhar pioneiro, no que logo foram acompanhados por
todos os historiadores que quiseram acompanhar o movimento da modernidade, isto é, o giro
do caleidoscópio historiográfico. Depois os olhares dos historiadores foram se voltando
sucessivamente para a Demografia, para a Cultura Material, para a Geo-História, para as
Mentalidades, para a Cultura. Nada impede, podemos prever, que novas dimensões apareçam
nos horizontes historiográficos das próximas gerações (ou que um domínio migre para o
campo mais abrangente das dimensões) e a Sexualidade pode ser uma forte candidata.
Voltando ao campo de critérios que estamos categorizando como domínios, podemos
dizer que também existem aqueles domínios que se conservam como setores mais limitados,
ou sob estrita vigilância da racionalidade científica, em função de interditos não declarados.
No moderno mundo laico e tendente a uma ciência materialista, por exemplo, a
Espiritualidade só pode ser um domínio. É difícil que venha a ser reconhecida como uma
dimensão historiográfica da vida humana enquanto persistir a atual tendência paradigmática de
organizar os saberes científicos. Fora dos ambientes científicos e acadêmicos, contudo, grande
parte dos seres humanos acredita ou movimenta-se nisto que eles definem como
espiritualidade, inclusive os cientistas. Mas para a Ciência oficial de hoje em dia, este
território é por demais ambíguo, avesso a comprovações ou experiências mais diretas. O
resultado é que se tem um domínio como a ‘História Religiosa’ – que pode se desdobrar em
histórias dos sistemas religiosos, das Igrejas, das formas espiritualizadas de sentir ou das
crenças – mas não uma ‘dimensão historiográfica’ Religiosa ou da Espiritualidade, com o
mesmo status científico e gerando tantos desdobramentos como a Economia ou a Política. Em
suma, com a História da Igreja poderemos ter a história de uma instituição, com a História da
Religião ou das crenças religiosas poderemos ter a história de uma representação, com a
História das práticas religiosas (ou da religiosidade stricto sensu) poderemos ter a história de
uma prática ... mas a História Religiosa definida dimensionalmente da mesma maneira como
se define a História Política ou a História Cultural não existe nos atuais parâmetros
disciplinares da historiografia.
Até aqui falamos dos domínios históricos que se referem a âmbitos (Arte, Sexualidade,
Religiosidade, Representações). Conforme definimos antes, existem outras categorias
definidoras de domínios históricos que se referem a agentes históricos específicos (História da
Mulher, História dos Excluídos), ou a determinados ambientes sociais (História Rural,
História Urbana). Naturalmente que, em um caso ou outro, teremos domínios que se prestam a
todos os enfoques (dimensões) possíveis – da História da Cultura Material à História das
Mentalidades. Os ‘excluídos’ podem ser historiados com a atenção voltada para as
Mentalidades, como fez Bronislaw Geremek, com a atenção voltada para a Economia, como
fez Kula, ou com a atenção voltada para a Cultura, como fez Thompson, ou com a atenção
voltada para o Social, como fez Michel Mollat. A História Urbana ou a História Rural podem
ser avaliadas a partir de enfoques direcionados para cada uma das dimensões que já foram
mencionadas neste livro, da Cultura Material às Mentalidades – afinal, estes domínios são
rigorosamente ambientes menores dentro do mundo humano que não deixam de ser unidades
totalizantes (são mundos humanos específicos, que podem ser examinados na totalidade de
seus aspectos).
Vale lembrar também que existem os domínios que são aparentemente sub-campos de
um domínio maior. A História das Doenças poderia ser inscrita em uma História do Corpo. A
História da Prostituição poderia ser inserida na História dos Excluídos (embora em alguns
aspectos também possa ser incluída na História da Sexualidade). A História da Criança, da
maneira como têm funcionado até hoje as nossas instituições familiares, poderá ser inscrita
sem maiores dificuldades em uma História da Família. Tudo isto, por outro lado, ficará bem se
englobado por uma História da Vida Privada.
Para além disto, são inúmeros os domínios que se enquadram opcionalmente como
sub-campos em mais de um domínio mais abrangente, ou que se localizam nos interstícios
situados entre dois ou mais outros domínios. A História da Medicina, enquadrar-se-á na
História das Ciências, na História dos Sistemas de Pensamento ou dos sistemas repressivos
(como propôs Michel Foucault) ... estará em afinidade com os já mencionados domínios da
História das Doenças ou da História do Corpo? Incluirá como subconjunto a História da
Clínica? Temos nestes e em tantos outros casos um entrelaçado de domínios históricos,
abrindo espaços por dentro do labirinto do saber historiográfico.
Poderemos também desviar um pouco do campo da historiografia profissional, para
vislumbrar este universo ambíguo e limítrofe que espreita o saber histórico, mas que também
chama a si de História (e quem poderia convencê-los, aos seus cultuadores, de que não temos
aí também uma História, tão legítima como as outras?). Existem assim aqueles domínios que
são tão pontuais que praticamente se confundem com um objeto único, não faltando entre eles
aqueles que beiram o absurdo e que aparentemente poderiam ser inscritos em um campo novo
que poderia ser ironicamente denominado de História das Futilidades. Pense-se na História
dos Perfumes, na História das Nádegas, na História do Estupro, ou em uma História do
Onanismo, curiosidades que mereceram edições recentes, e que por vezes passam longe da
historiografia profissional feita com maior seriedade.
Os domínios da História, enfim, multiplicam-se. Para o bem e para o mal, a
criatividade dos historiadores sempre poderá organizar mais e mais campos, prontos a
acolherem novos objetos ou a receberem no seu seio objetos antigos, deslocados com um novo
propósito. O grupo dos ‘domínios’ é a parte mais móvel, mais flutuante, mais diversificada e
intercambiante do caleidoscópio historiográfico (com o perdão da insistência nesta metáfora).
Assim, enquanto as dimensões costumam sofrer alterações em uma duração mais longa (que
às vezes pode ser medida em décadas); as abordagens costumam surgir, alterar-se ou serem
desativadas com uma rapidez maior, cumprindo uma espécie de média duração; já os
domínios, por fim, surgem e desaparecem com a rapidez da curta duração, às vezes
perseguindo ditames da moda e caindo para segundo plano tão logo se saturam.

Neste momento passaremos a falar de um domínio, que é na verdade um gênero. A


Biografia pode ser tanto encarada como um domínio ou como uma abordagem (neste último
caso, um ‘campo de observação’ ou um ‘meio’ para alcançar uma História Social ou para
realizar um trabalho de Micro-História). Como ‘domínio’, praticamente se confunde com este
‘gênero’ historiográfico ou literário que já é conhecido desde a Antigüidade. Se for possível
situar a Biografia como domínio, ela será talvez o único domínio tão perene e duradouro
quanto a própria História – pois, ao que se sabe, os homens de todas as épocas sempre foram
freqüentadores assíduos deste fascinante campo de estudos que poderia ser chamado de
“História das Vidas Humanas”.
A velha pergunta, que indaga se uma biografia é História ou Literatura, certamente
jamais será respondida de maneira única e definitiva. Com algumas variações, é uma
indagação tão antiga quanto o gênero, e que desde a Antigüidade desperta polêmicas tão
acirradas como hoje. Políbio pretendeu demarcar bem a fronteira: a História devia buscar a
síntese, a sobriedade do estilo, o registro da verdade desvencilhado da ornamentação ilusória;
a Biografia poderia investir na narrativa dramatizada, possuir um estilo mais livre e
conseqüentemente um compromisso menor com a verdade. Por outra parte, acreditando que o
que havia de mais verdadeiramente humano escondia-se precisamente na alma individual,
Plutarco dedicou-se por inteiro a este gênero que havia sido desprezado por Tulcídides. Na
verdade, praticamente inventou um novo gênero: a biografia comparada, ou o que ele chamou
de “vidas paralelas”.
A polêmica atravessa a Idade Média, o Renascimento, todo o período moderno e atinge
a Idade Contemporânea. Mas a partir da terceira década do século XX, o novo modo de fazer a
História – doravante reconhecido como o paradigma a orientar a historiografia profissional –
passa à tendência de rejeitar este gênero que estivera em alta na historiografia do século XIX.
Os historiadores profissionais já não o discutem: a Biografia é banida para um limbo – para
um espaço especial entre a História e a Literatura que será pouquíssimo freqüentado pelos
historiadores acadêmicos. E, apesar disto, a despeito do desprezo dos historiadores
profissionais de novo tipo, talvez nunca tenham sido escritas tantas biografias como neste
século. Literatos e diletantes invadem prazerosamente este antigo domínio historiográfico,
abandonado pelos pregadores dos Annales e dos novos marxismos da primeira metade do
século XX.
Mas a partir das últimas décadas do século XX, depois das quatro décadas de
quarentena, os historiadores profissionais retomam o gênero. De novas maneiras, eles dirão.
Agora os mais variados sujeitos históricos merecem ser biografados: não apenas os heróis e as
grandes individualidades políticas, mas também os indivíduos anônimos que jamais sairiam
dos arquivos empoeirados se de lá não os tivessem arrancado os historiadores – um moleiro
herético, um padre exorcista de segundo plano, um impostor que se faz passar por um marido
desaparecido até ser desmascarado, e que carrega em sua própria vida um enredo tão
novelesco que se tornou matéria prima para uma produção cinematográfica.
São estes os novos biografados da Micro-História (se é que é possível chamar de
“biografia” a uma prática que não pretende se concentrar no indivíduo examinado em si
mesmo, mas apenas se valer dele para examinar o seu ‘em torno’). De fato, a estes indivíduos
cuidadosamente escolhidos, a Micro-História pretende tratá-los como pequenos fragmentos
privilegiados para através deles perceber realidades mais amplas, ou pelo menos para estudar
problemas históricos ou sociais específicos. Do moleiro herege, como já vimos anteriormente,
Carlo Ginzburg almeja perceber algo sobre as trocas culturais, sobre o diálogo de culturas que
transparece através dos detalhes de um processo de Inquisição (GINZBURG, 1989). Do
impostor que toma o lugar do marido de uma obscura camponesa do século XVI, a
historiadora Natalie Davis (1987) extrai um diversificado panorama da vida camponesa de sua
época, do seu cotidiano aos seus modos de sentir. Do padre exorcista, o micro-historiador
italiano Giovanni Levi (2000) pretende extrair variados elementos para a compreensão da
economia das sociedades rurais do Antigo Regime, das suas hierarquias sociais e estratégias
de ascensão e enriquecimento, dos saberes mágicos oriundos da cultura popular, do
imbricamento destes saberes mágicos com a medicina taumatúrgica daqueles meios rurais.
Tal como nos ensinam estes exemplos, deve-se ter sempre em vista que o interesse
micro-historiográfico no estudo de caso ou no fragmento de vida que se examina é conquistar
um acesso a aspectos que, embora não visíveis a uma primeira aproximação, têm uma
existência real e cujo desconhecimento comprometeria a efetiva compreensão de um problema
mais geral. Giovanni Levi, em entrevista concedida em Costa Rica, oferece como exemplo o
clássico problema das “migrações” (2002). Se queremos ultrapassar o questionamento
meramente quantitativo (quantos migram?), deveremos começar a fazer a pergunta certa:
“quem migra?”. Enquanto a pergunta sobre quantos migram pode não ser uma pergunta
necessariamente interessante para o historiador (ela pode mesmo, se ficar nisso, dar uma
imagem totalmente distorcida do problema), já as perguntas “quem migra?” e “quem não
migra?” tornam-se necessárias em todos os casos. Mas para começá-las a responder é preciso
descer às vidas. É preciso ir, por exemplo, ao âmbito da família, aos ciclos da vida familiar, às
redes de solidariedades locais. Um caminho, poderíamos acrescentar, seria o de seguir o
indivíduo no interior de suas trajetórias familiares e comunais. “Biografar” talvez não fosse a
palavra exata para este estudo de uma vida com objetivos bem definidos, mas como não existe
um verbo substituto poderemos empregá-lo sem maiores problemas.
Tal como assinala Levi, é aqui que entra o problema fulcral da ‘escala de observação’,
empregada não como uma redução por si mesma, mas como uma redução de escala que visa
uma finalidade específica – a de examinar um problema mais geral, mais extensivo. Deve-se
ter uma consciência especial do que significa aqui “generalizar”. Generalizar para a Micro-
História não é “equalizar”, ou reduzir a complexidade. Para o micro-historiador, generaliza-se
nas perguntas, mas não nas respostas. Admitir a riqueza e a complexidade da vida humana não
impede, contudo, a possibilidade de alcançar uma extensão maior no conhecimento essencial a
respeito da vida social. Retomando a metáfora do microscópio proposta por Levi, examina-se
o “micróbio” não para entender propriamente o micróbio, mas sim para entender a
enfermidade:

“En este sentido, la discusión de la reducción de escala es fundamental.


Es imposible estudiar al microbio sin el microscopio. El microbio puede
matar, como puede ser el caso de la peste bubónica, pero si no lo observas
a través del microscopio no puedes entender cómo se causa la peste. Al
percibir el microbio puedes generalizar y entender la enfermedad” (LEVI,
2000).

Esta colocação é fundamental, pois contribui para desfazer determinados mal-


entendidos a que já nos referimos antes. Conforme alerta Giovanni Levi, muitos pensam que a
Micro-História significa estudar coisas pequenas, mas na realidade ela analisa coisas grandes:

“muchos italianos piensan que micro historia es historia local, debo decir que
esto es una locura total. Para ellos uno puede estudiar una comunidad o la
historia de una persona, a lo mejor alguien con un mal patológico y presentan su
trabajo como micro histórico sin serlo. Justamente, un amigo mío, un
historiador español, Jaime Contreras, ha llamado a esa historia, la historia
basura. Me parece que hay que diferenciar entre micro historia y la historia
basura, o la historia pequeña que no es interesante por que no es generalizable.
Es decir aquella micro historia que busca a través del microscopio las formas”
(LEVI, 2000).

O que podemos extrair da entrevista de Levi para a compreensão destas “biografias” de


novo tipo é bastante claro: não se trata de estudar qualquer pessoa por qualquer motivo.
Estuda-se através de uma vida com vistas a enxergar mais longe, mais profundo, mais
densamente, de maneira mais complexa, ou porque o estudo desta vida permite enxergar a
vida social em sua dinamicidade própria, não excluindo os seus aspectos caóticos e
contraditórios. O “indivíduo qualquer” é um “qualquer” cuidadosamente escolhido (estamos
muito longe da prática da amostragem). Escolhemo-lo porque ele nos dá acessos aos
problemas que nos interessam, ou porque as fontes em torno deste indivíduo concentraram-se
de determinada maneira. Podemos estudá-lo por ele ser “demasiado comum” ou por ele ser
estranhamente incomum, não importa. As perguntas que faremos a esta ou àquela vida é que
nos dirão se a escolha é menos ou mais adequada.
Outro aspecto remarcável é que a vida a ser escolhida pelo micro-historiador não se
desenvolverá de maneira autônoma, “biográfica” no mal sentido. Ela ocorre no interior de uma
configuração relacional. Micro-historiadores como Giovanni Levi têm procurado trabalhar de
maneira muito específica com o conceito de “configuração social”. A configuração social não
é feita de coisas ou aspectos imobilizados, mas sim de relações que envolvem todos os seus
protagonistas. Quando modificamos algum de seus elementos, modificamos a totalidade das
relações.
Esta noção é muito importante para compreender o modo como o micro-historiador
trabalha o gênero biográfico. Uma vida não existe por si mesma, suspensa teleologicamente e
tendente a um destino, de modo que o que ocorre em torno são personagens coadjuvantes e
situações de apoio que apenas confirmam ou reforçam os caminhos mais ou menos autônomos
desta vida. Não existem propriamente as vidas coadjuvantes, pois todas elas desempenham um
determinado papel na configuração relacional mais ampla. Posso tomar um “biografado”
como ponto focal, mas ele não se destaca de forma alguma do meio em que vive, da
configuração social dentro da qual ele estabelece múltiplas relações. Por isto, o micro-
historiador está atento a tudo: um pequeno ponto pode ser importante para dar um sentido
maior a uma determinada configuração social. Quando se estuda o indivíduo, estuda-se a sua
comunidade, a sua localidade, ou, conceitualmente falando, a sua configuração social –
mesmo que se tenha escolhido o caminho metodológico de acompanhar uma trajetória
individual, neste caso necessariamente imbricada e inter-relacionada com outras trajetórias. É
neste sentido que, conforme assinalamos atrás, a Biografia torna-se para o historiador uma
‘abordagem’, e não um ‘domínio’ ou um mero gênero. Ela é o meio escolhido pelo historiador
para compreender uma determinada configuração social.. Um caminho para fora, e não para
dentro da vida do indivíduo.
Por fim, algo que costuma distinguir algumas das biografias que são produzidas no
âmbito da macro-história tradicional das produzidos no seio da abordagem micro-
historiográfica é que, neste último caso, procura-se enxergar mais de perto a liberdade dos
indivíduos no interior dos grandes sistemas normativos que o envolvem. Como indica
Giovanni Levi na entrevista atrás mencionada, “o poder deixa sempre uma margem de
liberdade, uma margem que cria uma ‘intersticialidade’ e a possibilidade de mover-se entre as
contradições dos sistemas normativos”. O indivíduo não é inteiramente determinado de fora,
nem constrangido sem margens de ação pelo sistema que o envolve. Não se trata de resgatar
aqui o antigo modelo do século XIX para a biografia dos grandes indivíduos, onde estes
moviam a História com a força do seu gênio e da sua ação. Mas não se trata também de cair no
modelo oposto, da sobredeterminação absoluta, que move o indivíduo ou que o constrange de
maneira imperiosa. As pesquisas em Micro-História têm levado precisamente à percepção das
estratégias que os indivíduos desenvolvem nos sistemas que os comprimem, à compreensão
das suas negociações, da sua inventividade realizada através da vida cotidiana e das práticas
sociais.
De uma maneira geral, é o que se poderia dizer a respeito da abordagem micro-
historiográfica da Biografia. Com relação às fontes apropriadas para estas biografias de novo
tipo (ou para estes estudos micro-historiográficos de vidas anônimas) são freqüentemente
processos criminais, inquéritos, registros da inquisição – documentos que têm por
característica proeminente o rastreamento obsessivo e rigoroso de detalhes, a exposição de
contradições reveladoras, o registro de minúcias, de tudo o que possa incriminar ou absolver,
expor o réu na tentativa de tornar transparentes os seus pensamentos, os seus hábitos, o seu
cotidiano mais inconfessável. Usam-se também os diários íntimos, as correspondências
pessoais, os livros de notas que geralmente só aparecem nos períodos menos recuados (a não
ser para o caso de pessoas com um mínimo de notoriedade), e que também fornecem
flagrantes excepcionais pelo simples fato de que em geral não foram escritos com a intenção
de serem lidos senão pelo seu próprio autor, ou no máximo por um interlocutor para o caso
das correspondências.
Para registrar exemplos brasileiros de estudos biográficos elaborados de acordo com os
parâmetros da Micro-História, poderemos citar a biografia de Luiz Mott sobre Rosa
Egipcíaca, uma ex-escrava do Brasil Colonial (1992), ou a obra de Eduardo Silva intitulada
Dom Obá II D’África, o Príncipe do Povo: vida, tempo e pensamento de um homem livre de
cor (1997). Este último utiliza o estudo de caso em torno de uma trajetória individual para
apreender precisamente o cotidiano dos ex-escravos na transição do antigo sistema colonial-
escravocrata para o âmbito capitalista, fundado exclusivamente nas relações de inclusão e
exclusão em torno do trabalho assalariado – este mundo que tem significativas dificuldades de
acolher os egressos do sistema antigo. Trata-se de perceber, através deste fragmento que é uma
vida humana, não apenas o cotidiano do grupo social de ex-escravos na passagem para o novo
século, mas também a sua ambiência mental e as relações com os demais grupos sociais. Na
verdade, o “biografado” é escolhido precisamente por ser um ponto fulcral para a percepção
destas relações, já que se apresenta como uma espécie de ponte mediadora entre elementos dos
novos grupos dominantes e os ex-escravos que a custo vão sendo absorvidos pelos novos
regimes de produção, quando não permanecem à margem.
Para além das biografias de indivíduos sem importância política em sua época, e que
por isto mesmo se tornam reveladores de aspectos que não poderiam ser percebidos através
das fontes tradicionais, também retornam nas últimas décadas do século XX as biografias de
indivíduos ilustres. Jacques Le Goff biografa São Luís (1999) e escreve artigos sobre São
Francisco de Assis (2001); Georges Duby constrói uma narrativa em torno da vida de
Guilherme Marechal (1988), com o fito de compreender a vida cavaleiresca na Idade Média;
Christopher Hill, com O Eleito de Deus (1970), aborda a vida de Oliver Cromwell (2001).
Agora, estes indivíduos que foram proeminentes nas suas épocas oferecerão suas vidas
não para o enaltecimento de sua memória ou para o deleite de leitores interessados em
curiosidades históricas e na vida dos grandes homens. Suas vidas serão matéria prima para
uma “biografia-problema”, tornar-se-ão índices de uma significação histórica mais ampla. É
assim, por exemplo, que Christopher Hill trata o seu eleito de Deus. O calvinismo que ele vê
refletido e refratado através do seu fragmento humano “Oliver Cromwell” é mais do que um
credo – trata-se na verdade de uma cosmovisão que abrange todas as áreas da vida, e que dota
os seus portadores de um sentido especial que eles mesmos imputam à sua existência. É a
apropriação deste sentimento e desta cosmovisão no elan revolucionário do movimento
puritano na Inglaterra do século XVII o quer ele pretende captar, e não a mera singularidade
humana de Oliver Cromwell. Hill está precisamente interessado nas complexas tensões que
permeiam a relação entre o indivíduo e a sociedade, mas que não são exclusivas do
carismático líder da revolução puritana:

“comentou-se amiúde o aparente paradoxo de um sistema baseado na


predestinação e que suscita em seus adeptos uma ênfase sobre o esforço e a
energia moral. Uma explicação para esse fato postula que, para o calvinista, a fé
se revela por si mesma através das obras e que, portanto, o único modo pelo
qual o indivíduo poderia ter certeza da própria salvação seria examinar
cuidadosamente seu comportamento noite e dia, a fim de ver se ele, de fato,
resultava em obras dignas de salvação (...). Os eleitos eram aqueles que se
julgavam eleitos, pois possuíam uma fé interior que os fazia sentirem-se livres,
quaisquer que fossem suas dificuldades externas” (HILL, 2001: 205)
Através de Cromwell, o que Hill procura resgatar é o perfil destes indivíduos que na
sua época aceitaram o calvinismo e o inseriram tanto em sua vida cotidiana como em uma
prática revolucionária, transformando-se em um grupo social através de uma rede de
identificações mútuas e reciprocidades. A maneira como a crença em uma missão junto a Deus
entretece a vida nos seus múltiplos aspectos e a revolução encaminhada por estes homens – eis
o objeto criativamente construído através desta “biografia” (se é que poderíamos chamá-la
assim). Em certo sentido, e por paradoxal que pareça, Cromwell está interessando aqui não
tanto pela sua singularidade política, mas pelo que ele tem de comum em relação a outros
homens, pelo que ele revela das tensões psicológicas e sociais de sua época, pelo que ele dá a
perceber com relação a determinadas práticas sociais. É verdade que Cromwell permite um
acesso a privilegiado a estes múltiplos elementos, em virtude da sua posição de liderança
beneficiar-se de maior iluminação histórica e dos registros que deixou através de suas
atividades revolucionárias. Mas o historiador aproveita-se desta posição mais iluminada
precisamente para visualizar um extrato mais amplo da sociedade e a sua inserção em uma
dinâmica específica.

Esta oportunidade de aproveitar a especial iluminação de que se beneficia o indivíduo


biografado é portanto fundamental no novo estilo de biografar dos historiadores profissionais.
Os micro-historiadores, vimos atrás, escolhem indivíduos anônimos, sim, mas que por uma
circunstância específica achem-se especialmente iluminados (por exemplo, por um processo
inquisitorial ou judicial que lhe rastreia todos os passos e que lhe dá uma voz especial que ele
não teria na sua vida cotidiana de indivíduo comum). Por um caminho complementar, é
também um pouco de luz especial o que buscam os historiadores que escolhem o chamado
‘personagem-chave’, de importância política reconhecida na sua época e que por isto deixou
maiores registros. Assim em uma entrevista em que fala das biografias que escreveu, Jacques
Le Goff expõe com tranqüilidade as razões de sua escolha:

“Por outro lado, acho que só se pode escrever uma boa biografia se esta for
sobre um personagem de quem se acredita ser capaz de chegar bem perto. Pois
bem, antes do século XIII a ausência de fontes confiáveis tornava essa
empreitada impossível. Decidi então ficar no século XIII, onde três
personalidades se destacavam não apenas por sua importância, mas sobretudo
por causa das fontes disponíveis sobre eles: São Francisco de Assis, o
imperador germânico Frederico II e São Luís” (LE GOFF, 1996).

O problema central, como assinala Jacques Le Goff, é o das fontes. A biografia tem de
ser coberta por muitos lados, tem que dar a perceber aspectos da vida pública e da vida
privada, tem de trazer à tona os gestos teatralizados do indivíduo proeminente, mas também os
seus gestos espontâneos. Tanto um tipo de gesto como o outro – o teatralizado e o espontâneo
– são reveladores de práticas e representações específicas. Em seguida à oportunidade especial
oferecida pelas fontes, Le Goff acrescenta um segundo aspecto fundamental para as novas
escolhas biográficas: um problema adequadamente colocado.

“Sobre os dois primeiros [São Francisco e Frederico II] já existem ótimos


estudos, portanto São Luís logo se impôs. Mesmo porque a maior parte das
numerosas biografias feitas sobre ele nos últimos vinte anos não me parecem
atender suficientemente as exigências de rigor histórico. Duas obras no entanto,
de grande qualidade e publicadas nos anos 80 por dois historiadores, um
americano, Edil Jordan, o outro francês, Jean Richard, eram exceção. Mas, nem
um nem outro colocou a si mesmo a pergunta quanto ao indivíduo (e
contrariamente às idéias recebidas, a noção de indivíduo emerge no século de
São Luís), e todos dois haviam centrado mais ou menos seu estudo nas cruzadas.
Sem negar sua importância na vida de São Luís, eu não acho que as cruzadas
tenham sido o grande pensamento de seu reinado. Do ponto de vista da
historiografia, achei portanto que o terreno estava livre” (LE GOFF, 1996).

Assim, Le Goff delineia com muita precisão um problema que acompanhará em


contraponto a sua construção biográfica, que é o da “emergência do indivíduo” – ou a
emergência de uma nova maneira de conceber o indivíduo – no século XIII. Em seguida, o
historiador francês explicita simultaneamente a ordem de dificuldades que deve acompanhar o
historiador-biógrafo e um programa ou estilo de biografar, que se refere àquele ir-e-vir entre a
vida individual e a vida coletiva que já fizemos notar para o caso da biografia realizada por
Christopher Hill. Ouçamos as próprias palavras de Jacques Le Goff:

“Fiel à concepção de história-problema da Escola dos Anais, minha primeira


dificuldade consistiu em definir uma problemática que me permitisse apreender
o indivíduo São Luís em interação com a sociedade do século XIII, evitando o
que o sociólogo Pierre Bourdieu chamou de a "ilusão biográfica", que pretende
que se considere a vida de um grande homem como alguém com um destino já
traçado, excluindo as eventualidades da vida. Eu, ao contrário, limitei-me a
mostrar as hesitações, as decisões e os momentos cruciais da vida de São Luís, a
partir da sua infância de rei. Porque se o homem constrói sua vida, ele também é
construído por ela.” (LE GOFF, 1996).

Colocar-se em guarda contra a tendência em enxergar o grande indivíduo de maneira


teleológica (como um caminho que aponta já para um fim que está previamente inscrito na
cabeça do historiador, antes mesmo que ele comece a biografar) é portanto um alerta que deve
acompanhar o biógrafo, pelo menos se ele pretende efetivamente realizar uma biografia
múltipla e verdadeira (e que por ser múltipla e verdadeira deve ser, de certo modo, tão
contraditória como a própria vida). Da “ilusão biográfica”, o historiador deve passar ao
enfrentamento da ilusão das fontes – porque também elas impõem a sua teleologia,
sobrepondo-a à teleologia que o historiador pode trazer espontaneamente antes de iniciar o seu
trabalho:

“Foram as fontes, na verdade, que representaram as principais dificuldades de


meu trabalho de historiador, e isso por causa de sua própria natureza. De fato,
uma grande parte dos documentos disponíveis sobre São Luís é de caráter
hagiográfico ou normativo. Através de São Luís pinta-se mais o retrato do rei
que ele deveria ter sido do que o que foi realmente, como em Les Miroirs des
Princes, textos que nos informam mais sobre a concepção do soberano ideal do
que sobre a verdadeira personalidade dos reis. As qualidades e os fatos
atribuídos a São Luís - freqüentar os pobres e os leprosos, oferecer numerosas
esmolas, etc. - são assim atribuídos a outros reis. No entanto, eu tive algumas
vezes a impressão de cair em detalhes suficientemente concretos de sua vida
cotidiana para dizer: é ele finalmente. Mas mesmo aí eu tive surpresas
desagradáveis” (LE GOFF, 1996).

Existe portanto um perigo que espreita o biógrafo dos personagens ilustres, e que já o
biógrafo dos personagens anônimos pode facilmente contornar. O indivíduo célebre – um rei,
um líder, um santo – tem despejada sobre a sua memória, que vai se construindo já no seu
próprio tempo, uma espécie de luz falsa (ou um feixe de luzes falsas). O indivíduo que nasce
na notoriedade, ou que a adquire em função de alguma situação-limite, começa a ser
construído coletivamente em paralelo à sua existência física e concreta. As fontes nos dão os
sinais precisamente desta construção. Elas são a parte mais visível desta construção.
Mas o historiador-biógrafo pode se beneficiar precisamente deste caráter construtivo,
desde que esteja dela consciente. Ele pode se valer, como fontes, dos trabalhos dos biógrafos
da época, que são co-responsáveis (conjuntamente com toda a coletividade) pela construção
do indivíduo imaginário que chega até o historiador através dos arquivos. Assim, também
Jacques Le Goff teve o seu interlocutor nesta empreitada:

“Em primeiro lugar, os textos laudatórios não escondiam, apesar de tudo, alguns
de seus defeitos. Nós sabemos, principalmente graças às confidências de seu
confessor, dispensado do segredo da confissão para o processo de canonização,
quais eram as tentações de São Luís e como ele lutava para não sucumbir a elas!
Uma série de historietas revelam-nos o temperamento de um homem muito
voltado para a carne, dividido entre a tentação e o escrupuloso respeito às
proibições da Igreja... Em seguida, nós dispomos do testemunho mais do que
excepcional de um companheiro próximo do rei, Jean de Joinville, autor de
Uma História de São Luís” (LE GOFF, 1996).

Identificar a posição do biógrafo-fonte em relação ao seu biografado é um


procedimento primordial para o historiador. No caso que tomamos para exemplo, existia
precisamente uma proximidade que poderia ser aproveitada pelo historiador – uma “relação”
entre o biógrafo-fonte e o biografado, que nem sempre ocorre, mas que quando ocorre deve
ser bem aproveitada pelo historiador:

“Joinville foi o primeiro não-religioso a escrever sobre a vida de um santo,


ainda por cima em língua vulgar, ou seja em francês e não latim. Como
freqüentou o círculo mais íntimo de São Luís, Joinville foi uma testemunha
privilegiada de sua vida cotidiana. Embora tivesse uma grande admiração pelo
rei, Joinville sabia ao mesmo tempo julgá-lo e não hesitava em repreendê-lo
quando achava, por exemplo, que o rei se comportava mal com sua mulher. O
título da obra demonstra aliás essa distância tomada pelo autor em relação ao
assunto. Esse documento permitiu-me assim chegar ao indivíduo, o que chamei
de "verdadeiro" São Luís, e de "trazer" junto com ele uma grande parte da
sociedade e dos problemas de sua época” (LE GOFF, 1996).

Percebe-se aqui que, além de biografar o personagem-foco, o historiador deve como


que biografar os biógrafos-fontes, identificar o lugar de produção em que se encontravam os
homens que registraram as primeiras construções do personagem na sua própria época. Pode
ser que o historiador veja-se levado a construir um conjunto de entremeados biográficos: o
biografado principal acompanhado de uma pequena órbita daqueles que foram os responsáveis
pela construção de sua imagem na própria época.
Munido dos elementos para resgatar o indivíduo por trás da pele imaginária, o
historiador não descuidará contudo de aproveitar-se dele como fragmento privilegiado para a
percepção do coletivo. Só assim o historiador começa a sobrepor à mera vida individual –
mesmo que seja a vida de uma pessoa ilustre que possa eventualmente interessar a inúmeros
leitores – aquilo que efetivamente terá uma significação histórica hoje em dia, de acordo com
os atuais parâmetros historiográficos:

“São Luís foi beneficiado em vida por um extraordinário prestígio, que


repercutiu por toda a França. Ele se baseava, acredito eu, em três coisas. Em
primeiro lugar, num inegável carisma de chefia, retomando a noção do
sociólogo alemão Max Weber. As pessoas que o encontravam eram atingidas
por essa aura que o envolvia, em parte de forma física, e que sua devoção
contribuía, sem sombra de dúvida, para aumentar. Mas os dois traços de sua
personalidade mais impressionantes, ainda hoje, residem em seu apetite pela
justiça e na sua paixão pela paz. Constantes no Ocidente desde o ano 1000,
essas aspirações concretizam-se finalmente sob o reinado de São Luís. Sua
vontade de pacificar o reino sucede a movimentos populares contra o poder
feudal e senhorial, que repousa na violência e na guerra. São Luís era, por essas
razões, o que se poderia chamar de consciência da cristandade” (LE GOFF,
1996).

São Luís mostra-se aqui, portanto, a sede de uma expressão coletiva. Os movimentos
pela paz (a “paz de Deus”), em um jogo de tensões com os movimentos pela guerra (as
cruzadas), falam eloqüentemente através dele. São Luís, tanto o indivíduo concreto como o
indivíduo imaginário, mostra-se aqui como construção de uma época – produto de um trabalho
coletivo que deve ser decifrado pelo historiador. É aliás este tenso diálogo entre a paz e a
guerra que Jacques Le Goff se permite recuperar, porque ele é um diálogo que se projeta
dentro de São Luís mas que, na verdade, corresponde a um diálogo que é inerente à sua
própria sociedade:

“Na época, fazer a paz entre cristãos e partir em cruzada contra os "infiéis" não
parece ser absolutamente contraditório. É preciso lembrar que São Luís está
profundamente impregnado pela concepção cristã de guerra definida por Santo
Agostinho. Segundo este, é justa toda guerra feita aos pagãos ou que vise
restabelecer a justiça onde existir injustiça (invasão territorial, por exemplo).
Aliás, é unicamente neste caso que Santo Agostinho admite a guerra entre
cristãos. E finalmente, para limitar as guerras, Santo Agostinho pretende que
elas dependam da ordem política, ou seja do Príncipe, único a ter o direito de
declarar a guerra e fazer a paz. Uma idéia que inspirará muito São Luís. Ao
abolir a guerra entre os fidalgos, mais uma vez ele acerta em dois alvos: pacifica
o reino e fortalece consideravelmente o poder real” (LE GOFF, 1996).
Vemos aqui como se cruzam todas as grandes questões da época no interior do
biografado. No caso, a desfeudalização, a centralização estatal, as aspirações imaginárias da
cristandade pela paz, a construção e o monopólio de um novo sentido de justiça, a oposição e
a alteridade em relação ao inimigo muçulmano  sem falar na intertextualidade que se
derrama sobre os modos de pensar a política e a vida a partir de Santo Agostinho ... todos
estes fios encontram o seu lugar nesta trama.

“finalmente, partir em cruzada também significa para São Luís uma maneira de
perpetuar a tradição de seus ancestrais, os reis cristãos, que remonta a 1095.
Suas outras motivações são de ordem religiosa, porque São Luís teve uma visão
da cristandade que compreende, do ponto de vista territorial, a Europa, onde o
cristianismo se instalou, mas também a Terra Santa, local de suas origens e da
presença mística do Cristo. Ao mesmo tempo em que São Francisco de Assis
preconiza na Terra Santa uma cruzada pela palavra, São Luís realizará uma
cruzada militar. Entretanto, no momento da entrega aos muçulmanos do resgate
que deveria libertá-lo, São Luís havia obrigado os de seu círculo a entregar-lhes
uma quantia espertamente retirada no momento da transação. Um senso de
justiça quase universal para a época...” (LE GOFF, 1996).

Construir uma biografia, desta forma, remete à necessidade de não apenas instaurar um
diálogo entre o indivíduo e a sociedade de sua época, mas também de dar voz aos diálogos que
atuam na própria constituição do indivíduo que vai sendo biografado. Este indivíduo também
constrói a si mesmo a partir destes diálogos, e reconstruí-los também faz parte do trabalho do
historiador. O indivíduo biografado, enfim, é ponto de encontro de muitos imaginários, de
muitas práticas e representações, de intertextualidades diversas, e tudo isto se agita no
redemoinho formado tanto pelas circunstâncias como pelos grandes processos históricos e
coletivos, de média ou de longa duração. A biografia sobre São Luís realizada por Jacques Le
Goff é representativa, postulamos, de um modo novo de biografar que é o da atual
historiografia profissional.

Mergulhadas e produzidas neste novo modus operandis, as biografias de personagens-


chaves da história, portanto, têm na atualidade um novo sentido que antes não comportavam.
Assim mesmo, apesar desta nova função da biografia-problema na produção historiográfica
profissional, continuarão sendo produzidas em quantidade as biografias de grandes homens no
estilo antigo. Jacques Le Goff queixa-se da proliferação destas biografias superficiais e
anedóticas que concorrem com as novas biografias-problema – biografias “incapazes de
mostrar a significação histórica geral de uma vida individual” (LE GOFF, 1989).
Com relação ao estilo, as novas biografias clamam por novos modos de narrar e por
novas possibilidades de perceber a natureza humana. Pierre Bourdieu, ao falar sobre a “ilusão
biográfica”, chama atenção para o fato de que mesmo as biografias elaboradas no seio da
historiografia profissional descrevem a vida individual ainda de maneira demasiado linear,
como um simplificado caminho teleológico que comporta “um começo (uma estréia na vida),
etapas e um fim, no duplo sentido de termo e de objetivo” (BOURDIEU, 1986: 62-63).
Pergunta-se pela multiplicidade de “eus” que cada um esconde dentro de si, pelos
diversos papéis que qualquer indivíduo precisa desempenhar na sua vida social
multidiversificada, pelas suas incoerências, pelas várias histórias que atravessam a sua vida
sem convergirem necessariamente para o mesmo fim. Pergunta-se pelos vários projetos
interrompidos que fazem de todo homem um “projeto inacabado”, como diria Jean-Paul
Sartre, e que nas biografias tradicionais têm as suas arestas aparadas para encontrar uma
coerência em um enredo central, ou que simplesmente são esquecidos quando se rebelam
contra o pensamento centralizador do biógrafo.
Esta multiplicidade de eus que a psicanálise já examina, e esta fragmentação da
unidade individual ou mesmo o desaparecimento do sujeito, que a moderna filosofia toma
como um de seus objetos privilegiados ... eis aí um universo de possibilidades que a literatura
moderna já explora, mas que a historiografia contorna em biografias que, embora já
problematizadas, continuam por vezes a serem teleológicas, portadoras da moral única que
orienta a trama, de um roteiro que apaga as incoerências internas e as muitas vidas dentro da
vida.
De qualquer modo, o antigo gênero e domínio historiográfico retorna anistiado para o
bem vigiado universo da historiografia profissional. Boas biografias históricas continuarão a
abundar na nova produção historiográfica, mas também na literatura histórica mais
romanceada, e em um caso ou outro teremos sempre um gênero que atrairá a atenção do
público leitor. Leitores de vários tipos e competências culturais poderão se comprazer com
biografias extremamente sofisticadas como a de Le Goff sobre São Luís, ou como a de
Christopher Hill sobre Oliver Cromwell. Mas também o leitor interessado em um outro tipo
de curiosidades históricas poderá sempre se deleitar com um farto material continuamente
presente na literatura produzida nestes dois últimos séculos, como alguma obra sobre A Vida
Amorosa de D. Pedro I ou coisas do gênero.

Será oportuno encerrar esta reflexão sobre os domínios historiográficos e este ensaio
chamando atenção, mais uma vez, para o fato de que – como qualquer campo de saber – a
História está fadada a permanentes transformações no interior do seu espaço disciplinar. Os
rearranjos internos serão sempre possíveis. E mais, o que está dentro da História um dia, como
objeto de estudo possível, pode se ver repelido para o seu exterior no outro dia. Será eficaz,
para retermos uma maior compreensão acerca das variâncias da disciplina historiográfica,
retomar um célebre trecho de A Ordem do Discurso, onde Michel Foucault esclarece como
ninguém o que é uma disciplina (em geral):

“uma disciplina se define por um domínio de objetos, um conjunto de métodos,


um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de
definições, de técnicas e de instrumentos: tudo isto constitui uma espécie de
sistema anônimo à disposição de quem quer ou pode servir-se dele”
(FOUCAULT, 1996: 30)

Este sistema anônimo, contudo, como faz notar Foucault logo adiante, está em
permanente mutação porque é aberto a expansões – na verdade ele depende para existir de
desencadear expansões. Conforme ressalta o filósofo francês, “para que haja disciplina é
preciso, pois, que haja possibilidade de formular, e de formular indefinidamente, proposições
novas” (FOUCAULT, 1996: 30).
E no entanto existe um incessante jogo entre o interior e o exterior da disciplina, e
entre um campo de estudos e o seu campo de objetos. A História (campo de conhecimento)
jamais será constituída por tudo o que se pode dizer de verdadeiro sobre a História (campo dos
acontecimentos). Para que uma proposição pertença à disciplina “História” de uma época, é
preciso que ela responda às condições desta disciplina tal como a definem ou definiram os
seus praticantes de então. A História, como qualquer outra disciplina, estará sempre repelindo
para fora de suas margens determinado conjunto de saberes, proposições e domínios que em
momento anterior poderiam ter estado ali, e que em um momento subseqüente da história dos
saberes e dos discursos já não estão. Ou, como registra Michel Foucault para todas as
disciplinas científicas em geral:

“O exterior de uma ciência é mais ou menos povoado do que se crê: certamente,


há a experiência imediata, os temas imaginários que carregam e reconduzem
sem cessar crenças sem memória; mas, talvez, não haja erros, em sentido estrito,
porque o erro só pode surgir e ser decidido no interior de uma prática definida;
em contrapartida rondam monstros cuja forma muda com a história do saber.
Em resumo: uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadas
para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina [...]”(FOUCAULT, 1996:
30)

A disciplina História atrai e repele objetos, domínios, proposições, métodos, práticas,


representações. Houve um tempo em que a hagiografia caía dentro da História, em que Deus
conduzia a História. Depois, no século XVIII, a História tende a se tornar imanente entre os
historiadores profissionais. Deus sai da História, e a deixa aos homens – ou, se ele permanece
na História, como ocorre com vários dos historiadores do século XIX, é como uma grande
sombra providencial que age através dos homens (mas não mais de milagres). Com o
Iluminismo, o mundo extrafísico ou sobrenatural parece ter sido definitivamente repelido para
fora da História. Voltará um dia? Atualmente, não se escreve uma história dos fenômenos
paranormais. Quem quer que queira historiar estes fenômenos terá de fazê-lo do exterior
histórico, já que este não é um dos assuntos de que tratam os historiadores profissionais.
Outros tantos exemplos poderiam ser dados. Os historiadores escrevem a História das
Ciências, dos saberes jurídicos, da Medicina, da Psiquiatria – mas quem historia a Astrologia
são os astrólogos (os historiadores só o fariam para avaliar socialmente ou culturalmente as
suas representações, para indagar pelas ideologias que se escondem por trás das
representações astrológicas, e assim por diante).
Há os exemplos políticos. O Nazismo entrou na história como monstro – quem quiser
historiá-lo com maior simpatia terá dificuldade em fazê-lo no interior dos círculos
historiográficos ocidentais. Deverá fazer isto do seu exterior, como simpatizante de uma
doutrina. Isto porque, na historiografia ocidental, o Nazismo é estudado no corpo dos estudos
dos autoritarismos, dos fanatismos, das patologias sociais, da violência. Não se estuda, por
exemplo, a Arte Nazista, a não ser ligada a um destes aspectos.
Um exemplo não muito distante de proposições que até então caíam como luvas para o
campo histórico, e que hoje são repelidas enfaticamente, refere-se ao circuito da “evolução” e
do “progresso”. Com os desenvolvimentos antropológicos, e com o auto-reconhecido
descentramento do homem europeu, já não se admite falar no campo da historiografia
profissional em “evolução de sociedades” (com aquele sentido próximo ao darwiniano).
Também já não se fala no “Espírito da Nação”, que teria animado as narrativas nacionalistas
de historiadores como Ranke ou Jules Michelet nos idos do século XIX. Estas proposições
estão atualmente em baixa – ou melhor, estão como que fora da órbita do campo histórico.
Exemplo mais recente de idas e vindas, agora já relativo a uma das antigas
especialidades da História, é o campo da História das Civilizações. Com Arnold Toynbee
(1953), este domínio parecia ter conhecido o seu último grande investimento. No final do
segundo milênio, ele parece querer voltar com toda a força, pelo menos a julgar pelo impacto
de O Choque das Civilizações de Samuel P. Huntington (2000).
Exemplo importante de resgate de um domínio ou de uma prática historiográfica – que,
depois de ter sido expulsa da órbita da historiografia profissional pela ojeriza ao factual dos
anos 1930, começa a ser atraída de novo pela sua gravidade – é este gênero que poderia ser
descrito como “história de acontecimento” (a descrição de uma batalha, por exemplo). O
primeiro sinal foi dado por Georges Duby, quando aceitou em 1968 escrever um livro sobre o
Domingo de Bouvines (famosa batalha na história da Idade Média francesa). O seu prefácio
para esta obra é precisamente uma justificativa para a sua aceitação, como historiador
profissional, em retomar este gênero (DUBY, 1993).
Para pontuar com um último exemplo de domínio que veio à tona, é bastante lembrar
que a História da Loucura só começou a ser historiada recentemente. E naturalmente que
começou a ser historiada do ponto de vista de uma racionalidade que desde já a imobiliza,
com a exceção do trabalho pioneiro de Foucault (FOUCAULT, 1978). Mas, em todo o caso, é
um tema que começa a entrar na moda – a invadir a órbita do historicizável. Desta forma, o
que um dia esteve no exterior histórico é hoje atraído com menor ou maior força para o núcleo
historiográfico, tal como vimos acontecer com os vários objetos descontraídos ou desvendados
pela História das Mentalidades, pela História Vista de Baixo, pela Micro-História. Da mesma
forma, os assuntos mais amplamente tratados pela história, hoje, poderão um dia ser repelidos.
Isto novamente produzirá reviravoltas nos domínios históricos, nas suas dimensões, nas suas
abordagens.

Chegamos ao fim desta reflexão sobre os domínios da História e seu incessante


surgimento, desaparecimento, deslocamento e mutabilidade. Para além dos domínios e
campos aqui comentados, o leitor de História poderá continuar contando cada vez mais com
uma multidão de novos objetos. Os domínios multiplicam-se. Tal como foi se discutiu em
ensaio mais desenvolvido sobre o assunto (BARROS, 2004), a profusão de uma infinidade de
domínios da História nos quais foram se especializando diversos historiadores é decorrente de
um duplo processo. De um lado, lembramos que esta profusão inscreve-se na tendência dos
saberes modernos à hiper-especialização crescente. Por outro lado, a chamada “pulverização
da História” é a decorrência mais visível da crise dos grandes modelos explicativos e do
declínio das ambições totalizadoras dos historiadores ocidentais que, notadamente na época de
Fernando Braudel e em algumas das abordagens marxistas do início do século, almejavam
construir exclusivamente “histórias-sínteses”.
Atualmente, a historiografia ocidental mostra-se como um grande vitral de
possibilidades. Para retomar a imagem empregada no primeiro capítulo do ensaio mencionado
(BARROS, 2004), vivemos a época de Clio Despedaçada. A História partiu-se em muitos
fragmentos; os editores recolhem as suas migalhas para vendê-las a preço de ouro a uma
multidão de consumidores que não cessam de se interessar pelos mais variados objetos
historiográficos. Há os que preferem se deleitar nas sofisticadas tabelas de logaritmos que
abundam nos ensaios de História Econômica, há os que preferem as aventuras cavalheirescas
que os conduzirão aos castelos medievais. Há os que se interessam pelo Poder em todas as
suas formas, e existem os que, confortavelmente sentados em salões de luxo, têm alguma
curiosidade a respeito da história dos marginalizados. Talvez existam os leitores do sexo
masculino que ainda hoje destratem suas mulheres na alcova de seus casamentos e que
busquem na poeira dos tempos os seus pares na misoginia dos tempos antigos; ou que, ao
contrário, achem-se perplexos diante das conquistas femininas do último século e por isto
sonhem secretamente com um tempo em que os homens dominavam explicitamente as
mulheres. E haverá também os que nas páginas da historiografia profissional buscarão a
aventura ou as raízes de sua nacionalidade, a origem de seu pessimismo ou de seu otimismo
com relação aos seres humanos, ou quem sabe um conforto para os seus medos presentes e
futuros.
Estes são os leitores comuns, que consomem História como qualquer outro gênero
literário. Já os historiadores vivem seus temas por vocação ou por necessidade profissional, e
repartem-se naqueles que pretendem dar uma feição mais artística ao seu trabalho e naqueles
que buscarão aproximá-los mais rigorosamente de um imaginário da ciência concebida de
acordo com os parâmetros da racionalidade da última hora, sem contar os que esperam com o
saber histórico transformar a própria História. Entre os historiadores profissionais – não há
como evitar (e nem talvez porque evitá-lo) – os compartimentos se multiplicam.
Dimensões, domínios e abordagens são fundamentalmente os critérios distintivos que
podem ser empregados para criar subdivisões no interior do Campo Histórico. Critérios que
não se misturam, mas que eventualmente se complementam. O importante é deixar claro que
as ‘dimensões’, ‘abordagens’ e ‘domínios’ da História articulam-se de múltiplas maneiras, e
que não se trata de o historiador encontrar um compartimento para dali empreender um
trabalho isolado e hiper-especializado. Muito da confusão que tem sido estabelecida em torno
destas classificações decorre daquelas grandes coletâneas de artigos, escritas por diversos
autores, em que são apresentados desavisadamente os diversos campos da História sem ser
desenvolvida uma explicação mais sistematizada de que existem diversos critérios imissos ali
envolvidos.
Outrossim, mesmo dentro das divisões geradas por um mesmo critério de coerência, é
possível perceber que existem abundantemente as possibilidades de interfaces e
interpenetrações, as combinações de duas ou três dimensões historiográficas, as convivências
de duas ou três abordagens, seja por alternância ou por complementaridade, e por fim as
ambigüidades e objetos comuns aos vários domínios. Apenas para mencionar uma última vez
uma vez o problema das ‘dimensões’ da realidade social, existem pelo menos três delas que
são extremamente complexas e de certo modo deixam suas marcas em todas as outras: a
Política, a Cultural e a Social. De alguma maneira, tudo nas relações humanas é perpassado
pelo “poder” nas suas múltiplas formas (macro-poderes e micro-poderes), tudo o que é
humano é parte da “cultura” no seu sentido mais amplo, e o “social” pode estar identificado
com a própria sociedade. De qualquer modo, a historiografia será sempre um campo
complexo, que resiste às subdivisões, o que não impede que elas sejam pensadas como
parâmetros mais gerais de orientação.
Por fim, resta retomar aquele alerta a que havíamos chegado na primeira parte deste
texto. Ter plena clareza do solo particular em que está sendo estabelecida uma determinada
ação historiográfica (uma pesquisa, por exemplo) não deve servir de pretexto a uma
insuficiente hiper-especialização que por vezes é bem intencionada, mas por outras vezes é
preguiçosa ou oportunista. No mundo dos especialistas, onde por vezes são convocados para
receber cifras significativas aqueles que falam javanês, é uma tentação sempre presente tornar-
se uma grande orelha, um grande olho ou uma grande boca, para utilizar uma significativa
metáfora de Friedrich Nietzsche (1976).
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TOYNBEE, Arnold. Um Estudo de História, Rio de Janeiro: Jackson Ed., 1953.


O debate na historiografia marxista brasileira sobre trabalhadores rurais
no século XX
Manoela Pedroza15

RESUMO
Sabendo que foi dentro da corrente marxista que se processou a maior parte das discussões
teóricas e políticas sobre o “problema do campesinato” em países capitalistas, com grande
influência na academia brasileira, o objetivo deste artigo é analisar a forma com que o
campesinato e a questão agrária se estruturaram como objetos de estudo para as ciências
humanas no século XX, a partir da aceitação ou rejeição das teses de Karl Marx e das
transformações econômicas e sociais ocorridas, sobretudo, fora do mundo acadêmico.
Optou-se pela análise dentro do campo da historiografia marxista brasileira, entre as
décadas de 1930 e 1980, tentando entender os motivos pelos quais esta área do
conhecimento não incorporou as discussões e novos conceitos sobre a ‘questão camponesa’
que estavam sendo formulados em outros campos.
Palavras-chave: campesinato, questão agrária, debates.

ABSTRACT
The objective of this article is to analyze the form that the “peasantry” and agrarian
question have rendered itself as objects of study for humans sciences in the XX century,
with point of start: the accept or rejection of the Karl Marx’s thesis and the economic and
social transformations that occurred over all outside of the academic world. The option was
made for the analysis over all inside the Marxism field, not forgetting that in this tendency
that the majority of the theoretical and politic discussions were made and it was the most
important influence for the debates in the Brazilian academic.
Key words: peasantry, agrarian question, debates.

Introdução: Capitalismo no campo: um tabu para a historiografia?

Os pesquisadores de história agrária brasileira, ou das histórias dos homens e


mulheres que viveram de seu trabalho no campo, têm uma série de dificuldades que já
foram muito lamentadas: o difícil acesso às fontes documentais, a descentralização e
desorganização dos arquivos, os diversos interesses políticos e econômicos contrários à que
se mexa nesse assunto, entre outros. Mas, ainda há um outro tipo de problema, ligado aos
campos disciplinares e seus respectivos instrumentais teóricos e metodológicos que lidam
com este objeto, que conformaram atualmente a situação de que quase não há trabalhos de
História sobre este grupo social, ao passo que eles abundam em outras disciplinas, como a
Sociologia, a Economia, a Geografia e a Antropologia.
Trabalhos sobre ‘universo rural’ ou ‘mundo do trabalho agrícola’ na Grécia antiga,
na França medieval, nos impérios asiáticos, entre outros exemplos, são numerosos e muito
ricos em suas análises (CARDOSO, BOUZON & TUNES, 1990; CARDOSO, 1985; 1994;
DUBY, 1962). O problema se coloca quando lidamos com estes grupos de trabalhadores na
história contemporânea, sobretudo no século XX. Explicando com outras palavras, a
questão que se tornou tabu é a relação destes grupos de trabalhadores/as com o
desenvolvimento industrial e a conseqüente penetração capitalista no campo, processos
marcantes em nosso país após 1930.
Mais do que um fato consumado que deva ser lamentado como leite derramado, vou
encarar estas opções acadêmicas de recortes temporais e temáticos como históricas, frutos
de dois outros processos: primeiro, o papel político que foi sendo atribuído aos camponeses
desde os primeiros escritos de Marx até a década de 1970; segundo, as sucessivas clivagens
e o enrijecimento das ossaturas dos campos acadêmicos nas áreas das ciências humanas.
Minha hipótese é que a compreensão ampla destas relações entre campos acadêmico e
político – por vezes negligenciada – é o que pode tornar inteligível este dar de ombros da
historiografia do mundo do trabalho em relação ao trabalhadores e trabalhadoras do campo.
Por isso, o objetivo deste artigo é sondar as causas do silenciamento da historiografia no
debate a respeito de grupos camponeses no século XX.

Parte 1: estudos sobre campesinato

O primeiro pesquisador contemporâneo que se debruçou sobre o problema da


relação difícil entre campesinato e capitalismo se situava na fronteira entre a história e a
sociologia: Karl Marx. Ele nos legou um vasto campo conceitual utilizado pelas ciências
humanas até nossos dias para análise e explicação do problema (MARX, 1991)16. Sobre a

16
Max Weber também travou uma discussão a respeito da especificidade ou não da economia da Grécia
Antiga, que em certo sentido pode ser considerada camponesa. Cf WEBER, Max. General Economic
History. New York. Colliers. 1961. Para uma revisão deste debate sobre o Oikos ver POLANYI et al.
Trade and Market in the early empires. New York. The Free Press. 1957.
relação entre o camponês e o capitalismo, a que chamou de questão camponesa, a
conclusão que Marx expressa no 18 brumário é de que

"Os pequenos camponeses constituem uma imensa massa, cujos membros vivem em
condições semelhantes mas sem estabelecerem relações multiformes entre si. Seu
modo de produção os isola uns dos outros, em vez de criar entre eles um intercâmbio
mútuo (...) a grande massa da nação francesa é assim, formada pela simples adição
de grandezas homólogas, da mesma maneira por que batatas em um saco constituem
um saco de batatas (...) na medida em que existe entre os pequenos camponeses
apenas uma ligação local e em que a similitude de seus interesses não cria
organização política, nessa exata medida não constituem uma classe" (MARX, 1969:
115).

Neste trecho, conhecido como 'metáfora do saco de batatas', Marx utilizou os


conceitos de classe social, relações sociais, organização política e modo de produção (já
aplicados na análise do sistema capitalista) ao estudo do caso específico do campesinato
francês na segunda metade do século XIX. Ao fazer isso ele tinha duas intenções distintas:
por um lado tentava investigar teoricamente um grupo social não capitalista com um
instrumental cunhado para análise do capitalismo, mas também intervir politicamente na
luta social perdida pelo proletariado francês com o golpe de Luiz Bonaparte.
O uso desse instrumental levou Marx a duas conclusões na análise do campesinato:
a primeira é que, enquanto a estrutura capitalista -- as condições de exploração fabris, as
tensões entre trabalho social e apropriação privada, a vivência coletiva da exploração --
possibilitaria ao proletariado forjar sua consciência de classe para si e, ao final, acumular
forças para derrubar esta mesma estrutura e implantar o socialismo; no universo rural
tradicional a estrutura social fazia o trabalho contrário: isolava os camponeses, criando
neles o senso de manutenção de suas pequenas propriedades ao invés do sentimento de ação
coletiva revolucionária.
A segunda tese, decorrente da primeira, era que os camponeses existiriam como
vestígios do passado feudal, sem papel funcional no momento em que viviam. Em sua
visão evolutiva das relações sociais, o camponês tradicional para Marx seria parte de um
passado pré-capitalista, cujo sentido histórico só poderia ser o desaparecimento no novo
sistema que se afigurava. Isso porque a totalidade do sistema capitalista não seria baseada
no modo de produção camponês, isto é, ele não seria uma relação social determinante para
seu desenvolvimento. O capitalismo então se relacionaria com o campesinato apenas como
contingência histórica a ser paulatinamente eliminada pela diferenciação social dos
camponeses em proprietários ou proletários rurais. Neste sentido, a estrutura capitalista que
Marx propôs se desenvolveria, inexoravelmente, engolindo as relações de produção
tradicionais, num processo de expansão que chegaria a ser total (em profundidade) e global
(em extensão).
Esta ficou sendo a mais lembrada posição de Marx a respeito do campesinato,
embora não seja a única. Essa é a idéia básica do paradigma marxista sobre a questão
agrária, e daí se inicia uma série de estudos que, de maneira valorativamente negativa,
caracterizaram a estrutura social do modo de vida camponês como contendo uma série de
características específicas que impediriam ou dificultariam sua ação coletiva.17 Essa linha
de pensamento pode ser verificada sobretudo nos textos de Karl Kautsky (1980) e de
Vladimir Lênin (1982), seus seguidores.
Karl Kautsky era ativista e pensador influente do Partido Social Democrata Alemão.
Ele defendeu que os camponeses eram burgueses por serem proprietários, e a pequena
propriedade camponesa deveria ser aniquilada pelo capitalismo pelo seu atraso técnico,
cunhando os termos "industrialização da agricultura" e "lei tendencial de concentração da
propriedade" (Kautsky, 1980). Para Kautsky “a expropriação do pequeno produtor e a sua
transformação em trabalhador rural assalariado seria, portanto, não apenas um processo
inevitável – decorrência necessária do desenvolvimento do capitalismo no campo – como
também positivo” (Araújo, 2002:66). Ele elaborou, desdobrou e generalizou o exemplo
inglês de Marx para produção industrial n’O Capital, vol. I parte 8 (Shanin, 1980; Araújo,
2002; Hegedüs, 1984).
Depois dele, Lênin vaticinou a aldeia camponesa russa -- o mir -- como um
resquício da sociedade feudal que devia ser totalmente destruído e dar lugar ao capitalismo
agrário.18 Debatendo diretamente com os populistas russos, para ele o desenvolvimento do

17
Michael Duggett, baseando-se sobretudo nos Grundrisse [MARX, 1991] matiza a forma taxativa exposta
em Marx dizendo que se deve considerar a dificuldade teórica deste em conceituar o campesinato como
classe ou não a partir de um instrumental que se aplicava bem para o proletariado urbano e para os clubes
da burguesia, mas não para camponeses dispersos em um vasto país. A essa busca por rigor teórico e
intervenção política atravessa toda a produção teórica marxiana sobre o campesinato, mas não foi
concluída a ponto de ter sido possível, após sua morte, que diversos intelectuais no campo do marxismo
formulassem conclusões ou opiniões distintas a respeito dos mesmos textos (DUGGETT, 1976).
18
LENIN, V. O desenvolvimento do capitalismo agrário na Rússia, original de 1899. O mir russo
funcionava como controlador e distribuidor de terras segundo critérios costumeiros que não obedeciam ao
código civil russo. Ao analisar a situação em que as famílias camponesas mais ricas eram beneficiadas na
distribuição das terras porque com freqüência agregavam novos membros, Lênin concluiu que essa
situação estaria contribuindo para a diferenciação social e a criação de classes sociais antagônicas no meio
rural russo (Moura, 1986). Segundo Hamza Alavi, foi por esse motivo que, mesmo mudando suas táticas
capitalismo no campo implicaria na extinção pela diferenciação social dos camponeses
feudais em burguesia agrária, pequenos burgueses ou proletários rurais. Essa proposição
poderia não ter tido tanta repercussão não fosse o sucesso político de Lênin após 1917. A
partir daquele momento, suas teses tiveram decisiva influência nas posteriores gerações de
marxistas no que concerne ao debate sobre campesinato e capitalismo, e seus escritos
dominaram as análises de sociedades camponesas na III Internacional e nos movimentos
comunistas do Leste Europeu19 (Shanin, 1980:54; Hegedüs, 1984).
Essa concepção marxista dominante compreendia o desenvolvimento histórico em
etapas: do feudalismo ao capitalismo e deste ao socialismo. A partir dela, o VI Congresso
da III Internacional, realizado em 1928, determinou uma estratégia revolucionária a ser
adotada por todos os países do terceiro mundo: a realização de uma revolução burguesa,
nacional e democrática, de caráter anti-imperialista e anti-feudal, que primeiro alçaria esses
países à condição de capitalistas para depois poderem, com suas massas proletárias no
campo e na cidade, chegarem ao socialismo (Araújo, 2002). Veremos mais adiante a
repercussão dessas políticas no Brasil.
Com raras exceções, as correntes marxistas hegemônicas neste campo político
exacerbaram as interpretações que Marx fez sobre a França e a Inglaterra no século XIX
para todo o mundo. A preocupação com a problemática da transformação capitalista no
campo foi expressa em dois debates conceituais: a diferenciação do campesinato e a
especificidade ou não de um 'modo de produção camponês' (SHANIN, 1980: 53). Tudo
isso a partir do critério de propriedade ou expropriação da terra como definidor dos grupos
sociais camponeses, e as possibilidades de sua organização política mecanicamente
decorrentes.
É claro que isso não aconteceu sem matizes nem contradições. Porque o significado
político do conceito camponês garantiu uma periodicidade em seu próprio uso, sempre
refletindo a história social em sentido amplo, mas, também, uma dinâmica específica do
pensamento acadêmico. A exemplo disso, podemos perceber que até o começo do século
XX, na Europa do Leste, a sociologia rural e a economia agrária contribuíram enormemente
para os trabalhos sobre a especificidade da economia camponesa. Como passavam por um

políticas em 1905, os bolcheviques jamais chegaram a conseguir uma base sólida junto ao campesinato
russo (Alavi, 1969: 311). Sobre esse assunto ver também Hegedüs, 1984.
19
Isso não quer dizer que a obra de Lênin não possa ter mudado no que trata do campesinato. Mas essa
discussão já foge dos objetivos deste capítulo. Para aprofundar as discussões, ver Shanin, 1980, parte 3.
momento de profundas mudanças econômicas (industrialização) e políticas (ascensão dos
movimentos nacionalista, populista e socialista), o debate sobre o conceito e repercussões
do campesinato que se produziu neste período formou a maior parte do instrumental
conceitual e ideológico relevante de que hoje dispomos, sendo bons exemplos os trabalhos
de Galeski (1972) e Chayanov (1966).

Esta torrente de estudos foi interrompida nas décadas de 20 e 30 do século passado e


passou por um longo silêncio forçado, provocado pela polarização ideológica, pela intensa
vigilância na produção acadêmica do leste europeu e, posteriormente, nas décadas de 40 a
60, pelo auge das "teorias da modernização pós-coloniais" (SHANIN, 1973). O sentimento
geral era de que o desenvolvimento e a modernização incessantes situavam os camponeses
na jaula do rústico, do tradicional e da bruxaria, junto com tudo o que seria fatalmente
relegado a segundo plano nas preocupações de quem era "progressista". Uma taxonomia
básica de moderno/tradicional (com uma implícita suposição nós/eles) tornou os
camponeses terminologicamente invisíveis, dentro do pacote geral dos "tradicionais" e
outros exóticos, que ficavam a cargo dos estudos antropológicos (SHANIN, 1973: 72)
Na década de 60, quando houve uma sucessão de crises dos países pobres e da
agricultura mundial, com o colapso das prescrições modernizantes simples e rápidas, a
decisão da China de 'andar com os próprios pés' e a conseqüente descoberta de uma
tenacidade camponesa (sobretudo depois que camponeses derrotaram a potência mais
moderna do mundo no Vietnã), essa situação mudou. A análise apurada do conjunto destes
fatos mostrou aos pesquisadores do tema que as profecias de fim do campesinato
propaladas pelos clássicos de Marx (1991, 1969, 1968-1983, 1978), Lênin (1982) e Kautsky
(1980) efetivamente não se realizaram. Mesmo nos países desenvolvidos o pequeno
produtor não se tornou necessariamente miserável, nem se tornou proletário rural, e o
progresso técnico não foi incompatível com a produção familiar (ABRAMOVAY, 1992).

Se o camponês tornou-se um fascinante e problemático tema de estudo


contemporâneo, foi exatamente porque os esquemas que o interpretavam como
resíduo de uma formação social anterior, como resquício ou sobrevivência de épocas
passadas, revelaram-se um instrumento analítico e conceitual inadequado à
apreensão de sua condição social viva em tantas regiões agrárias (MOURA, 1986:
68).
Estes fatos históricos contundentes fizeram com que pesquisadores buscassem, a
partir de então, encontrar ou cunhar outras maneiras de explicar a relação do capitalismo
com o campesinato. Campos disciplinares distintos resgataram autores esquecidos e
criaram um novo aparato conceitual para a análise dos camponeses no mundo. Em
benefício do próprio objeto de análise, vários aspectos da estrutura social camponesa foram
enfocados: o geral e o específico, a escala nacional e o nível da unidade familiar de
produção, entre outros. Para embasar esse esforço, vieram a tona as teses de Alexander
Chayanov20 que, ainda na década de 1920, tivera a preocupação de melhor conhecer a lógica
que presidia a tomada de decisão pelos agricultores russos, na URSS recém criada. Mas,
essa retomada de interesse já não se processava no mesmo contexto de antes. Neste meio
tempo, as estruturas acadêmica mundial e brasileira se segmentaram em campos com seus
próprios objetos e métodos preferidos. “O afastamento entre os campos disciplinares e sua
falta de comunicação levou a várias 'redescobertas' de coisas que já eram conhecidas por
outras disciplinas, além de várias formas de mútua ignorância e até hostilidade”
(ABRAMOVAY, 1992: 47). Penso que um desses casos se deu nos estudos sobre
camponeses no Brasil. Vejamos mais a fundo as particularidades deste processo.

Parte 2: O debate sobre o campesinato no Brasil

No Brasil, a trajetória dos estudos sobre campesinato também se relacionou


intimamente com os diferentes momentos e transformações da questão agrária e camponesa
no país, daí a necessidade de reconstituir aqui o processo de conformação da questão
agrária tanto no campo econômico e político quanto em suas decorrências no campo
acadêmico brasileiro.
O conceito de camponês referia-se originalmente a um grupo social bem localizado
estrutural e historicamente, [os camponeses feudais europeus] não sendo criado pelos
cientistas sociais, mas tendo sido apropriado por estes (Velho, 1979:41). No Brasil, a
situação do camponês não se equipara com o caso camponês clássico nem mesmo com

20 Alexander Chayanov, russo, foi professor e trabalhou no Instituto Agrário de Moscou ainda nos tempos do czar, sendo Ministro da Agricultura depois da
revolução de 1917 e durante toda a década de 20, quando organizou cooperativas agrícolas de pequeno e médio porte na URSS. Terminou eliminado pelos
expurgos de Stálin. Um balanço de sua biografia e pesquisas pode ser encontrado em Abramovay, 1998: cap 3, e Araújo, 2002, e na palestra proferida por
Theodor Shanin em http://www.msses.ru/shanin/chayanov.html.
outros países latino-americanos onde sobreviveram comunidades indígenas. A definição
conceitual dos homens e mulheres que trabalham no campo brasileiro foi, portanto, fonte de
polêmicas, geradora de muitos debates dentro e fora das ciências humanas.
Mesmo assim, nas décadas de 1930 e 40 não houve propriamente uma discussão
nacional sobre a questão agrária. Isso porque o Estado, que se instaurava com o golpe de
1930, em grande parte pactuava com as oligarquias rurais, que mantinham seu velho estilo
de produzir e dominar. Se esse pacto, por um lado, não impediu que os capitais gerados no
setor primário passassem a viabilizar o processo de industrialização crescente, fazendo com
que esses antigos "donos" do Estado perdessem a partir de então sua posição dominante
dentro desse aparelho, por outro condicionou essa subordinação geral do setor agrícola à
não intervenção estatal direta sobre ele. Isso se materializou economicamente no assim
chamado "complexo rural"21, que possibilitou a manutenção por mais algum tempo das
formas de propriedade, poder e trabalho tradicionais (Oliveira, 1987; Martins, 1981; Facó,
1976; Leal, 1949; Medeiros, 2002).
Os estudos sobre homens e mulheres pobres das áreas rurais mudaram
completamente seu teor a partir dos anos 50. Essa mudança teve relação direta com o
afrouxamento da costumeira 'obrigatoriedade da não modernização' no campo brasileiro,
que começava a ser posta em xeque nos anos do desenvolvimentismo. A crença geral de
que o país alcançaria em pouco tempo o "primeiro mundo" se chocava frontalmente com a
situação de "atraso" e "arcaísmo" na zona rural, para usar os termos da época. Assim, a
partir desses anos, malgrado a vontade do setor latifundista mais conservador de que a
questão agrária continuasse a não existir, crescia o debate sobre as possibilidades de
transformações no universo rural, tanto da "esquerda-revolucionária" quanto do Estado. Ao
mesmo tempo, esses anos presenciaram a progressiva publicização tanto a partir da
identidade política de camponês quanto dos problemas que enfrentava, produto de um
conjunto de lutas sociais por certos direitos trabalhistas, sociais e agrários dessa categoria
que se firmava enquanto classe social (Medeiros, 2002).
O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1977) trabalha com a noção de identidade
como um produto de lutas. Para ele, a representação que os grupos fazem de si mesmos e
dos outros contribui, em grande parte, para fazer deles aquilo que eles são e o que fazem.
21
Por complexo rural entendemos um conjunto intrincado de atividades agrícolas e manufatureiras
indissoluvelmente ligadas e internalizadas nas fazendas, que reproduziam em nível local os setores
agrícolas e manufatureiros que eram a base da economia colonial brasileira. Mais detalhes em Silva, 1996.
Essa representação, por sua vez, não é um dado ou um simples reflexo, mas fruto de ações
de construção que se realizam a cada momento, nas lutas entre os grupos para imporem a
representação do mundo social mais de acordo com os seus interesses. Dessa forma, uma
das facetas da dominação estaria, justamente, na imposição de uma representação do mundo
social. Ela incidiria sobre a produção da identidade social do dominado. Os grupos
dominados se constituem, assim, naquilo que Bourdieu chama de uma “classe-pour-autri”,
isto é, uma classe que conta com uma verdade objetiva de si mesma que não foi ela quem
produziu. E de todos os grupos dominados, aquele onde isto se colocaria de forma mais
evidente seria o campesinato (Grynspan, 1987:86). Entenderemos o processo de disputa
entre mediadores políticos segundo a teoria de Pierre Bourdieu, que nos diz que as lutas
travadas no campo político têm uma dupla determinação: ao mesmo tempo são lutas entre
os seus agentes (os próprios mediadores) pelo poder, e são também lutas pelos grupos
sociais que se encontram fora do campo.
Moacir Palmeira, antropólogo do Museu Nacional da UFRJ, em um texto e um
artigo publicado na coletânea Igreja e Questão Agrária (Palmeira, 1985, 1975), se ocupou
de duas questões: o porquê da diferença na periodização dos sindicatos de trabalhadores
rurais em relação aos sindicatos urbanos no Brasil, e o papel da CONTAG e do
sindicalismo rural na formação da identidade política camponesa. Privilegiando a análise
de relações de poder, o autor defendeu que foi a diferenciação política do campesinato e a
redefinição das relações entre este e o Estado que possibilitaram a “internalização da luta de
classes”. Parte desse processo complexo se deveu à substituição de mediadores tradicionais
por novos, capazes de introduzir novas diferenciações sociais no seio da comunidade
camponesa tradicional. Por fim, a autor concluiu que foi a mobilização política que gerou o
campesinato no Brasil como uma identidade política nova. Algumas das hipóteses
sugeridas nesse pequeno artigo de Moacir Palmeira parecem ter suscitado uma série de
novas questões para estudos posteriores, como demonstra sua constante citação.
É nesse ponto da conjuntura política e econômica brasileira, momento de intensas
transformações, que se situam os debates sobre a “questão camponesa” dentro do Partido
Comunista Brasileiro. Um dos primeiros pesquisadores comunistas a tentar definir a
especificidade desse grupo social foi Caio Prado Jr., ainda na década de 1940, com a
intenção de
"dar à expressão campesinato um conteúdo concreto e capaz de delimitar uma
realidade específica, dentro do quadro geral da economia agrária -- trabalhadores e
pequenos produtores autônomos que, ocupando embora a terra a títulos diferentes --
proprietários, arrendatários, parceiros... -- exercem sua atividade por conta própria.
Esse tipo de trabalhadores, a que propriamente se aplica e que se deve reservar a
designação de camponeses, forma uma categoria econômica e social caracterizada e
distinta dos trabalhadores dependentes que não exercem suas atividades produtivas
por conta própria e sim a serviço de outrem (...) (PRADO JR., 1966, 204/5)".

O primeiro aspecto bastante conhecido da atuação política de Caio Prado Jr foi a


posição crítica assumida por esse intelectual comunista em relação à linha e às práticas do
PCB, críticas que ficam evidentes sobretudo nos seus dois últimos textos publicados na
Revista Brasiliense em 1963 e 196422, o que acabou lhe conferindo uma imagem de
“intelectual maldito”.
Dentre essas críticas, consagrou-se como mais importante a que considerava uma
desatenção das “forças políticas de esquerda e progressistas” à luta pela ampliação da
“legislação social-trabalhista para o campo”23, que seria para Caio Prado Júnior o caminho
mais eficaz para a solução da questão agrária no Brasil, deixando claro seu desacordo com
a tese dos “restos feudais”, sustentada oficialmente pelo PCB e por outras forças políticas
“nacionalistas”. Para ele, somente uma interpretação amparada em modelos vindos de fora,
aplicáveis às situações históricas verificadas na transição do modo de produção feudal para
o capitalista na Europa, explicariam o estímulo dado pelas “forças de esquerda” às
reivindicações tipicamente camponesas e a “subestimação” do potencial transformador da
implantação de uma “legislação social-trabalhista” no campo.
Na visão de Caio Prado Júnior, a ênfase dada pelas “forças políticas de esquerda”,
entre elas “os comunistas”, ao entendimento da reforma agrária como o parcelamento das
grandes propriedades de terra era provocada por um grave erro teórico cometido por essas
forças e seus intelectuais. Caio Prado Júnior interpretava os “acentuados traços servis”

22
É importante notar, porém, que em resenha do livro Manual de Economia Política, publicado pelo
“Instituto de Economia da Academia de Ciências da URSS” (tradução espanhola), presente no n. 5 da
Revista Brasiliense (maio-junho de 1956), Caio Prado Júnior já acusava a impropriedade do uso do
“modelo colonial” que analisava a questão agrária brasileira em termos de “restos feudais”. No entanto,
nesse texto de 1956, não apontaria com tanta veemência, como aconteceria nos artigos de 1963 e 1964, os
erros políticos provocados ao se considerar a existência de um importante setor camponês no Brasil
(FRIED DA SILVA, 2005).
23
Caio Prado Júnior, “O Estatuto do Trabalhador Rural”, Revista Brasiliense, n. 47, maio-junho de 1963, p.
1.
verificados nos “setores mais atrasados do país” como permanências do longo período de
utilização da mão-de-obra escrava no Brasil24.
A negação da existência dos camponeses no Brasil por Caio Prado Júnior pode ser
considerada um desenvolvimento de formulações anteriores nas quais defendeu que o
Brasil seria capitalista desde a origem, premissa que fundamentou toda uma corrente de
interpretação historiográfica que se consolidou a partir da Universidade de São Paulo
(USP). A partir de uma visão circulacionista, todo um conjunto de pesquisadores concluiu
que o Brasil participou de uma suposta fase comercial do capitalismo através de sua
inserção no circuito mercantil formado no Atlântico com a expansão marítima européia
iniciada na passagem do século XV para o XVI. Inserção com um papel bem definido, qual
seja, o de fornecer matérias-primas produzidas em grandes propriedades monocultoras que
se utilizavam largamente de mão-de-obra escrava.
Em linhas gerais, Caio Prado Júnior lançou as bases desse modelo interpretativo no
livro Formação do Brasil Contemporâneo. No texto “O sentido da colonização”, o autor
apontava os “objetivos” que, na sua opinião, nortearam a montagem da colônia portuguesa
na América, isto é, servir como espaço de exploração. Podemos perceber ainda hoje uma
relativa influência da tese do “capitalismo desde a origem”, principalmente entre os
historiadores paulistas. Sem podermos avançar na discussão sobre os modelos
interpretativos de nosso passado colonial, é importante apenas ressaltar que o debate entre
Caio Prado Júnior e os intelectuais que defendiam a “tese feudal”, entre eles Alberto Passos
Guimarães, passava por uma disputa sobre o passado do país, pois era na história colonial
que buscavam alicerçar suas posições.
Em concordância com Carlos Maurício Fried da Silva, em importante balanço da
obra de Caio Prado Jr sobre a questão agrária (2005), consideramos que a negação da
existência da “classe camponesa” no Brasil no pensamento de Caio Prado Júnior já se
encontra devidamente superado na historiografia, principalmente com as pesquisas que se
desenvolveram inspiradas na idéia de “brecha camponesa” presente na obra de Ciro
Cardoso e Jacob Gorender, demonstrando a existência de setores camponeses nos períodos

24
Idem, ibidem, p. 12.
colonial e imperial da história do Brasil 25, quando se desenvolveu novo modelo explicativo
que se convencionou denominar de “modo de produção colonial-escaravista”26.
Mas também é importante frisar, sobretudo em um balanço historiográfico, que a
peremptória negação da existência de uma agricultura camponesa no Brasil sustentada por
Caio Prado Júnior nos seus dois textos publicados na Revista Brasiliense nos anos de 1963
e 1964 não é encontrada nos seus artigos anteriores presentes nessa mesma revista. Antes,
Caio Prado Júnior reconhecia a existência dos camponeses no Brasil e a importância da
desconcentração da propriedade fundiária como política de reforma agrária para o país27.
Mesmo nestes últimos textos, o reconhecimento, mesmo que indireto, da existência de um
setor camponês pode ser percebido na importância que deu à reforma agrária entendida
como parcelamento das grandes propriedades e posterior distribuição para os “trabalhadores
sem terra”28.
Carlos Maurício Fried da Silva (2005) sustenta que o próprio raciocínio do autor se
modificaria durante os anos. Nos principais artigos produzidos sobre a questão agrária, nos
anos de 1960 e 1962, além de colocar como primeira tarefa da reforma agrária a
desapropriação das grandes propriedades de terra e não a extensão da “legislação social-
trabalhista” para os “trabalhadores rurais”, Caio Prado Júnior defendeu que uma maior
oferta de terras criaria melhores condições para o desenvolvimento das lutas dos
empregados rurais por melhor remuneração. Já nos textos produzidos nos anos de 1963 e
1964, defenderia o contrário, isto é, que a ampliação dos direitos trabalhistas para o campo
levaria ao parcelamento da terra, já que a aplicação dessa legislação encareceria a mão-de-

25
O Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense concentrou um
grande número de trabalhos que percorreram essa trilha aberta por Ciro F. S. Cardoso. Nesse sentido,
podemos destacar as pesquisas de Márcia Maria Menendes Motta, Nas Fronteiras do Poder: conflito e
direito a terra no Brasil do século XIX, 1998; Hebe Mattos de Castro, Ao Sul da História, 1987; Sheila de
Castro Faria, Terra e Trabalho em Campos de Goitacases (1850-1920), 1986; entre outros, que, em
grande medida, comprovaram empiricamente a existência dos camponeses na formação do Brasil.
26
Uma síntese interessante sobre essa discussão pode ser encontrada na introdução do livro de João Fragoso
& Manolo Florentino, O Arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil
no Rio de Janeiro (1790-1840), 1993.
27
Carlos Maurício Fried da Silva (2005) se refere ao uso do termo “servil” e à expressão “semifeudalismo”
que aparecem em alguns momentos nos diferentes textos de Caio Prado Júnior produzidos no período
pesquisado.
28
Caio Prado Jr. Contribuição para a análise da questão agrária no Brasil, in Revista Brasiliense, n. 28,
março-abril de 1960) e Nova Contribuição para a análise da questão agrária no Brasil in Revista
Brasiliense, n. 43, setembro-outubro de 1962.
obra, exigindo, assim, dos grandes proprietários investimentos em tecnologia para
compensar o aumento dos custos com aumento da produtividade29.
Como observamos, Caio Prado Júnior não ficou imune ao clima conturbado
daqueles anos, produzindo interpretações divergentes de acordo com o avanço da
conjuntura. O que, aliás, não deve ser entendido como nenhum demérito, mas sim como
característica da evolução do pensamento social brasileiro ocorrida naqueles intensos anos
das décadas de 1950 e 1960. Mesmo para além do circuito comunista, se pudermos resumir
o ambiente intelectual e político de 1950 até 1968, poderíamos enxergar que, para a
sociedade civil brasileira daquele momento, a questão agrária era um problema que deveria
ser superado por um movimento nacional de transformação, mesmo sabendo dos rumos
diversos que cada grupo (trabalhistas, comunistas, católicos, proprietários) imprimia a essas
mudanças. Havia um consenso nacional no desejo de democratização interna,
industrialização e justiça social, e isso marcava o paradigma da questão agrária naquele
momento.
Mas, a partir do golpe militar, o debate sobre a questão agrária perdeu sua
polarização e deixou de ser propriamente um debate. Isso porque a repressão às oposições
políticas e a aplicação sem meios-termos do receituário da "modernização conservadora" no
campo se tornou a proposta claramente vencedora. Isso gerou uma grande crise e forçou
uma reestruturação das teses de esquerda, motivada pela tentativa de compreender, ou
mensurar, os efeitos desta modernização para as classes sociais envolvidas no processo, e
depois, revisitar as teses das décadas de 50 e 60 sobre a questão (PRADO JR, 1966).
De fato, o governo ditatorial implantado sabia bem a quem agradar e, já no final dos
anos 70, o Estado tinha sido eficaz no aprofundamento das relações capitalistas no campo:
aumento de produtividade e do mercado interno, internalização do D1 agrícola nos
complexos agroindustriais, diferenciação do campesinato tradicional, criando uma situação
bem diferente da que havia antes de 1950. Nestes anos, a concepção de Reforma Agrária
em curso se tornou praticamente sinônima de "política de terras", e isso também se explica
com o termo 'modernização conservadora': processo em que transformações na base técnica
e econômica não tiveram correspondência nos planos social e político. Disso decorreram
'conseqüências perversas', dentre elas a expropriação de milhares de famílias por empresas
capitalistas ou pela especulação fundiária das metrópoles em expansão, concentração das
29
Id., ibid., p. 10.
propriedades, disparidade das rendas, êxodo rural, aumento da exploração tanto dos
empregados rurais quanto dos minifundistas, deterioração da qualidade de vida da
população rural e do meio-ambiente (SILVA, 1996; STÉDILE, 1994; LEITE &
PALMEIRA, 1998).
Neste contexto, começaram as discussões de alguns grupos de pesquisadores
brasileiros, sobretudo antropólogos do Museu Nacional, sobre o problema específico do
desenvolvimento capitalista aqui, onde a 'modernização conservadora' se dera a revelia
tanto de grupos de oposição política quanto de grande parte dos pesquisadores do tema.
Estas mudanças no universo rural brasileiro eram fato social que tinha que ser mais bem
entendido, e para isso foram buscados os conceitos e teorias já dados no cenário intelectual
da época, marcadamente no campo do marxismo europeu. Dentre os trabalhos que
começaram a ser produzidos aqui no início dos anos 70 sobre sistemas econômicos
camponeses,

existiam os que buscavam compatibilizar reflexões sobre o sistema econômico


camponês (feitas a partir dos neo-populistas russos) com o materialismo histórico,
mas alguns só o tinham um relativo sucesso, pois tratava-se de esforço extremamente
difícil e do qual surgiu a noção do modo de produção camponês (VELHO, 1979).

Concordamos aqui que o uso ou não do conceito de camponês para designar um tipo
social no Brasil se relaciona com a subestimação (ou não) da penetração do capitalismo no
campo levando à proletarização rural; e também com a prioridade da pequena propriedade
em projetos de reforma agrária, para saber se a reivindicação básica dos rurícolas é a posse
da terra ou o aumento de salário. É essa problemática que dá o caráter extra acadêmico
deste “debate agrarista”, e suas profundas motivações políticas (VELHO, 1979).
É fundamental conhecer os trabalhos de José de Souza Martins como balizas deste
debate, ele que se apresenta como o fundador da sociologia rural no Brasil. Professor da
USP por quarenta anos, durante boa parte deste período se dedicou a pesquisar e pensar as
transformações no mundo rural brasileiro, que, para ele, eram sintomáticas das
características peculiares que assumiu o desenvolvimento capitalista no Brasil. Os novos
conceitos criados por ele, somados à inversão das premissas com que tradicionalmente era
tratado o mundo rural, fazem de sua obra um divisor de águas do “debate agrarista”
brasileiro30.
Analisando criticamente o que já havia sido produzido de conhecimento sobre o
mundo rural brasileiro, Martins concluía que este era marcado por uma análise simplificada,
onde predominavam análises evolucionistas e economicistas, preocupadas em explicar a
sociedade brasileira sob a ótica de modelos europeus, ou a partir de categorias estranhas que
não correspondiam à realidade social brasileira. Sua crítica estava baseada principalmente
na existência de uma leitura ortodoxa do marxismo realizada por muitos autores no Brasil,
amplamente dominante naqueles anos. A seu ver, as leituras “apressadas” das obras de
Marx apresentavam uma sociedade que evoluía linearmente em modos de produção, como
se o modo de produção fosse unicamente caracterizado pelo processo de trabalho. Essas
análises desconsideravam o processo de exploração e as formas de dominação e sujeição,
estas sim definidoras do modo de produção. Para essas teorias, a mesma mentalidade que
regeria o capitalista urbano regeria o capitalista do mundo rural. Martins afirmava que estes
equívocos, presentes em muitos estudos sobre o mundo rural, continuavam a separar aquilo
que o capital já unificara, o rural e o urbano. Além disso, Martins ressaltava que essas teses
careciam de pesquisas empíricas, de investigações teoricamente fundamentadas, “em que o
pesquisador tem o domínio tanto do método de investigação quanto do método de
explicação” (Martins 1986: 100).
Martins partia de algumas hipóteses principais para compreender a dinâmica do
rural. Sua tese central é de que a complexidade do capitalismo no Brasil se expressa, no
mundo rural, pelos diferentes ritmos e tempos deste desenvolvimento (Soto 2002: 105).
Neste sentido, ele relativizava as teses de Marx em “O Capital” e se utilizava mais dos
“Grundrisse” (1991), para provar que os modos de produção coexistem e se transformam
em ritmos diferentes.
Para provar essa tese, Martins fez uma série de estudos empíricos na região da
fronteira, ratificando que era possível a produção capitalista de relações não-capitalistas

30
É importante frisar que as obras de referência citadas na bibliografia não esgotam nem de longe o conjunto
da produção de José de Souza Martins nem de suas reflexões, já que ele escreveu mais de 195 textos, entre
livros e artigos publicados. Aqui se faz um recorte para um das fases de trabalho do autor, que versa sobre o
“debate agrarista”. Para os interessados na obra desse autor, há também uma tese e uma dissertação que
versaram sobre este autor e discutiram suas balizas teóricas principais (Soto 2002 e Alves 2003), e uma
entrevista concedida pelo próprio Martins para a revista Informe, no segundo semestre de 2004.
(Soto 2002: 106,144-146). Distinguiu os termos não-capitalista e pré-capitalista,
abandonando esse último por estar este carregado de evolucionismo (Soto 2002: 144).
Criticou os evolucionistas, dizendo que

“nessa orientação teórica, a articulação e a subordinação substituem a noção de


contradição e eliminam, portanto, as formas não-capitalistas de exploração do
trabalho enquanto mediações determinadas pelo processo de reprodução ampliada do
capital, de acumulação. Desse modo, a forma passa a ser o seu próprio conteúdo, que
aparece nas ilusões mecanicistas e evolucionistas como “restos” de modos de
produção pré-capitalistas que serão varridos pelo desenvolvimento do capital que os
subordina” (Martins 1984: 77 apud Alves 2002: 47).

Disse também que o capitalismo ao expandir-se redefinia e subordinava relações


sociais não-capitalistas, mas também engendrava estas relações, igual e contraditoriamente
necessárias à sua reprodução. Martins dava como exemplo disso a subordinação da renda da
terra e do modo de produção camponês (Soto 2002: 145-6; 168). Concluindo que o
capitalismo era uma totalidade inacabada, constituída de partes distintas em conflito, com
incoerências e contradições, e que a reprodução das relações sociais implicava também a
reprodução dessas contradições (Martins 1975; 1997; 1979; 1994).
A partir daí, Martins passou a estudar a funcionalidade contraditória de estruturas
arcaicas, ou não-capitalistas, dentro do sistema capitalista brasileiro, que seriam necessárias
para sua reprodução enquanto totalidade dialética, e não como simples reprodução de
dualismos (Soto 2002: 91-95). Como objeto maior dessa pesquisa, Martins elegeu a cultura
caipira, para provar que ela não está necessariamente em contradição com a modernização
tecnológica e o desenvolvimento capitalista (Soto 2002; 82). Em “Capitalismo e
Tradicionalismo” (1975), ele defendeu que

“a modernização da agricultura restringiu-se à adoção de práticas e de técnicas sem


fazer com que as unidades de produção agrícolas adotassem uma racionalidade
capitalista. Para ele, esta é a contradição fundamental. Em “A imigração e a crise
do Brasil agrário” (1975) mostrou que o agrarismo rústico e o caipira são o
fundamento do processo de industrialização e de formação do capitalismo no Brasil”
(Soto 2002: 107-108).

Uma segunda hipótese importante de Martins é a de que os meios de vida têm


importância histórica tanto na sociabilidade, quanto na solidariedade e reprodução social do
homem do campo. Percebe-se aqui a influência dos textos de Lefebvre, do Marx de “A
ideologia alemã” e de Antonio Candido sobre cotidiano (1977), onde estes defenderam que
a historicidade do homem se constrói cotidianamente com os seus meios de vida. Para
Martins,

“O que define a natureza de um processo não é seu resultado, mas o modo como foi
obtido, isto é, o modo de produção do excedente econômico. No caso da escravidão,
o resultado pode ser capitalista (na produção de mercadorias), mas o modo de obtê-
lo não é.” (Martins 1997:96)

Por isso, ele postula que não dá para avaliar só o resultado, mas sim todo o processo
social em si, porque só é possível dizer que o capital é progressista e o camponês é
reacionário se se tem uma visão já teleológica e dogmática do processo de expropriação
(Soto 2002:186). Segundo Martins,

“Seria pura imbecilidade tentar convencer o camponês que está sendo despejado,
cuja casa está sendo queimada pelo jagunço e pela polícia, de que deve aceitar tal
fato como uma contingência histórica, como ocorrência que é ruim para ele, mas que
é boa para a humanidade (...) pois é o que vai permitir o desenvolvimento do capital,
daquele mesmo que o antagoniza patrocinando violências”. (Martins 1981:13 apud
Soto 2002: 191-2)

Martins nesse sentido faz um esforço de relacionar processos microssociais com


situações macrossociais, e dirige sua prática de pesquisa centralmente aos processos
microssociais (Soto 2002: 96-97). Dessa forma, a maior parte da sua obra será preocupada
com aspectos que muitos cientistas sociais considerariam como “menores”, pois não estão
condicionados à análise das grandes estruturas e dos grandes processos, especialmente os
econômicos. Na obra de Martins, é exatamente o “homem simples” e sua sociabilidade que
revelam as grandes contradições de nosso tempo (Martins 2000: 12 apud Alves 2003: 26).
Uma outra opção de pesquisa de Martins foi estudar as particularidades do mundo
rural – o atrasado, as vítimas, o anômalo e o marginal -- como forma de entender os limites
e particularidades do desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Martins discorda das teses
de influência leninista que pregam o fim do campesinato no Brasil. Ele acha que o
camponês é, ao mesmo tempo, resultado e necessidade do desenvolvimento capitalista
brasileiro (Soto 2002: 35). Em seu balanço da obra de Martins, Soto afirma que
“Para Martins, a existência de relações não-capitalistas e, por conseguinte, do
campesinato no Brasil, está dada pelo movimento do capitalismo, que recria e
subordina relações sociais não-capitalistas, portanto, é resultado do seu processo de
ampliação e desenvolvimento” (Soto 2002: 258).

Por último, o autor defende que não são as relações de assalariamento que
caracterizam o capitalismo no campo, mas sim a instauração da propriedade privada da
terra, isto é, a mediação da renda capitalizada entre produtor e sociedade (Soto 2002: 124,
143; Martins 1975). Para ele, o campesinato surge na transição do trabalho escravo para o
livre, com a lei de Terras de 1850 e a imigração estrangeira (Martins 1979). É a propriedade
privada da terra que provoca as contradições sociais e crises no campo e dá origem à
questão agrária. O movimento de expropriação, gerado pela penetração da propriedade
privada capitalista, é o que dá início à questão agrária, pois gera migração para terras mais
distantes, migração para as cidades ou resistências à expulsão (Soto 2002: 126-127).

Parte 3: E onde entra a história nessa história?

Ainda não nos detivemos no campo historiográfico. Que se passava por lá no


período de crises e re-estruturações da ditadura militar? A historiografia marxista de viés
althusseriano penetrou com toda força historiografia brasileira na década de 1970,
carregando consigo tanto a tendência vanguardista de ditar as regras de certo e errado para
as ações dos trabalhadores que estudava, quanto a prescrição das classes com e sem futuro.
Para entender a conformação específica deste campo entendo que, se não grassava nestes
meios uma produção teórica ufanista do capitalismo, mesmo assim ela compartilhava da
mesma problemática da industrialização mundial e suas conseqüências. Em outras
palavras, se a lógica do capitalismo era aceita como avassaladora na análise da
historiografia (CUEVA, 1979), as estratégias dos trabalhadores também deveriam seguir às
mesmas orientações das ditadas por Marx, quando este generalizou a partir da análise do
operariado londrino as explicações sobre a possibilidade de revoluções socialistas em todo
o mundo31.
31
Embora não se relacione diretamente com o que discutimos neste momento, vale a pena lembrar da
ressalva de Tiago B. de Oliveira quando concluiu que "apesar de se alterar a hegemonia da história quanto
aos seus personagens principais, colocando "os de baixo" em evidência, a historiografia do movimento
operário reproduz velhos esquemas do poder político, econômico e intelectual que uma região "definidora
Não é de se esperar outra coisa naquele contexto:

o Brasil e os demais países do terceiro mundo durante o século XX estavam fadados


a "tirar o atraso", pensando e desenvolvendo políticas apoiadas em modelos externos
de industrialização, de esquerda ou de direita (Hobsbawm, 1998: 15-16)

Na problemática das pesquisas acadêmicas, a industrialização era um ponto


consensual que representaria o grau máximo de desenvolvimento humano. Pelos partidários
do capitalismo era sinônimo de progresso, fartura e conforto jamais vivido e presenciado
nestes anos dourados; para os seus críticos, era a etapa em que afloravam as contradições
sociais, a luta de classes entre operariado e burguesia se explicitava e se construiria o
socialismo. Para ambos os lados era consenso que o capitalismo imperialista transformou e
continuaria transformando todas as regiões do globo. Algumas delas, mesmo mantendo
lógicas internas diversas, nunca mais funcionariam como antes, numa tendência unívoca de
estreitamento dos laços de dependência (IANNI, 1998).
Quando falamos antes que os primeiros estudos sobre trabalhadores no Brasil a
contrapor a produção tradicional se inseriam na mesma problemática da industrialização
mundial, isso teve como principal conseqüência teórico-política o fato de a classe operária
ser privilegiada como o agente central -- ou mesmo único – da revolução. O movimento
operário, para os setores acadêmicos ligados ao pensamento de esquerda, era a esperança de
futuro e, conseqüentemente, deveria ser mais bem estudado no passado. Para tanto, este foi
o foco privilegiado da resistência política no campo da historiografia, desde uma produção
dita 'tradicional' -- ligada ao estudo das organizações formais de classe (sindicatos e
partidos), das lideranças e das instâncias de dominação (a burguesia e o Estado) -- até os
novos estudos que passam pela cultura operária, formação e cotidiano da classe (com clara
influência da Nova Esquerda Inglesa) (PETERSEN, 1997; BATALHA, 1998: 151).
A isso se somou uma outra divisão 'costumeira' de campos acadêmicos em que à
História, segundo novos critérios e metodologias de rigor e crítica, que se consolidavam
naquele momento, caberia destrinchar "o mais antigo", visto como "o mais difícil" no
trabalho de decodificação das fontes arquivísticas, algo que pudesse se submeter ao crivo
metodológico que qualificaria a formação de historiador. Os estudos temporais mais
recentes eram vistos como muito escorregadios... fontes arquivísticas escassas ou de acesso

de sentido" pudesse ter em relação às outras" (...) no caso, as análises do eixo Rio-São Paulo.
(OLIVEIRA, 2001).
restrito levando a necessidade de "ir a campo", fazer entrevistas ou buscar novos meios
alternativos aos arquivos, métodos estes que continuam sendo mais habituais às outras
ciências sociais (HOBSBAWM, 1998).
Assim, a historiografia brasileira 'dos de baixo', ao priorizar o olhar para grupos
sociais não dominantes nem determinantes, optou pelos caminhos que considerou melhores
para elucidação de processos históricos e seus problemas teóricos: os escravos na colônia,
os homens livres e pobres no império e o proletariado urbano na primeira república. Estas
vertentes são fruto de um amadurecimento muito benéfico do olhar que incidia sobre estes
grupos sociais e dos métodos que os tratavam, graças à trajetória de debates internos ao
campo historiográfico e às influências de outros campos disciplinares, sobretudo da
antropologia (PEDROZA, 2003; NEGRO, 1997; SERNA & PONS, 1993).
Mas, ao mesmo tempo, enquanto a historiografia se encarregaria de pensar um
passado com possibilidades de futuro, ou, em outras palavras, as origens do que (e de
quem) construiria o futuro, ficou relegado à antropologia o estudo sobre grupos que "não
fizessem diferença" no conflito com o capitalismo mundial (índios, bruxas, camponeses).

Pelas mesmas razões por que o camponês foi considerado marginal e residual na
produção, a avaliação de suas representações e ações na análise política sempre foi
minimizada. A minoridade conferida à ação política do camponês está presente em
diversas tendências de interpretação sobre o meio rural brasileiro. É ilustrativo
relembrar as análises que explicavam o comportamento político do camponês como
patológico ou certas concepções da esquerda que julgam o camponês um indivíduo
preso a ficções alienantes, cabendo aos ativistas a tarefa magistral de "ensiná-lo"
(Moura, 1986: 52)

Seguindo o raciocínio de Margarida Maria Moura,

O uso abusivo e formalista de conceitos, como 'classe fundamental', por exemplo,


tem servido, muitas vezes, para atribuir aos operários ideologias e práticas sociais
que concretamente não desempenham, mas que utopicamente desejava-se que
viessem a desempenhar (Moura, 1986: 53)

Portanto, a conseqüência destas concepções tem sido, freqüentemente, a glorificação


do proletariado urbano (e às vezes também do rural) como classe redentora da ordem social
injusta.
Antes de finalizar, é preciso ao menos registrar a influência dos trabalhos de Edward
P. Thompson sobre os novos estudos historiográficos “dos de baixo”, ao criticar as teorias
consagradas e desmontar preconceitos macrológicos e ortodoxos recorrentes na
historiografia até então (1981; 1998; 2001). Sobre o universo rural, a influência de
Thompson serviu, por exemplo, para relativizarmos a generalização do modelo de ação das
Ligas Camponesas para julgamento de todas as ações camponesas, e criticarmos a
manutenção da dicotomia operários X camponeses. Mesmo entendendo que as cisões
disciplinares fizeram com que Thompson fosse apropriado diferentemente entre
historiadores e sociólogos, sua contribuição para esses campos acadêmicos foi inegável
para o alargamento dos objetos da história e sociologia do trabalho rumo a uma nova visão
não institucional do processo político, que passa pela construção de identidades na luta de
classes, e pela apreensão de que a resistência camponesa no Brasil é uma herança cultural.
Mas o conjunto de trabalhos surgidos a partir destas novas preocupações já é tema para
outro artigo.

Considerações finais

Espero ter conseguido percorrer com o/a leitor/a um pouco da trajetória histórica dos
estudos sobre campesinato na historiografia brasileira. Mas este artigo tem muitas
limitações. Dentro deste limite de páginas, seria muito difícil fazer uma discussão mais
completa, das principais obras sobre o campesinato dos fisiocratas até toda a produção
acadêmica atual. Por isso, o recorte necessário que fiz tentou pontuar as principais
discussões sobre a “questão camponesa” dentro da historiografia de vertente marxista
brasileira, com suas principais influências internacionais, inflexões políticas e alguns
debates com outras escolas.
Essa linha-base exclui, deliberadamente, tanto os fisiocratas quanto todos os
trabalhos que, baseados em referenciais teóricos mais diversificados, e atuais, já se colocam
outros problemas que não as questões básicas pensadas pelos marxistas durante pelo menos
um século (quais sejam, a extinção/diferenciação do campesinato pelo capitalismo).
Busquei pontuar o início dessas mudanças em meados da década de 1970, com o início da
discussão sobre o modo de produção escravista colonial e o novo papel dos homens livres e
pobres na história.
A idéia era que esta “revisão de bibliografia contextualizada” pudesse explicar as
razões das preferências da historiografia pela análise de outros grupos de trabalhadores que
não o campesinato. A hipótese que aventei é de que, malgrado as origens comuns destes
estudos em fins do século XIX, a ossatura já consolidada dos campos acadêmicos com o
ressurgimento do interesse pelo tema, na década de 1960, fez com que os interesses e
problemáticas da historiografia tivessem se distanciado deste recorte.
Por isso, nos dias de hoje, no debate sobre campesinato falta que os historiadores e
historiadoras vejam que podem contribuir com o hábito de desnaturalizar o que parece
dado desde sempre, pela busca de articulação entre os diferentes fenômenos, pelo costume
de pensar processos, integrando tempo e lugares diferentes (FONTES, 1998: 2). Se já nos
atrasamos ou ignoramos este debate, considero este silenciamento uma falta grave.
Primeiro, porque me parece considerar como “poeira da história” um campo tão crucial
para nosso devir quanto o é a questão agrária nos países de terceiro mundo. Depois, porque
algumas vozes já têm há muito nos alertado que em fatias acadêmicas o verdadeiro
conhecimento nunca se dará, e não parece ser esse isolamento o caminho para qualquer
proposta supradisciplinar de sucesso (SANTOS, 1989). Enfim, o campesinato precisa de
reflexão histórica. Não de qualquer uma, mas daquela que

incorpora as diversas modalidades de explicação dos processos sociais, desde as


dimensões mais abrangentes (estruturais ou psicologizantes) até as proposições mais
pontuais, não se limitando a produção dos historiadores stricto sensu (...) Reflexão
histórica pois, será tomada em seu sentido mais amplo, incorporando contribuições
oriundas de diversas áreas (...)(FONTES, 1998: 2).

Deixo aqui a idéia, como instrumento de análise para a historiografia, que o


campesinato passe e ser visto como processo, que se tece -- e destece -- nas experiências e
relações sociais, para que se possa ser historicizado. E que também o processo histórico do
qual faz parte seja percebido como não determinado a priori por nenhuma lei ou teoria
geral, para que possam ser percebidas as complexas contradições e tensões geradas pela
relação entre campesinato e capitalismo no Brasil.

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A política do poder: o exército na era de Augusto•

Maria Aparecida de Oliveira Silva32

RESUMO
Após as vitórias sobre Marco Antônio e Crasso em Actium, Augusto implementou mudanças na
política militar, ao ser aclamado imperador de Roma, centralizando o comando do exército sob seu
controle. O objetivo deste artigo é demonstrar que sua política contribuiu para a construção de uma
nova ordem militar, cuja influência estendeu-se por toda a história política de Roma.
PALAVRAS-CHAVE: Augusto, Exército Romano, Política Romana

ABSTRACT
After the victories over Marcus Antony and Crassus in Actium, Augustus implemented changes of
the military policy and centralized the command of the Army under his control immediately after
he was acclaimed emperor of Rome. The aim of this article is to demonstrate that his policy
contributed to construct a new military order and its influence was spread throughout the political
history of Rome.
KEY-WORDS: August, Roman Army, Roman Policy

O papel do exército nos primeiros anos de Augusto

Ao tomar ciência do assassinato de Júlio César, seu sobrinho-neto, Otaviano, partiu


de imediato à cidade de Roma, onde Marco Antônio já se preparava para suceder o ditador.
Otaviano impediu que Marco Antônio e alguns membros do Senado ocupassem o poder
político ao pressioná-los à leitura do testamento no qual Júlio César, que também era seu
pai adotivo, o nomeia seu sucessor. As circunstâncias, que se apresentavam após a abertura
do testamento, levaram à formação do triunvirato: Otaviano, Marco Antônio e Lépido. O
primeiro passo de Otaviano para garantir a sua participação no governo romano, mesmo
com a oposição da sua mãe e do seu padrasto - Marco Filipo - foi dado quando ele
reivindicou o seu direito adquirido de exercer o poder em Roma. Esses fatos, narrados por
Suetônio na biografia de Augusto, demonstram o interesse de Otaviano em adentrar a esfera

Este artigo é fruto de um trabalho final de curso de Pós-Graduação, intitulado: “Permanências e
Transformações no Principado de Augusto”, ministrado pela Profa. Dra. Maria Luiza Corassin.
32
Doutoranda em História Social pelo Departamento de História da Faculdade Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo. FFLCH/USP. Bolsista da FAPESP. E-mail: madsilva@usp.br
do poder romano, tal empenho resultou-lhe em doze anos de poder partilhado e quarenta e
quatro anos de absoluto poder.

Nota-se na narrativa de Suetônio que, para o exercício e a manutenção desse poder


reivindicado por Otaviano, fez-se necessária a imediata organização de um exército
particular, como pode ser visto nesta passagem:

Então, ele recrutou tropas e doravante governou o Estado, primeiro com Marco Antônio e
Lépido, depois só com Marco Antônio durante doze anos e, finalmente, sozinho por
quarenta e quatro anos ( Suetônio, VIII, 3).

Da necessidade de organização de um exército para o exercício do poder em Roma


depreende-se que esta sociedade estava permeada pela violência, incitada pelas disputas
internas, o que tornava o poderio bélico de um governante o instrumento indispensável para
sua permanência no poder. Cumpre ressaltar que o uso do exército como suporte político se
acentuara após as conquistas romanas decorrentes das Guerras Púnicas. As novas
dimensões do território romano reclamavam a formação de um exército capaz de mantê-las
e administrá-las, a fim de que se mantivessem alinhadas e aliadas à política romana.
Os problemas de tal expansão apresentaram-se quando os fatos demonstraram que
as conquistas romanas não eram apenas do Império Romano, pois os líderes do exército
romano desfrutavam de grande prestígio junto aos povos conquistados, desse modo, a
autoridade do Império Romano foi suplantada pela autoridade dos líderes locais, fenômeno
observado na Gália com César. A personificação das conquistas em Roma teve como
resultante o aparecimento de diversos exércitos dentro de um, gerando uma fragmentação
que atingiu não apenas o poder militar, mas também o poder político. Um dos artifícios de
Otaviano para agregar várias legiões foi o de adotar o nome de César, passando a se chamar
César Otaviano.
Nesse quadro de incertezas e divergências políticas, César Otaviano apresenta-se
como a figura do filho ultrajado que estava decidido a vingar a morte do pai, com isso, parte
dos veteranos leais a Júlio César passou a integrar seu exército, pois como apontou
Southern (2001: 36-37), as legiões cesarianas e seus veteranos estavam inseguros quanto à
escolha do novo comandante e, com isso, muitos se aliaram ao exército de Marco Antônio,
o qual havia recebido o comando da Macedônia e o governo da Gália Cisalpina. A nosso
ver, este sentimento de vingança, manifesto novamente na guerra contra Marco Antônio, foi
utilizado com mestria por César Otaviano no intuito de gerar uma comoção social e com
isso obter a aprovação dos cidadãos, uma vez que ele era o indivíduo que simbolizava essa
luta contra os infiéis.
A adesão da sociedade romana ao empreendimento bélico de César Otaviano contra
os assassinos de Júlio César e, posteriormente, contra Marco Antônio e Cleópatra, revela
que os romanos ansiavam por um indivíduo que conduzisse Roma ao caminho da ordem e
da paz internas. No período de interdictio aquae et ignis, isto é, de exílio e confisco dos
bens dos inimigos da República (PICCAROLO, 1939: 11) e da eliminação dos assassinos
de Júlio César, conforme concluiu Néraudau (1996: 78), a imagem de César Otaviano era a
de um homem arrivista, ambicioso, violento, detentor de um perfeito cinismo e uma
vontade obstinada de ocupar o poder. Depreendemos de tais acontecimentos que as medidas
violentas de Augusto pretenderam eliminar as facções coexistentes no cenário político
romano as quais impediam o restabelecimento da ordem social.
César Otaviano tinha motivos de natureza pública e privada a justificarem a
vingança pela morte de Júlio César, tendo em vista sua relação de parentesco e sua
legitimidade sucessória. Em virtude disso, qualquer atitude de Otaviano nesse sentido
contaria com o apoio dos romanos, pois eles também sentir-se-iam vingados, uma vez que
Júlio César, conforme a vontade popular, seria sagrado ditador vitalício, mas sua morte
impediu que isso ocorresse. César Otaviano era o representante do Divus Julius, a ele cabia
a missão de vingar a morte de seu pai, o seu assassinato se tratava de uma questão pessoal e
de Estado para Augusto, portanto, suas ações corresponderam às expectativas dos romanos,
conferindo legitimidade à contínua supressão dos opositores da República.
A justificativa para o uso extremado da violência nos primeiros anos de César
Otaviano está nas primeiras linhas das Res Gestae, nas quais é possível notar que Augusto
obteve a aceitação da sociedade, representada na figura dos Senadores, os quais o
agraciaram por suas iniciativas de extinguir os grupos contrários, como pode ser observado
nesta passagem:

Na idade de dezenove anos, recrutei, por iniciativa própria e com os meus próprios
recursos, uma armada que me permitiu dar liberdade ao Estado que era oprimido por uma
facção. Como recompensa, o Senado, por meio de seus decretos honoríficos, admitiu-me
em seu círculo, no consulado de Caius Pansa e de Aulus Hirtus, dando-me o direito de falar
no mesmo nível dos consulares, e ainda, conferiram-me o imperium” ( Res Gestae, I, 1-233)

Esses anos de violência, na interpretação de Néraudau, estavam sob o signo da dor e


do furor, em latim dolor e furor, dois sentimentos característicos da psicologia dos heróis
da tragédia latina. A dolor seria o desejo de vingança, enquanto o furor nasceria do destino
inconteste do herói de cometer atos terríveis, eliminando compulsivamente os inimigos,
como comportava o seu destino heróico (Idem: 83). Ainda no entender do autor, César
Otaviano soube aproveitar a imagem de uindex libertatis, ou seja, de defensor da liberdade;
primeiro, ao declarar guerra aos contrários à manutenção da República e, posteriormente, ao
investir contra Marco Antônio, atuando como protetor do Ocidente contra as traições do
Oriente. Dessa maneira, César Otaviano pretendia amenizar as sucessivas ações violentas
que marcaram os anos de 43 a 31 a. C., isto é, desde a constituição do triunvirato até a
vitória em Ácio (Idem: 136).
A união de Marco Antônio e Cleópatra incomodava o sentimento romano de
superioridade nutrida em relação ao mundo Oriental, que em última instância era grego, à
medida que os romanos percebiam a orientalização de Marco Antônio, fato explorado por
Augusto como prova da traição aos costumes e à tradição romana cometida pelo triúnviro
Marco Antônio. Trabalhos arqueológicos recentes demonstram que não faltavam indícios
do fascínio que Cleópatra e o Oriente exerceram sobre Marco Antônio, por volta de 34- 35
d. C., foram cunhadas moedas em que essa união é celebrada (BADIAN, SHERK: 1984:
111). Além do testamento de Marco Antônio, que revela a intensidade do romance do
triúnviro com a rainha egípcia, havia muitas outras provas desse envolvimento que
poderiam se utilizadas por César Otaviano.
Na vida de Marco Antônio, escrita por Plutarco, observa-se que havia uma
espionagem que informava César Otaviano sobre os fatos ocorridos no palácio egípcio, estas
as informações chegavam, incontinente, ao conhecimento do povo romano, como vemos
neste trecho:

Quando ela adentrou o palácio, no desejo de agradá-la, presenteou-a com regalos que não
se pode dizer de porte pequeno, nem de pouco valor: a Cele-Síria, Chipre e grande parte da
Cilícia; somada à região da Judéia produtora de bálsamo e parte da Arábia Nabatéia que

33
As traduções são de responsabilidade da autora.
confina com o mar Exterior. Estes presentes provocaram indignação nos romanos.
(Antônio, XXXVI, 2)

A propaganda de César Otaviano contra a união de Marco Antônio resultou na


construção da imagem de um traidor do povo romano que pretendia orientalizar o ocidental
mundo romano, destruindo sua tradição e colocando-o sob o domínio de uma bárbara. Essa
imagem de Marco Antônio atendeu às expectativas de César Otaviano, pois redundou no
fortalecimento de seu poder e na adesão de novas legiões a seu exército.
Como observou Piccarolo, a verdadeira política de César Otaviano se inicia após a
batalha de Ácio, com a eliminação de Marco Antônio e de toda a oposição (PICCAROLO,
1939: 123). Depois do evento, César Otaviano mudou sua política de extermínio para
tornar-se o pacificador, unificando as instituições e centralizando o poder em suas mãos.
Como notamos, as alterações na natureza da política de César Otaviano devem-se à
derrubada de seu último e representativo inimigo, Marco Antônio. Com a unificação do
poder político e militar, somada à sua consagração em Imperator e Augustus; o novo
Imperador preocupou-se em conferir unidade à fragmentada sociedade romana, pondo fim
às insatisfações existentes. Como pode ser percebido nessa passagem de Tácito:

Quando o assassinato de Brutus e Cassius tinha desmantelado a República; quando Pompeu


tinha sido esmagado na Sicília e, com Lépido neutralizado, e Marco Antônio assassinado e,
até mesmo o partido Juliano estava sem líder, Augusto, após renunciar seu título triunviral
e autoproclamar-se um simples cônsul, com autoridade na tribuna para defender os comuns,
primeiro pacificou o exército por meio de gratificações, cativou a população barateando o
milho, reconciliou o mundo com suas cortesias de paz que, passo a passo, iniciaram sua
ascensão e que unia em sua própria pessoa as funções do Senado, de magistratura e da
legislatura. Não havia oposição, os mais corajosos espíritos haviam sucumbido em campos
de rendição ou por meio de proscrição, enquanto o resto da nobreza encontrou uma
agradável aceitação da escravidão, o meio mais fácil para a riqueza e obtenção de cargos. E
como eles haviam tido sucesso na revolução, agora se sustentavam pela nova ordem e
segurança preferível à antiga ordem e aventura. O estado das coisas também não estava
impopular nas províncias onde a administração pelo Senado e o povo havia sido
desprestigiado pela animosidade dos magnatas e pela ganância dos funcionários públicos
contra os quais havia uma frágil proteção no sistema legal para sempre desordenado pela
força, pelo favoritismo ou, como último recurso, pelo ouro.” (Anais, I, 1-3)

No quadro retratado por Tácito, a fonte relata como a falta de liderança no partido
Juliano propiciou a Augusto a ocupação desse vazio no comando, utilizando para isso do
emprego da força militar. Ao instaurar o medo na sociedade, por intermédio de uma
vigilância permanente, Augusto intimidava os mais acomodados, enquanto conquistava
novas regiões com o uso da força militar, dessa forma, ele pode reduzir o preço do milho e
com isso, obter o apoio popular. A importância do exército na constituição do Império é
sentida na eliminação dos opositores e na conquista de novos territórios proporcionaram a
Augusto sua ascensão e a conseqüente centralização do poder em suas mãos.

O exército de Augusto
Com o recebimento das honras conferidas após a batalha de Ácio, Augusto unificou
os exércitos, alcançando-se à condição de líder supremo da corporação. No parecer de
Southern (2001: 197), a liderança de Augusto devia-se ao fato de que, embora a sua posição
fosse a de Princeps, o primeiro entre os cidadãos, e de Imperator, comandante supremo do
exército, seu comportamento era modesto e comedido. A legitimidade de seu comando
estaria na auctoritas inerente à sua posição e invocada por Augusto, o que explicaria o fato
de ele não ter criado um posto equivalente ao que ocupava no exército. Concluímos que
Augusto não ambicionava incorporar sua imagem à do exército ocupando o mais alto posto
dentro da corporação, seu intento era afirmar-se como um civil, cujo poder de imperium lhe
conferia o comando do exército, deixando claro que os soldados lhe deviam obediência,
uma vez que ele representava a sociedade civil. Dessa forma, colocava a sociedade civil
acima do corpo militar, invertendo a ordem estabelecida no período das guerras civis.
No comando da corporação militar, ainda que Augusto propagasse a paz em sua
ideologia estatal nos seus monumentos e construções (MACDONALD: 1986: 146), ele não
podia romper com o que Finley (1985: 80) denominou de “Estado de conquista”. A Pax
Romana, como concluiu Woof (1993: 172), não estava relacionada com a ausência de
guerras , mas significava um período em que os acordos militares eram de caráter
terminativo ou preventivo. Para Woolf (Idem: 176), esse período representava a unidade do
povo romano e o sentimento de humanitas criado pelo poder romano em seus assuntos
políticos, relacionando a Pax ao seu Principado (Idem: 178). Pois como Le Bohec (1994:
207-208) apontou, a ideologia imperial estava embasada no trinômio: vitória, paz e
prosperidade.
Na prática, a política romana mantinha a sua natureza expansionista pautada no seu
poderio militar, assim, o exército permanecia uma peça fundamental na política de Augusto.
É preciso considerar que Augusto escreveu nas Res Gestae que:

Eu tornei o mar pacífico e livre de seus piratas. Nesta guerra eu capturei cerca de 30.000
escravos os quais tinham escapado de seus donos e pegado em armas contra a República, e
eu os devolvi aos seus donos para a punição” (Res Gestae, XXV,1)

A crer nos números de Augusto, conclui-se que seu exército era numeroso e bem
armado para dominar tantos escravos. A questão principal é compreender como Augusto
conseguiu tantas vitórias militares, sem conhecer profundamente os assuntos de guerra?
Colaboraram para o seu sucesso os conselhos e as ações militares de Agripa, e,
fundamentalmente, a presença atuante do exército nas conquistas do imperador, alcançada
pela profissionalização de seus membros através do pagamento do soldo e da
implementação de uma rígida disciplina militar. Além dessas medidas, outra de grande
importância foi a redução do número de legiões do exército que passou de cinqüenta para
vinte e oito, redistribuindo-as em locais estratégicos visando a proteger as fronteiras do
Império e a montar um sistema de segurança interna de Roma.
Augusto foi o primeiro a criar um exército permanente com vinte e oito legiões, mas
no ano de sua morte incluía vinte e cinco permanentes, com aquartelamento regulares,
efetivos e nomes definidos. Três legiões – XVII, XVIII e XIX – tinham sido aniquiladas no
desastre de Varus e esses números jamais voltaram a ser usados. Com o pagamento do
soldo, houve a profissionalização do exército e, como o soldado dependia da instituição,
validou-a desenvolvendo um espírito corporativo imprescindível à coesão nas ações bélicas.
A dedicação exclusiva ao serviço militar favoreceu a criação de novas técnicas que
viabilizaram a conquista de territórios antes considerados inexpugnáveis (KEPPER, 1998:
160-161).
Entretanto, somente o pagamento do soldo não geraria resultados tão positivos à
armada romana, fez-se necessária a organização interna da corporação, com o
estabelecimento de regras visando à criação de uma disciplina, ou seja, de uma ideologia
militar que garantisse a fidelidade do soldado ao seu Imperador. O exército imperial
diferenciava-se, em muitos aspectos, do exército republicano, porém nota-se a permanência
de práticas correspondentes ao período da República, como nos relata Suetônio:
Ele efetuou muitas mudanças e introduziu inovações no exército, ao mesmo tempo em que
reviveu alguns costumes antigos. Ele exigiu rigorosa disciplina. E foi com muita relutância
que ele permitia que mesmo seus generais visitassem suas esposas, mas somente na época
do inverno. (Suetônio, XXIV,1)

As legiões romanas permaneceram com os mesmos nomes, números e títulos; para o


soldado receber os benefícios da aposentadoria deveria servir por um longo período, a
estrutura financeira que asseguraria o pagamento dos salários continuava a mesma. Até o
ano de 5 d.C., o serviço militar admitia jovens de dezesseis anos, somente após esse ano,
passou a recrutar rapazes a partir de vinte anos. No ano seguinte, em 6 d.C., Augusto criou
o aerarium militare cuja função, por meio da cobrança de impostos, era obter fundos para o
pagamento de gratificações aos soldados. Houve mudanças nas formas de arrecadação do
erário para a provisão do exército e medidas de contenção de gastos como a proibição do
casamento de soldados durante o serviço.
O Imperador autorizou a formação de um segundo exército, constituído de
provinciais e no qual o comando era destinado aos oficiais romanos da classe eqüestre.
Após vinte e cinco anos de serviço, esses homens tornavam-se cidadãos romanos. Essas
legiões tinham, porém, uma situação inferior e eram chamadas de Auxiliares, servindo
como parte acessória do exército romano. Sua finalidade era amenizar o peso do serviço
militar para os cidadãos e eliminar a necessidade de recrutamento compulsório.
A importância da hegemonia marítima no mar Mediterrâneo para o controle de suas
rotas comerciais concorreu para que Augusto criasse uma marinha permanente. Parte da
esquadra ficava ancorada em Miseno, no sul da Itália, e a outra em Ravena, no Adriático. A
frota era grande, estima-se que o número de remadores, marinheiros e soldados atingisse o
contingente de dez mil homens. Os navios pequenos e leves eram usados principalmente em
funções policiais como a perseguição e a caça de piratas.
As inovações continuaram, Augusto formou um grande destacamento com o
objetivo especial de proteger a pessoa do Imperador. Ao contrário do costume anterior, um
comandante-chefe, o da Guarda Pretoriana (cohors praetoria), fixara residência em Roma.
Além da Guarda Pretoriana havia três cortes urbanas (urbanae cohors) recrutadas entre os
cidadãos, as quais compunham uma espécie de polícia militar. A manifesta preocupação do
Imperador com a sua integridade física revela a fragilidade das relações políticas em Roma,
pois, a qualquer momento, poderia surgir um grupo de revoltosos interessado em usurpar-
lhe o poder.
Outra providência adotada por Augusto, que evidencia seu temor de uma revolta
militar que colocasse termo ao seu Império foi a retirada dos assuntos militares da
competência do Senado e da Assembléia Popular (Idem: 150-154). Dessa forma, Augusto
pretendia distanciar os civis da cultura militar. Seu principal objetivo dissociar os assuntos
militares dos cidadãos e, com isso, pacificar os civis tendo em vista a sua própria proteção.
A preocupação de Augusto com as questões relativas à segurança da cidade, das
províncias e com a figura do Imperador, revela a instabilidade do poder em Roma ao
mesmo tempo em que explicam a longevidade do Império de Augusto. Se, por um lado, a
reorganização da defesa do Império demonstrou a debilidade da estrutura do poder; por
outro lado, ao concluí-la, Augusto conferiu segurança aos cidadãos e aos moradores de
Roma, bem como a confiança de que o Império se tratava de algo duradouro.
Penso que a grande façanha de César Otaviano foi a de criar o Exército de Augusto,
assegurando a preservação de todas as demais inovações implementadas durante o período
em que esteve no poder. Como observou Le Bohec (op. cit: 182), Augusto fez excelentes
escolhas na esfera militar e não por coincidência, os melhores generais de seu exército
integravam a sua família. Os casamentos de Júlia com Agripa, Lívia com Tibério e Antônia
com Drusus são resoluções augustanas que apontam para a tênue relação existente entre a
formação de um exército forte e a permanência de Augusto no poder.

O soldado de Augusto
Á medida que o Império crescia, aumentava a necessidade de efetivo militar para as
guerras de conquista, bem como para a garantir o domínio das províncias conquistadas. O
número de ricos cidadãos romanos mostrou-se insuficiente para a demanda do exército,
assim foi preciso incluir os pobres nas fileiras militares. Conforme Carrié (1991: 90), o
exército ao abrir-se aos pobres e aos proletários, em busca de prestígio, de promoção no
estatuto social e de salários, sem o sentimento de cidadania de outrora, dissociava o ofício
das armas do ofício do nobre cidadão. Segundo o autor, tal característica do Exército de
Augusto será a marca inovadora e permanente da versão do soldado romano.
Como formação militar, o soldado recebia um treinamento inicial que consistia em
marchar diariamente a fim de aperfeiçoar o passo militar. Nos meses de verão, o soldado
marchava vinte milhas romanas que deveriam ser concluídas em cinco horas, nessa estação,
os soldados também praticavam a natação. Outros exercícios como a corrida, salto, treino
com armas e carregamento de bagagens também eram executados pelo soldado (WATSON,
1985: 54-55). O estágio seguinte compreendia o aprimoramento das técnicas adquiridas
durante o primeiro treinamento. O soldado recebia um treinamento físico específico
desenvolvendo as habilidades com as armas, bem como aprendia a montar cavalos, sendo
capaz de executar várias acrobacias com o animal (Idem: 61).
Após o treinamento inicial, o soldado era preparado para o combate em campo
marchando corretamente por longas rotas com pesadas bagagens, aprendendo técnicas de
sobrevivência em ambientes hostis e reconhecendo o território, estes soldados eram
conhecidos como as mulas de Mário (muli Mariani). O objetivo básico desses treinamentos
era conferir ao exército romano superioridade militar sobre o bárbaro nos embates. O
soldado formado poderia aspirar a funções diferenciadas, entre elas, a de immunes, um
soldado que era excluído dos serviços inferiores do acampamento (Idem: 75).
A despeito das mudanças implementadas por Augusto no exército, vários aspectos
da antiga organização militar atuavam conforme a tradição, de acordo com Carrié (op.cit.:
91) dois princípios fundamentais foram mantidos: o conceito de cidadão-soldado,
reinventado para soldado-cidadão e a exclusividade dos cargos de comando conferida às
classes superiores. Ao exigir soldados com formação literária e aritmética para os cargos
superiores, a seleção social que subjazeu no processo de escolha do comandante favoreceu
a permanência dos bem-nascidos nos postos mais elevados e com salários diferenciados
(TELLEGEN-COUPERUS, 1993: 81). O soldado, com conhecimentos literários e
aritméticos, pertencia ao grupo dos principales, dentre as diversas funções desempenhadas,
a mais comum era a de escrivão (librarius legionis), contudo, o cargo que despertava o
interesse do soldado qualificado era o de Centurião (WATSON, op.cit.: 77).
O soldado de Augusto recebia 225 denários por ano, a mesma quantia paga por Júlio
César, não se sabe ao certo qual o valor pago aos comandantes das legiões. Os vigiles
recebiam o mesmo valor dos soldados e as forças auxiliares, dependendo da função, poderia
receber de 100 a 225 denários por ano. Já um integrante da Guarda Pretoriana percebia a
quantia de 450 denários por ano (Idem: 95-99). Em um outro estudo no qual foram
analisados papiros referentes ao pagamento dos soldados estacionados no Egito, Alston
(1994: 121) concluiu que os auxiliares recebiam o suficiente para o pagamento das despesas
com a sobrevivência e com as armas de guerra.
O exército romano empregava o sistema de premiações e punições para estimular a
coragem do soldado e manter a disciplina do acampamento. A cerimônia da condecoração
servia para recompensar o soldado pela sua marcada contribuição a Roma, na qual ele
poderia receber colares (torques), bandanas (armillae) e discos (phalenae). O grupo dos
principales recebia coroas diversas como corona áurea, corona vollaris ou a corona
muralis. Castigos exemplares eram aplicados aos soldadoos que rompessem com a
disciplina militar, como por exemplo, o decimation, punição na qual dez homens de uma
cohorte eram escolhidos para que fossem apedrejados ou golpeados pelos demais soldados
da legião (Idem: 115-119).
Os severos castigos aplicados nos soldados indisciplinados e a rigorosa rotina
militar contrapunham-se à imagem que os cidadãos civis faziam do soldado-cidadão, visto
como dispendiosos, fanfarrões, enfim, um desperdício do erário. No entanto, o salário do
soldado de Augusto, se comparado ao pago na época dos Gracos, 112 denários e meio,
parece superior, entretanto, como observou Watson (op. cit.: 89), de 125 a. C. até o governo
de Júlio César, o soldado recebia o salário após descontar o alimento e as armas
consumidos, mas não pagava as vestimentas, enquanto na época dos Césares, havia a
dedução dos gastos com vestuário, alimentação e armamentos, cujos preços eram
reajustados mais amiúde, onerando as despesas do soldado (Idem: 89).
No entender de Carrié (op. cit.: 91), a exclusão do exército da sociedade civil foi a
razão preponderante para que esta perdesse o contato com a realidade militar, construindo
“verdades” a partir do imaginário popular civil sobre o soldado. Esse pensamento abstruso
dos civis transformou o soldado numa abstração na qual “o soldado é um miles, termo
singular com valor coletivo.” A visão equivocado do soldado alimentada pelos civis
contrapõe-se à narrativa de Suetônio na qual a disciplina era fundamental para o exército:

Depois das guerras civis, ele nunca chamou nenhum dos membros das tropas de
“companheiro”, nem na Assembléia e nem num edito, mas sempre “soldados” (...)
pensando que esse termo tão bajulador “companheiros” não condizia com a disciplina
militar, com a tranqüilidade dos tempos tanto no Estado como em seus assuntos privados
(Suetônio, XXV, 1)

O impacto dos salários pagos aos militares na economia dos locais em que estavam
estacionados nas fronteiras é percebido pelo aparecimento de cidades em torno dos
acampamentos. A importância do soldado na dinamização da economia dos vilarejos
ocorreu devido à sua condição de consumidor e, principalmente, pela sua atuação como
agente responsável pelo aumento da disponibilidade de crédito na região, o que se dava por
meio da concessão de empréstimos aos seus habitantes. O soldado operava como um agente
econômico, como concluiu Carrié (op. cit.: 111), na qualidade de consumidor ou na de
emprestador de pequenas somas, o soldado alimenta e propaga as formas monetárias da
economia. Nesse contexto, o soldado desempenhava um papel importante para o
crescimento econômico do Império, bem como para o fortalecimento das relações entre os
romanos e os provinciais.
Para Carrié (Idem: 108), outra contribuição dos soldados para o fortalecimento do
Império Romano estava na aculturação dos soldados oriundos das províncias, dessa forma,
eles atuavam como um agente de unificação cultural, já que o exército romano propagava a
sua “cultura militar”. A maior parte das legiões estavam estacionadas nas regiões menos
desenvolvidas do Império, e, em certa medida, os soldados poderiam ser considerados os
pioneiros da civilização romana. Segundo Watson (op. cit.: 144), os soldados eram o
elemento-chave para a romanização do Império. As influências da cultura romana nas
localidades onde havia legiões romanas apareciam nos hábitos alimentares, nas construções
e na religião de seus habitantes.
A lealdade do soldado a Augusto compõe o pilar da disciplina militar romana. Sua
fidelidade era assegurada pela propaganda estatal augustana, pelo pagamento do soldo, pelo
juramento prestado nas Sete Colinas e ainda, pelo sentimento de orgulho de ser membro do
exército da maior potência do mundo antigo. Embora, como apontou Keppie (1996: 382), a
excessiva confiança no potencial militar de algumas legiões auxiliares poderia funcionar
contra o Império, como por exemplo, na revolta da Panônia em 6 d.C. na qual os auxiliares
da Dalmácia voltaram-se contra o seu comandante romano Maroboduus.
Restringir a lealdade do soldado de Augusto ao recebimento do soldo, constitui-se
em uma visão tão equivocada quanto a de limitar o mérito de seu exército aos resultados de
caráter meramente militar, pois desconsidera a sua função dinamizadora da economia, tais
análises limitam o seu papel na disseminação da cultura romana pelos lugares mais
longínquos do Império além de sua importância na ocupação territorial do Império. Ainda
de acordo com Keppie (op. cit.: 377), em 16-14 a. C., Augusto e Agripa supervisionaram
um programa de colonização e assentamento de colonos nas províncias, provavelmente,
aqueles que lutaram em Ácio. Em suma, nota-se que Augusto percebeu no exército o apoio
necessário para o desenvolvimento de sua política imperialista, valorizando-o, prática
repetida por seus sucessores.

Conclusão
Sem desconsiderar a propaganda imperial presente nas artes cênicas, na literatura,
nas construções, nos monumentos, é preciso avaliar que a violência percebida na época
republicana não se dissipou com a mudança de governante, ela permaneceu, o que mudou
durante o Principado de Augusto foi o bem-sucedido controle da violência ainda existente,
bem como a eliminação dos grandes opositores e a cooptação dos pequenos.
Visto que a violência já estava entranhada na mentalidade dos romanos, foi
necessária a adoção de medidas eficazes para refreá-la, tais como; instauração de uma
milícia interna para controlar os ânimos mais exaltados, a criação de uma guarda pessoal
para o Imperador – Guarda Pretoriana - a fim de garantir-lhe estabilidade no poder. Além
dessas medidas, também pode-se destacar o posicionamento das legiões em territórios
estratégicos do Império para a proteção das fronteiras enfim, a violência no território
romano permanecia sob o controle do Imperador, que estava sob a égide do exército.
Em suma, desde a sua decisão de tomada do poder até a criação do Principado,
Augusto encontrou no exército a ferramenta mestra para operar mudanças na sociedade
romana, adotando políticas ordenadoras e voltadas para o desenvolvimento econômico e
social de Roma. O seu êxito deveu-se à eficiente política de propaganda imperial aliada à
uma rígida estrutura de segurança pessoal e do Império cujo pilar precípuo era a disciplina e
a fidelidade do Exército de Augusto. Tais procedimentos políticos estavam presentes nas
estratégias políticas dos imperadores subseqüentes a ele.

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DA ANTIGÜIDADE AO MEDIEVO:
O CRISTIANISMO E A ELABORAÇÃO DE UM NOVO MODELO CARITATIVO

Bruno Miranda Zétola∗

RESUMO
A elaboração de um novo modelo caritativo é apontada por vários especialistas como um
dos mais significativos marcos da transição da Antigüidade ao Medievo. O evergetismo
clássico mostrava-se pouco viável no conturbado período das migrações germânicas, sendo
paulatinamente substituído pela caridade cristã. Este modelo caritativo, instigado pela
busca da intercessão divina e da remissão dos pecados, colocava a Igreja como
intermediária entre a recepção e a redistribuição dos donativos. Nesse sentido, percebe-se
que a caridade cristã foi um importante veículo de legitimação do poder político e
econômico da Igreja, e em especial, do episcopado.
PALAVRAS-CHAVE: pobreza, caridade, episcopado

ABSTRACT
The elaboration of a new charity model is pointed out by several specialists to be one of the
most expressive signs of transition from Antiquity to Middle Ages. The classical
evergetism was not much feasible during the restless period of Germanic migrations, being
replaced by the Christian charity. This new charity model, instigated by the search of
divine intercessions and by redemption of sins, placed the Catholic Church as an
intermediary between reception and redistribution of donations. In this way, Christian
charity became an important legitimation vehicle of political and economical power of the
Catholic Church, and particularly, of the bishopric.
KEY-WORDS: poverty, charity, bishopric.

A caridade se desenvolveu de modo muito particular no mundo romano. Assumiu a


forma do evergetismo, combinação de civismo urbano com ostentação socioeconômica. Era
dirigida mais aos concidadãos do que aos realmente necessitados e possuía mais a função
de exaltar a honra do patrono do que a de aliviar os problemas da plebe. Com o advento do
cristianismo, essa noção de caridade foi, gradualmente, transformada. O discurso cristão,
embora pregasse o amor ao próximo, serviu para fortalecer o poder episcopal e como meio
de controle social às elites. Portanto, apesar de sociedades diferentes terem elaborado
distintos sistemas caritativos, em ambos os casos um mesmo interesse dissimulado pela
beneficência foi responsável pela utilização dos pobres como objetos, ao invés de sujeitos
da caridade. (DÍAZ MARTINEZ, 1993: 163). De fato, o conceito de caridade sugere a idéia
de, ao menos, dois agentes – um doador, responsável pelo ato caritativo, e um receptor, que
sofre a ação desse ato. Os maiores beneficiários, contudo, nem sempre são aqueles que
recebem a doação. Tanto a aristocracia romana quanto o episcopado auferiam, das atitudes
beneficentes que praticavam, vantagens político-econômicas maiores do que as recebidas
diretamente pelos objetos de sua caridade. Porém, a despeito da existência de algumas
semelhanças, a transformação do ideal caritativo é apontada por muitos especialistas como
um dos mais significativos marcos da transição da Antigüidade ao Medievo.

Aluno do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. E-Mail:
brunozetola@hotmail.com. Este texto é resultado de nossa pesquisa de Dissertação de Mestrado, em fase
de conclusão.
Em verdade, o cristianismo impôs significativas transformações culturais no
cotidiano das pessoas. Por ser uma religião teleológica, prometia aos humildes uma
recompensa eterna – a Cidade de Deus. Nesse sentido, a prática caritativa foi um dos meios
mais utilizados por aqueles que desejavam atingir tal objetivo. Reis, nobres, imperadores e
camponeses, incentivados por um refinado discurso eclesiástico, acabaram por transformar
a caridade num traço cultural bastante significativo da sociedade cristã. As doações aos
pobres eram vistas como um remissivo aos pecados cometidos e um meio de se alcançar
alguma intercessão divina. Isso fomentava um dinâmico circuito caritativo que, geralmente,
era intermediado pela Igreja, fazendo do episcopado seu maior beneficiário. Nosso intuito é
traçar algumas considerações sobre a transformação do ideal de caridade, que favoreceu
sobremaneira o fortalecimento do poder político e econômico dos bispos. Para tanto, foi
fundamental a elaboração de um novo conceito de pobreza, permitindo a suplantação do
modelo romano evergeta de caridade pelo cristão.

O Evergetismo
O termo evergetismo é um neologismo derivado do grego cujo significado
aproximado seria “atitude beneficente”. Embora o conceito tenha sido utilizado por André
BOULANGER na década de 1920 e por Henri-Irinée MARROU na de 1940, é Paul
VEYNE em sua obra “Le pain et le cirque”, de 1976, que o desenvolve. (MAGNANI, 2005:
269). Na tradução ao inglês de que dispomos, VEYNE define evergetismo como “the
manifestation of an ‘ethical virtue’, of a quality of character, namely magnificence”.
(VEYNE, 1990: 14). Algumas críticas têm sido feitas recentemente ao conceito de
VEYNE, como enfatizar o argumento de manipulação das massas pela elite, desconsiderar
a diversidade social e colocar uma ênfase excessiva no aspecto político. (GARRAFFONI,
2004: 82). Embora matizado por suas limitações, o termo continua sendo utilizado por
muitos especialistas, visto que remete a uma idéia fundamental para o entendimento do
processo caritativo romano – a reciprocidade. Se os aristocratas romanos praticavam uma
atitude beneficente para a plebe, tal ato não era fortuito; desejavam receber algo em troca –
o reconhecimento de seu status.
Para entendermos a real dimensão do ideal de caridade romano temos de considerar
que foi justamente entre os notáveis municipais, mais que entre os nobres senadores de
Roma, que o evergetismo assumia seu verdadeiro caráter. Esse processo era favorecido pelo
fato de que as milhares de cidades que formavam o Império Romano possuíam uma relativa
autonomia face ao poder de Roma. Conforme VEYNE, os romanos “distinguiam mal
funções públicas e dignidade privada, finanças públicas e bolsa pessoal. A grandeza de
Roma era propriedade coletiva da classe governante e do grupo senatorial dirigente; assim
também cada uma das milhares de cidades autônomas que formavam o tecido do Império
era coisa dos notáveis locais”. (VEYNE, 1989: 103). É esse sentimento de posse da ciuitas,
esse anseio de ser um homem público por excelência que norteava os potentados locais na
prática do evergetismo. Quando um dignitário local ascendia a uma magistratura, era de
praxe que promovesse espetáculos, doasse uma volumosa soma ao erário da cidade ou
empreendesse a construção de um pomposo edifício público. Caso não estivesse em boas
condições financeiras no momento, comprometia-se por escrito a levar a cabo essas ações
um dia, pessoalmente ou por meio de seus herdeiros. (VEYNE, 1989: 104). Tais atitudes,
sob a ótica estritamente econômica, não eram muito compreensíveis, mesmo considerando
que, através das benesses de seu cargo, um nobre que desempenhava uma magistratura
tivesse oportunidade de retirar muito mais do que gastara pelo bem da cidade. Mais
enigmáticos seriam os casos daqueles que promoviam benefícios à ciuitas
independentemente de assumirem qualquer tipo de função pública. Banquetes, jogos e
construções de edifícios eram, amiúde, ofertados por livre e espontânea vontade de alguns
indivíduos.
Civismo e ostentação, eis as raízes do evergetismo numa sociedade em que as
esferas pública e privada estavam inexoravelmente intrincadas. O civismo remete a uma
idéia de dever para com sua sociedade que, no mundo romano, geralmente estava associada
à ciuitas. Dada sua estreita relação com o poder, os ricos sentiam-se naturalmente figuras
públicas. Convocavam seus concidadãos para participar das mais diversas comemorações e
não perdiam uma oportunidade para exercer, e demonstrar, seu civismo em prol de sua
cidade. Já a ostentação remete à idéia de demarcação social. Para um dignitário local,
contribuir para o bem da sua ciuitas também era contribuir para seu honor. Conforme Maria
Helena da Rocha PEREIRA, o conceito de honor

tem uma ligação muito clara à vida política romana, que se traduz, quer nas formas de
reconhecimento público [...], quer na própria expressão cursus honorum, que marcava a
progressiva ascensão dos cidadãos aos cargos principais da Urbe. [...] Reconhecimento
público do mérito, que actua como estímulo, e tem, por conseguinte, uma função
pedagógica na cidade. (PEREIRA, 1984: 336).

Por depender do julgamento da sociedade, o honor é mais facilmente alcançado


através de obras e feitos de grande visibilidade. O reconhecimento público, a consagração
pelo honor, são motivos que explicam por que muitos nobres romanos praticavam o
evergetismo espontaneamente, sem qualquer vínculo com as magistraturas. Para as camadas
superiores da população, o evergetismo era um ponto de honra nobiliárquico, em que o
orgulho de casta acionava motivações cívicas e liberais. Só através da promoção, a
altíssimos custos, do benefício da cidade, é que um notável se transformava num benfeitor
magnânimo, num patrono da cidade. O evergetismo permitia, desse modo, que as elites
locais tivessem a oportunidade de dizer que a cidade lhes pertencia. Tratava-se, em suma,
de um espírito tipicamente nobiliárquico que promovia celebrações e erguia edifícios
públicos e estátuas com um único objetivo – enaltecer a glória de um indivíduo ou de uma
dinastia promovendo o bem de “sua” cidade.
Um exemplo de evergetismo é a distribuição de dinheiro, prática que se aproxima
um pouco da noção caritativa cristã. Mas as diferenças são grandes. A começar pelo
julgamento se seria correto dar dinheiro aos pobres. Temia-se que os donativos
corrompessem os pobres, incentivando-os a não trabalhar. E, pobres desocupados, era sinal
de tumulto iminente. Por isso, distinguiam-se os pobres bons dos maus, os dignos dos
indignos de receberem doações, seja de dinheiro, seja de alimentos. Há de se lembrar,
portanto, que as distribuições públicas eram feitas somente aos cidadãos de cada ciuitas.
Por isso, teoricamente, escravos e libertos, pessoas que compunham os estratos sociais mais
extremos da pobreza e não se enquadravam na categoria jurídica de cidadão, dificilmente se
beneficiavam dessas práticas assistenciais. (WHITTAKER, 1992: 243). Estas eram
dirigidas mormente a uma plebe intermediária, embora, com certa reprovação moral, os
cidadãos mais abastados também tivessem direito de entrar na fila para receberem seu
quinhão.
Qual seria, porém, a visão acerca do evergetismo que possuíam as camadas
desprivilegiadas da população, aquelas pessoas que constituíam o objeto da caridade? Ao
que as fontes indicam, a plebe sabia capitalizar muito bem o espírito de evergetismo dos
ricos para seu próprio benefício, independentemente de quem fosse o patrono. Sob essa
perspectiva, Petrônio, em seu Satyricon, faz questão de evidenciar o tom irônico dos
protagonistas em um banquete oferecido pelo rico Trimalcião. “Agradecemos a nosso
anfitrião sua generosidade e indulgência, verdadeiramente extremas, e, para não sufocar de
riso, recorremos à bebida”. (Pet. Sat. XLVII). A idéia que nos passa é a de que, ainda que se
aproveitassem da generosidade de Trimalcião, este era ridicularizado pela plebe. O pobre
Encólpio assim descreve a entrada de Trimalcião no banquete que o próprio ofertava:

Estávamos mergulhados nesse oceano de delícias quando, ao som de uma sinfonia,


apareceu Trimalcião em pessoa, conduzido por escravos que o colocaram, delicadamente,
num leito coberto de almofadas macias. A esse imprevisto não pudemos conter uma ruidosa
gargalhada. Era preciso ver sua cabeça calva emergindo de um véu de púrpura e seu
pescoço ridiculamente enfeitado com um imenso guardanapo, cheio de listras, que lhe
cobria todas as vestes, e que caía, em franjas, para os dois lados. (Pet. Sat. XXXII).

Trata-se, certamente, de uma obra de ficção em que os defeitos e atitudes das


personagens são exagerados. Não obstante, a figura que Trimalcião representa há de ter sido
algo bastante palpável para que Petrônio o incluísse em seu texto. O Trimalcião de Petrônio
seria, portanto, um exemplo satírico levado ao limite de um novo-rico que gastava grande
soma para ostentar sua posição social. Marcial, igualmente satírico, mas provavelmente
menos ficcionista, legou-nos em seus Epigramas vários relatos dessa prática pelos romanos
ricos, numa perspectiva que, provavelmente, era compartilhada pela plebe e,
principalmente, pelos menos ricos. Eis alguns exemplos de como os menos privilegiados
consideravam as beneficências que um cidadão mais rico poderia custear: “Quando a turba
de toga grita um grande ‘bravo’ para ti, não és tu, Pompônio, mas o teu jantar que é
eloqüente”. (Mart. Epig. VI, 48). “Se os potentes te disputam os pedaços por tua companhia
em banquetes, nas colunatas, nos teatros, e gostam de se vestir e de se banhar contigo
freqüentemente, não te exultais em demasia, Philomuso. Dás-lhes prazer, porém não és
amado”. (Mart. Epig. VII, 76).
Note-se que o evergetismo implica uma constante interação entre pessoas de
distintos estratos socioeconômicos. Pobres, segmentos intermediários e ricos possuem
vivências sociais em comum. Essa inter-relação entre pessoas de diferentes estratos sociais
era necessária para que o evergetismo funcionasse. O patronus precisava do
reconhecimento de seus concidadãos menos abastados. E estes aproveitavam os prazeres
que lhes eram proporcionados por um rico senhor. Ao fim e ao cabo, mesmo que a plebe se
aproveitasse das benesses de um rico patronus, entendia o evergetismo como atitude
tipicamente aristocrática. Do mesmo modo, muitos humiliores que haviam enriquecido
rapidamente gastavam grandes fortunas com onerosas atividades de magnificência.
Buscavam, com tais benesses, equiparar seu status social com o econômico. Como
exemplo, tem-se o relato de Marcial de um padeiro que ganhava muito dinheiro, mas que
esbanjava tanto que sua fortuna se esfarelou. (Mart. Epig. VIII, 16). São indícios de que os
valores do evergetismo não eram compartilhados apenas por uma elite socioeconômica,
mas por pessoas de condições inferiores que almejavam alcançar o honor e serem vistos
como dignitários da cidade. Portanto, a despeito do tom irônico com que Marcial e Petrônio
relatam o evergetismo e das diferentes implicações que o mesmo possuía para diferentes
grupos sociais, ele era visto por todas as classes como uma peculiaridade nobiliárquica, um
distintivo de classe.
A partir do século III d. C., quando o Império atravessa uma crise fiscal e política, as
elites locais sofreram um sério golpe em suas finanças, em maior ou menor medida
conforme a região. Isso levou a um dilema entre finanças pessoais e obrigações morais, pois
as doações para o bem da ciuitas haviam se transformado quase que num dever das elites, o
que lhes custava quantias enormes. Plínio, o jovem, em uma epístola ao Imperador Trajano,
expõe sua preocupação sobre os problemas financeiros que as atividades de evergetismo
poderiam provocar aos que assumem a toga viril. (Plin. Epist. X, 116). Muitos
concordavam com a idéia de Plínio e, na hora de decidir entre estabilidade econômica e
glória pessoal, optavam pela primeira opção. Por isso, não nos iludamos ao pensar que,
mesmo em período anterior à crise, todos os ricos se dispunham a beneficiar suas cidades o
tempo todo. Embora o honor fosse uma virtude altamente desejável e a magnanimidade
pública um meio de se atingi-la, havia condições econômicas que dificultavam a prática do
evergetismo. Paul VEYNE sugere que isso ocorria freqüentemente:

A nomeação de dignitários anuais fornecia a oportunidade; todo ano, em cada cidade


desenrolavam-se pequenas comédias: era preciso encontrar novas fontes de financiamento.
Cada membro do conselho declarava-se mais pobre que seus pares e dizia que em
compensação Fulano de Tal era um homem feliz, próspero e tão magnânimo que
seguramente aceitaria naquele ano uma dignidade que acarretava o dever de garantir à
própria custa a água quente dos banhos. O interessado protestava que já passara por isso. O
mais teimoso ganhava. Se não se via saída, o governador da província interferia; ou a plebe
da cidade, zelosa de sua água quente, intervinha pacificamente: aclamava a vítima
designada, levava às nuvens sua generosidade espontânea e elegia-a dignitário erguendo as
mãos ou por aclamações unânimes. (VEYNE, 1989: 115).

Embora influenciado por aspectos monetários, o evergetismo não era norteado por
uma racionalidade econômica, mas pela ostentação e civismo. Assim como muitos
dignitários em cidades com dificuldades econômicas se esquivavam de seus deveres
nobiliárquicos, outros tantos, em cidades mais prósperas, exerciam mais ativamente o
evergetismo. Petrônio traz excelentes exemplos do ostentatório mecanismo do evergetismo.
Durante um banquete, um dos convidados relata que seu amo patrocinaria um grande
espetáculo de gladiadores. Seu pai ao morrer, deixara-lhe trinta milhões de sestércios.
Desse modo, “se gastasse quatro mil, seu patrimônio nada sentiria, e seu nome seria
lembrado para sempre.” (Pet. Sat. XLV). Portanto, se, num primeiro momento, o patrono
desembolsava uma grande soma de dinheiro, recebia, do mesmo modo, uma grande
projeção social, tanto entre a plebe, como entre seus pares, assegurando seu honor. Porém,
se o espetáculo, desagradasse aos espectadores, longe de atingir a glória, o patrono tornava-
se motivo de chacota, conforme o caso de um evergeta que promoveu um pífio jogo de
gladiadores, que Petrônio descreve:

De fato, o que Norbano nos fez de bem? Ofereceu-nos, em espetáculo, gladiadores de


aluguel já decrépitos que, se os assoprassem, cairiam. Já vi melhores bestiários. Cavaleiros
morrerem sob luz de tochas. Aqueles gladiadores pareciam galináceos. Um se arrastava,
outro tinha as pernas tortas, um terceiro, que substituía outro que morrera, já estava meio
morto, pois tinha os nervos despedaçados [...].Eu te dei um bom espetáculo – disse Norbano.
E eu te aplaudi – respondi. Façamos as contas, te dei mais do que recebi. Uma mão lava a
outra. (Pet. Sat. XLV).
Eis nitidamente a lógica do evergetismo, que fazia com que notáveis gastassem largas
somas de dinheiro para o deleite dos seus concidadãos, visando ostentar sua condição de
homem público, de patrono da cidade. Não importava se a construção de um porto seria
mais útil que a de uma estátua, ou se os jogos de gladiadores não aliviariam os problemas
dos pobres da cidade. Isso era efeito secundário para o evergetismo. O que importava, além
da projeção social do patronus, eram os prazeres e o prestígio de que o corpo cívico como
um todo, ricos e pobres, se beneficiaria através do evergetismo. Por isso mesmo a caridade,
no mundo romano, não tinha como alvo os mais pobres. (WHITTAKER, 1992: 230). Essa
característica pode ter sido um dos fatores que favoreceu a disseminação do cristianismo,
num primeiro momento, entre a população marginalizada das cidades.

Um novo conceito de pobreza


Certa ocasião Sêneca decidiu viver por dois dias como um camponês pobre. Para
tanto, levou consigo um número reduzido de escravos, apenas um carro, e sua comida era
tão simples que se preparava em uma hora. (Sen. Epist. LXXXVII). Juvenal, em seu turno,
considerava pobre uma pessoa que ganhasse menos de 20 mil sestércios por ano, quantia
que, segundo WHITTAKER, era a necessária para se ingressar na ordem eqüestre.
(WHITTAKER, 1992: 230). Nessa direção, para a aristocracia romana, o pobre era o rico
que não era muito rico. Esses “pobres ricos” eram pessoas de boa condição econômica, mas
de status sócio-jurídico inferior. De fato, a pobreza estava muito mais associada à condição
social que à condição econômica de um indivíduo. Geralmente as duas vertentes
convergiam, mas havia muitas exceções como, por exemplo, os libertos que enriqueciam
graças a seus ofícios. Por isso, o nascimento e a condição jurídica contavam tanto ou até
mais que a situação econômica para definir a posição de um indivíduo na sociedade que, a
partir do século II, apresentava-se polarizada nas categorias sócio-jurídicas de honestiores e
humiliores. (WHITTAKER, 1992: 239). Por mais que se esforçassem por imitar os hábitos
da aristocracia romana, muitos homens ricos se enquadravam na categoria de humiliores,
dada sua condição de nascença. Nos últimos tempos do Império, ao passo que os
honestiores fragmentavam-se em numerosas camadas com posições sociais das mais
variadas, os humiliores tendiam a assumir um caráter cada vez mais homogêneo, resultado
de uma dependência cada vez mais acentuada no âmbito político, econômico e social.
(ALFÖLDI, 1989: 216).
O extremo grau de miséria das inúmeras pessoas que não tinham onde morar, mal
tinham o que comer e viviam em ambientes totalmente insalubres era matizado por uma
camada de pobres não tão miseráveis. Trata-se de uma plebe “respeitável”, que partilhava
alguns valores da aristocracia romana, sendo beneficiada através de ações de patronato
público e privado. (WHITTAKER, 1992: 245). Eram majoritariamente esses os pobres que
assistiam aos espetáculos, que entravam nas filas para a distribuição de pão e de dinheiro, e
que eram elogiados por virtudes inerentes a sua condição por determinados poetas. Essa
camada de pobres tornava tolerável a diferença entre ricos e pobres e fazia esquecer a
situação dos muito pobres.
Era principalmente a esses indivíduos mais carentes e desprotegidos pelo sistema
caritativo romano, que a Igreja pregava seus universalizantes evangelhos no início da era
cristã. Viúvas, órfãos, doentes, todos aqueles ignorados pela magnanimidade romana eram
acolhidos no seio da Igreja. A célebre assertiva de Marcos ilustra bem essa idéia: “Vinde a
mim todos que sois fatigados e oprimidos e eu vos aliviarei”.(Bib. Mt. XI: 28). Com o
cristianismo constrói-se, lentamente, um novo imaginário sobre a pobreza e, por
conseguinte, de caridade. O cristianismo, aliás, também considerava a pobreza como um
dado estrutural da humanidade. Nesse sentido é ilustrativa a passagem do Evangelho na
qual Cristo teria dito: “sempre tereis convosco os pobres, mas a mim não haveis de ter
sempre”. (Bib. Mt., XXVI: 11). O cristianismo, portanto, não intencionava promover
qualquer tipo de reformulação socioeconômica em relação à figura do pobre. A grande
mudança se deu no plano ideológico, visto que houve uma valorização da imagem do
pobre. Sendo uma religião escatológica, prometia aos pobres o reino dos céus, como sugere
o célebre Sermão da Montanha: “Bem-aventurados vós os pobres, pois vosso é o reino de
Deus”. (Bib. Lc. VI:20).
Para o cristianismo, portanto, a pobreza também não está relacionada
exclusivamente com o aspecto material. De outro modo seria impossível garantir a salvação
dos cristãos ricos, uma vez que que dos pobres é o Reino dos Céus. A idéia básica era que a
humildade espiritual fazia alcançar a glória divina, discurso que atenuava a degradação
econômica e moral que acometia os pobres. (MOLLAT, 1988: 26). Muitos cristãos
associavam humildade espiritual à humildade material, desfazendo-se de seus bens e
levando uma vida simples, desprovida de luxo, para que pudessem melhor contemplar a
glória divina. Para aqueles cujo desprendimento era menor, Santo Agostinho abria uma
possibilidade de salvação, ao afirmar que a humildade não é, de modo algum, exclusividade
dos pobres. Afirma, inclusive, que muitos pobres se fazem mais soberbos que os ricos, não
pelas riquezas, mas pelos desejos, que Agostinho associa à cobiça e à avareza. (August.
Serm. XIV, 7). Por outro lado, recorda que há muitos ricos que são humildes, que são
“pobres de espírito”, ou seja, não são movidos pela avareza ou pela cobiça. Esses, que
Agostinho denomina de “ricos pobres”, possuíam um lugar reservado no Paraíso. (August.
Serm. XIV, 4). Embora Abraão seja um bom exemplo desse paradoxo entre riqueza terrena
e humildade espiritual, o modelo mais exaltado era o de Cristo. Nas palavras do bispo de
Hipona, trata-se de “aquele que fez todas as coisas, Senhor dos céus e das terras, Criador de
todas as coisas visíveis e invisíveis ocultou Sua majestade e Se fez pobre pela humanidade
– eis o exemplo capital de um pobre de verdade”. (August. Serm. XIV, 9).
A imagem de pobreza de Cristo perpassa todo o discurso cristão na Antigüidade
Tardia. O discurso eclesiástico da caridade valorizou ao máximo esses conceitos, o pecado
da avareza e a virtude da humildade. Os grandes padres do período, como Agostinho de
Hipona, João Crisóstomo de Antioquia e Ambrósio de Milão, vivendo em centros urbanos
repletos de populações marginalizadas, exortavam a população da cidade a auxiliar os
pobres. Como recurso, utilizavam sermões, hagiografias, homilias que recordavam a
pobreza de Cristo, e o pecado que constituía não auxiliar os necessitados. Esse refinado
discurso eclesiástico valorizou a figura do pobre a tal ponto que ele se tornou indispensável
para a sociedade. Justamente por isso, a pobreza precisava ser reproduzida, o que
aconteceu, dentre outros meios, através da caridade cristã.

A caridade cristã
Até princípios da quarta centúria, a comunidade cristã respondia por cerca de dez
por cento da população do Império, mais concentrados no Oriente que no Ocidente, muito
mais nas cidades que no campo. (ORLANDIS, 1989: 42). A caridade cristã se desenvolveu
face às dificuldades com que se debatiam os membros dessa escassa comunidade de
cristãos no alto império. Tinha o intuito, num primeiro momento, de sustentar viúvas,
órfãos, doentes e todos os cristãos que se encontravam com algum tipo de necessidade. Tal
como os judeus, os cristãos também se viam na obrigação de atender aos seus necessitados,
visto que eram ignorados pela magnanimidade romana. Contudo, por volta do século III os
cristãos estabeleceram a caridade também aos seus sacerdotes, para que pudessem
desempenhar de maneira mais apropriada as liturgias. Antes da conversão do Império ao
cristianismo eram esses os dois deveres materiais dos cristãos – auxiliar seus irmãos de fé
nos momentos de dificuldades e sustentar o clero. (BROWN, 2002: 24). Desenvolvia-se,
dessa maneira, como uma rede de solidariedade entre membros de uma comunidade
numericamente pouco significativa durante os primeiros séculos do Império.
Essa situação se transformou com a rápida disseminação do cristianismo e com a
associação entre Igreja e Império fomentada por Constantino. Em pouco mais de três
séculos de existência, o cristianismo se converte em religião majoritária do Império
Romano. Dois séculos depois da adoção do cristianismo como religião oficial de Roma, não
há mais registros de pagãos confessos. O poder episcopal, cuja atuação era restrita e difusa,
é fomentado a partir de Constantino, quando a Igreja é instigada a ingerir em assuntos que
até então eram de competência exclusiva do poder público. Uma das mais significativas
atribuições, que exemplifica essa projeção política do episcopado, foi sua paulatina inserção
nos assuntos judiciários. Do foro privilegiado, concedido pelo Código Teodosiano, os
bispos, já na segunda metade do século IV, haviam alcançado o título de defensor ciuitatis.
Mesmo após o período das invasões germânicas, os bispos não perderam sua influência
como autoridades citadinas. Pelo contrário, no vácuo institucional deixado pelo
esfacelamento da máquina administrativa romana, os bispos ampliaram sua esfera de
atuação, passando a gerir questões de ordem administrativa e a interferir mais ativamente
em assuntos da vida política. Tal situação se devia, certamente, pela projeção ideológica da
figura do bispo. Porém, mais significativo, é que “o episcopado soube garantir a expansão
de sua influência sobre clérigos em funções administrativas e com a prática da assistência
material e jurídica às populações urbanas necessitadas”. (SILVA, 2002: 82). Em outras
palavras, a interação do bispo com as comunidades urbanas era maior que a das elites
administrativas romanas. Os bispos estavam mais atentos aos problemas daquela
comunidade, e poderiam atuar de maneira mais constante na resolução de problemas
quotidianos. É o caso de bispos como Idácio de Chaves e o Papa Leão I que, na qualidade
de maiores autoridades municipais, negociam com chefes Suevos, Visigodos e Hunos para
tentar evitar o saque de suas cidades.
Desse modo, o poder imperial viu na aliança com a Igreja um meio de aliviar as
tensões sociais que as comunidades urbanas em crise geravam. (BAJO, 1986: 193).
Amenizar o problema de uma indigência generalizada era algo de suma importância para se
manter a paz social, especialmente num contexto de crise social, instabilidade política e
ameaças de invasões. Isso se fez não apenas através da mensagem escatológica do
cristianismo como também, e principalmente, através da prática caritativa cristã. E, nesse
quesito, a Igreja era muito mais eficiente que os potentados locais. Estes, embora
desejassem promover benesses públicas para o bem da “sua” cidade, não dispunham,
principalmente a partir da crise do século III, de suficientes recursos para bancarem os
exorbitantes gastos de tais celebrações. A Igreja, colocando-se como mediadora entre ricos
e pobres, angariava pequenas mas constantes doações que, ao fim e ao cabo, permitiam
auxiliar os pobres mais freqüentemente e sem causar a bancarrota de ninguém. Outra
vantagem era que o sistema caritativo eclesiástico era muito mais abrangente, o que
permitia assistir aos mais necessitados. Ademais, devido às perturbações político-
econômicas originadas no período das migrações germânicas, boa parte da aristocracia
romana dirigiu-se às uillae, cabendo quase que exclusivamente ao episcopado garantir a
assistência social no meio urbano, onde a pobreza era mais nítida. Assim, com a
desestruturação do sistema administrativo da parte ocidental do Império, na quinta centúria,
evidencia-se a atuação cívica do episcopado em favor da romanitas/christianitas, de que a
caridade era uma das principais dimensões.
Percebendo tais vantagens no assistencialismo cristão, o Império concedeu uma
série de incentivos e privilégios à Igreja, justificados, em sua maioria, no auxílio que esta
prestava os pobres. É o caso da lei, decretada por Constantino e recolhida sob o número
16.2.6 no Código de Teodósio, que eximia clérigos de determinadas taxas para que eles
cuidassem dos pobres. Desse modo, foi como protetores dos pobres que os bispos definiram
sua função social e justificaram suas regalias, tornando a pobreza uma das mais importantes
alegorias para o imaginário social da época. Nesse sentido, um especialista asseverou que,
“in a sense, it was the Christian bishops who invented the poor.” (BROWN, 2002: 08). De
fato, conforme sugeriu Michel MOLLAT, “os pobres”, como categoria social definida, não
existiam no mundo clássico romano. Foi com o discurso cristão que a pobreza passou a ser
o grande elemento de identificação de uma pessoa desprovida de um bem material ou
espiritual. (MOLLAT, 1998: 10). Conforme esses autores, pode-se concluir que a divisão
da sociedade entre ricos e pobres é uma ideologia cristã, cujo objetivo era legitimar os
privilégios eclesiásticos situando a Igreja como intermediador necessário entre os dois
grupos para a manutenção da paz e da ordem social.
Obviamente que a transição de um modelo caritativo a outro não aconteceu de
imediato. Já existia certo viés moral, e não cívico, de beneficência em alguns autores
sofistas, cínicos e estóicos do mundo clássico, que a entendiam como uma dimensão da
humanitas. Marco Aurélio, em suas Meditações, indaga: “Por que, se praticaste um bem,
beneficiando alguém, buscas como um desmiolado uma terceira coisa ainda – mostrar que o
fizeste ou obter compensação?” (Mar. Aur. Medit. VII, 73). Não obstante, a Igreja, tentava
avocar para si a exclusividade da prática caritativa. Além de elaborar um circuito
institucionalizado de caridade, condenava oficialmente os espetáculos promovidos pelo
evergetismo, alegando que os mesmos traziam funestas conseqüências para as almas das
pessoas. Isidoro de Sevilha, por exemplo, condena os espetáculos pois sua raiz estaria na
idolatria, (Isid. Etym. XVIII, 16, 3); e afirma que aqueles que assistem aos jogos circenses
servem ao culto dos demônios. (Isid. Etym. XVIII, 27, 1). Mesmo assim, a mudança foi
gradual, e os espetáculos patrocinados pelo evergetismo sobreviveram aos primeiros
séculos do cristianismo, como o realizado em Zaragoza no início da sexta centúria. (Chron.
Caesarg. 85a). A continuidade de eventos desse tipo justifica a releitura de um antigo
cânone proibindo os clérigos de assistirem aos espetáculos, conforme compilação anotada
por Martinho de Braga no Concílio II de Braga.
Ademais, mesmo de forma velada, podemos perceber certa continuidade do
sentimento evergeta no âmbito da comunidade cristã. O que se nota é que houve a
prosseguimento de atividades evergetas “tradicionais”, como a promoção de festas e a
construção de edifícios, embora modificadas por elementos cristãos. Antes de orações
solenes, quando era lida a lista dos que levavam oferendas ao altar, os nomes eram
aclamados como na época da munificência cívica. Assim, no cânone 19 do Concílio de
Mérida de 666 recomendava-se aos presbíteros que procurassem “recitar ante o altar
durante a missa os nomes daqueles que tenham construído basílicas ou tenham trazido ou
trazem algo a estas santas igrejas”. Tal normativa era um meio de estimular as doações da
aristocracia local, acostumada aos mecanismos do evergetismo clássico. Segundo relata
Peter BROWN, por volta da passagem da quarta à quinta centúria, o senador Paulinus
promoveu um grande banquete aos pobres em plena basílica de São Pedro no aniversário de
morte de sua mulher. (BROWN, 1981: 36). Do mesmo modo que os banquetes evergetas
persistiam, a contribuição privada na construção de prédios públicos, que fora uma das mais
importantes dimensões do evergetismo clássico, continuará a existir no evergetismo cristão.
Conforme Mark WHITTOW:

Leaving aside private houses, one has to keep in mind that there had been a dramatic
change in the sorts of public building wealthy Romans wanted to pay for. In the first and
second centuries A. D. leading citizens had wished to build public baths, gymnasia, stadia,
theatres and temples. By the sixth century, fashion and cultural values had changed.
However wealthy, these men were no longer interested in such structures. [...] The
Christian Romans of the sith century wanted to display their wealth and status by building
monasteries, hospitals old peoples’ homes, orphanages and, above all, churches. Therefore
these are the buildings which reflect late Roman urban wealth. (WHITTOW, 1990: 18).

Face à existência desses atos privados de caridade, concorrenciais à caridade


institucional da Igreja, os bispos se esforçaram por desenvolver e ampliar seu próprio
circuito caritativo. Além de condenarem o evergetismo clássico, tentaram esvaziar o sentido
do evergetismo cristão através da apropriação do “mundo superior”, tornando a Igreja a
única intermediária entre os cristãos deste mundo e as entidades divinas (Cristo, mártires,
anjos) do outro. Ao analisar as várias facetas desse evergetismo tardio, Carles
BUENACASA PEREZ concluiu que “el evergetismo cristiano no es gratuito. Los nuevos
evergetas actúan pro remedio animae, por lo que, no pueden dejar de lado a la Iglesia. En
esta religión, es ella y sólo ella la que les pueden garantizar la felicidad eterna. Por este
motivo, la Iglesia acabará imponiendo un verdadero ‘trust sagrado’ en el campo religioso”.
(BUENACASA PÉREZ, 1998: 140). Isso ocorria porque, no cristianismo, a Igreja detém o
monopólio dos sacramentos que controlam a vida dos cristãos, desde a sua inserção na
comunidade cristã pelo batismo até a remissão dos pecados e a extrema unção.
Em verdade, fundamentado em três temas que não tinham tanta relevância no
mundo antigo – o pecado, a morte e a pobreza – o cristianismo paulatinamente transformou
o ideal de caridade. Esses conceitos intrincados delimitam o horizonte da sociedade cristã
tardo-antiga. O tema dos pecados perpassa todos os momentos da sociedade cristã,
influenciando decisivamente as relações sociais, as concepções de tempo, as práticas rituais,
os saberes, enfim, toda uma visão de mundo. (CASAGRANDE, VECCHIO, 2002: 337).
No discurso cristão, o conceito de pecado se relaciona de maneira muito interessante ao de
morte. Conforme Jean DELUMEAU, “o animal não antecipa sua morte. O homem, ao
contrário, sabe – muito cedo – que morrerá. É pois o único no mundo a conhecer o medo
num grau tão terrível e duradouro”. (DELUMEAU, 1996: 19). De fato, percebemos que há
na sociedade cristã um medo relacionado com o pós-morte, com o Juízo Final. Não que se
tema a morte em si, já que se trata de um dado da natureza. O que se teme é a “morte da
alma”, a danação eterna que estava reservada àqueles que possuíam uma vida desregrada e
díspar da que pregava o cristianismo. Graças ao livre arbítrio, todo homem pode pecar,
transformando-se num agente do Demônio. Peter BROWN ao afirmar que, às vezes, a
hierarquia do saeculum e a igualdade perante o pecado se chocam, nos relata que Ambrósio
de Milão colocou o imperador Teodósio, senhor do mundo, despojado de manto e diadema
no meio dos penitentes, no fundo da basílica, por haver ordenado o massacre da população
de Tessalônica. (BROWN, 1989: 267). Esse episódio nos fornece uma melhor dimensão da
importância da temática dos pecados na vida cotidiana da cristandade ocidental,uma vez
que desde um humilde camponês até poderosos reis e imperadores, todos estavam sujeitos a
tentações diárias.
O caminho que tirava o homem do mundo dos pecados era a Igreja. Isso porque “o
caráter remissível dos erros e o monopólio que a Igreja exerce sobre o poder de perdoar os
pecados e de prescrever punições situam o binômio erro-castigo no interior de um sistema
de trocas entre o mundo terreno e o Além (preces, penitências, indulgências), constitui um
dos elementos específicos da religião cristã”. (CASAGRANDE, VECCHIO, 2002: 347).
Daí decorre o terceiro elemento que delimita o horizonte dessa sociedade – a pobreza. Isso
porque a caridade aos pobres, que espelham a humildade de Cristo, é um excelente meio de
se redimir dos pecados. Conforme MOLLAT, essa seria a função dos pobres neste mundo.
(MOLLAT, 1988: 46). Uma vez que eram extremamente necessários à sociedade, a
caridade não tem o objetivo de suprimir as desigualdades sociais, mas de reproduzi-las. É
justamente de sua exclusão econômica que decorre sua inclusão social.
Eclesiásticos comentavam com grande entusiasmo os evangelhos que condenavam a
avareza e incentivavam a caridade. Nessa direção, Santo Agostinho, pregava que “assim
como a água apaga o fogo, a oblação apaga o pecado”. (August. Serm. LX, 10). Do mesmo
modo, o cânone sétimo do Concílio de Lérida de 546 também sugeria que a caridade aos
pobres redimia os pecados: “Que aquele que se obrigou sob juramento a não fazer as pazes
com seu contrário em um pleito, seja apartado por um ano do corpo e sangue do Senhor. E
que expie seu delito com esmolas, lágrimas e quantos jejuns puder. E que se apresse em
voltar à caridade, a qual encobre a abundância de pecados.” Em contrapartida, o discurso
cristão sugeria que aquele que não praticasse a caridade recaía no pecado capital da avareza.
O conceito de avareza já existia no mundo romano com um significado negativo, como
demonstra Marcial (Epig. II, 56) e Sêneca (Epist. 87, 22). Contudo, é com o cristianismo
que ele ganha relevo no âmbito da tríade pecado/pobreza/morte. O avaro não seria apenas o
que usurpa um bem alheio, mas também o que guarda os seus bens avaramente. Ademais,
para Santo Agostinho, até os pobres poderiam ser avaros, caso recebessem ou desejassem
obter algo de forma ilícita, como fornecendo um falso testemunho, por exemplo. (August.
Serm. CVII, 9). Esse pensamento deve ser entendido à luz da virtude da humildade, e do
desapego não apenas dos bens materiais, como da vida terrena. Nesse sentido o discurso
cristão se dirige tanto aos pobres como aos ricos. Aos pobres confere uma esperança de um
futuro melhor, aos ricos lembra da importância da caridade para atingir o Reino dos Céus.
Desse modo, Agostinho sugere que os pobres seriam os carregadores de riqueza entre a
Cidade dos Homens e a Cidade de Deus. (August. Serm. LX, 8). Ao fazer uma doação a um
pobre se transfere uma riqueza perecível nesta vida para uma riqueza eterna no Paraíso. Aos
que não alimentavam os pobres, porém, o bispo de Hipona lembrava que o destino predito
pelo Senhor era “ir ao fogo eterno que está preparado ao diabo e seus anjos!”. (August.
Serm. LX, 9).
Além da remissão dos pecados, os donativos possuíam outro importante suporte
ideológico – a busca da intercessão divina ou do apoio de algum mártir ou homem-santo.
Intercessão buscada por pessoas de todas as condições econômicas, mas que era sem dúvida
mais rentável quando era um rico que desejava obter a graça divina. (DÍAZ MARTINEZ,
1987: 46). Peregrinos e habitantes locais dirigiam-se às basílicas que detinham relíquias de
um mártir, propiciando um substancial ingresso de donativos por conta de graças
conquistadas ou desejadas. Os santos eram considerados “amigos do Senhor”, constituindo-
se em intermediários entre a Cidade dos Homens e a Cidade de Deus. Seu corpo jazia neste
mundo, mas sua alma pertencia ao outro. Em sua basílica, os dois mundos se encontravam,
tornando possível os pedidos de intercessão divina que rogavam os fiéis. (BROWN, 1981:
03). Assim, atuando em todos os aspectos da vida das pessoas, como a cura de
enfermidades, o controle das forças da natureza e a proteção contra os inimigos, os santos
exerciam um verdadeiro patrocinium sobre a população de determinada cidade. Os
“homens-santos” eram outro significativo objeto de crença pelos cristãos, em especial no
meio rural. Dons divinos, capacidade de intercessão e poderes de cura eram atribuídos a
estes religiosos. Por essa razão o rei Leovigildo, embora fosse ariano, ofereceu terras
produtivas e servos ao abade Nancto para que este intercedesse por ele junto a Deus.
(VSPE. III, 37). Outro célebre homem-santo hispano-visigodo é Valério do Bierzo. Valério
foi obrigado a atuar como presbyterum em um oratório de um poderoso dominus local que
sabia do potencial atrativo daquele indivíduo para que as populações rurais das cercanias
ofertassem suas dádivas. Essa vinculação do homem-santo ocasionou o enriquecimento
daquele oratório e, conseqüentemente, do patrimônio desse senhor. (FRIGHETTO, 2000:
45). Porém, mesmo que não estivessem vinculados, os homens-santos encarnavam um ideal
de pobreza voluntária, devendo redistribuir boa parte daquilo que lhe era ofertado. De um
ou outro modo, os donativos aos homens-santos eram os únicos que não passavam pela
intermediação do clero. Isso explica, em parte, os constantes atritos desses indivíduos com
o episcopado, uma vez que eram concorrentes diretos pelo recebimento e redistribuição das
ofertas dos fiéis.
De todo modo, os cultos aos mártires, as remissões de pecados e a intercessão de
santos face aos problemas da vida cotidiana constituíram, a partir da Antigüidade Tardia,
um elaborado circuito caritativo que unia Deus, pobres e ricos. A peça fundamental para
que esse sistema funcionasse era o aparato eclesiástico, visto que a redistribuição de parte
dos donativos dos ricos aos pobres passava, via de regra, pelo intermédio da Igreja.
Conforme ressaltou Eliana MAGNANI, “desde Cipriano, as exortações à esmola não visam
o dom dos fiéis diretamente aos pobres, mas às igrejas onde os bispos cuidavam da sua
distribuição”. (MAGNANI, 2005: 271). Essa institucionalização da caridade só foi possível
porque eram os clérigos que dispunham do monopólio dos sacramentos e da remissão dos
pecados. Com a apropriação do culto aos mártires pela Igreja, também a busca de
intercessão divina pelos fiéis passou a ser mediada pela Igreja. (BROWN, 1981: 33). Desse
modo, os donativos que um fiel fazia a um santo para alcançar alguma graça eram
passavam pelas mãos de autoridades eclesiásticas responsáveis pela manutenção da
basílica. Quaisquer que fossem os objetivos das oferendas, a Igreja haveria de mediar sua
redistribuição à sociedade. Esse elemento é central para se entender a caridade cristã e, ao
mesmo tempo, uma das principais diferenças em relação à caridade romana. No modelo do
evergetismo, não poderia haver intermediário entre o patronus e a plebe. A dinâmica do
sistema consistia em que ele pratique ações beneficentes da maneira mais visível possível,
para assegurar seu honor e a imagem de magnânimo. Já no modelo cristão de caridade, a
mediação é essencial. Ainda que, no âmbito de certo evergetismo cristão, pesem
motivações de orgulho pessoal, a caridade cristã objetiva essencialmente a busca de
intercessões divinas e da remissão de pecados. Objetivos que só podem ser atingidos com o
aval da Igreja, dos clérigos que detêm o monopólio de intermediar o mundo dos vivos com
o dos mortos.
No período baixo-imperial, os donativos arrecadados pela Igreja eram divididos em
quatro partes iguais: para o salário do bispo, para o salário do clero, para a manutenção dos
edifícios eclesiásticos e para a assistência social. (BAJO, 1986: 194). Ainda que a maior
parte do que era arrecadado se destinasse a manter o clero e os patrimônios eclesiásticos,
reservava-se uma parte para as obras de beneficência. Porém, essa tradicional divisão dos
bens arrecadados foi preterida por uma divisão tripartite. E, tanto no Reino Hispano-
Visigodo (Conc. Emerit. c. 7) como no Reino Suevo, (Conc. I Brac. c. 7), as normas
eclesiásticas não mencionavam que deveria ser reservada certa quantia para o
assistencialismo. No primeiro caso destinava-se uma parte aos bispos, outra aos presbíteros
e diáconos, e a terceira aos subdiáconos e clérigos menores. No caso do Concílio de Braga,
a normativa previa que uma parte recebesse o bispo, a outra recebessem os outros clérigos,
e a última fosse destinada à conservação das igrejas. De fato, conforme ensina LOT, a partir
da sexta centúria “os cristãos reconciliam-se com a vida terrena e passam a prezar, e a
prezar muito, os bens deste mundo”. (LOT, 1980: 54). Assim, em muitas ocasiões, o
discurso contra a avareza serviu à avareza episcopal, e a caridade serviu para enriquecer não
apenas o patrimônio da Igreja, como também o patrimônio particular de seus membros.
Nesse sentido é sintomática a constante censura nas atas dos concílios eclesiásticos do
desvio de bens e donativos das igrejas por parte de clérigos. No Concílio IV de Toledo, por
exemplo, os bispos reunidos afirmam que “a avareza é raiz de todos os males, e a ânsia da
mesma se apodera também dos corações dos bispos. Muitos fiéis por amor de Cristo e dos
mártires constroem basílicas nas paróquias dos bispos, e as enriquecem com doações, mas
os bispos arrebatam esses bens e os utilizam para seu próprio proveito”.(Conc. IV Tol. c.
33). Um dos cânones do Concílio II de Braga, no Reino Suevo, leva o sugestivo título “Que
não seja consagrado o oratório construído por alguém em sua terra com fins lucrativos”.
(Conc. II Brac. c. 6). No Concílio X de Toledo há outro caso significativo. Pouco antes de
morrer, o bispo Rícimer de Dumio havia doado todos os bens da Igreja. Uma vez que “os
pobres não tinham nenhuma necessidade iminente”, o que justificaria a atitude do bispo,
tornou-se nulo o testamento, a doação e as manumissões feitas por Rícimer. (Conc. X Tol.
Item aliud decretum). Do mesmo modo, o Concílio III de Toledo assegura que os bispos
estão autorizados a socorrer as necessidades de peregrinos, clérigos e pobres “quando
possível e respeitando os direitos da Igreja”.(Conc. III Tol. c. 3).
Desse modo, a caridade era desenvolvida muito mais pelos bispos, pessoalmente, do
que de uma forma institucionalizada pela Igreja. As doações que o aparato eclesiástico
angariava eram, em parte, redistribuídas como se fosse obra de determinado bispo,
intermediário entre ricos e pobres, entre doadores e entidades divinas. Um dos melhores
exemplos de que dispomos da caridade episcopal é o relatado nas Vidas dos Santos Padres
de Mérida, que narra obras de assistência que teriam sido desenvolvidas na cidade de
Mérida, mais rica sede episcopal da Península Ibérica em finais da sexta centúria. A
arrecadação de donativos estava institucionalizada a partir do culto de Santa Eulália,
célebre mártir local. Contudo, as obras de caridade são descritas pela fonte como atividades
pessoais de beneficência de determinados bispos. O empréstimo de dinheiro, a assistência a
enfermos, a doação de comida e a construção de um xenodochium teriam sido algumas
formas que os bispos da cidade encontraram para exercer a caridade. A política da caridade
do bispo Masona de Mérida frente ao episcopado, agindo e mostrando-se como o grande
patronus da cidade, teria monumentalizado tanto seu poder, de modo que o bispo era visto
como se fosse um rei em certas ocasiões, segundo seu anônimo biógrafo. (VSPE. V, 3, 52).
De fato, o objetivo velado desse autor parece ter sido a busca de uma centralização de
poderes na figura do bispo de Mérida, explicitando por meio de exempla, em especial o de
Masona, que o episcopado emeritense era tradicionalmente caridoso e, por conseguinte,
deveria ser respeitado. Assim, a argumentação das Vidas dos Santos Padres de Mérida tem
como pressuposto implícito a relação entre caridade e poder, na qual se alicerçou o poder
episcopal. No mundo imperial romano, esse vínculo entre caridade e poder manifestava-se
de maneira mais explícita. Já no discurso cristão, tal relação não estava expressa. Porém, na
prática e discurso caritativo dos clérigos fica assaz evidente que esse nexo causal continuou
a existir, e que os bispos se esforçavam para substituir os antigos aristocratas romanos na
função de patronos da cidade. Portanto, embora os dois modelos de caridade fossem
bastante diferentes, ambos buscavam enaltecer a figura do doador perante a comunidade.
Seus métodos e objetivos foram diferentes, mas a relação entre caridade e poder existe em
um e outro modelo caritativo.

Considerações Finais
O evergetismo romano sustentava-se na idéia de cidadania – era dirigido aos
cidadãos de cada ciuitas e seu objetivo era exaltar o civismo e a honra de um patronus da
cidade. Política e economicamente pouco viável no conturbado contexto da Antigüidade
Tardia, o evergetismo foi gradualmente substituído pelo ideal de caridade cristão. Embora a
ideologia cristã tenha valorizado sobremaneira a figura do pobre, este continuou a ser visto
como um dado natural. O discurso cristão passou longe da promoção da igualdade social.
Ao contrário, valorizou a exclusão econômica do pobre, atribuindo-lhe uma série de
virtudes peculiares, em especial a da humildade. Sua mensagem escatológica lhe prometia a
Cidade de Deus como recompensa aos infortúnios deste mundo. Assim, o cristianismo não
objetivava suprimir as desigualdades sociais, mas torná-las suportáveis através da caridade,
mantendo a estabilidade da ordem social, na qual reside a paz. (MOLLAT, 1988: 47).
Tal escopo só poderia ser atingido, segundo os bispos, pela mediação eclesiástica.
Na cidade de Mérida, após o bispo Masona ter feito uma ampla obra caritativa, seu biógrafo
assevera que “ninguém, nem mesmo um pobre era visto fatigado pela necessidade ou
desejava algo mais, de modo que os pobres, assim como os ricos, tinham abundância de
todas as coisas boas, e todo o povo na terra parecia regozijar no céu, graças aos méritos de
tão grande pontífice.” (VSPE. V, 2, 16). Note-se que todo o povo é dividido entre ricos e
pobres, as duas categorias sociais em que a ideologia cristã repartiu a sociedade. E todo o
povo só poderia regozijar no céu graças aos méritos de tão grande pontífice, graças à
intercessão episcopal; que propiciava um meio para os ricos praticarem a caridade através
de sua vasta obra caritativa e amenizava a miséria dos pobres.
Portanto, a caridade cristã tornava a pobreza suportável, não apenas do prisma
econômico, como também da perspectiva da moral, minimizando as tensões sociais.
Tornou-se, um meio ideológico de controle socioeconômico que a Igreja avocou para si,
pelo qual seu patrimônio aumentava continuamente e seus membros ganhavam cada vez
mais poder. Um dos mais significativos exemplos da contradição entre o discurso cristão e
a política da caridade levada a cabo pelo episcopado encontra-se no décimo-terceiro cânone
do Concílio de Mácon, que condenava a prática de alguns bispos soltarem cachorros ferozes
nas pessoas que buscavam seu auxílio, “pois o bispo deveria resguardar os hinos aos
latidos, e as boas obras às mordidas venenosas”. (Conc. Matisc. c. 13). Esses indícios
sugerem que o pobre, na transição da Antigüidade ao Medievo, teve um papel fundamental
em ambos os modelos caritativos. Não como sujeito, mas como lucrativo objeto da
caridade.
Nessa direção, podemos concluir que, teoricamente, a caridade cristã
institucionalizada deveria redimir os pecados dos doadores e lhes garantir determinada
graça ao mesmo tempo em que atenuava, mas não suprimia, as desigualdades econômicas.
Contudo, na prática, notamos que a busca de intercessão divina fomentou uma elaborada
política da caridade nos grandes centros urbanos, onde os maiores beneficiários eram os
bispos e os grupos cujos interesses os prelados representavam. Essa vigorosa relação de
patrocinium episcopal encontrou na caridade cristã seu principal veículo de legitimação,
pelo qual o poder político e econômico dos bispos tendeu a fortalecer-se cada vez mais.
Não resta dúvida, portanto, que o episcopado foi o grande agente da transformação de um
sistema caritativo a outro, ou – conforme a feliz expressão de Fer BAJO – do câmbio do
modelo de assistencialismo do panem et circenses para o do panem et religio. (BAJO,
1986: 194). Reflexo inconteste de novas interações sociais, novos modelos culturais, e
novas relações de poder, a gradual elaboração de uma nova concepção sobre o pobre e de
um novo modelo de caridade espelha a própria transição da Antigüidade ao Medievo.

Referências
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ANEXO
Endereço para contato: Rua Alcebíades Plaisant, n. 198. Bairro Água Verde. Curitiba-PR.
CEP: 80620-270.
Tel.: (41) 3342-3035
E-mail: brunozetola@hotmail.com
Pelo Direito à Cidade:
Articulações e Aprendizados na Luta Política dos Trabalhadores Ocupantes de Terra
Urbana na Cidade de Uberlândia/MG.∗

Rosângela Maria Silva Petuba∗(

RESUMO
A proposta do artigo é problematizar a maneira pela qual a experiência vivida contribuiu
para a reelaboração dos valores dos trabalhadores ocupantes de terra do Bairro Dom Almir
na cidade de Uberlândia, buscando também avaliar a importância da luta política com fonte
de aprendizado para esses trabalhadores.
PALAVRAS – CHAVE: trabalhadores, aprendizados, cidade, luta política.

ABSTRACT
This article studies how current practices contributed to the re-elaboration of the values of
workers in the Dom Almir district in Uberlandia, also aiming to evaluate the importance of
political battles as a learning tool for those workers.
KEY WORDS: workers, learning tools, city, political battle.


O presente texto faz parte da minha Dissertação de Mestrado intitulada: “Pelo Direito a Cidade:
Experiência e Luta dos Ocupantes de Terra do Bairro Dom Almir – Uberlândia (1990-2000)”. Programa
de Pós-Graduação em História.Universidade Federal de Uberlândia, 2001.
∗ ∗
Professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa - PR. E-mail:
rmspetuba@bol.com.br
FONTE: SÁ, Cláudio Oliveira Ribeiro de. Autoconstrução e Assentamentos Urbanos em Uberlândia–MG: Em
Questão os Bairros Dom Almir e Prosperidade. Uberlândia-MG:UFU, 1999. (Monografia).
Digitalizado e reformulado objetivando destacar o Bairro D. Almir.

As ocupações que deram origem à constituição do bairro Dom Almir, na cidade de


Uberlândia-MG, entre os anos de 1990 e 1991, puseram em movimento, direta ou
indiretamente, outros setores da sociedade, que, por afinidade política-ideológica, no campo
prático ou discursivo, solidariedade humana ou oportunismo eleitoreiro aproximaram-se do
movimento, tecendo um campo de articulações e gerando relações dos mais diversos
matizes, tornando-as elementos constituintes dessa experiência histórica vivenciada e
construída pelos trabalhadores ocupantes de terra do bairro D. Almir. Em agosto de 1990,
trabalhadores sem teto ocuparam uma área pertencente ao poder público municipal,
batizando-a, na época, com o nome de Vila Rica, e de onde foram transferidos para uma
propriedade rural chamada Fazenda Marimbondo. Esta área daria origem ao atual Bairro
Dom Almir. Menos de um ano depois dessa transferência, houve uma segunda
ocupação, realizada por um outro contingente de trabalhadores, numa área paralela
àquela para onde haviam sido transferidos os ocupantes do Vila Rica. A essa área os
ocupantes denominaram D. Almir II, que viria a ser incorporado ao primeiro ao longo
do processo de luta e legalização dos lotes que até hoje não está consolidado.

Ocupar terras urbanas trouxe várias situações de privação, desconforto e exclusão


para os trabalhadores envolvidos. Por outro lado, a busca de soluções para essas situações
experimentadas representou a possibilidade de valiosos aprendizados políticos e humanos.
Esses ganhos trazidos pela a luta foram construídos coletivamente ao longo do processo e
expressam a capacidade de articulação, reelaboração política que redimensionou os espaços
coletivos e/ou individuais de atuação e compreensão da cidade.

Na procura de alternativas que apontassem para soluções e dessem um maior


destaque a sua situação precária, os acampados esforçaram-se no sentido de construir uma
teia de apoios que reforçasse sua expressividade como movimento social no cenário urbano
e garantisse aliados no seu embate e diálogo com o poder público municipal.
Para compreender o universo dessas articulações estabelecidas, é preciso visualizar
o conjunto das necessidades vivenciadas, das alternativas buscadas para elas e,
principalmente, dos obstáculos e perspectivas que se colocaram ao longo do caminho.
A luta desses trabalhadores inscreveu-se num horizonte mais amplo, que punha em
questão o próprio direito à cidade e uma série de expectativas e valores do que vinha a ser
esse direito e as formas pelas quais ele poderia materializar-se no cotidiano dos moradores
acampados do bairro.

Em um documento34 enviado à Prefeitura Municipal de Uberlândia, a concretização


desse direito ganha forma e propostas objetivas:

Nós, moradores do Acampamento D. Almir, há mais de oito meses, nos dirigimos a V.Sa.
para esclarecer a situação de miséria em que vivemos e exigir uma solução imediata para os
nossos problemas.
Somos hoje mais de 400 famílias que, a exemplo de outras milhares são excluídas de um
dos direitos elementares garantidos em Lei, que é o direito à moradia. Por isso resolvemos
acampar próximo ao bairro Dom Almir. Neste acampamento estamos vivendo uma série de
dificuldades: falta de água, transporte, assistência médica, escola, saneamento básico, etc.
Nesse sentido apresentamos as seguintes reivindicações:
Que seja desapropriada imediatamente a área, demarcados os lotes e assentadas todas as
famílias;
Ligação de água urgente;
Materiais para a construção de três cômodos e um banheiro;
Que seja negociado com carência e de acordo com as condições das famílias o pagamento
dos lotes e dos materiais de construção;
Atendimento médico e medicamentos no local;
Instalação de uma creche urgente;
Instalação de uma escola para garantir o ano letivo das crianças;
Doação de barracas, enquanto não iniciam as construções;
Regularização do transporte com mais ônibus e maior freqüência;
Instalação de energia elétrica;
Doação de cobertores e agasalhos.

Certos de uma breve providência, agradecemos.

COMISSÃO DOS MORADORES DO ACAMPAMENTO DOM ALMIR.” (35)

Ao se dirigirem diretamente a Prefeitura Municipal de Uberlândia, os moradores


acampados do bairro Dom Almir realizam um movimento político de implicações concretas
na dinâmica da cidade e na disputa travada com o poder público.

34
Boa parte desta documentação referente ao processo de luta e organização dos trabalhadores ocupantes de
terra do Bairro Dom Almir foi se incorporando a esta pesquisa trazida pelos próprios depoentes em
especial Sr. Sebastião Correa e Sr. Djalma Morais de Souza. O primeiro era o atual Presidente da
Associação de moradores no início desta pesquisa e o segundo foi quem organizou os trabalhadores da
segunda ocupação da área. Essas fontes: abaixo – assinados, requerimentos, cartas, fichas de cadastro das
famílias na área entre outras, foram guardadas, muitas vezes em condições precárias, pelos próprios
trabalhadores.
35
Documento endereçado, em 18/01/1992, à Srª. Niza Luz, Secretária Municipal de Trabalho e Ação Social
na época.
Ao assumirem as reivindicações expressas no documento, como fruto de uma
situação de privação experimentada por mais de 400 famílias, eles se colocaram como um
sujeito social coletivo, forjado nessas vivências mútuas, e trouxeram para si a legitimidade
de uma interlocução direta com o poder público. Essa postura estava embasada em
concepções sobre o que vinha a ser o poder e o papel político da administração pública
local, “o dever do político é ele trabalhar na comunidade, certo? Fazer o que ele precisa
fazer e o que ele prometeu, ele tem que ajudá”. (36)

Essa visão não levava a uma atitude de mendicância ou de uma muda e passiva
expectativa em torno da “boa vontade política” da Prefeitura, pelo contrário, foi no
convencimento da legitimidade e da justeza de seus direitos, aliados à dureza das condições
materiais vividas, que os acampados se puseram em confronto com essas autoridades e, no
desenrolar desses confrontos, forjaram uma visão política contestadora propondo uma nova
leitura da questão urbana em Uberlândia.

Essa nova leitura era o desdobramento lógico de uma outra postura subjacente no
teor dessa carta. Ela expressava o desejo, o interesse e os projetos de cidade na ótica de um
sujeito coletivo, que recolocava a ocupação de terras e o acampamento urbano de famílias
trabalhadoras como um lugar e uma fala que emergiam de dentro da cidade dando-lhe
concretude a expressar-se em forma de carência e segregação social no espaço geográfico e
no cotidiano desses trabalhadores.

Essa nova leitura não surgiu pronta, ela era a expressão de um conjunto de
trajetórias comuns vividas no dia a dia da cidade, brotava dos espaços físicos, sociais e
culturais compartilhados pelo conjunto da classe trabalhadora. Espaços que falavam de uma
cidade diferente daquela propagandeada pelo poder público, existente apenas para a elite
econômica e política ou, em alguns momentos, para a classe média ávida em sonhos de
consumo e de ascensão social propiciados pelas benesses do capital.

Esse modelo de cidade apresenta-se marcado por uma desenfreada busca de


progresso, que se m0aterializa em ações de implantação de indústrias, construção de
grandes obras públicas, modernização do sistema de transporte e vias de circulação para
acelerar o fluxo de pessoas e mercadorias, alta informatização dos serviços e propagandas

36
Entrevista concedida por Felismina Pereira em abril de 1999.
para atração de Instituições de Ensino Superior Privado, com vista a uma formação em
grande escala, de mão-de-obra especializada, entre outros.

Obviamente, por sua natureza capitalista, esse projeto não visa ao usufruto de toda a
população, mas busca impor-se como aspiração de todos.

Porém o viver a cidade e na cidade constitui-se em experiências de reconhecimento


de espaços, de alternativas, de mudanças, de práticas de formação de sujeitos políticos.

Esses outros espaços, compartilhados e construídos pelos trabalhadores, informam


outras práticas e outras visões de cidade, em que os mecanismos de ação e informação são
trabalhados dentro de lógicas, muitas vezes, distintas daquelas visualizadas pelos projetos
das classes dominantes.

Exemplo concreto disso é própria maneira como se deram os processos de ocupação


constituintes do Bairro Dom Almir. Sem prévia organização, os trabalhadores foram
tomando conhecimento das notícias sobre os barracos do Parque São Jorge e depois do
Bairro Dom Almir (no caso da ocupação, Dom Almir II) e num movimento de identificação
de aspirações e perspectivas, foram engrossando a ocupação. Alguns ouviram a notícia pelo
rádio, outros foram informados e até convidados por parentes e vizinhos; algumas mulheres
contam terem sabido da existência da ocupação por meio de comentários na mercearia e na
farmácia. Djalma diz que saiu para trabalhar e, quando voltou, só teve a notícia de que sua
esposa havia ido limpar um terreno e levado os filhos maiores para ajudá-la, Veridiana
relata que foi à farmácia e ouviu, no Programa do Batista Pereira, a notícia, comprou o
remédio e já voltou para casa decidida “a entrar nessa vida”; Divina morava e trabalhava
junto com todos os filhos numa carvoaria, foi convidada por alguns colegas de trabalho e
resolveu ir.

O fato de essas pessoas tomarem conhecimento da existência da ocupação em seus


espaços normais de vida é significativo, pois demonstra que as informações circulavam em
espaços comuns e que guardavam uma certa similaridade de realidades vividas. A notícia
chegou a esses trabalhadores e foi assimilada como alternativa, porque a ocupação de terras
urbanas foi, em suas trajetórias de vida, delineando-se como a saída mais viável dentre as
oferecidas. A pronta identificação do acampamento como possibilidade real de aquisição de
moradia própria em Uberlândia deu-se por um movimento coincidente de vivências nessa
cidade, elaboradas de forma particular, mas, no geral, perpassadas pelo sentimento de
exclusão, de pobreza, de dificuldade de acesso aos bens urbanos, em suma, por sentimentos
que só poderiam ser experienciados na condição de classe trabalhadora.

Parto do princípio que, para se compreender adequadamente o problema da


habitação, é preciso aliá-lo de forma intrínseca à questão da terra e da complexidade da vida
urbana. A partir dos anos 60, tem-se registrado no Brasil um crescimento demográfico
urbano muito superior ao crescimento dos seus domicílios. Além disso, os anos 80
trouxeram, com a recessão, a pauperização acelerada e uma violenta redução dos
investimentos, tanto públicos como privados, em obras de urbanização. Contraditoriamente,
nesse quadro, a população urbana passou, ainda no final da década, a representar 70% da
população total do país.(RODRIGUES, 1994:57-63;MARTINS,1994:74-83) (37)

Nas cidades, há um contingente cada vez mais expressivo de trabalhadores vendo-


se, crescentemente, privados da mais elementar condição de vida, com pouca ou nenhuma
perspectiva de trabalho e moradia dignos. Excluídos do mercado de consumo, esses
habitantes vêem-se forçados a saídas para sobrevivência: cresce o número de favelados; os
terrenos ociosos, e muitas vezes especulativos, são ocupados; os loteamentos em situação
irregular multiplicam-se; aumentam as construções à beira de córregos, rios, encostas,
causando profundos impactos sócio-ambientais; e, no âmbito do planejamento, os esforços
se frustram na maioria das vezes, inclusive, pela ineficácia da adoção de modelos pré-
estabelecidos e do equívoco das “soluções” correntes de “desenvolvimento urbano”.

Nesse quadro, as situações de conflito acirram-se rapidamente, passando a cidade a


conviver, permanentemente, com confrontos relacionados ao acesso à terra, habitação, em
que os despejos, as remoções, ocupações e a violência policial são uma constante.

No contexto amplo da produção de mercadorias em nossa sociedade, inclui-se a


produção de um tipo de espaço urbano que reproduz a pobreza, não como carência, mas
como parte integrante de uma lógica que vem transformando o espaço urbano num imenso
e sofisticado mercado, em que uma das mercadorias mais caras é a habitação, que se torna

37
Nestes livros, as autoras apresentam gráficos e dados estatísticos sobre o crescimento da população
brasileira nas últimas décadas, abordando a questão das migrações internas, do êxodo rural e das
condições de vida das classes trabalhadoras nas cidades brasileiras. Os dados apresentados baseiam-se nos
dados fornecidos pelo IBGE, mais especificamente no: Anuário Estatístico Brasileiro, 1977 a 1982,
IBGE. Ver também: CEM – Centro de Estudos Migratórios. Migrações Internas no Brasil: a peregrinação
de um povo sem terra. São Paulo: Paulinas, 1986.
inacessível para a maioria dos seus moradores, funcionando como forte fator de exclusão do
direito à cidade.

Em Uberlândia, a produção de moradias, principalmente aquelas voltadas para as


classes trabalhadoras, sempre estiveram vinculadas a programas institucionais, fossem eles
(38)
de âmbito municipal, federal ou estadual (SOARES, 1993:07) . Entretanto ficaram de
fora desses planos, os trabalhadores que não podiam comprovar renda ou salário e, dessa
maneira, viram-se obrigados a encontrar alternativas de obtenção e de produção de
moradias: ocupações, favelas, cortiços, auto-contrução.

Para os trabalhadores ocupantes de terra e acampados do Bairro Dom Almir, esse


viver o cotidiano comum da cidade tinha características diferentes daquelas apontadas no
discurso oficial, como sendo atributos de Uberlândia. Em suas trajetórias, a cidade de
qualidade de vida invejável, em termos de transporte coletivo, atendimento médico,
educação pública, qualidade de moradia e saneamentos básicos, vida pacata e ordeira,
grande oferta de emprego, era percebida como o oposto de suas vivências, elementos
denunciadores de uma profunda desigualdade social e de distribuição de renda. A existência
desses bens da vida urbana foi vivenciada justamente pela impossibilidade de chegar até
eles ou foi sentida num movimento de distanciamento cada vez maior, o que, na prática,
representou o aprofundamento do fosso da desigualdade e a perda concreta de direitos
mínimos. É isso que nos relatam os depoimentos a seguir:

“... falava assim que aqui tinha muito serviço, na época tinha mesmo, só que daí prá cá,

nada saiu, não saiu serviço... quando aparece é limpeza de rua, mas gente é demais, num

chega prá todo mundo né? Prá mulher quando aparece é um servicinho de um salário, ás

vezes a mulher tem seis, oito filho quê que um servicinho de um salário dá, né? Num dá prá

nada”.(39)

38
Este texto foi produzido a partir da exposição da professora no encontro “A Moradia em Uberlândia” em
28/03/93.
39
Felismina Pereira, abr./1999.
“Então... uma coisa que eu tô achano é que duns tempo prá cá os político... de primeiro eu

tinha minha barraquinha de comida, eu vendia muita comida, é que eu esqueci a época, eu

sei que naquela época eu depositei até o meu dinheiro, eu tinha meu dinheiro d’eu comê,

d’eu dá aos meus filhos, de vestir...Hoje a gente num tem mais uma poupança, cabô com a

poupança que a gente tirava o juro e deixava o principal... hoje num tem mais poupança,

num tem mais nada. É pro povo ficá aí que nem cachorro... Uma cachorrada no mundo

sofreno!”. (40)

Mas, voltando ao teor da carta enviada à Prefeitura, pode-se refletir também para o
significado político inscrito na argumentação que aponta o direito a moradia como sendo
fundamental e garantido em Lei.

Não se trata de afirmar que os trabalhadores não tivessem consciência disso


anteriormente, mas o que chama atenção aqui é o fato de que em toda a documentação
analisada, essa foi a primeira vez em que essa formulação apareceu por escrito e remetendo-
se a um coletivo que extrapolava o acampamento, ligando-o a uma realidade que engloba
milhares de famílias na sociedade brasileira.

Esse alargamento de percepção aparece como um indicador de que a luta política na


ocupação e o embate em busca da legitimação desta, ampliaram o campo de entendimento
da Lei e dos direitos, bem como possibilitou uma leitura mais apurada da realidade sócio-
econômica brasileira, traduzida no dia-a-dia de privações e miséria de expressivos
contingentes da classe trabalhadora no país.

Uma outra leitura possível é a de que o aumento do nível de elaboração teórica e


refinamento da discussão pode indicar uma busca dos acampados de apoios e/ou assessorias
técnicas, em outros movimentos sociais ou no meio intelectual mais participativo para
auxiliar na elaboração de formulações teóricas que respaldassem, no nível do discurso, as
práticas e os saberes advindos da própria experiência de vida desses trabalhadores e que

40
Entrevista concedida por Maria Joana Lima em outubro1999.
agora se amalgamavam num sujeito coletivo, em movimento baseado em interesses mútuos
e objetivos definidos.

Essa tendência foi marcante na trajetória de luta dos movimentos sociais urbanos da
década de 80, quando uma pluralidade de material foi produzida pelos movimentos de
moradia, expressando a complexidade e a riqueza das lutas empreendidas.

Segundo o historiador Robson Laverdi, o diálogo com essa produção apresenta-se


como um espaço privilegiado para discutir as experiências de aprendizado dos movimentos,
as relações entre as lideranças e a base e entre estas e as assessorias técnicas, sendo que, na
análise de tais materiais, é possível indagar sobre a produção de estratégias, concepções e
formas discursivas dos movimentos sobre a “questão urbana” e o direito à cidade,
reelaboradas na tensão entre saberes e lugares produtores, e as demandas definidas nos
caminhos das lutas que então se colocavam. (LAVERDI,1998).
As reivindicações e as críticas implícitas no documento analisado demonstram o
caráter da relação estabelecida com o poder público municipal, na época, personalizado,
para os acampados, nas figuras do prefeito Virgílio Galassi e da secretária de Trabalho e
Ação Social, a Niza Luz.
Esse relacionamento foi marcado pelos embates entre prefeitura e acampados e pela
negativa veemente (traduzida em discursos, práticas e políticas públicas) do poder
executivo em reconhecer a legitimidade do movimento e das reivindicações dos
trabalhadores.
Essas posturas podem ser acompanhadas, inclusive, pelos jornais da época, para os
quais o Prefeito nunca poupou declarações desqualificadoras sobre a ocupação, os
ocupantes e mesmo sobre os seus apoiadores.

“Eu quero deixar claro – e que não fique nenhuma dúvida-, que invasores, na minha
administração não terão nenhum apoio”. (41)

Para o poder público, a ocupação era constituída por pessoas que não pertenciam à
cidade o que o desobrigava de qualquer compromisso e responsabilidade política e social

41
“Virgílio reafirma que não dará apoio a invasores sem-teto”. Jornal Correio do Triângulo. Uberlândia,
21/01/1992
com elas, “... o nosso compromisso é com a população de Uberlândia e os invasores não são
população de Uberlândia”.

Segundo João Marcos Alem, a elaboração de um discurso sobre o “nativo” em


Uberlândia remonta à própria fundação do município e visou, desde o início, manter a
cidade e seu desenvolvimento no controle das elites locais.(ALEM, 1991:79-101)

Nesse discurso, o que existe em Uberlândia são apenas conturbações sociais e não
processos políticos de luta; os sujeitos emergentes da experiência da cidade que cresce são
escamoteados, dissimulados em relações predeterminadas, e desaparecem nos discursos
subjacentes a essas relações.

A cidade é aberta e generosa para quem trabalha, valoriza a família e a vida em


comunidade, ou seja, quem está inserido e nunca perturbou sua ordem: trabalhou, casou,
constituiu família, sempre pagou aluguel em dia, tem o nome limpo.

“Uberlândia sempre foi uma cidade aberta. O indivíduo chega aqui e ninguém pergunta de
onde ele veio, mas o que ele faz. Se é trabalhador integra-se a cidade em pouco tempo...”.
(42)

Está claro o fato de que a cidade oficial reserva seus espaços a quem sempre viveu
de acordo com os mecanismos por ela ditados. É claro, também, que, dentro deste
entendimento, os desempregados, ou os que nunca sequer chegaram a colocar-se no
mercado de trabalho, não são considerados trabalhadores, eles são “sobrantes”, restos
incômodos, que só aparecem nas estatísticas da crise ou nas páginas policiais... sobras de
uma cidade moderna, resíduos inevitáveis do crescimento urbano e do progresso gerador de
desigualdades, ambos intrínsecos à lógica do sistema capitalista.

Porém, cabe ressaltar que o relacionamento entre o poder público e os trabalhadores


nunca se deu de forma linear. Ele foi construído com idas e vindas, ocasionadas, inclusive,
pelo acúmulo de forças políticas consolidado pelos ocupantes de terra durante o processo.

42
Revista Flash. n. 10, Uberlândia, SET\88.
“... na época era o seu Virgílio, esse seu Virgílio que tá aí... é uma pessoa que eu... a moda
do outro, é um grande administrador, mas só que ele... ele num tem coração, pessoa que só
vê o lado dos ricos, se nóis tem o que nóis tem hoje foi a base da pressão mesmo e com o
apoio de todos os outros segmentos da sociedade”. (43)

Nas atuações em relação ao poder público municipal, os acampados valeram-se de


vários recursos de ação direta como passeatas, ocupações da Prefeitura e da Câmara
Municipal que eram realizadas com a participação das crianças e das mulheres, levando
latas e panelas vazias para representar a falta de água e comida. Esses momentos foram
registrados pela imprensa local e também ressurgem na fala de alguns moradores
entrevistados:

“Quando nóis tava no São Jorge fizemos várias passeata ali e depois disso, a gente tivemos
várias vezes dentro da Prefeitura, através da multidão, ia muita gente, ia 50,60 100,150
pessoas...” (44)

“Cerca de 100 pessoas, moradores acampados do bairro Dom Almir após realizarem uma
curta passeata pela avenida Afonso Pena ocuparam, em companhia do deputado estadual
Gilmar Machado(PT) e da vereadora Nilza Alves(PPS), ontem a ante-sala do prefeito
Virgílio Galassi na tentativa de conseguir uma audiência”. (45)

Pelo que se pode perceber, essa ocasião não foi uma exceção nas relações entre o
poder público municipal e os moradores do Dom Almir. Durante o período de negociação,
o Prefeito adotou uma postura clara de jamais receber a Comissão dos sem teto:

“O prefeito Virgílio Galassi (PDS), segundo informou seu assessor de Gabinete, recusou-
se a receber a imprensa para falar do movimento dos acampados do bairro Dom Almir. Ele
confirmou que a audiência fora marcada como o Deputado Gilmar Machado(PT) porém
com a restrição de que não receberia a comissão de moradores. ‘O prefeito já disse que
não recebe invasores’, reiterou”.(46)

43
Entrevista concedida por Djalma Moraes em abril de1999.
44
Idem.
45
“Moradores ocupam ante-sala da PMU tentando audiência”. Jornal Correio do Triângulo. Uberlândia,
17/03/92.
46
Idem.
Esse posicionamento causou momentos de muita indignação e exasperação entre os
moradores, mas a postura do Prefeito não foi jamais aceita como a palavra final, nem
tampouco a Comissão de Frente composta pelos moradores perdeu sua autoridade e
legitimidade diante nos impasses e conflitos das negociações, pelo contrário, foram os
momentos de acirramento dessa tensão que levaram a Comissão a enfrentar e organizar o
embate, utilizando-se dos argumentos disponíveis e aumentando o seu respaldo diante das
negociações com o poder público.

Djalma, que era componente da Comissão de Frente na época, evidencia um pouco


dessa relação em sua fala:

“... porque aquela comissão era respeitada, a gente tinha apoio lá dentro ...esse apoio vinha
do seguinte: da maneira como as pessoas da própria comissão negociava com a própria
prefeitura, porque dentro da prefeitura se num tiver umas pessoas que num tem assim, num
vô dizê uma inteligência, mas um argumento, porque contra um argumento num existe
nada, se você tem um argumento certo, você consegue as coisa, né?Então naquela época
aquelas pessoas que tava ali, elas tinha argumento prá conseguir dobrar o prefeito,os
vereador, os secretários...”.(47)

A argumentação construída pelos acampados embasava-se na questão dos impostos


pagos, da terra estar vazia, no fato deles serem trabalhadores e quererem pagar pelo lote e
pela casa. A base de sustentação dessas reivindicações diz respeito a valores e a
experiências de vida que forjaram, nessas pessoas, convicções sobre o significado do
direito, da propriedade, da justiça e honestidade, que, aliadas às condições precárias de
sobrevivência experimentadas por esses trabalhadores e suas famílias na cidade, os levaram
a reconhecer a justeza e legitimidade de sua luta, embora essas convicções aparecessem
num campo semeado por contradições.

Mas, além desses, outros argumentos foram usados para “dobrar” o prefeito,
vereadores e secretários, e expressam o grau de determinação e entendimento político dos
acampados no embate que se desenrolava:

“Uai, ali tinha muita coisa: às vezes eles falava que num dava, às vezes eles jogava prá
frente, ficava empurrando com a barriga, certo? Então os argumento mais que a gente usava
era a pressão, propriamente a pressão, né? porque naquela época nóis era o quê?nóis era

47
Djalma Moraes, abr./1999.
mais de 400 pessoas, a gente representava 400, 600 pessoas, então imagine você, 600
pessoas dentro de uma Prefeitura, o quê que se faria ali? Então era assim mais ou menos,
mais na pressão e no argumento certo, porque ou o prefeito fazia ou a gente fazia o
movimento.”(48)

“Fazer o movimento” significava nesse contexto, estar em movimento, estar


inserido na dinâmica da construção e da articulação de uma luta que colocava homens,
mulheres e crianças como parceiros de um sonho comum e na busca da concretização de
um direito.
Essa fala também traz possibilidades de aprofundar a reflexão sobre a maneira pela
qual trabalhadores, antes individualizados, dispersos e privatizados, vão se constituindo
como um sujeito que é coletivo, é histórico e é social. “Imagine o que é 600 pessoas dentro
(49)
de uma Prefeitura? ”, a pergunta não remete a uma questão simplesmente numérica. Ela
trata de um grupo de pessoas que se conhecem e se reconhecem a partir de uma demanda
comum: a moradia. Experiências urbanas compartilhadas num cotidiano de desemprego ou
o sub-emprego, arrocho salarial, dificuldade de morar, trabalhar, estudar, criar os filhos,
divertir-se, em suma, de constante precarização das condições de vida e a frustração
reiterada de uma série de expectativas construídas em torno do morar e do viver na cidade.
Na conjunção desses fatores, que agregam em torno de si atores com vivências
comuns e que, portanto, geram identidade, pode-se perceber o gradativo processo de
constituição de um sujeito coletivo histórico, pois, ao se reconhecerem movidos por
demandas comuns e se colocarem na busca de alternativas para elas, eles trouxeram à luz
existências de práticas, vivências e valores essencialmente políticos e politizadores, num
espaço, até então, tido como à parte da política: o cotidiano dos lugares de moradia dos
trabalhadores urbanos. Foi olhando para dentro desse movimento que se tornou possível
perceber a maneira pela qual um grupo de trabalhadores dispersos por diferentes bairros da
cidade e envolvidos numa luta ferrenha e diária pela sua sobrevivência e de sua família, foi
se constituindo no sujeito coletivo: Moradores do Acampamento Dom Almir, que, a
despeito de todas as tentativas de ignorá-los como tal, colocou-se no início dos anos 90,
como interlocutores de considerável força política, num diálogo, muitas vezes, forçado,
com a Prefeitura Municipal de Uberlândia, trazendo à tona, de forma inegável,

48
Entrevista concedida por Haroldo da Silva em outubro de/2000.
49
Idem.
questionamentos, reivindicações e disputas que versavam sobre a ordem e a desordem
urbana na ótica desses trabalhadores.
Além disso, a recusa insistente por parte do poder público em reconhecer em o
movimento de ocupação de terra, como ação legítima dos trabalhadores em busca de
moradia, e em dialogar com seus representantes, teve dois desdobramentos políticos muito
importantes:
O embate configurou-se como um campo de reafirmação do sujeito político
coletivo, no confronto com o poder público, forjou-se um processo que politizou e
organizou de forma crescente a ocupação, essa negativa em reconhecer sua existência
colocou-os em movimento, levando-os a aprimorar seu discurso e a articular suas ações no
campo prático.
Nas suas idas à Prefeitura, na ocupação das ante-salas do gabinete do prefeito, dos
secretários municipais, da tribuna no plenário da Câmara Municipal, na organização das
passeatas, nas palavras de ordem, no debate com os responsáveis pelos serviços públicos e
na defesa de suas pautas de reivindicações, eles foram desmistificando os motivos da ação e
da razão do Estado; foram percebendo os jogos de interesses privados no trato da “coisa
pública”, deparando-se com as demandas clientelistas e eleitoreiras, aprendendo o
complexo movimento das relações de força presentes nas disputas e nas decisões políticas,
administrativas e judiciais e avaliando o uso que poderiam fazer da força de pressão que
tinham acumulado.
Foi justamente diante da recusa em ter sua presença reconhecida pela administração
pública municipal que o movimento reforçou sua identidade como sujeito político,
aumentando-a em força inversamente proporcional à negativa da qual era alvo.
Além disso, foi por esses impasses gerados pelos posicionamentos da Prefeitura que
os acampados procuraram mediadores nesse diálogo necessário com a administração da
cidade, enriquecendo o percurso desse aprendizado de experiência social mediante as
conexões políticas engendradas.
Nessa gama de relações estabelecidas, aquela existente com a Igreja Católica
aparece em vários momentos nas fontes, sejam elas orais ou escritas.
A postura da Igreja Católica, ou pelo menos de setores dela, em relação à ocupação
do Bairro Dom Almir em Uberlândia, não era uma postura isolada, mas dizia respeito a
todo um processo no qual ela foi se constituindo como um referencial, fosse em nível de
produção de uma determinada matriz discursiva50, amplamente adotada pelos movimentos,
desde o início da década de 80, e que apontava para a humanização da cidade, fosse como
sujeito legitimador de outras organizações sociais desse campo.

A Igreja vinha promovendo, desde a década de 80, uma série de Encontros, em nível
nacional, para discutir a questão do solo urbano, e contribuiu no processo que levou a
reelaboração de concepções sobre a questão urbana e o direito a cidade.

No caso do bairro Dom Almir em Uberlândia, vislumbra-se parte dessa postura,


rastreando diversos documentos em que a presença da Igreja foi marcante. Sua ação fez-se
sentir desde os momentos tensos de negociação no acampamento Vila Rica, quando em
agosto de 1990, saiu a ordem de despejo das famílias ocupantes da área municipal no
Parque São Jorge IV.

É interessante retomar a situação vivida pelos ocupantes naqueles momentos que


antecederam a entrada oficial da Igreja Católica, representada pelo Bispo Dom Estevão,
como mediadora no diálogo com o poder público.

Em agosto de 1990, dias após a ocupação, os jornais anunciavam uma reunião entre
(51)
uma comissão de vereadores e o prefeito para discutir a situação dos “invasores” de
terrenos no Parque São Jorge, pois o prefeito negava-se a receber os próprios trabalhadores
que procuraram o Legislativo para tentar mediar a situação.

O posicionamento dessa Comissão de Vereadores não impediu que a Prefeitura


mantivesse e conseguisse o parecer favorável ao pedido judicial de reintegração de posse no
sentido de despejar as famílias do Vila Rica:

“Sair para onde? Essa era a pergunta feita por todos os sem casa que ocupam um terreno da
Empresa Municipal de Construção Popular (EMCOP) no Parque São Jorge IV. Os dois
últimos dias foram tensos para as 200 famílias depois que a Justiça deu parecer favorável a
liminar de reintegração de posse para a Prefeitura. Reunidos em pequenos grupos eles
50
A idéia de “Matrizes Discursivas” trabalhada nesta pesquisa está referenciada na obra de:
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em Cena: Experiências e Lutas dos Trabalhadores da
Grande São Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. (Capítulo III).

51
A Comissão era formada pelos vereadores Normy Firmino (PSDB), Calcir José (PFL) e Nilza Alves
(PCB).
esperavam aflitos a chegada a qualquer momento de um oficial de Justiça ou mesmo da
Polícia para conduzir os trabalhos de retiradas dos barracos”. (52)

Segundo o Sr. Haroldo, os boatos que chegavam até o acampamento eram de que a
Prefeitura tinha tanta certeza de que conseguiria o parecer favorável ao seu pedido, que já
havia colocado 22 caminhões de prontidão em frente ao Fórum da cidade, só esperando o
Juiz assinar a ordem para efetuar o despejo, o que de fato aconteceu: “Aí o Dom Estevão
entrou na frente e disse: _ ‘ Virgílio, você num vai fazer isso não!”.(53)

Para os acampados, o apoio do Bispo foi de fundamental importância, tanto que o


nome do bairro era para ser Dom Estevão, o que só não aconteceu porque, segundo a Lei,
não é permitido nomear bairros e outras localidades com o nome de pessoas vivas. A
entrada da Igreja nas negociações foi determinante, inclusive, algumas pessoas até hoje
acreditam que a área do bairro foi comprada pelo Bispo e doada aos moradores, o que
obviamente não é verdade.

Politicamente, a participação direta da Igreja nas negociações a favor dos


acampados alterou o quadro de forças, porque permitiu que o problema fosse visto sob
a ótica do direito e da humanização da cidade e não apenas pela ótica da invasão e da
vadiagem, mas também despertou críticas e acusações dos setores mais conservadores
da sociedade, sobretudo, do próprio poder público, que encarava a Igreja com um dos
principais elementos agitadores e incentivadores das ocupações de terras na cidade.
Esse enfrentamento entre a Igreja e a Prefeitura Municipal pôde ser particularmente
sentido na ocasião da segunda ocupação no bairro, ou seja, daquelas famílias de
trabalhadores que não vieram transferidos do Vila Rica e formaram o acampamento
denominado Dom Almir II.

“Segundo Virgílio Galassi, no ano passado foi feito um acordo com a Igreja Católica para a
Prefeitura absorver o problema da invasão que já existia em Uberlândia, mas com o
compromisso de que aquela seria a última vez que a Administração Municipal iria interferir
no assunto. Isso, no entanto, não aconteceu e segundo o Prefeito, o mesmo grupo de

52
“Posseiros do Bairro São Jorge ainda não sabem para onde ir”. Jornal Correio do Triângulo. Uberlândia,
14/08/1990.
53
Sr. Haroldo da Silva, out./2000.
agitadores que promoveu a primeira promoveu esta segunda, agora nas proximidades do
bairro Dom Almir”.(54)

Para o Sr. Virgílio Galassi, administrador público eleito pelo povo, o problema dos
ocupantes de terra não exigia políticas públicas coerentes com a gravidade do quadro social
de miséria e privação e sim medidas de assistencialismo e caridade. Na sua opinião, as
Entidades ou Instituições que exigissem ação por parte da administração municipal
deveriam pagar, do seu próprio bolso, as medidas que recomendavam ao poder público,
pois estas se constituíam em mera demagogia de pessoas que criavam o problema para a
Prefeitura Municipal resolver.
A mentalidade estreita e conservadora expressada na fala do Prefeito em relação ao
trato das questões sociais na cidade demonstra, claramente, o grau de articulação que se
fazia necessário na disputa empreendida pelos acampados. Estes perceberam, sem demora,
a importância da aliança com os segmentos sociais que pudessem respaldá-los ou mesmo
mediá-los no processo de disputa que então se colocava.
Essa percepção deu aos trabalhadores a clareza política de que a estratégia de sua
resistência não poderia ser construída solitariamente. Ignorados pelo poder Executivo
recorreram ao Legislativo, negligenciados por este, buscaram outras formas de conexão
com a sociedade e, na impossibilidade de serem ouvidos seriamente por seus interlocutores,
somaram sua voz a outras:

“O bispo diocesano Dom Estevão Cardoso de Avelar, acompanhado por um grupo de


populares, padres e freiras, esteve ontem na Câmara Municipal com o objetivo de abrir
diálogo com o Prefeito Virgílio Galassi (PDS) sobre a situação dos acampados do bairro
Dom Almir II. Dom Estevão referiu-se a várias declarações dadas pelo prefeito Virgílio
Galassi sobre o problema dos acampados negando-se a tomar uma decisão a seu favor,
classificando-os de “invasores”.(55)

A administração municipal acusava a Igreja de ser a patrocinadora das ocupações,


inclusive, alegando que não daria apoio aos trabalhadores do Dom Almir II, porque, na
época dos acampados do Vila Rica, a Igreja teria feito um acordo com as autoridades do

54
“Virgílio reafirma que não dará apoio a invasores sem-teto”. Jornal Correio do Triângulo. Uberlândia,
21/01/1992.
55
“Bispo interfere e apóia acampados do Dom Almir”. Jornal Correio do Triângulo. Uberlândia,
Município, garantindo a não realização de novas ocupações de terra. A resposta da Igreja
não tardou: “Ora é a Prefeitura que anuncia em suas propagandas uma cidade de leite e
mel”. (56)
Esse episódio demonstra o nível de articulação adquirido entre os acampados do
Dom Almir e os demais setores da sociedade. Em muitos momentos, esses setores fizeram-
se ouvir e compraram a briga com o poder público em nome dos acampados, não porque
eles não tivessem condições de fazê-lo ou fossem incapazes de conduzir sua luta, mas como
estratégia construída no interior do próprio movimento de resistência e reivindicação.

Essa relação com a Igreja foi construída num rico movimento de aproximação e
distanciamento, afinidade e exasperação. Momentos em que os trabalhadores foram
construindo sua experiência política, numa oscilação entre a autonomia coletiva e a relação
de dependência, apoio e proteção, como deixa entrever o abaixo assinado dos acampados,
endereçado ao próprio Dom Estevão:

“Nós, abaixo assinados, residentes e domiciliados em Uberlândia/MG, acampamento Dom


Almir, vimos através desta fazer uma denúncia. Somos contra a politicagem que o Padre
Baltazar juntamente com o Senhor João Batista da Fonseca, candidato a vereador pelo PT,
PARTIDO DOS TRABALHADORES, estão fazendo dentro da nossa capela, no horário da
missa, além do mais isto está gerando conflitos entre nossa gente, e, às vezes, alguém é
ameaçado de morte, como aconteceu alguns dias atrás. Somos pessoas humildes, mas não
somos pessoas desligadas do mundo. Fazemos campanha para o PT, mas não podemos
aceitar que alguém possa vir a morrer por uma simples causa.
Esperamos contar com o apoio de Vossa Reverendíssima, para que tudo isto seja resolvido
democraticamente (57)”.

Esse documento, datilografado em folha de caderno de desenho, data de 09 de


setembro de 1992 e foi assinado por 13 moradores. Ainda que o montante das assinaturas
seja de um número relativamente pequeno, o que pode ser indicativo tanto do pouco
incômodo que as atitudes do Padre Baltazar realmente geravam entre os acampados, quanto
da pouca predisposição de questionar as atitudes de um representante/autoridade da Igreja
Católica dentro do acampamento. A simples existência de um documento deste teor,
produzido e assinado por moradores, pode demonstrar uma faceta interessante da dinâmica

56
Idem.
57
Abaixo Assinado endereçado a D. Estevão.
que se vinha empreendendo entre as “autoridades constituídas” e aquela construída no ir e
vir das relações cotidianas entre os acampados e os seus apoiadores.

Nessa interlocução estabelecida com a Igreja, e indiretamente com o Partido dos


Trabalhadores, havia um reconhecimento da política eleitoral, inclusive, via participação na
campanha para candidatos do PT, mas esse reconhecimento tinha um limite bem definido,
quando essas ações eram realizadas em espaços, ocasiões e horários não previamente
estabelecidos, concedidos e combinados com o coletivo.

A capela, o horário da missa significava, para esses trabalhadores, em um cenário de


onde emergiam valores e expectativas diferentes daqueles convencionalmente denominados
de políticos; locais onde, diante da busca de reflexões, de tranqüilidade e de religiosidade, a
campanha eleitoral do momento, ainda que valorizada, convertia-se em “uma simples
causa”.

Para compreender tais posicionamentos faz-se necessário refletir sobre a dinâmica


desses movimentos, mediante os quais a experiência vivida pelos homens e mulheres
concretos e de “vida anônima” vem á tona em forma de ações coletivas, que politizam os
lugares e as práticas cotidianas da vida e alteram o roteiro pré-estabelecido do diálogo e da
articulação entre as diversas formas de expressão social dos trabalhadores e a
institucionalidade reconhecida, seja no poder público ou em diversos outros agrupamentos:
Igrejas, partidos, sindicatos etc.

As reflexões elaboradas por Eder Sader (SADER, 1988:55-56) foram de grande


valia, pois permitiram auscultar, nos meandros desse diálogo travado entre os acampados
do Dom Almir e seus apoiadores, não a noção do utilitarismo ou do oportunismo, mas a
idéia de autonomia como elaboração da própria identidade, construída num processo
coletivo de luta e vivências múltiplas, em que se organizam práticas por meio das quais
seus membros pretendem defender seus interesses e expressar vontades, constituindo-se
nessas lutas. Emerge, então, a figura de um sujeito coletivo autônomo, não como aquele que
é livre de todas as determinações externas, mas como aquele que é capaz de reelabora-las
em função daquilo que define como sua vontade e necessidade.

O recado bastante claro foi dado “... somos gente humilde, mas não somos pessoas
desligadas do mundo”. Não estar desligado do mundo podia ter uma série de significados,
na base, creio que essa postura indicava uma atitude de autonomia construída no processo
de luta e negociação do acampamento, e essa autonomia era vivenciada no sentido de
admitir e até buscar a ajuda e a parceria de outros atores sociais nos embates travados, mas
com um posicionamento de que essa parceria era construída com base nas necessidades
advindas dos próprios acampados.

No início dos anos 90, o apelo á articulação nacional em torno da questão urbana e
do direito à cidade vivia ainda o seu auge devido ao processo constituinte, no qual vários
movimentos urbanos haviam se envolvido, numa intensa mobilização em torno da Emenda
Popular da Reforma Urbana.
Como aponta Laverdi, “... a luta para ampliar a participação de diversos grupos
sociais na definição de políticas para as cidades brasileiras recobre uma trajetória
interessante de construção de lutas, formulações de projetos e denúncias, articulações de
formas organizativas diversas e de um renovado aprendizado político”.
(LAVERDI,1998:55).

Assim, pode-se observar, no teor e na mobilidade das conexões estabelecidas pelos


trabalhadores no processo de constituição do bairro Dom Almir, um movimento
descontínuo, dicotômico, não alinhado diretamente a posturas definidas à priori como sendo
de esquerda ou direita. Isto porque as trajetórias de vida propiciadoras da experiência e dos
valores que criaram a linha básica de aglutinação entre esses sujeitos apontavam para a luta
da moradia como portadora de um sentido mais amplo: uma faceta da luta pelo direito à
cidade.

Essa noção do direito à cidade também não apareceu elaborada de repente, mas foi
se constituindo no universo das pequenas lutas diárias, desde a época da ocupação. Essas
lutas punham em evidência a disputa por um espaço urbano diferenciado, não aquele onde
somente têm prioridade os projetos arquitetônicos de grandes praças e avenidas. A cidade
em disputa era aquela das passarelas seguras, dos horários viáveis de transporte coletivo, do
postinho de saúde, da creche, da escola e da polícia eficiente dentro do bairro.

Embora a percepção dessas expectativas existentes nas reivindicações populares


tenha sido assumida pela esquerda da cidade, o movimentar-se desses trabalhadores, em
busca de seus interesses, acabou, vez ou outra, questionando, redefinindo e até
revalorizando as formas de interlocução e ação existentes no universo das relações tecidas
entre os acampados e aqueles setores da classe trabalhadora.

A luta e sua forma de expressão imediata, a ocupação de terras urbanas, podia


aparecer, no discurso e no imaginário do poder público, como o lugar da “não-cidade” ou
dos “não-uberlandenses”, o que atestava de forma veemente a negativa de perceber a lógica
da urbanização brasileira como um processo historicamente excludente e segregacionista.
Mas foi justamente essa “não cidade” que os trabalhadores negaram em seu movimento,
pois as ocupações urbanas, à medida que questionam concretamente essa lógica da
urbanização, ampliam sentido das reivindicações de água, luz, transporte, educação e saúde
e ultrapassam o limite da luta por moradia, redimensionando-a na perspectiva da conquista
ao direito de participação no fazer-se da cidade e de recolocá-la sob a ótica dos setores
populares.
À proporção que os documentos e as falas iam sendo explorados, outros atores
sociais juntavam - se à trama das ações tecidas. A relação com os partidos políticos e os
parlamentares também possibilitam algumas reflexões importantes acerca do diálogo e das
posturas existentes.

Nas falas dos entrevistados, fica claro que a ação de alguns parlamentares tanto da
esquerda quanto da direita, foi importante no processo, sendo que alguns moradores, ao
fazerem o balanço da experiência, até chegam a afirmar que sem esses parlamentares a luta
não teria dado no que deu, e a situação poderia ser muito pior hoje. Eles apontam a
conquista da água, da escola e outros como fruto da ação direta de alguns vereadores e
deputados.

Essa percepção traz para o bojo da questão a possibilidade de problematizar a


maneira pela qual os atores avaliam o resultado do processo de luta empreendido e até onde
eles se vêem como sujeito central da ação. Isso pode ser visualizado na fala de um morador
quando ele diz que sem o apoio dos vereadores eles não teriam conseguido nada, pois eles
não tinham força. A postura pode estar ligada ao grau de comprometimento e alinhamento
político, pois, muitos moradores, passado o estágio do confronto com o poder público,
conseguiram alguns favores dentro da Prefeitura, como empregos, materiais para construção
de casa e outros.
Obviamente, o lugar social ocupado hoje também influencia nessas análises, mas
elas não deixam de evidenciar o grau de articulação conseguido na época com os
parlamentares, tecendo relações políticas que, inclusive, serviram de base para
favorecimentos pessoais posteriormente.

Entretanto o movimento em direção aos parlamentares e partidos políticos também é


assinalado por aproximações e distanciamentos e demonstram uma leitura política apurada
de quando e como promover os contatos e com quem.

Pode-se ter mais indícios dessa postura, quando se acompanha a fala do Sr.Djalma
sobre as estratégias das ações realizadas dentro da Câmara Municipal de Uberlândia, no
período em que os trabalhadores ainda se encontravam no Vila Rica:

“Por exemplo, a gente tinha o apoio do Leonídeo (Bouças, do PFL) que no caso, já mexia
os pauzinhos deles lá dentro da Prefeitura (...) a gente não procurava político de esquerda
prá num dizê que a gente tava apoiano eles e contra o Prefeito, porque em política existe
tudo isso aí... a gente procurava assim... fora da Prefeitura ou fora do conhecimento deles
né? por exemplo, tinha o Gilmar Machado, na época ele era Deputado Estadual (PT), então
quê que a gente fazia? A gente trocava uma idéia com ele, ele falava o quê que a gente
tinha que fazê né? e a gente ia lá e depois dava um retorno, ele apoiava a gente mais por
fora (58)”.

É interessante observar também como essas posturas se expressaram nos momentos


de eleições, quando, plenamente cientes da importância e das possibilidades do momento,
os moradores não deixaram de perceber o fato de estarem tendo sua situação utilizada como
alvo de disputas e campanhas eleitorais, como já ficou demonstrado na carta endereçada ao
Bispo Dom Estevão e como se verifica também em um outro documento enviado à
Secretária de Habitação e Meio Ambiente, Sra. Cleuza Resende:

“Prezada Senhora.
Nós da Comissão de Moradores do acampamento Dom Almir, vimos a presença de V.Sa.
reivindicar que as inscrições dos lotes urbanizados, situados no Seringueiras, seja
suspendido, para os moradores do mesmo, até passar as eleições.
O motivo é muito sério: os nomes com relação a estas inscrições estão sendo usados na
politicagem de alguns políticos oportunistas, e estes, afirmam que estão conseguindo a
urbanização dos lotes, para todos nós acampados.”(59)

Apesar da negativa em ser alvo de políticos oportunistas, os acampados perceberam


a importância do momento das eleições como a oportunidade de reivindicar seus direitos e
apresentar seus interesses coletivos. Durante o período de campanha, fizeram verdadeira
romaria em comícios e conversas com candidatos no sentido de conseguir trazer os
benefícios sociais para o bairro:

“nóis num tinha preguiça de cercar candidato... – O fulano vai fazer um comício no
Alvorada, vamo lá conversa com ele. E nóis ia e fazia aquela comissão de frente e ia pedir
os benefício pro nosso bairro, nóis sempre luto por isso, nóis nunca teve essa vergonha, a
gente sempre lutô por isso”.(60)

Parte dessa postura advinha da clareza que os moradores possuíam de que o número
de famílias acampadas representava um potencial eleitoral considerável. Como já foi dito
anteriormente, ao entrarem em contato com o mundo das razões políticas estatais, eles
descobriam, sem demora a força de pressão política que poderiam exercer na disputa,
inclusive, eleitoral.

“... aí com o passar do tempo veio a época das eleições e eles queria mais voto, né? Porque
tinha muita família aqui, era interesse deles próprio, aí nóis conseguimo arrumar a água”.(61)

“... Vinha e filmava, colocava as criancinha prá entrá dentro do barro e coisa e tal, prá fazê
proveito político, que vinha a época das política na frente, né?”.(62)

O processo de eleições era reconhecido como um momento em estavam mais


presentes os interesses dos próprios políticos e quando as questões sociais vivenciadas

59
Reivindicação enviada à Secretária de Habitação e Meio Ambiente, endereçada a Srª. Cleuza Rezende.
60
Entrevista concedida por Ireny Alves dos Santos em abril de1999.
61
Djalma Moraes, abr./1999.
62
Entrevista concedida por João Batista Naves em outubro de 2000.
eram utilizadas “prá fazê proveito” em campanhas, discursos e promessas, que
dificilmente se concretizariam ou se reverteriam em favor do bairro.

A política eleitoral era recebida com desconfiança, porque eles reconheciam-na


como um espaço perpassado por mediações incompreensíveis ou que, na maioria das
vezes, não expressavam seus reais interesses e necessidades.

Porém isso não quer dizer que permanecessem passivos ou submissos diante
desse discurso, muito pelo contrário, os acampados puseram-se em movimento
também durante o processo eleitoral e fizeram valer, dentro de suas possibilidades,
aquilo que eles julgavam como suas reais necessidades.

Indo aos comícios, conversando com candidatos e até fazendo campanha, eles
conseguiram, em alguns momentos, reapropriar-se de uma lógica que deveria traduzir-
se em clientelismo e cooptação e tiraram eles mesmos proveito da situação que então
se desenhava.

“... é que os movimentos tomavam corpo no próprio espaço de legitimação das


autoridades, isto é, os moradores da periferia reconheciam nos governantes a
autoridade como legitimamente constituída, embora essa legitimação se fundasse no
pressuposto de que estavam lá para prover as condições de existência da sociedade”
(SADER, 1988:217).

A documentação, embora de forma esparsa, também permite visualizar uma


articulação dos acampados com os Sindicatos da cidade; o grau de proximidade deste
relacionamento não pôde ser verificado com mais profundidade devido à escassez de
fontes que tratam do assunto, mas, por alguns documentos pesquisados é possível pelo
menos observar que nem os acampados ignoraram a capacidade política de alguns
sindicatos como força de pressão dentro do embate existente, principalmente, com a
Prefeitura Municipal de Uberlândia, como também estes não se mantiveram alheios ao
problema que então se delineava no acampamento do bairro Dom Almir. Em abaixo
assinado enviado à Prefeitura, pode-se visualizar um pouco dessa articulação:
“Em solidariedade às famílias do Acampamento Dom Almir, vimos através deste
documento solicitar aos órgãos competentes, as necessárias providências no sentido
de que as referidas famílias sejam urgentemente assentadas, onde possam viver
dignamente como cidadãos que o são”. (63)

O documento foi assinado por nove sindicatos, duas Associações de Moradores


e por uma Pastoral da Igreja Católica, e ainda que ele não permita perceber se havia
outras ações levadas a cabo em conjunto, ou se estas se fizeram sentir concretamente
nas ações do poder público em relação ao Acampamento, ele demonstra um
movimento de aproximação e afinidade de interesses em jogo, pois os problemas
urbanos, dos quais a existência do Bairro Dom Almir era uma amostra concreta e
eloqüente, eram partilhados também nos locais de trabalho e moradia dos
trabalhadores daqueles setores que essas Entidades representavam. A palavra
Solidariedade representa um pouco do sentimento e dos valores advindo dessas
experiências urbanas compartilhadas

Um outro aspecto sobre a trajetória e o impacto da ocupação e da criação do


bairro na cidade pode ser acompanhado no relacionamento existente entre os
moradores do Dom Almir e os bairros vizinhos Alvorada e Mansões Aeroporto:

“Quando nóis chegou aqui, aquele povo das Mansões Aeroporto disse que era uns
desordeiros que tinha chegado prá cá, que ia fazê um abaixo-assinado prá tirá nóis daqui
que só tinha barraco preto, tava enfeiano as Mansões Aeroporto”.(64)

“O povo do Alvorada num gostava de nóis porque dizia que o povo do Dom Almir
tinha os pé sujo”. (65)

63
O documento foi assinado pelas seguintes entidades: Associação dos Mutuários da Habitação e
Moradores de Uberlândia (ASMUTHAM - UDI); Associação de Moradores do Conjunto Alvorada
(AMCA); Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal de Uberlândia (ADUFU/SS); Sindicato
dos Trabalhadores do Serviço Público Municipal de Uberlândia (SINTRASP); Sindicato dos Docentes de
Escolas de Ensino Superior (SINDEES); Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações de Minas
Gerais; Sindicato dos Trabalhadores em Indústrias de Alimentação e Afins de Uberlândia; Sindicato
Regional dos Trabalhadores em Educação do Terceiro Grau; Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da
Construção do Mobiliário de Uberlândia; Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas
Gerais (SIND-UTE/Uberlândia); Pastoral Operária, Associação dos Moradores do Bairro Residencial
Dom Almir (AMBDA).
64
Entrevista concedida por Haroldo da Silva em outubro de 2000.
65
Entrevista concedida por Sebastião Corrêa em abril de1999.
São muitos os depoimentos reveladores dos conflitos entre os moradores do
bairro Dom Almir e seus vizinhos. Isto se deu, em grande parte, porque, na maioria
das vezes os moradores dos outros bairros assimilavam o discurso presente na
imprensa da época e que refletia as posturas e opiniões do poder público sobre o
significado das ocupações para Uberlândia. A noção de um bando de baderneiros,
ladrões e vadios vindos de outras cidades para pesar em cima da sociedade
uberlandense e enfear a bela cidade moderna, alcançou ressonância considerável entre
os próprios trabalhadores.

As relações mais conflituosas deram-se com os moradores do Bairro Alvorada,


por ser o bairro popular mais próximo, era para lá que os ocupantes dirigiam-se
quando necessitavam de médico e escola, além de se servirem do mesmo ônibus, o que
gerou muitos conflitos:

“Inclusive num vou te mostra muito longe não, naquela época que nóis mudamo prá
aqui, o Alvorada já era um arraialzinho, um conjuntozinho mas tinha escola, nóis
fomo usar a Escola e disse que num aceitava esses sujo lá, nóis saía daqui e ia prá
avenida e chegava lá o ônibus tinha dia que num parava, o povo de lá brigava prá
num parar prá nóis, dizia: Os sujos do Dom Almir!” (66)

Os moradores lembram-se de um episódio marcante nessas relações, quando


uma professora impediu que a aluna molhada de chuva entrasse na sala, na época
(1992) cerca de setenta e duas crianças estavam matriculadas na Escola e andavam em
torno de três quilômetros para chegarem até lá. O fato ocorrido gerou por parte dos
pais acampados um movimento de contestação:

“... foi todo mundo e nóis foi filmano até chegá lá... tinha um trilhozinho aqui de
barro! Nós fomos os pais atrás, com as bandeiras, fazendo o manifesto, nóis fomo prá
conversar com a Diretora, o quê que tava aconteceno que os menino tava reclamando
que eles tavam até jogando ovo choco neles lá... que isso num era prá acontecê, que
escola é pública e fizemo um acordo lá!”. (67)

66
Idem.
Importa ressaltar que este trabalho recupera as relações sob a ótica dos
moradores do bairro Dom Almir, uma possível busca da memória dos habitantes do
Bairro Alvorada poderia ter trazido à tona outras opiniões e experiências.

Por outro lado, observa-se que, diante da negativa do poder público municipal
em dotar o bairro Dom Almir com os serviços públicos urbanos, tais como ônibus,
água, coleta de lixo, escola e posto de saúde, os bairros vizinhos sofreram um real
processo de saturação, materializado na sobrecarga e no desgaste dos seus próprios
serviços.

A Prefeitura, obviamente, se excusou da responsabilidade e da culpa que lhe


cabia no fato e, numa estratégia bem típica dos interesses do capital, preferiu
responsabilizar os próprios trabalhadores pela sua miséria e privação e pelo caos
social da cidade.

Essa prática, muito ironicamente, é a mesma utilizada hoje em relação aos


ocupantes de terra do Jardim Prosperidade, vizinhos ao próprio Dom Almir:

“A Prefeitura e os vereador, ainda ontem eu escutei no rádio falano, que depois que
apresentou tanta invasão é que atrapaiou mais, é porque estrova controlar as coisas
pros outros”. (68)

A experiência de se colocarem em movimento de luta e reivindicação por


direitos forjou, nos trabalhadores acampados do Bairro Dom Almir, novas leituras de
mundo e novas práticas dentro do cotidiano. A participação como sujeitos ativos do
processo trouxe, para eles, redefinições e reelaborações diante da vida, alterando de
forma significativa a maneira como eles mesmos se vêem dentro da cidade:

67
Maria Joana, out./1999.
68
Entrevista concedida por Maria Abadia de Jesus, 2000.
“Naquela época a gente ficava muito reprimido, por que como diz o outro a gente
num tinha nada, num tinha onde morá, num tinha nem um endereço prá dá num
serviço... Hoje eu me considero um cidadão como outro qualquer !”. (69)

A noção e o significado de cidadania aparecem aqui como o resultado de uma


elaboração construída num processo de luta efetiva por direitos concretos e básicos:
casa para morar com água encanada e luz elétrica, escola para os filhos estudarem,
ônibus na porta em condições decentes e horários viáveis, posto de saúde, creche. Esta
é a cidade em questão, esta é a cidade que se fez e se faz objeto de contínuas lutas e
disputas dos setores populares, “ser cidadão como qualquer outro!” é poder usufruir de
tudo isso e não apenas de um desenvolvimento e de um progresso que não conseguem
ultrapassar os discursos das promessas eleitorais e das propagandas de televisão.

Ao longo desses anos de luta, também foram se reelaborando, para esses


trabalhadores, as concepções do poder, seus atores, seus mecanismos e seus territórios.
A Prefeitura Municipal, a Câmara Legislativa, o Fórum Judiciário, entre outros, foram
deixando de serem espaços longe do cotidiano e da vida e converteram-se tanto quanto
a terra improdutiva, objeto de especulação imobiliária, em locais a serem ocupados
pelo povo: “Ele falava que nóis era desordeiro, porque nóis ia e ocupava a
Câmara Municipal, mas nóis foi num sei quantas vezes...”. (70)

Ao ocupar esses espaços, os acampados suscitaram a indignação dos que se


julgavam donos do poder, porque essa ação coletiva tinha uma implicação profunda:
ela questionava e, em boa medida, reelaborava a lógica política desses espaços
constituídos para estarem acima do povo, como centros emanadores de leis e de regras
a serem simplesmente cumpridas. Os trabalhadores recolocavam-se como sujeitos da
ação política, retomando esses espaços como locais públicos, “ ...aí eu disse prá ele:_
‘Você não é dono da Prefeitura, isso aqui é nosso, tudo isso aqui é patrimônio
nosso!” (71).

69
Haroldo da Silva, out./2000.
70
Idem.
71
Idem.
Entretanto não foram – e nem deveriam ser – apenas os espaços do poder
instituído que tiveram sua rotina modificada pela ação dos moradores do
Acampamento, eles também ocuparam as margens da rodovia, indo em direção à
Prefeitura, as ruas do centro da cidade com suas passeatas carregando panelas e latas
vazias. Foram notícia nas manchetes dos jornais locais e nos programas de rádio,
fizeram caminhadas rumo ao Bairro Alvorada, ocuparam tempo nos sermões de
missas, tornaram-se alvos de disputas eleitorais, pauta de reuniões em Sindicatos,
Partidos e Entidades Políticas, foram vistos no CEASA, nas máquinas de Arroz do
Bairro Tibery. Nas suas andanças, levaram consigo a denúncia de sua situação,
explicitando a existência da pobreza, da exclusão social e do descaso governamental
em Uberlândia, mas também levaram o movimentar-se incômodo da esperança
persistente de trabalhadores que se puseram em luta pelo direito à cidade.

Aqui compartilho mais uma vez com a visão de Eder Sader, que aponta os
movimentos sociais como sujeito social e histórico, promovendo a reelaboração e a
revalorização do cotidiano dos trabalhadores, efetuando uma espécie de alargamento
do campo da política tradicionalmente instituída e politizando as questões do
cotidiano dos lugares de trabalho e moradia. (SADER, 1988).

Olhar para trás com os olhos do presente, avaliando as vivências e trajetórias,


traz à tona o saldo da experiência vivida. Por meio das falas, vai-se acompanhando o
significado profundo – que jamais poderá ser de todo apreendido, porque, sendo
histórico, é inacabado e inconcluso – transformador da luta desses trabalhadores a
refletir-se em sua visão de si mesmos e do mundo:

“Eu me senti... que nessa época, antes d’eu lutá aqui, eu achava que eu num era
ninguém mas, depois disso eu acho que eu sô alguém, porque eu ajudei muita gente,
ajudei a salvar muita gente, gente que ia até perdê a vida, eu acho que eu fui... eu sô
uma pessoa!”.
Então, o que fico na memória é que eu com tudo que eu num tenho um estudo, eu
num tenho um dinheiro, eu num tenho um nada, mas eu sou alguém!”. (72)

72
Ireny dos Santos, abr./1999.
O processo vivido, as dificuldades superadas e a sensação de apesar de todos os
revezes, ter conseguido um lugar para morar e construído o seu espaço dentro da
cidade mediante própria organização e participação na luta, trouxe para os moradores
do Bairro Dom Almir uma sensação de orgulho e auto-estima, que se traduz na
compreensão de sua importância como pessoa, na reafirmação de sua “humanidade”
dentro de um sistema que de tudo faz para espolia-la.

Além disso, a experiência trouxe também um sentimento de solidariedade,


sentimento que, necessariamente, pode não se traduzir em consciência de classe
elaborada, mas que ensina muito sobre valores humanos como decência, justiça e
dignidade. Junto a isso surge o aprendizado político do processo que ampliou a noção
de cidadania, desmistificou, em muitos momentos, o poder instituído e reelaborou as
concepções e os valores sobre o fazer-se da política.

“O que eu sinto hoje é que eu tô melhor e quando eu vejo os outros debaixo da lona,
aquilo me dói, me dá vontade de chorá e parece que quando eu chego lá eu enxergo
pouco, vê aquela escuridão de lona... se eu pudesse ajudava os outros a construir”. (73)

“Ah, eu aprendi só a raciocinar... aprendi muita coisa, aprendi a ser mais humano
com as pessoas, procurar relevar muitas coisas que a gente passa nessa vida da
gente... às vezes ajuda um que tá em dificuldade, né? Eu entendo mais do que
antigamente, as vezes até de política mesmo eu entendo muito, porque antigamente...
às vezes eu num tinha esse entendimento e hoje em dia eu sei como se faz um projeto,
como se veta um projeto, então a gente sabe muita coisa, né?”. (74)

A valorização do saber construído no dia-a-dia, a percepção de que suas


experiências não são insignificantes no quadro das lutas maiores e a clareza de que é
preciso contar a história do bairro para os filhos, para eles poderem dar valor, são
elementos que aparecem nas falas, quando os moradores são indagados sobre a
importância de terem participado da constituição do Bairro Dom Almir.

73
Felismina Pereira, abr./1999.
74
Djalma Moraes, abr./1999.
Para as mulheres, o significado ainda vem acrescido de um outro sentido, o da
revalorização do seu cotidiano e de sua capacidade de envolver-se com atividades que
extrapolam o ambiente doméstico:

“Porque eu nunca tinha trabalhado nesse tipo de serviço, né? Meu serviço era de
ajudar em casa, marido, filho e a patroa lá fora... eu nunca tinha parado prá, por
exemplo, perder horas, déias e noites de sono prá ajuda o próximo e aqui eu já passei
por isso. Então hoje, se disse assim:- Dona Ireni tem uma ocupação lá em tal lugar e
precisa da senhora. Eu acho que eu vô, eu ia sim! (75)

A experiência não se constituiu apenas de vitórias, muitos aspectos negativos


são retomados pelos moradores.Boa parte das famílias que veio do Parque São Jorge
não está mais no Dom Almir, o que, na opinião dos entrevistados, dificulta a união do
bairro para conseguir maiores benefícios. Nas falas, aparece o sentimento de que, após
conseguir o lote, cada um foi cuidar da sua vida, e o bairro ficou esquecido. As
pessoas que chegaram depois não se identificam com a história de luta dos mais
antigos, e isto gera conflitos. Os moradores também apontam o aumento sensível da
marginalidade, o preconceito que ainda sofrem na hora de arrumar emprego e as
divisões político-partidárias como fatores que dificultam a vinda de melhorias para o
Dom Almir.

Impressiona o fato de que, após terem conseguido as casas no Bairro D. Almir


e uma certa infra-estrutura, as pessoas tenham como que deixado de acreditar na força
de sua atuação, na importância de seu papel como agente histórico transformador e
transferido para o âmbito da Associação de Moradores um poder que outrora era
coletivo, lá eles já não intervém mais, é como se ela pairasse acima deles.

“A associação é uma coisa que tem de ser muito registrada, muito organizada e o
trabalho que a gente tinha que fazer acho que a gente já fez, foi trazer o benefício de
cada um pegar sues lotes, foi de trazer a água, trazer a luz, trazer a escola, posto de
saúde, a creche, então agora é pôr a Associação prá fazer outras coisas, mas tá difícil,
porque hoje em dia... igual eu te falei, o pessoal que morava aqui, que veio do Vila
Rica prá cá, já foi embora prá bem dizer , todo mundo. È outras pessoas, com outras
cabeças, o pessoal quer é ter sua casa, suas coisas, num tá nem aí com o que tá
aconteceno lá fora, então é mais difícil. Prá te dize a verdade era bom luta num bairro
como esse, parece que cê trabalhava com vontade, cê via as pessoas precisano e ocê
ia busca aquilo, agora hoje em dia não, pessoal que tá aqui maioria compro direito
dos que foi embora, então é poucos que tem esse ideal. (76)

Mesmo assim, é importante para os trabalhadores poderem contar sua história,


pois, nesse ato de se reportarem ao passado, eles reavaliam as ações, as motivações
materiais e políticas, refletem sobre as vitórias e as derrotas, reafirmam-se no presente
e trazem para si a autoridade de um sujeito histórico. O bairro Dom Almir significa,
para os que ficaram, a certeza de que a luta valeu a pena, e, embora proporcionalmente
existam hoje poucos moradores da época da ocupação, a identidade criada entre eles e
com o bairro persiste, apesar de divergências político-partidárias terem estremecido
algumas relações.

Nos depoimentos, os companheiros daqueles dias turbulentos são sempre


lembrados, e as conquistas do Bairro dificilmente aparecem conjugadas no singular.
Há um pesar explícito em relação àqueles que, passada a luta, venderam suas casas “a
troco de banana” e foram embora do bairro, muitos após conseguirem a casa, entraram
para o movimento dos sem terra, porque descobriram que uma casa na cidade não era
garantia de sobrevivência digna.

Nesta perspectiva, outras pesquisas têm buscado problematizar os encantos e


desencantos dos trabalhadores com a vida urbana, enriquecendo e ampliando o campo
de reflexões sobre a trajetória dos trabalhadores do bairro Dom Almir e de muitos outros
bairros da cidade de Uberlândia. Trabalhos recentes têm discutido o ingresso desses
trabalhadores urbanos, no caso do Bairro Dom Almir antigos ocupantes de terras urbanas,
nas fileiras do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST. (SILVÉRIO,
2003). Essas novas pesquisas são bastante significativas, pois nos permite refletir e
questionar sobre até que ponto a luta pela moradia e a conquista da terra urbana garantiu
para esses trabalhadores o acesso à cidade. Nesta pesquisa não foi possível articular as
ocupações de terra que deram origem ao Bairro Dom Almir à ação do Movimento Sem
Terra numa possível organização prévia desses trabalhadores. E possível indagar se o

76
Idem.
caminho seguido aqui não foi justamente o inverso, pois é a partir do final da década de
1990, que outros pesquisadores vão começar a visualizar a ação do MST no Bairro Dom
Almir, no sentido de organizar ocupações em áreas rurais próximas a cidade de Uberlândia.

Independente disso, ao serem questionados sobre a importância de seus depoimentos


para o trabalho, alguns trouxeram em suas falas evidências da importância de refletir
sobre a experiência dos trabalhadores desse país:

“Eu acho bom, porque assim... só pra muitas e muitas pessoas saber que a gente
existe , da intenção que a gente tem, a intenção da gente é boa não é ruim. E eu espero
assim, que aquilo que eu passei, os pedaço ruim..., eu espero que ninguém mais passe
prá chegar onde eu cheguei”.

“Então a história foi essa... eles achava que nóis era bandido e nóis num era bandido,
nóis tava procurano a moradia. Por que todo mundo tem que ter essa dignidade de ter
o seu lugá de morá, prá se esconde da chuva e do sol!

BIBLIOGRAFIA

ALEM, João Marcos. “Representações Coletivas e História Política em Uberlândia”.In:


Revista História e Perspectivas. Uberlândia: Editora da Universidade Federal de
Uberlândia, 1991, n.04, jan/jun, p. 79-101.

LAVERDI, Robson. Pelo Direito de Morar: Experiências de Luta pela Reforma Urbana.
Dissertação de Mestrado, São Paulo: PUC/SP, 1998.

MARTINS; Dora. Migrantes. São Paulo: Contexto, 1994.

RODRIGUES, Arlete Moisés. Moradia nas Cidades Brasileiras. São Paulo: Contexto, 1994.

SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: Experiências e Lutas dos
Trabalhadores da Grande São Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

SILVÉRIO, Domingues Leandra.Campo/Cidade: Encantos, Experiências e Trajetórias de


Trabalhadores no Município de Uberlândia –1970/2003. Uberlândia, Universidade
Federal de Uberlândia, 2003. (Monografia).

SOARES, Beatriz Ribeiro. A Moradia em Uberlândia. Uberlândia, 1993. Mimeo.


A Light & Power e a construção do momentum da eletricidade em São Paulo*

Marco Antônio C. Sávio77

RESUMO

Esse artigo procura discutir a adoção de tecnologias da eletricidade na cidade de São Paulo
ao longo dos trinta primeiros anos do século passado. Seguindo algumas idéias propostas
por Thomas Hugues, esse artigo busca uma melhor compreensão da adoção de algumas
novas tecnologias trazidas pela empresa canadense Light & Power que impôs os seus
projetos, com o auxílio das forças políticas de São Paulo, à população de cidade, induzindo
o momentum tecnológico da eletricidade na cidade.
PALAVRAS-CHAVE: Tecnologia, política e sociedade.

ABSTRACT

This article aims to discuss the adoption of electric technologies in the city of São Paulo
during the first 30 years of 20th century. Following some ideas proposed by Thomas
Hugues, this article finds a better understanding of the adoption of some new technologies
brought by the Canadian company Light & Power that imposed its projects with the help of
São Paulo’s political forces, to the city inhabitants, inducing the technological momentum
of electricity in the city.
KEYWORDS: technology, politics and society.

Introdução

Os primeiros anos do século 20 foram decisivos para constituir na cidade de São


Paulo aquilo que Flora Süssekind chamou de “horizonte tecnológico” (SÜSSEKIND,
1987). Essa nova paisagem foi induzida, principalmente, pela presença de uma empresa que
contava com apoio de grandes capitais internacionais, além de grande prestígio político
entre as elites paulistas no período, a Light & Power Company. Essa companhia foi
responsável por um radical processo de mudança no município, trazendo para o cotidiano
da população paulistana as mais modernas tecnologias relacionadas à eletricidade.

*
O presente artigo é parte do primeiro capítulo da tese do autor: A cidade e as máquinas. Bondes e
automóveis nos primórdios da metrópole paulista. 1900-1930. PUC-SP, 2005.
77
Doutor em história pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Email:
macsavio@uol.com.br.
No entanto, o papel dessa empresa foi muito além daquele relacionado à gerência e
manutenção de uma rede de bondes e de distribuição de energia elétrica. O papel da Light
foi também o de criar uma cultura técnica voltada à eletricidade, além de incentivar, em
larga escala, a adoção de novos produtos relacionados a essa forma de energia. Esse
processo de difusão tecnológico, no entanto, foi um processo centralizado na empresa e que
respondeu apenas aos anseios da companhia canadense em maximizar os seus lucros. Esse
processo de desenvolvimento e disseminação tecnológica foi chamado pelo historiador
americano Thomas Hugues de momentum. O objetivo desse artigo é o de procurar uma
melhor compreensão desse fenômeno, a adoção e o desenvolvimento de uma determinada
tecnologia, além de abordar de que forma algumas tecnologias se adaptam a um ambiente
diferente ao qual foram originalmente desenvolvidas. Esse processo de transferência, longe
de ser linear, expressa as características das sociedades onde esses novos sistemas técnicos
são aplicados e as relações dessa sociedade com esses sistemas.
No caso de São Paulo, difusão da eletricidade realizou-se de forma monopolista e
exclusivista, refletindo a organização política local, que tratava o bem público como uma
extensão dela mesma, além de impor decisões de forma vertical a toda á sociedade excluída
de quaisquer formas de participação. O momentum da eletricidade em São Paulo refletiu,
então, as formas com as quais a sociedade paulistana se organizava, resultando numa
manifestação extremamente destrutiva dessas novas tecnologias, que antes de
representarem uma melhoria, eram sentidas como uma forma de exclusão pela grande
maioria da população da cidade, que experimentava essas novas forças principalmente em
sua forma negativa.

A Light & Power Co: um novo paradigma de transportes em São Paulo

A história da mais influente, e também da mais odiada, companhia de São Paulo


teve o seu início não no Brasil, mas no distante Canadá. No início da década de 1890 o
engenheiro italiano Francisco Antônio Gualco (MacDOWALL, D. 1994: 13-71) fez fortuna
trabalhando como empreiteiro na maior obra de engenharia do Canadá até aquele momento,
a construção da ferrovia Canadian Pacific. O interesse de Gualco pelo Brasil, porém,
adveio de um assunto bastante distinto da tração elétrica e do fornecimento de luz e força.
Seu interesse inicial pelo país se deu através de negócios que envolviam a emigração de
seus compatriotas para o trabalho nas lavouras de café. Sendo um homem com faro para
negócios, Gualco enxergou na imigração uma boa fonte de lucros. Com a restrição na
emigração de italianos para o Brasil, Gualco contatou, em 1895, o governo brasileiro, na
figura de Bernardino de Campos, então presidente do Estado de São Paulo, com uma
proposta no mínimo inusitada: substituir a mão-de-obra italiana por franco-canadenses. A
idéia de Gualco mostrou-se interessante para Bernardino de Campos e alguns membros da
elite cafeeira paulista, tanto que o presidente do Estado mandou no mesmo ano, em missão
oficial, um de seus filhos, Américo de Campos, para sondar a possibilidade de
concretização desse projeto.
A resposta do governo do Canadá para tal projeto foi negativa e, com o passar do
tempo, o próprio projeto de imigração de franco-canadenses mostrou-se um fiasco. No
entanto, o contato de Gualco com o Brasil, mais precisamente com a cidade de São Paulo,
lhe trouxe outras possibilidades para a realização de negócios. De sua estadia na capital
paulista, Gualco fez importantes contatos com as elites locais. Com o cartão de visitas
proporcionado pela família Campos, o engenheiro italiano passou a ter livre acesso pelo
restrito círculo das autoridades e dos grandes cafeicultores paulistas. Não tardou para que o
italiano se interessasse pelo rápido crescimento pelo qual passava a capital do Estado e
vislumbrasse ali uma boa possibilidade de lucros. A sua idéia era a de constituir uma
empresa para o fornecimento de força e luz, além de concorrer pelo transporte urbano
através da criação de uma rede de bondes movidos à tração elétrica. Em 1897, juntamente
com o comendador Antônio Augusto de Souza, um antigo gerente da Cia. Viação e sogro
do advogado Carlos de Campos (STIEL, W. 1978:123), Gualco entrou com um
requerimento junto à Câmara Municipal de São Paulo pedindo uma concessão para força,
luz e tração, com o intuito de formar uma empresa que fornecesse esses serviços à capital
paulista.

Com a concessão em mãos Gualco e seu sócio partem numa peregrinação em busca de

investidores que estivessem interessados em bancar seu projeto. Quando em Montreal,

Gualco entra em contato com um dos empreiteiros conhecidos seus, e que também

participou da construção da Canadian Pacific, James Ross, com o intuito de oferecer a


concessão em troca de uma boa comissão. Ross, um homem bem relacionado não apenas

no mundo dos negócios canadenses, mas também com importantes contatos nos Estados

Unidos e na Inglaterra, entrega o contrato de concessão para a apreciação de um

conhecido seu, William MacKenzie, um bem sucedido advogado e um dos homens por

trás da Toronto Street Railway Company.

Tendo analisado a concessão, MacKenzie viu em São Paulo uma boa oportunidade
para expandir os seus negócios. Juntamente com o engenheiro americano Fred Stark
Pearson, de 40 anos de idade – letrado no mundo da tração elétrica –, MacKenzie decide
levar o negócio adiante e para isso conta com a ajuda de um amigo de Pearson, o também
engenheiro Robert Calthrop Brown, eleito para ir a São Paulo e levantar as potencialidades
do empreendimento. Em São Paulo, Brown vê uma cidade com grande potencial de
crescimento e, principalmente, uma cidade carente de uma infra-estrutura de serviços, o que
garantiria ao portador de uma concessão para o preenchimento dessa lacuna um grande
mercado em potencial. O resultado do relatório produzido por Brown foi a criação da São
Paulo Railway Light & Power Company, no dia 07 de abril de 1899, com o capital inicial
de seis milhões de dólares, divididos em ações de 100 dólares cada.
A empresa, em seus primórdios, não possuía um quadro fixo de funcionários. A sua
diretoria era composta por membros escolhidos dentro do escritório de advocacia de
William MacKenzie, apenas com o propósito de preencher os requisitos legais para a
formação de tal companhia. No entanto, a formação dessa empresa possibilitou a William
MacKenzie a mobilização do capital necessário para o início dos investimentos no Brasil,
cujo primeiro passo foi a contratação de um serviço jurídico que possibilitasse o rápido
início dos trabalhos em São Paulo, além de limpar o caminho da empresa de quaisquer
possíveis competidores locais. Os nomes escolhidos não poderiam ser mais apropriados:
Carlos de Campos, filho do então presidente de São Paulo, e Antônio Pinto Ferraz,
professor do Largo São Francisco e consultor jurídico do London and Brazilian Bank.
Com a fundação da companhia e com um serviço de advocacia que garantiria o
serviço da empresa no Brasil, a Light estava pronta para iniciar as suas atividades no país,
trazendo junto de si vultuosos capitais e o que de mais moderno havia em tecnologia na
área de transportes e transmissão de energia, além da experiência dos homens que dirigiam
uma companhia similar no Canadá. Através de Alexander MacKenzie – nome escolhido
para, junto de F. S. Pearson e R. C. Brown, dirigir a firma em São Paulo –, foram dados os
primeiros passos da Light no Brasil. Os empreendedores trataram de garantir os terrenos
necessários para a construção de sua usina geradora – comprando áreas circunjacentes à
Cachoeira do Inferno, a cerca de 36 quilômetros da capital, no rio Tietê, na cidade de
Parnaíba –, além dos terrenos necessários para iniciar as suas operações de transportes de
passageiros na cidade de São Paulo. Obtidos esses terrenos e as necessárias autorizações
junto ao governo Campos Sales para a operação da companhia canadense no Brasil, faltava
apenas o último passo, adquirir a concessão de Gualco e Souza.
A compra da concessão repentinamente tomou um caráter de urgência já que
naqueles dias o italiano Antônio Gualco adoeceu gravemente. Com o risco de morte de um
dos proprietários da agora preciosa concessão, que mobilizara tantos recursos e custara
tanto trabalho, tornava-se urgente legalizar a situação da Light junto à Prefeitura da cidade
de São Paulo, o que foi feito no dia 28 de setembro de 1899. Nesse dia, Alexander
MacKenzie e F. S. Pearson se dirigiram à casa de Gualco na rua Piratininga, 18, no bairro
da Liberdade, onde oficializaram a compra da concessão originalmente de propriedade de
Gualco e Souza e que, daquele momento em diante, pertencia á São Paulo Tramway Light
& Power Company, que despendeu para isso a soma de £ 7750, 00, um bom dinheiro à
época. Nada mal para uma concessão que não custou mais do que alguns milhares de réis e
alguns pequenos problemas junto à Câmara Municipal. Pouco tempo após a transferência
do contrato seu idealizador e principal promotor, Francisco Antônio Gualco, faleceu sem
poder contemplar as realizações do maior empreendimento realizado na cidade até aquele
momento, resultado de uma história em que ele foi um dos principais protagonistas.
A chegada da empresa canadense em São Paulo gerou um misto de admiração e
revolta. Em todos os cantos o assunto que mais se comentava era o da chegada dos bondes
que não seriam puxados por burros e da energia elétrica. Juntamente com a ansiedade que a
chegada dessa nova tecnologia trazia, caminhava uma sensação de que a empresa canadense
representava apenas um bando de espoliadores que estavam interessados em conseguir tirar
dinheiro da municipalidade paulistana. Entre essas pessoas encontravam-se vários
vereadores e nomes ilustres, incluindo aí o prefeito da cidade, Antônio Prado.
Alertado dessa situação, Alexander MacKenzie deu o primeiro passo para debelar as
resistências daquele que seria o homem chave para o sucesso do empreendimento. Com o
apoio de um ex-cônsul do Brasil no Canadá, José Custódio Alves de Lima, Alexander
MacKenzie organizou uma visita de Antônio Prado à agência local do London and
Brazilian Bank, em São Paulo. Na agência, o prefeito foi informado que, pelas mãos de
William MacKenzie, fora depositado em Londres fundos suficientes para cobrir todas as
operações da empresa em São Paulo, incluindo não apenas a construção da rede de bondes,
mas também de uma usina hidrelétrica para abastecer a cidade de luz e força
(MacDOWALL, D, idem:44).

Tendo convencido o prefeito de São Paulo e com os trabalhos já iniciados a empresa

começou uma nova luta, desta vez contra a sua concorrente e aquela que viria ser a sua

maior rival na cidade nos primeiros anos do século XX, a Companhia Viação Paulista,

detentora dos direitos de transporte por bondes no município, e disposta a usar de todos

os seus recursos e de sua influência para derrotar a empresa canadense. A Cia. Viação

Paulista via na concorrência da Light, e com plena razão, a sua ruína, já que não possuía

condições de competir com os vultuosos capitais mobilizados pela empresa canadense e

muito menos com as novas tecnologias que ela trazia para a cidade. Desde os primeiros

momentos, a Cia. Viação Paulista passou a usar de todas as armas que possuía para

tentar barrar a instalação da empresa canadense na cidade. O primeiro passo foi dado na

justiça, com um pedido de embargo (O Estado de S. Paulo, 27/03/1900) das obras da

empresa canadense sob a alegação de que a Cia. Viação possuía os direitos exclusivos

para o transporte de passageiros na cidade de São Paulo. A luta judicial pelo direito de

trafegar na cidade tomou as ruas e as páginas dos jornais da capital, mobilizando

argumentos acerca das qualidades de cada uma das empresas, da qualidade dos serviços

e mesmo argumentos clamando pelo patriotismo (Idem, 05/07/1900) dos representantes

da cidade na Câmara Municipal.


Com seu competente serviço jurídico e com uma preciosa ajuda dos poderes
executivo e legislativo do município, a Light continuou os seus serviços de assentamento de
trilhos nas ruas da capital, anulando, um a um, todos os argumentos jurídicos da Cia.
Viação. O bom andamento dos trabalhos na justiça, o adiantamento das obras de
assentamento de trilhos nas ruas centrais da cidade e da construção da casa de força da rua
São Caetano – responsável pelo fornecimento de energia elétrica para os bondes, enquanto
a usina de Parnaíba estava em construção –, fez com que a companhia canadense inaugura-
se os seus serviços ainda no ano de 1900. Isso ocorreu no dia 07 de maio, um dia que foi
descrito pelo próprio Robert C. Brown, como sendo de festa para a cidade.
Naquele dia, São Paulo amanheceu sob a expectativa de um grande acontecimento.
O número de autoridades presentes dava a idéia do significado daquele momento. Numa
pequena casa da rua São Caetano, que guardava a usina provisória que moveria os bondes
da empresa canadense ruas afora, reuniram-se os nomes mais ilustres da política paulista do
período. Lá estavam o presidente do Estado, Rodrigues Alves; o vice-presidente do Estado
Domingos de Moraes; além do prefeito Antônio Prado e uma série de vereadores
paulistanos e vários nomes ilustres (STIEL, W. idem:127). Foi pelas mãos de Rodrigues
Alves que os dínamos da usina da rua São Caetano foram acionados. Poucos minutos
depois saía dos barracões da empresa, na alameda Barão de Limeira, o primeiro bonde a
trafegar por força elétrica na cidade. Guiado pelo engenheiro Robert C. Brown, o bonde
caminhou mansamente pela rua Barão de Limeira em direção ao centro da cidade, levando
em seus bancos uma ilustre comitiva.
Quando o bonde entrou na rua São João uma multidão nunca vista até aquele
momento aguardava pelo carro que seguia em direção à rua Libero Badaró. A população,
tomada de espanto e alegria, comemorava o evento. Naquela manhã em que o povo se
reuniu ao longo da avenida São João para assistir ao espetáculo do primeiro bonde a tração
elétrica da cidade, o que se esperava era vislumbrar o futuro. Um futuro que traria para a
cidade as mais modernas tecnologias e, juntamente com elas, as mais diversas benesses e
problemas que esses novos artefatos carregavam. O futuro da cidade de repente se
manifestava nas ruas, naquele lento vagar do bonde, atravessando a multidão de pessoas e
levando consigo os nomes mais ilustres da política paulista e nacional. Naquele carro
estavam representados o novo mundo ligado à revolução científico-tecnológica, os grandes
capitais internacionais que alavancavam essas tecnologias e que as distribuíam pelos mais
remotos cantões do mundo e a elite política da nação, representada pelos grandes nomes do
PRP (Partido Republicano Paulista) à época. Em alguns minutos, parte importante da
história da Primeira República desfilava pelos olhares atentos da multidão quase que
hipnotizada pelo grande acontecimento. A cidade de São Paulo finalmente ingressara no
mundo moderno.
Enquanto a Light continuava o trabalho de assentamento de trilhos a Cia. Viação
Paulista lutava por sua sobrevivência e pelo direito de continuar operando as suas linhas.
Tentando evitar que a companhia canadense utilizasse as mesmas ruas que ela, os dirigentes
da Cia. Viação davam ordens a seus funcionários para que usassem de todos os recursos
disponíveis para, se não parar, ao menos atrapalhar os trabalhos da empresa norte-
americana. As formas encontradas por aquela companhia eram as mais diversas e, em
muitos momentos, incluíam o uso da violência. O principal argumento da empresa era de
que, por garantias contratuais, a Light não tinha o direito de transitar pelas ruas em que a
Cia. Viação Paulista já tivesse assentado os seus trilhos (Correio Paulistano, 06/07/1900).
Essa argumentação saltava do campo jurídico, principalmente após a promulgação da lei
407, que garantiu a presença da Light na cidade, para tomar as ruas, onde os embates entre
as duas empresas distraíam a população, quando não causavam grandes transtornos. Num
desses embates, a Cia. Viação Paulista, numa tentativa de impedir que a Light cortasse os
seus trilhos valeu-se de uma dupla estratégia, primeiro o embate jurídico, em seguida o
físico.

A empreza de bonds electricos, ante-hontem, no largo do Ouvidor, ultimou uns


serviços de suas linhas, cortando o cruzamento de trilhos da Viação Paulista. Esta
companhia hontem, por seus advogados, pediu [pela] manutenção de posse para
aquelle ponto e outros, como os das ruas Quinze de Novembro no cruzamento do
largo do Thesouro e ruas Direita, Quintino Bocayva e largo S. Bento. (...) A
Companhia Viação Paulista, tendo conhecimento desta resolução da Light,
procurou fazer valer alli tambem o embargo das obras dos pontos já indicados e, no
intento de evitar o corte de trilhos no cruzamento com os seus bonds do Bom
Retiro, via rua dos Immigrantes, fez seguir para o local e atravessarem-se na linha
dos bonds de trabalhadores. (...) Diante da attitude dos trabalhadores da Viação, o
dr. Carlos de Campos, advogado da Light and Power, dirigiram-se á policia central,
com uma petição, expondo os factos minuciosamente e pedindo providencias para
prevenir as desordens que disso pudessem resultar e as garantias para serviço da
Light, que a lei permitte e o seu contracto municipal assegura. (O Estado de S.
Paulo, 07/11/1900).
No entanto, apesar de todos os seus esforços, a Cia. Viação assistia impotente o avanço
de sua rival, que ia construindo a sua complexa rede de transporte pelas ruas da cidade.
Até a região mais elegante da cidade, o espigão da avenida Paulista, foi palco de uma
dessas tentativas de usar a força para impedir o assentamento das linhas da companhia
canadense, o que forçou Robert Brown a requisitar ajuda policial para garantir a
continuidade do trabalho. Numa carta ao escritório em Nova Iorque, Brown se queixa
das atitudes da Cia. Viação Paulista que classifica como “beligerantes” e “tolas”. Sendo
tolas ou não o fato é que essas atitudes impediam o funcionamento da linha Avenida, a
principal da empresa, que graças à ação de sabotadores da Cia. Viação estava
funcionando apenas em parte.

O primeiro importante desenlace dessa disputa ocorre em agosto do ano de 1900,


quando é dada uma resposta contundente aos ataques que a Cia. Viação, por intermédio de
seus trabalhadores ameaçados de demissão e de seus advogados, vinha fazendo à
companhia canadense. Por ordem judicial, requerida pelo Banco Francês, e com o apoio da
Prefeitura, foi decretada a liquidação forçada da Cia. Viação, acabando de uma vez por
todas com a disputa pelo controle das ruas da cidade e deixando embate apenas para os
corredores dos tribunais. A justificativa para a tomada de tal atitude, por parte da Prefeitura,
foi o histórico da empresa de bondes de burro, que, segundo o prefeito, não era “fiel” ao
contrato. No seu relatório para a Câmara Municipal relativo o ano de 1900, Antônio Prado
desfia um rosário de problemas relacionados ao contrato firmado entre a Cia. Viação
Paulista e o município. Entre os problemas que justificaram o fim do contrato entre as
partes estão: a não prestação de contas, a ausência de garantias financeiras para o
pagamento de multas, o não calçamento de seus trilhos conforme estipulado no contrato, o
não cumprimento de determinações da prefeitura acerca de correções no traçado de linhas, a
não adoção dos trilhos determinados no contrato, a inexistência de carros operários (ou de
segunda classe), a não organização de grupos de limpeza de trilhos, a não submissão das
tarifas para análise da Prefeitura, o número reduzido de carros em circulação, o não
fornecimento de dados sobre movimento de passageiros e, por fim, as atitudes da
companhia em relação à sua concorrente. Ressalta o prefeito, no mesmo relatório, a
condição lastimável do equipamento da companhia o que, por si só, já justificaria a sua
liquidação e o fim do contrato firmado com a Prefeitura.
O fato é que, com a decisão da Justiça paulista e da Prefeitura da capital, a Cia.
Viação Paulista tornou-se carta fora do baralho. Mesmo assim, em algumas ocasiões o
embate entre as duas empresas ainda se fazia sentir, pois os bondes da Cia. Viação
continuaram a circular até o início de 1901, resultando em cenas burlescas, com condutores
da companhia liquidada atirando os burros contra os bondes elétricos nos cruzamentos dos
trilhos das duas empresas (Correio Paulistano, 11/03/1901). No entanto, o caminho para a
Light estava aberto para que os seus trabalhos pudessem continuar em ritmo acelerado. Aos
proprietários da empresa liquidada restava apenas o caminho dos tribunais, um caminho
longo e incerto que envolvia não apenas os seus interesses, mas também os interesses da
empresa canadense, da Prefeitura Municipal e da multidão de credores que foram
apanhados de surpresa pela liquidação. Logo após a sua liquidação judicial, os advogados
da Cia. Viação Paulista entraram com uma ação de indenização contra a Light e a Prefeitura
do município, com valores girando ao redor 14.000:000$000, uma grande fortuna para a
época.
Enquanto isso, a luta por indenizações, tanto por parte da Cia. Viação Paulista,
quanto por parte de seus credores, continuava, num processo que duraria quase oito anos até
que a decisão de última instância fosse proclamada. Nesse meio tempo, várias afirmações
colocaram a companhia canadense e a justiça de São Paulo na berlinda, sempre deixando
dúvidas quanto à lisura do processo. Pouco tempo após o pedido de indenização perpetrado
pela Cia. Viação, e antes mesmo do leilão de seus bens, os credores da empresa liquidada já
estavam nos jornais clamando por transparência ao processo e até invocando o nome divino
para terem as suas súplicas atendidas. Lia-se num jornal da cidade a seguinte lamúria:

Ao exmo. Sr. dr. Presidente do Estado


Pelo amor de Deus e de tudo quanto possa mover a S. Exa., pede-se que nomeie
juiz para a segunda vara da capital.
O Sr. Thomaz Alves não garante direito algum e está, com a liquidação da
Companhia Viação Paulista, praticando toda a sorte de injustiças para favorecer os
seus amigos.
Os credores Prejudicados. (Diário Popular, 26/09/1900).
De fato, os assuntos que envolviam a liquidação forçada da Cia Viação nunca foram
devidamente respondidos por parte da Prefeitura, nem por parte dos demais órgãos do poder
público. Esse fato reforçou a atuação de uma oposição existente na cidade, contra a empresa
canadense e contra a Prefeitura, naquilo que se tornou uma guerra e que se arrastou ao
longo de quase toda a administração de Antônio Prado, com troca de acusações entre as
partes envolvidas e um tom rancoroso envolvendo tudo aquilo que dissesse respeito ao
transporte de bondes em São Paulo. Logo que os primeiros procedimentos para a
regularização do serviço de transporte por bondes no município foram tomados, ou seja,
medidas para a unificação dos contratos, uma chuva de acusações caiu contra a Prefeitura e
a companhia canadense, a maioria delas denunciando a conivência dos poderes municipais
na formação de um monopólio nas mãos da Light.
A primeira menção no sentido da unificação dos contratos foi dada por R. C. Brown,
que via na existência de dois diferentes contratos, o da Light e o da Cia. Viação Paulista,
um empecilho jurídico e uma potencial fonte de confusão para a empresa da qual era um
dos diretores. No entanto, devido ao clima alimentado pelas partes prejudicadas na
liquidação da empresa paulista, os comentários de Brown foram recebidos como uma
interferência da Light nos negócios da Prefeitura, que mais uma vez foi acusada de
conivência para com a empresa canadense (O Estado de São Paulo, 05/03/1901).
Esse foi o ponto de partida de uma discussão que a rigor não foi resolvida até o final da
Primeira República e que valeu à Light o apelido de “polvo canadense”; ou seja, o papel
da companhia na cidade de São Paulo. Seria ela benéfica ou maléfica para o progresso da
capital paulista?
Enquanto essa discussão ocupava os jornais locais, a batalha jurídica chegava à
instância mais alta do Estado de São Paulo, o Senado Paulista. Poucos dias após a
aprovação da unificação dos contratos, o que na prática dava á empresa canadense o
monopólio nos transportes da capital, o vereador Abílio Soares entra com um recurso junto
ao Senado Paulista para barrar a unificação, alegando que o número de privilégios
concedidos à companhia canadense era muito grande e prejudicava os interesses
municipais. Enquanto isso, importantes jornais como “O Estado de São Paulo” e o “Diário
Popular” atacavam a Prefeitura, acusando as autoridades locais de “deslumbramento” diante
o capital internacional que amparava a empresa e de falta de equilíbrio quando da
concessão.
Apesar dos clamores por parte da imprensa local, das pressões perpetradas pelos
membros da oposição e por pessoas e empresas que tiveram os seus interesses lesados pela
liquidação da Cia Viação Paulista, a Justiça paulista acaba por absolver, em primeira
instância, a Light e a Prefeitura Municipal da ação movida pelos advogados da empresa
liquidada. Seguindo o trâmite legal da justiça de São Paulo, o caso é remetido para a
segunda instância estadual, onde, após um longo período de apreciação o recurso é negado,
recebendo a Light & Power e o município nova absolvição. A última rodada para a Cia
Viação Paulista conseguir alguma restituição que seus proprietários acreditavam justa foi
dada com um requerimento junto ao Supremo Tribunal, pedindo o ressarcimento por perdas
e danos pela ação de liquidação judicial. Após quase oito anos de apreciações e lutas em
diferentes instâncias e envolvendo vários grupos da sociedade paulistana, o desfecho foi
pouco animador. Numa nota pequena e lacônica o jornal “Correio Paulistano”, o órgão
oficial do poderoso PRP (Partido Republicano Paulista), chama a atenção para uma
“decisão importante”:

O Supremo Tribunal Federal, unanimemente, deixou de tomar conhecimento do


recurso extraordinario interposto pela Companhia Viação Paulista da decisão pela
qual a justiça de S. Paulo julgou improcedente a acção de indemnização, no valor
de 14 mil contos de réis, proposta por aquella companhia, contra a “Light and
Power” e a camara municipal dessa capital. (Correio Paulistano, 30/01/1908)

A decisão do Supremo Tribunal encerrava definitivamente um capítulo da história


da cidade de São Paulo, encerrava definitivamente uma época em que os bondes eram
puxados a burro, em que os preços das passagens eram mais acessíveis às camadas
populares e em que a eletricidade era apenas uma palavra encontrada em dicionários
técnicos e em romances de Júlio Verne. Os novos tempos eram de uma São Paulo em
rápido crescimento, passando por um processo de industrialização e proletarização de sua
população. Eram tempos em que a palavra progresso passou a ser corriqueira para descrever
a acanhada cidade que se transformava a olhos vistos. Era o tempo da São Paulo Tramway
Light & Power Company Limited consolidar os seus domínios e se tornar uma das maiores
empresas brasileiras do período, além da maior empregadora de mão-de-obra do país por
mais de sessenta anos.

Os anos heróicos da Light: a administração Antônio Prado

Os anos da administração Prado foram o que podemos chamar de anos heróicos para a
Light & Power. Ao longo desse período a companhia organizou e expandiu o serviço de
bondes para as mais remotas partes da cidade, além de consolidar a sua presença como
principal empresa do município, monopolizando não apenas os serviços de transportes,
mas também os de luz, força, telefonia e gás. Graças a essa enorme gama de serviços
prestados e a esse gigantismo que caracterizou as primeiras décadas da empresa no
Brasil, a Light passou a ser conhecida por alcunhas que davam conta de sua força e de
sua imagem perante a opinião pública. A mais conhecida de todas, que até hoje chama a
atenção dos estudiosos do período, é aquela que caracteriza a empresa como um polvo, o
“polvo canadense”, que estende os seus tentáculos por toda a cidade e controla tudo
aquilo ao seu alcance.

Se por um lado a companhia causava reações negativas no público, por outro é


inegável o fascínio que as novas tecnologias por ela aplicadas na cidade acabaram por
exercer sobre boa parte da população local. Os novos bondes por tração elétrica eram, nos
primeiros dias de sua operação, um espetáculo que entretinha os moradores da cidade e
atraía os olhares curiosos da imprensa que não deixava de louvar esses melhoramentos.
Eram vários os artigos de jornais tratando das novas tecnologias ou dando vivas aos novos
bondes que traziam para o município a tão afamada tecnologia norte-americana que, no seu
dia-a-dia, provavam a sua superioridade (O Estado de S. Paulo, 05/08/1900). Junto a esse
novo espetáculo, confirmando as esperanças dos mais otimistas discursos da época, estava a
certeza de que a cidade definitivamente ingressara no mundo moderno. Os sinais estavam
por toda parte. A era da eletricidade começava em São Paulo, novas maravilhas
tecnológicas desfilavam pelas ruas da capital, os burros que serviam de tração para os
velhos bondes da Cia. Viação Paulista eram vendidos a preços baixos (Correio Paulistano,
06/11/1900), o que por si só era um sinal de que os tempos haviam definitivamente
mudado, enquanto que as cocheiras da velha empresa de bondes, um marco do passado,
eram alugadas pela Light (Diário Popular, 22/03/1902).
Esses primeiros anos da empresa norte-americana em São Paulo também foram
marcados por uma expansão das contratações e do processo de formação de uma mão-de-
obra local que pudesse dar conta das necessidades, presentes e futuras, da empresa. A todo
o momento se encontram em jornais da época anúncios de empregos da companhia. Esses
anúncios, publicados em diversas línguas, principalmente em português e em italiano,
mostravam a grande necessidade de trabalhadores que pudessem manter o ritmo de
expansão da Light na cidade e que garantissem a execução dos serviços que a empresa
prestava. Essa necessidade de contratação aumenta ainda mais na medida em que os
trabalhadores trazidos pela empresa, em sua maioria do Canadá e dos Estados Unidos, com
o vencimento de seus contratos, começavam a retornar para as suas terras natais. Graças a
isso, a Light se transforma na maior contratante da cidade de São Paulo logo nos primeiros
anos após sua chegada.
Apesar dos relatos de seus diretores de que a companhia não tinha “dificuldade em
obter homens capazes de operar os carros nas ruas”, o mesmo parecia não ocorrer quando
se tratava de instalação de trilhos e trabalhos relacionados com eletricidade. Para efetuar
tarefas simples era necessária a contratação de um grande número de trabalhadores, o que
resultava em constantes atrasos e confusões durante a instalação das linhas. Não é raro
encontrar comentários acerca do problema de substituição da mão-de-obra canadense e
estadunidense por trabalhadores nacionais. Numa de suas cartas para Toronto, um dos
representantes da empresa no Brasil, James Mitchell – que também era o representante
comercial da General Electric no país e o dono da maior casa de material elétrico de São
Paulo, a Casa James Mitchell –, reclama do tipo de homens que a companhia dispunha para
a instalação de sua rede aérea.
A classe de homens que esta companhia vem empregando para construção é
absolutamente desqualificada para a instalação de fios; eles são lentos, desajeitados
e desastrados. Nenhum deles está acostumado a trabalhar sob liderança (...). Em
sua maior parte são homens de tipo ignorante, italianos, recebendo, é verdade,
pequenos salários, mas fazendo um pequeno serviço em compensação; e o pior é
que todo o trabalho que eles fazem é muito mal feito. (New York letters,
02/12/1901).

No entanto, apesar das reclamações de Mitchell acerca dos “tipos ignorantes” e da


“qualidade do trabalho”, William MacKenzie, analisando os relatórios enviados para a
matriz da empresa em Toronto, parecia pouco satisfeito com a quantidade de mão-de-obra
utilizada no assentamento de trilhos e na colocação da rede aérea. Sua posição era a de que
a companhia paulistana estava gastando muito com contratações e que provavelmente ela já
possuía mais empregados do que a Toronto Street Railway. Os comentários de MacKenzie
não foram bem digeridos pelo engenheiro-chefe da Light em São Paulo, Robert C. Brown,
que apesar de concordar acerca das dificuldades em encontrar “pessoas capazes neste país”
não considerava que o trabalho estivesse sendo mal executado, ponderando, além disso, que
as criticas de William MacKenzie eram infundadas e completando uma carta resposta com
o seguinte comentário: “Sinto que estou sendo mal pago pela posição que ocupo, mas talvez
alguém possa ser encontrado para realizar o mesmo serviço”.
Discussões de contratações à parte, o fato era que o serviço de expansão das linhas,
assentamento de trilhos e colocação de rede aérea, não parava. Isso causou uma radical
mudança na cidade de São Paulo que, em poucos meses, teve de se adaptar à nova
tecnologia e enfrentar as agruras de um novo tempo. A primeira mudança perceptível ao
paulistano estava relacionada aos horários dos bondes, à supressão de algumas linhas e à
alteração de outras, o que fazia com que hábitos, há anos arraigados, tivessem de ser
mudados. Outra importante alteração se deu em relação à parada dos bondes. Nos tempos
da Cia. Viação, os bondes paravam a qualquer solicitação dos pedestres. Nos novos tempos
da Light, os pontos de parada eram determinados por cintas brancas amarradas aos postes
nas ruas. Isso causou uma série de transtornos aos transeuntes, acostumados a esperar os
bondes em frente de suas casas ou ao longo das ruas mais centrais da cidade. A nova
medida fazia com que fosse necessário se deslocar para os pontos determinados como
paradas, além de ter de enfrentar aglomerações, unindo pessoas de diferentes classes
sociais.
Outro efeito causado pela presença da empresa de bondes elétricos foi uma alteração
na paisagem da cidade, com a instalação não apenas dos trilhos, mas também de postes e de
uma rede aérea. Foi nesse processo que ocorreu o maior número de conflitos entre a
empresa, representada por seus funcionários, e a população da cidade. O número de
reclamações contra a Light e seus empregados infestavam os jornais ao longo dos primeiros
anos do século XX. Numa dessas reclamações, um morador da cidade narra, num misto de
tragédia e comédia, o resultado dos trabalhos de uma das equipes da companhia canadense
em frente à sua residência, e o pior de tudo, logo num dia de chuva.

É o caso que hontem, por occasião da forte chuva que tivemos á tarde, tive o
grande desgosto e enorme prejuízo material de, ao chegar á minha casa, encontrar
diversos commodos completamente innundados d’agua, com roupas, moveis,
quadros, reposteiros e cortinas totalmente damnificados e, ainda mais, o reboque
das paredes humidecido, com grave risco de despegar-se todo. (...). Procurando,
aflictissimo, a causa de tal fatalidade, verifiquei – confesso que sem surpreza – que
a origem de tudo fora o péssimo serviço de collocação dos fios da Light, cujos
empregados, quebrando e desviando as telhas, abrem enormes fendas e gotteiras
nos telhados. (Diário Popular, 16/01/1902).

A descrição do desafortunado cidadão estava longe de ser uma exceção quando o


assunto era a instalação de postes ou o assentamento de trilhos. Em todas as partes da
cidade o problema se repetia, em maior ou em menor grau, envolvendo as classes mais
abastadas, as classes médias e as classes baixas, dando um caráter democrático no que diz
respeito às queixas desses concidadãos. Numa dessas ocasiões, numa tentativa de instalar
um de seus postes em frente a uma importante casa comercial na rua Boa Vista, na mais
rica região da cidade, o encarregado pelo serviço alegou, diante das negativas dos
proprietários do negócio, que a companhia tinha o direito de efetuar a instalação do poste
em qualquer parte da rua, já que os passeios municipais pertenciam à Câmara e graças ao
seu contrato a Light & Power tinha o direito dispor dos passeios da forma que melhor lhe
conviesse. A instalação somente não ocorreu graças à chegada da polícia e ao bom nome do
dono do estabelecimento (O Comércio de S. Paulo, 08/11/1907).
Apesar dos constantes conflitos a empresa seguia abrindo caminho cidade afora. Em
pouco tempo ela já monopolizara os principais serviços da cidade e o último suspiro de
independência no transporte por bondes foi dado pela Companhia de Bondes de Santana,
que foi absorvida pela Light no ano de 1907, nos termos da lei n. 995 de 10 de maio do
mesmo ano. O serviço da Companhia de Bondes de Santana era feito somente entre a Ponte
Grande (atual Ponte das Bandeiras) e a rua Voluntários da Pátria, sendo os seus usuários
obrigados a fazer uma baldeação para a região central. A empresa canadense, alegando a
impossibilidade de efetuar o serviço direto, manteve o sistema de baldeação, com a
justificativa de que seus bondes não podiam trafegar pela Ponte Grande, obrigando os
moradores daquele bairro a percorrerem a pé a distância entre a parada dos bondes vindos
do centro e a parada dos bondes vindos de Santana, que se localizava na margem oposta do
rio Tietê.
Essa série de alterações fez com que a população da cidade iniciasse uma luta para
utilizar-se do novo sistema de transportes passando a pressionar por mudanças que
demoraram longos anos para serem efetuadas. Os principais problemas estavam
relacionados ao uso do novo meio de transporte por parte dos paulistanos, acostumados
com uma maior maleabilidade da antiga Cia. Viação, que ainda tentavam entender os novos
ritmos, a impessoalidade que marcava o novo serviço além, é claro, os novos preços, mais
altos. Além dessas situações os funcionários da companhia tinham ordens expressas para
seguir à risca a lei 367 de 20 de agosto de 1898, no que diz respeito ao bom trajar dos
passageiros. Isso fazia com que, na prática, a crescente população operária fosse excluída
do sistema, já que o julgamento do bem trajar ia muito além da moda ou do decoro.
Para contornar esse estranhamento inicial a Light utilizava-se de diversos
expedientes, como promoções ou passeios para pontos determinados. As promoções
geralmente incluíam a distribuição de cupons que, em caso de sorteio, davam direito a
prêmios em dinheiro. Já a promoção de passeios se valia de quaisquer expedientes para
atrair mais passageiros a visitarem determinados pontos da cidade. Os pontos mais
apreciados eram o Parque Antártica, concorrido pelos matchs futebolísticos, além do
Bosque da Saúde. No entanto, outras atrações eram utilizadas como forma de incentivar o
uso do bonde, seja a novidade de um espetacular mergulhador americano, capaz de saltar de
grandes alturas dentro de um pequeno tanque e sair ileso (A Platéa, 19/07/1907), ou outros
bizarros acontecimentos que atingiam a cidade naqueles anos e que chamavam a atenção
por outros prodígios. Comentando sobre o assunto, e aproveitando para falar de mais uma
das tantas ameaças de final dos tempos – no caso, a de um meteoro prestes a se chocar com
planeta Terra, causando uma “combustão geral da atmosfera” –, um cronista escreve o
seguinte acerca dessas promoções da empresa canadense:

O mais pratico e talvez o mais consolador dos meios para se resistir a um tal
terramoto, é a propria Light mandar para a Ponte Grande algumas bandas de musica
e uns fogos de artificio, para ir alegrando os passageiros que ella convida a ir
apreciar o começo do diluvio paulista... (...). Uma enchente na Ponte Grande e a
terra em combustão pelo choque de um cometa!... (A Platéa, 26/02/1907).

O dia-a-dia dos usuários dos bondes também mudou com a chegada da Light que, ao
que tudo indica, disseminou modismos e influenciou na difusão da propaganda pela cidade.
Pouco tempo após o início das operações da empresa já surgiam as primeiras propostas de
utilização do bonde como meio de propaganda. Essa propaganda foi assumindo, com o
passar dos anos, um caráter mais e mais agressivo, trazendo anúncios de pílulas, xaropes,
pomadas, vinhos finos, e consigo comentários acerca de assuntos pouco agradáveis à vista
de parte do público. Na ausência desse tipo de anúncio, os espaços eram preenchidos por
promoções da empresa, tais como “Já foram à Ponte Grande ver a enchente?” (A Platéa,
20/02/1907). Alguns chegavam a comentar que a empresa trazia consigo uma febre de
anglicismos que invadiam a língua falada no município. Expressões como up-to-date,
fashionable, smart, five o’clock tea, low tennis, football, graças às promoções da companhia
canadense, passaram a fazer parte do cotidiano dos bondes. Ficava evidente que, após a
chegada da Light, São Paulo nunca mais seria a mesma.
Essa nova realidade se fazia sentir no comportamento dos passageiros que
utilizavam os bondes, que rapidamente se transformou no meio de locomoção predileto das
classes mais abastadas da cidade. Além de representar o novo e o moderno, o serviço de
bondes afastava, graças às regulamentações de bem se trajar e de bem se portar, boa parte
das classes menos abastadas, que, além de todas as restrições que enfrentavam para o uso
do novo meio de transporte, não podiam arcar com os novos preços, que eram o dobro dos
praticados pela velha Cia. Viação. Esses novos passageiros de bonde cultivavam aquilo que
um cronista nos anos de 1920, Amadeu Amaral, chamou de psicologia dos bondes. Numa
série de artigos publicados pelo jornal A Notícia, no início do ano de 1907, um cronista,
identificado apenas como Seu Figueiredo, tece uma série de comentários sobre a complexa
e nova psicologia, anos depois abordada por Amadeu Amaral, que exigia não apenas um
comportamento mais ágil, como também uma maior maleabilidade nos padrões morais,
requisito fundamental para se dividir o banco com outros passageiros. Comentando acerca
dessa nova psicologia, o autor aborda uma série de problemas relativos ao andar de bonde,
tratando de assuntos tão diversos como os malabarismos dos passageiros quando da
arrancada repentina dos carros (A Noticia, 16/01/1907), ou então sobre doenças às quais
inconscientemente estão expostos os passageiros dos bondes, ao inalarem as grandes
quantidades de poeira, levantadas graças à velocidade exagerada em que se movimentam os
carros da empresa (Idem, 17/01/1907).

Ao final dos artigos, Seu Figueiredo, se dispõe a escrever um livro que pudesse
auxiliar os passageiros dos bondes de São Paulo. Seria não bem um livro, mas um manual,
cujo nome dava bem a medida do que era um passeio de bondes pela cidade no início do
século XX, Gymnastica Applicada ao Bonde. Essa nova psicologia, acompanhada de uma
nova maleabilidade corporal, era o sinal dos novos tempos advindos com a Light, cujos
ritmos demoraram algum tempo para serem absorvidos por grande parte da população que,
primeiramente, tinha de lutar para ter acesso a esse serviço, para não ser por ele desterrada.

A consolidação da Light e o momentum da eletricidade em São Paulo

A consolidação da Light & Power na cidade de São Paulo foi um processo que passou
não apenas pela ocupação das ruas, distribuição das redes, popularização dos serviços e
destruição da concorrência. A consolidação da empresa canadense também passou pelo
aliciamento político e pela criação de demandas, não apenas para os seus serviços de
transporte ou de energia elétrica, mas também demandas para o desenvolvimento de
pesquisas relacionadas à eletricidade, potenciais fontes de geração de energia e,
principalmente, formação de mão-de-obra especializada em assuntos relacionados com a
engenharia elétrica. Em ambos os casos a empresa contou com um forte poder de
persuasão: o seu poder econômico.
Quando de sua chegada a São Paulo os homens por trás da companhia canadense
tiveram extrema preocupação e cuidado para costurar alianças que lhes valessem algumas
facilidades nos meios políticos locais. A presença de Antonio Gualco, um amigo próximo
da família Campos, uma das mais influentes no Estado de São Paulo, foi um fator decisivo
para a aceitação da empresa canadense e para que o contrato original de transportes por
tração animal firmado entre o município e a Cia. Viação Paulista fosse rasgado. O que os
homens da Light procuravam eram pessoas influentes na comunidade com as quais a
empresa pudesse obter um bom relacionamento e, com isso, conseguir algumas vantagens
nas negociações que viessem a ocorrer com a municipalidade. O próprio Brown,
engenheiro-chefe e um dos diretores da companhia, tinha clara a necessidade de encontrar
aliados certos junto a comunidade local. As discussões acerca de que aliados encontrar em
São Paulo eram feitas sem a menor cerimônia entre os membros da empresa no Brasil e os
membros da empresa no Canadá ou mesmo nos Estados Unidos.
A estratégia da empresa foi a de encontrar aliados que pudessem, sempre que necessário,
fazer o lado da balança pender ao seu favor. Isso foi de grande eficiência quando de sua
chegada, aproveitando-se do misto de alegria e fascinação por São Paulo ser alvo de
vultosos capitais internacionais, porém, com o passar dos anos, e com o fascínio inicial
sendo substituído por desconfiança, a companhia canadense começou a adotar uma
estratégia que mais do que se aliar aos nomes certos era a de fazer com que os nomes
certos chegassem ao poder.

Existem poucas fontes que dão conta de tal estratégia, muitas delas relegadas apenas
aos jornais de linha mais independente e que chamavam a atenção para o “perigo yankee”.
Esse perigo, cuja atenção dos poderes públicos foi chamada logo nos primeiros dias da
empresa, após a unificação dos contratos, se manifestava no comportamento despótico e
monopolista da companhia que a todo custo procurava garantir o máximo de influência em
todas as áreas da capital. Os primeiros sinais de alerta foram dados no ano de 1906, quando
um jornal do município (A Platéa, 06 e 07/12/1906) chama a atenção para os projetos da
Light em Santo Amaro. Com o objetivo de construir uma barragem que servisse de
reguladora do fluxo de águas para a sua usina em Parnaíba, a empresa canadense começou a
pressionar a Prefeitura da então cidade de Santo Amaro para lhe conceder total liberdade
em realizar desapropriações dos terrenos para a área daquela que viria ser a represa de
Guarapiranga. O objetivo da companhia era o de, após a conclusão de suas obras, especular
com os terrenos por ela comprados, para conseguir bons lucros no mercado imobiliário da
cidade, que desde a sua chegada vivia dias muito agitados.
O fato é que o caso ganhou certa repercussão e acabou sendo explorado por parte da
imprensa paulistana, levantando suspeitas sobre a atitude da companhia, queixas de
proprietários de terra prejudicados pelas desapropriações e uma ação no Senado Paulista
que aprovou o projeto da empresa em Santo Amaro, sob os auspícios de alguns lentes da
Escola Politécnica. Esse caso fez com que a Light, talvez como retribuição aos “homens
fortes” em que podia confiar, iniciasse um processo de aliciamento de eleitores, no que
se tornaria um escândalo eleitoral na cidade de São Paulo.

A história começa com um artigo no jornal “O Comércio de São Paulo”, onde um


jornalista chama a atenção para um estranho movimento de alistamento de eleitores, todos
eles empregados da companhia canadense. Ao que tudo indicava, a empresa pretendia
utilizar o grande número de trabalhadores que empregava como arma para influenciar no
resultado eleitoral, o que não seria muito difícil numa cidade onde o número de eleitores era
reduzido e num sistema eleitoral onde o voto não era secreto. O grande número de
estrangeiros empregados nas fileiras da Light fazia com que, inclusive, a empresa
trabalhasse para uma rápida naturalização dos mesmos, habilitando-os a participar do
processo eleitoral. Esse alistamento maciço de eleitores pela companhia concentrava um
enorme poder em suas mãos, fazendo dela a maior força econômica e também política da
cidade. De um lado, mobilizava enorme capital e era capaz de produzir grandes lucros
usando de seus contatos, valendo-se de sua concessão e de práticas especulativas; de outro
lado mobilizava um enorme cacife eleitoral, podendo influir decisivamente na eleição de
seus escolhidos.
Usando de linguagem belicosa, o jornalista que chamou a atenção para os aparentes
planos de transformar a empresa num entreposto eleitoral, diz que a Light agia na cidade
como o vitorioso age em terra conquistada, ou como se a população local fosse uma
população corrompida, à mercê da melhor oferta (O Comércio de S. Paulo, 10/07/1907).
No entanto, ao que parece, a prática da empresa, antes de reprovável perante os poderes
públicos municipais e estaduais, parecia receber o apoio velado dos mesmos, como que
uma garantia da manutenção do status quo, numa prática clientelista para garantir a
hegemonia municipal e os seus planos para a capital paulista. Perante tal situação, restou ao
jornalista o amargo comentário acerca do quadro político-eleitoral do município:

A Light convertida em nucleo eleitoral, tem no Congresso do Estado, nas proprias


repartições municipaes, quem a auxilie, quem lhe dê apoio, quem a incite a
proseguir em sua intervenção immoral em nossa política. Entre os cúmplices,
comparsas da companhia cynica ha alguns que se incumbem de alistar eleitores e
de dividi-los por secções (...) Em vésperas da eleição, os directores da Light, como
se praticassem um acto licito, compromettem-se a dar a este ou aquelle candidato
determinado numero de votos. (O Comércio de S. Paulo, 24/07/1907).

No entanto, não era apenas na arena política que a companhia procurava afirmar-se
na cidade, mas também junto aos responsáveis pela formação das elites locais, mais
especificamente, das elites que estariam ligadas á produção científica e que seriam de
fundamental importância para o desenvolvimento de uma força de trabalho nativa, o que
pouparia um bom dinheiro da empresa na contratação de mão-de-obra estrangeira; além de
criar um conjunto de idéias que colocassem o principal produto da Light, no caso a
eletricidade, como o centro da nascente economia industrial paulistana. Trata-se da Escola
Politécnica. A Escola Politécnica foi fundada no ano de 1893 e iniciou os seus cursos a
partir de 1894. Essa instituição representou, ao longo da Primeira República, um dos mais
importantes centros de pesquisa do país. A Escola era para São Paulo não apenas um centro
de estudos, mas um centro de representação e de afirmação da superioridade dos paulistas
em relação ao restante da federação, principalmente em relação à sua concorrente direta, a
Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Como uma das formadoras de quadros para o Partido
Republicano Paulista, já que os filhos dessa elite cafeeira formavam uma parte significativa
dos alunos de instituições como a Politécnica, o papel da Escola ia muito além da ciência e
esbarrava na política, já que aquela instituição forneceu importantes quadros para a vida
pública paulista e brasileira.
As relações entre a companhia canadense e a Politécnica começaram cedo. No dia
29 de maio de 1901, quando o engenheiro F. S. Pearson visitou pela primeira vez as
instalações da instituição, iniciou-se uma relação que se estenderia ao longo dos primeiros
trinta anos do século. Guiado por alguns professores e alunos, Pearson conheceu o prédio
que abrigava a instituição e fez à Politécnica uma oferta irrecusável: instalar um motor
elétrico e fornecer gratuitamente energia elétrica assim que as operações da usina de
Parnaíba se iniciassem. O diretor da escola Politécnica, Paula Souza, lisonjeado com o
interesse e as declarações de Pearson, aceitou o presente e deu o primeiro passo para que a
cadeira do que hoje chamamos engenharia elétrica iniciasse as suas atividades
(NAGAMINI, N, 1994:64). Esse fato, aparentemente de importância secundária, foi um
momento chave para se entender o rápido sucesso da difusão da energia elétrica na cidade
de São Paulo e, posteriormente, no resto do Estado. Juntamente com o início da cadeira de
eletrotécnica, se iniciava em São Paulo um processo de difusão da eletricidade e uma
campanha pelo uso dessa forma de energia, incluindo aí a difusão de artefatos elétricos
diversos, tais como lâmpadas, panelas elétricas, motores elétricos, aquecedores de água,
dínamos e uma infindável série de objetos que passariam, nas décadas seguintes, a fazer
parte do dia-a-dia dos cidadãos paulistanos.
Esse processo de adoção de uma tecnologia, que tanto pode decretar a sua rápida
expansão, quanto o seu atraso, ou mesmo a sua morte prematura (ARTHUR, W. D.
1998:1906-112), teve na empresa canadense o principal núcleo de propulsão, sendo ela a
única responsável pela criação do momentum (HUGUES, T. 1989: 141-174). Uma
determinada tecnologia atinge o seu momentum quando um conjunto de fatores, que são
aparentemente independentes, se conjugam. A tecnologia ganha apoio de homens e de
instituições e começa a suscitar um campo de pesquisa, seja em instituições científicas, ou
em indústrias. Esse campo de pesquisas e as idéias a ela relacionadas tendem a se espalhar
sociedade afora e a tornar o caminho de adoção de determinada tecnologia mais fácil
quando comparada a outras formas de manifestação técnica. Os trabalhos de Thomas
Hugues tratam de vários exemplos de como a tecnologia da eletricidade atingiu o
momentum em diversos locais. Alguns dos exemplos dados pelo historiador americano são
de grande utilidade para uma melhor compreensão do fenômeno que ocorreu na cidade de
São Paulo no início do século XX. Esses exemplos são as cidades de Londres e Chicago.
A cidade de Londres era, no início do século XX, um dos maiores centros industriais
e financeiros do mundo. Apesar disso a cidade demorou, desde as primeiras aplicações das
tecnologias de eletricidade, quase 70 anos para substituir inteiramente o seu sistema de
iluminação a gás por eletricidade. Essa situação ocorreu por uma sobreposição da política
por sobre a tecnologia. A tradicional organização político-administrativa londrina dividia a
cidade por diversas autoridades locais, cada qual responsável pela administração de uma
parte do que para nós seria o município. A primeira requisição para o fornecimento de
eletricidade para a cidade de Londres foi feita pela empresa English Electric Light
Company, proprietária dos direitos de uso no Reino Unido da tecnologia desenvolvida por
Thomas Edison em Merlon Park. No início de 1882 a companhia construiu o primeiro
grande gerador na cidade de Londres, sob o viaduto Holborn, usando a mesma tecnologia
aplicada com sucesso na cidade de Nova Iorque (Idem, 54-78), entrando em funcionamento
naquele mesmo ano, no dia 25 de abril. A partir desse momento teve início uma infindável
série de problemas que retardariam o uso da eletricidade em larga escala na cidade de
Londres por mais de três décadas.
O principal problema ocorria pela peculiar forma de organização político-
administrativa no Reino Unido. Para a construção da canalização subterrânea na cidade e a
necessária intervenção nas ruas, iniciou-se uma discussão para a criação de uma lei que
valesse não apenas para a cidade de Londres, mas também para todo o país, transformando
uma questão local em uma questão para o Parlamento Britânico. O problema para
desenvolver uma regulamentação se dava pelo fato dos conselhos municipais terem a
autonomia de decidir qual a melhor forma de lidar com questões como, no caso da
eletricidade, a construção de dutos para a instalação dos fios de transmissão, até qual a
corrente a ser adotada por um sistema de distribuição. Esse fato resultou numa grande
disseminação de pequenas companhias e na não adoção de um padrão único que
beneficiasse uma grande companhia como a English Electric Light, que viu frustrados os
seus esforços para a criação de uma empresa que centralizasse os serviços de fornecimento
de força e luz (Idem: 227).
Esse problema de definição de uma legislação, que ao final de contas ficou sob a
jurisdição dos diversos conselhos municipais, resultou na impossibilidade da instalação de
grandes empresas que investissem grandes somas de capital na construção de centrais
elétricas para o fornecimento de energia para a cidade. Essa contradição entre a política e
tecnologia se aguçou com o novo desafio que representava a eletricidade para uma cidade
como Londres, o que resultou na impossibilidade dessa nova tecnologia atingir o seu
momentum na cidade até o final da Primeira Guerra Mundial. Um paradoxo para uma
cidade que concentrava as maiores instituições científicas do mundo à época. Os problemas
enfrentados pela tecnologia da eletricidade na cidade de Londres podem ser resumidas nas
palavras de Lloyd George, respondendo a um pedido para apressar o processo de unificação
dos padrões de transmissão e distribuição de eletricidade: “(...) Isto não é questão de
engenharia, é questão de política” (Idem:203).
O caso de Chicago seguiu um caminho completamente diverso do que o de Londres,
num processo que foi em certos aspectos semelhantes aos de São Paulo. No início do século
XX a cidade de Chicago possuía uma série de pequenas empresas fornecedoras de energia
elétrica e de força para cidade. A situação passou a mudar com a chegada em Chicago de
Samuel Insull, um ex-funcionário de Thomas Edison que tinha a intenção de unificar os
serviços de distribuição de força e luz na cidade. Valendo-se da peculiar condição política
daquela cidade, Insull, presidente da Chicago Edison Company, iniciou um processo de
monopolização da produção e distribuição de energia elétrica que criou as condições ideais
para atrair grandes investimentos para a sua empresa, usando muitas vezes para isso de
ações não lícitas.
Com grande influência na política local, Insull conseguiu que fosse aprovada uma
legislação que desse à empresa uma concessão de longo prazo, no caso de 50 anos, além de
separar os serviços de força e luz dos serviços de transportes (Idem:206). Isso possibilitou
que a empresa incentivasse o surgimento de uma demanda para força e luz, permitindo a
aplicação em larga escala das novas tecnologias relacionadas á eletricidade. O resultado
dessa combinação foi a criação de um sistema que envolvia as necessidades sociais e de
mercado, redes de financiamento, inovações tecnológicas, engenharia, design e técnicas
administrativas (Idem, 216). O momentum da eletricidade em Chicago representou a síntese
de diversos modelos e foi possível por um misto de desregulamentação no fornecimento de
força e luz e de uma acirrada competição na área de distribuição e transportes, além é claro
de um grande movimento junto ás universidades dos Estados Unidos para o
desenvolvimento de estudos relacionados com a eletricidade (Idem, 250).
O caso de São Paulo, apesar de guardar certas semelhanças com o caso de Chicago,
seguiu um modelo de desenvolvimento distinto. Quando uma empresa como a Light &
Power Company se instala numa cidade sem quaisquer melhoramentos relacionados com os
serviços os quais ela se propõe a fornecer, diferentemente dos casos de Londres e Chicago,
é natural o fornecimento de uma série de incentivos para que o público use os seus serviços.
No entanto, o que a companhia canadense incentiva na cidade de São Paulo e, por
conseqüência, no Estado, é a adoção das tecnologias da eletricidade, fazendo com que essas
tecnologias se imponham sobre as outras, de forma a tornarem-se um paradigma (DOSI, G.
1998:387-420) a sempre ser levado em conta. Em outras palavras, o momentum da
eletricidade em São Paulo foi capitaneado por apenas uma única empresa, que impôs os
seus ritmos e projetos – amparada numa legislação permissiva e num executivo claudicante
– a toda a população da cidade.
O papel da Escola Politécnica nesse processo, ao contrário das grandes
universidades dos Estados Unidos que participavam com pesquisas e formação de mão-de-
obra especializada, foi a de chancelar os projetos apresentados pela companhia junto à
Prefeitura Municipal, em casos como os da iluminação, ou mesmo o da construção da
represa de Guarapiranga, que tanto escândalo gerou na cidade pela forma como os
processos de desapropriação estavam sendo conduzidos. A Escola Politécnica, através de
alguns artigos em sua revista, ou mesmo através de artigos de seus professores nos jornais,
acabou por colocar-se ao lado da empresa canadense e a dar um respaldo científico aos
intentos da Light. As relações entre a empresa canadense e a Escola Politécnica são, no
entanto, apenas uma parte do processo de formação do momentum da eletricidade em São
Paulo. Além da necessidade de se criar um consenso ao redor da eletricidade entre os meios
público e científico, foi também necessário difundir a nova tecnologia sociedade afora. Esse
trabalho de difusão também tem na Light o seu centro motivador.
Antes da instalação da empresa canadense no Brasil, um dos homens que serviram
de ponte para a coleta de informações sobre São Paulo e também como um intermediário
nas negociações junto à Câmara de Vereadores da cidade foi James Mitchell. Esse
americano que se radicou no Brasil em fins do século XIX era o representante da empresa
de material elétrico estadunidense General Electric, a maior empresa do ramo no mundo
àquela época. Como representante daquela empresa, Mitchell era o nome ideal para servir
de ponte com a Prefeitura e para tratar dos processos de compra e importação dos materiais
necessários para o funcionamento da nova companhia de bondes em São Paulo. O papel de
Mitchell como representante da General Electric no país e intermediário entre a empresa
canadense e a empresa estadunidense, lhe valeu sucesso como comerciante, o levando a
abrir uma loja que levava o seu nome na cidade de São Paulo, a famosa Casa James
Mitchell, a única casa autorizada a vender material elétrico em nome da Light & Power Co.
A Casa James Mitchell era a responsável pela venda de motores para empresas interessadas
em trocar o vapor pela eletricidade, era a responsável pela venda de medidores elétricos,
além da distribuição de lâmpadas e de uma variada gama de produtos relacionados à
eletricidade, que podiam ser usados no dia-a-dia das donas de casa paulistanas, desde que, é
claro, pudessem arcar com as despesas com a compra desses artefatos elétricos. O papel da
casa James Mitchell era, entre outras coisas, o de gerar demanda para o consumo de energia
elétrica, ou seja, criar um movimento na sociedade paulistana que fosse capaz de
transformar a eletricidade num elemento corriqueiro no cotidiano do município.
Essa difusão da eletricidade, que teve o seu início com a inauguração do tráfego de
bondes em 07 de maio de 1900, fez com que, poucos anos após o seu início, as tecnologias
relacionadas com a eletricidade atingissem o seu momentum em São Paulo. É difícil
determinar o momento exato desse acontecimento. Certamente ele está relacionado com a
inauguração da usina de Parnaíba em 23 de setembro de 1901. A inauguração dessa usina
proporcionou á empresa canadense vender seus motores e oferecer a eletricidade como uma
alternativa ao vapor e à gasolina, além de concorrer para a iluminação publica e difundir e
iluminação privada. Para esse processo foi decisiva a participação da Escola Politécnica e
da casa James Mitchell. A primeira forneceu o seu discurso científico como salvaguarda
para a adoção da nova tecnologia, a segunda ofereceu os equipamentos e incentivou o uso
de produtos que utilizassem a eletricidade como força motriz.
Seguindo o esquema de Hughes para descrever o processo de desenvolvimento de
uma determinada tecnologia para atingir o seu momentum, nos primeiros anos do século
XX, a eletricidade atingiu no município aquilo que o autor chama de massa, a base de
produção da energia elétrica – no caso a usina de Parnaíba –; ganhou um movimento, que
pode ser notado num processo de difusão do uso da eletricidade sociedade afora; e uma
direção, a substituição de outras formas de força pela força elétrica, incluindo nisso também
a substituição da iluminação a gás por iluminação elétrica. No entanto, esse processo de
construção do momentum, por ter sido o resultado da ação de um único grupo de interesses,
levou a uma série de contradições que perduraram ao longo de toda a Primeira República,
isso graças à ação monopolista da empresa canadense. Essas contradições se manifestavam
no grande número de pessoas que eram, dia após dia, vitimadas pela eletricidade e pelo
grande número de pessoas que eram excluídas do acesso à energia elétrica. Essa situação
levou a um sutil embate entre a população da cidade e as formas de utilização dessa nova
tecnologia, o que se manifestava no confronto direto, com ataques contra tudo o que
representasse a Light & Power na cidade de São Paulo, até formas de burlar as regras de uso
impostas pela companhia e se utilizar dessa nova tecnologia sem a devida remuneração para
a empresa, numa prática popularmente conhecida como “gato”.
Os “gatos” eram uma prática aparentemente comum à época, causando constantes
transtornos à empresa. Nos primeiros dez anos do século XX era normal encontrar relatos
sobre pessoas que se apropriam ilegalmente da eletricidade, através de ligações
clandestinas, com o intuito de iluminar a sua casa, geralmente usando apenas uma lâmpada
que ficava acessa ao longo do dia. A empresa, através de James Mitchell, o responsável por
essa área, procurava de todas as formas coibir esse tipo de prática, usando de estratégias
como o desconto para os consumidores que pagavam as contas em dia, até ameaças de
prisão e de corte de energia para aqueles que de alguma forma burlassem as regras.

Conclusão

Combinados todos esses ingredientes, a empresa, ao longo dos anos da


administração de Antônio Prado, em seus anos heróicos, angariou grandes antipatias junto á
população paulistana. A permissividade do executivo e legislativo municipal se, por um
lado, possibilitou uma grande difusão da eletricidade cidade afora, também resultou, por
outro, num grande processo de exclusão das classes menos favorecidas e numa
manifestação extremamente destrutiva dessas tecnologias, sendo que suas vítimas, na
maioria das vezes, eram pessoas pobres.
Ao final dos anos Prado, a cidade de São Paulo havia atingido seu momentum no
caso da eletricidade. Porém, a percepção era a de que as grandes promessas que esse
momentum trazia não se concretizaram, graças à forma como essa tecnologia foi aplicada.
As relações entre a Light & Power e a Prefeitura Municipal traziam uma sensação de
desconforto geral e levavam a população a crer que a “poderosa” – uma das tantas alcunhas
da empresa canadense – era a verdadeira detentora do executivo municipal.
A vitória do projeto de modernização tecnológica representada pela Light iria
causar, ao longo de todos os primeiros trinta anos do século XX, uma série de embates entre
a população do município, de um lado, e a companhia e os poderes municipais, de outro.
Esses conflitos causados pelos serviços de má qualidade, pelo grande número de acidentes e
pelas relações promíscuas entre a Prefeitura Municipal e a empresa canadense marcariam a
adaptação dessa nova tecnologia na cidade, num embate que foi responsável por definir os
caminhos da eletricidade em São Paulo, e cujo resultado foi um grande número de vítimas,
em sua maioria velhos e crianças das classes menos favorecidas, sempre à mercê de sua
própria sorte.

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Imigrantes empreendedoras em São Paulo (1945-1956)
Ashkenazitas, Sefarditas e Orientais

Marie Felice Weinberg78

RESUMO
Esse estudo enfoca as judias que imigraram no período que se estende do final da Segunda
Guerra Mundial até 1956, quando o general Gamal Abdel Nasser ascendeu ao poder do
Egito. Os judeus que viviam na Europa, Oriente Médio e África do Norte, proibidos de
imigrar para Israel, acabaram transferindo-se para outros países, entre os quais o Brasil.
Embora ainda vigorassem no país restrições à entrada de imigrantes, as cidades brasileiras
receberam, terminada a Segunda Grande Guerra, os sobreviventes do Holocausto, os
refugiados da Europa Ocidental e Oriental e, dos países banhados pelo Mediterrâneo. A
metodologia escolhida para alinhavar a multiplicidade cultural do grupo étnico judaico foi
a História Oral que através das entrevistas captou os discursos de 22 empreendedoras. Este
trabalho revela outras verdades femininas, que os discursos patriarcais teimam em
minimizar e permite questionar o papel das mulheres nas relações de poder entre os
gêneros.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero, Imigração, Judeus.

ABSTRACT
This study is focused upon Jewish women emigrants, comprising the period preceding the
Second World War until 1956, when General Abdel Nasser came to power in Egipt. The
Jews who then lived in Europe, The Middle East and North Africa, and who were
forbidden to emigrate to Israel, ended up by moving to many other countries, including
Brazil. Although some restrictions to the entrance of immigrants were still in effect in the
country at the time, the Brazilian cities received, by the end of the Second World War,
survivors of the Holocaust and refugees from the Western and the Eastern European
countries, and also those from the countries bathed by the Mediterraneam sea. The
methodology chosen to delineate the multiple cultural aspects of this Jewish ethnic group
was Oral History, through interviews which collected the discourses of 22 entrepreneurial
women. This study reveals other female truths consistently minimized by a patriarchal
discourse, and enables to question the part that women usually take in the relations of
power between genders.

KEY-WORDS: Gender, Imigration, Jews.

78
Mestre em Língua Hebraica, Literatura e Culturas Judaicas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, com a dissertação “Histórias Recontadas: Judias Imigrantes
Empresárias em São Paulo (1945-1956)”. Participante do grupo de Pesquisa “Mulheres Proprietárias”, do
Departamento de História Econômica da Universidade de São Paulo e do grupo de Pesquisa “E/Imigrantes”,
do Departamento de Psicologia Social da Universidade de São Paulo. E-mail: mariefelice_w@yahoo.com.br
Recentes estudos sociológicos vêm mostrando a importância das mulheres e a
valorização dos estudos sobre suas conquistas no mercado de trabalho. Nenhuma das
pesquisas, entretanto, abordou as mulheres judias que, inseridas no contexto familiar,
ousaram empreender ações em busca de soluções econômicas, visando o lucro para garantir
suas necessidades e a de seus familiares. Com este trabalho, pretendemos preencher esta
lacuna.
Os estudos realizados sobre a imigração de judeus em nosso país concentram-se em
núcleos de famílias e, em particular, na figura masculina, único partícipe de
empreendimentos econômicos e pela manutenção da estrutura familiar. Como chefes de
família ou como profissionais são responsabilizados, inclusive pela inserção do grupo no
meio social, restando às mulheres o papel de figurantes e elemento passivo no enredo
familiar dos grupos culturais judaicos.
O tema abrange o período que se estende do final da segunda guerra Mundial até
1956, quando no Egito e outros países árabes apoiaram a ascensão ao poder o General
Gamal Abdel Nasser, rompendo as antigas e amistosas relações entre muçulmanos e judeus.
Do outro lado, a cidade de São Paulo apresentava amplas possibilidades e perspectivas
econômicas a imigrantes que buscassem terras politicamente tranqüilas da América.
A pesquisa excluiu o período vivenciado pelas imigrantes judias durante o
Holocausto, o que facilitou a participação no estudo. Os judeus que viviam nas terras
atingidas pelo Nacional Socialismo estavam proibidos de emigrar para Israel e,
transferiram-se para outros países da Europa e América, entre os quais o Brasil. Embora
ainda vigorassem restrições oficiais à entrada de imigrantes, as cidades brasileiras
receberam, terminada a Segunda Guerra, os sobreviventes do Holocausto e os refugiados da
Europa Ocidental e Oriental, bem como os banhados pelo Mediterrâneo.
Para nossos objetivos a História Oral foi a metodologia escolhida para compor as
histórias de vida de mulheres que imigraram a São Paulo, entre 1945 e 1956 que
trabalharam, visando o lucro, apoiadas em seu próprio capital. Embora não assumam sua
autoria, elas romperam com os papéis tradicionais femininos mantendo a harmonia na
esfera familiar pautada numa organização patriarcal. Esta diretriz permitiu incluir as
minorias, tornando-se um instrumento fecundo para compreender o universo desse estudo.
A pesquisa qualitativa foi a técnica utilizada, visando a criação de espaço na história deste
grupo étnico “valendo como revisão de situações estabelecidas, pois, quase sempre, ela
propõe alterações interpretativas que contrastam com a ordem vigente” (MEIHY, 2000:
15).
A primeira grande dificuldade encontrada para esse estudo foi a composição da
amostra. As mulheres casadas até o presente, não aceitam assumir seus papéis de
empreendedoras. Desta maneira, o objeto da pesquisa ficou quase ausente, visto que era
exigido como pré-requisito: ser mulher, judia, imigrante na cidade de São Paulo no período
e de ter exercido o papel de empresária79, independente do sucesso do empreendimento.
Essa constatação impele a certos questionamentos, como a possível falta de espaço
social ao empreendedorismo feminino ou a perpetuação do modelo conservador da
sociedade patriarcal judaica. E eventuais diferenças entre as imigrantes judias originárias
dos três principais grupos culturais.
Ainda que só no plano discursivo, há o desafio da releitura ou, re-ouvir as histórias
que poderão contribuir para contradizer os discursos normativos, encarados como naturais,
talvez, por corresponderem a uma narrativa patriarcal que até aqui permanece preservada
pelas próprias mulheres.
Para definir o grupo de 22 mulheres judias, a “auto-identificação“ (RATTNER,
1977: 132). serviu como referencial, abrangendo um universo das laicas ou não religiosas às
ortodoxas. A discussão sempre atual sobre o significado de identidade judaica converge
para a questão dos valores que geram diferentes processos identificatórios deixou de ser
analisado no momento.
As entrevistas foram individuais, na residência da família ou no escritório, e o
tempo de duração não foi limitado, mas estendeu-se, em média, por três horas. As mulheres
exigiram a omissão de suas identidades, pedindo a utilização de nomes fictícios. Tampouco
aceitaram a gravação de suas falas, ficando suas falas restritas às anotações. Ainda, uma
nova surpresa diante da presença inesperada do marido ou filho, no momento da entrevista,
o discurso se alterava. Diante disso, marcávamos novos encontros para melhor elucidação
da história.

79
“Pessoa ou grupo de pessoas que inicia e ou administra uma empresa, assumindo a responsabilidade por seu
funcionamento e eficiência”. (SANDRONI, 1987: 138/139).
Além das trajetórias de vida, oralmente obtidas, consultamos o acervo do Arquivo
Histórico Judaico Brasileiro, de São Paulo, de onde pudemos incorporar depoimentos orais,
ali registrados.
Diante desse panorama inquietante, que se traduziu numa minimização sobre as
iniciativas abre-se espaço para discussão sobre o exercício dos papéis femininos em conflito
com o âmbito público, mostrando-se um novo som, em meio ao silêncio sobre as iniciativas
das mulheres que parecem ousar e criar o avesso do homem.

Cenário
O povo judeu viveu disperso por séculos entre outras sociedades e manteve sua
unicidade na religião, filosofia, valores éticos, morais e ancestralidade, somando uma
pluralidade cultural resultante de sua participação em contextos nacionais diversos. Embora
a religião seja vista como o fio-mestre da unidade desse povo, a organização social
contemporânea abriu espaços para a valorização de outros conceitos, geradores de
diferentes processos identificatórios, como os preceitos ortodoxos, conservadores, liberais,
a filosofia ético-moral, a matrilinearidade e, após 1948, a identificação ideológica e política
com o Estado de Israel.
Considerando as diferenças culturais, pouco conhecidas, apresento um rascunho
referente à localização dos diferentes grupos culturais judaicos nos países de origem das
imigrantes aqui apontadas.

Distribuição da população judaica nas comunidades de origem


Fonte: Esboço sobre mapa do Início do século XX - Mapa de Martin Gilbert (GILBERT, 1978: 60)

Esses grupos, fruto das incessantes diásporas, viveram em áreas,


concomitantemente, embora se mantivessem separados.
Na busca de estudos mais sistemáticos sobre as diferenças culturais existentes no
grupo étnico judaico apresentamos os valores modos de vida de cada grupo até sua ruptura
na origem e, recriação de laços de convivência na sociedade paulistana.

Ashkenazita:
As mulheres que vieram da Europa Central e Oriental, constituem-se no maior
número de entrevistadas deste trabalho, assim, iniciamos pelo grupo lingüístico-cultural
identificado com o iídiche - ashkenazitas.
A maioria dos judeus da Europa conheceu o período de consolidação das revoluções
do século XVIII tendo participando do “Estado Burguês”. Este cenário é o da modernidade,
determinante na separação definitiva entre as esferas do público e privado. Nas sociedades
tradicionais judaicas, as relações sociais caracterizam-se pela:
(...) intimidade, comensalidade, solidariedade primária afetiva, emocionalidade, padrões
rigorosos de controle social, núcleo familiar organizado em torno da parentela sanguínea
que constitui além de sua função reprodutiva biológica, uma unidade de produção
econômica e de consumo coletivo (LEWIN, 1996: 448).

No contexto do final do século XIX, as mulheres judias do shtetl (aldeota, vila,


bairro étnico) vão precisar redefinir seus novos limites de âmbito privado, quando o público
laico passa a não mais só circundar, como interferir em seu cotidiano.
O processo é válido para toda a comunidade, pois, em primeira instância objetiva o
fortalecimento da família judaica. Assim, a autoridade do

(...) pai é formal, de acordo com os costumes e a lei judaica, mas o domínio real do espaço
doméstico pela prática da vivência cotidiana é da ”iídiche mame”. Ela manipula os recursos
materiais e simbólicos existentes no interior da família (....)
(...) A aceitação pela família desse direito significa o reconhecimento implícito de sua
autoridade (....) explicando (....) segundo a visão tradicional da vontade divina (....) não
percebendo ou não querendo assumir explicitamente o papel de interventora. (LEWIN,
1996: 452).

Apoiando-se no texto citado, a mãe, a responsável pela definição dos papéis e das
urgências, estabelece as partes com certo grau de autonomia. É seu dever acompanhar os
estudos, sobretudo dos filhos homens, conforme a cultura e a religião enfatizam (pois, é a
garantia da continuidade comunitário-judaica). Esses encaminhamentos são fundamentais
por definirem responsabilidades, ao mesmo tempo, em que hierarquizam as relações na
futura geração.
O estudo talmúdico para os homens, por exemplo, é tão valorizado a ponto de as
mulheres improvisarem algum trabalho remunerado para garantir as despesas e poupar o
esposo dessa preocupação, sem levá-lo a interromper os estudos. Acrescenta-se um
reconhecimento social da família que tem um sábio (o conhecedor dos mistérios do
sagrado, o estudado), que é vista como nobre e abonada, dada a capacidade de prover o
filho por tantos anos. Na ausência do filho, o mito de mulher fraca e dependente configura-
se; no contrário, isto é, no completo, em sua maternidade, a máxima e plena força
manifesta-se numa existência, vista como altruísta, provedora e protetora.
Essas mulheres ora mães, ora esposas, são pessoas que irão concomitantemente
participar dos processos sociais do período nas pequenas cidades da Europa Central e
Oriental. Aos poucos, o mundo judaico vai ganhando novas formas e o espaço privado
invadido por distintas necessidades, abrindo oportunidades à mulher.
A sobrevivência econômica, a profissionalização, o proletariado, as novas
exigências de competência individual, a secularização da sociedade, entre outros fatores,
foram dissolvendo os muros que continham esse universo público separado e distante da
realidade privada judaica do período.
Personalidades consagradas da comunidade judaica viviam, em sua maioria, nas
grandes cidades, sobretudo, da Europa Ocidental inseridas no cotidiano laico, lutando pela
renovação mundial que incluía a integração judaica.
O Iluminismo, ideologia predominante na Europa Ocidental do século XVIII,
ventilou a filosofia judaica para além de sua religião, vislumbrou novas abordagens, releu o
judaísmo tradicional criando novos paradigmas.
Muitos judeus do Ocidente, pertencentes às camadas médias da população, puderam
engajar-se em universidades, imprensa e na literatura, indústrias, bancos e até trabalharam
em repartições públicas ou comércio, integrando-se à sociedade laica, usufruindo os direitos
iguais para o exercício da cidadania recém-conquistada. Os filhos de famílias abastadas
foram aceitos nas universidades européias e aos demais restaram os estudos orientados
dentro do corpo da comunidade.

Na Europa Oriental, grande número de judeus vivia predominantemente em áreas


rurais eram menos favorecidos, em vista da discriminação e exclusão social, ficando
fechados em sua comunidade, arraigados à consciência judaico-religiosa. Trabalhavam
como artesãos, sapateiros, alfaiates, carpinteiros, serralheiros, entre outras, e, em face ao
cotidiano restrito ao vilarejo estavam menos expostos às influências, mantendo seu modus-
vivendi judaico tradicional. Em 1923 as restrições anti-semitas polonesas dificultaram o
acesso de judeus aos estudos, caindo de 24,5% para 3,2% em menos de dez anos na
escolaridade oficial. Os dados referentes ao ano de 1914 auferem que mais de 70,0% das
famílias judias (HOJDA, 1995: 82) viviam do comércio, integrando-se às cidades
polonesas, caindo para 34,0% em vinte anos, levando quase a totalidade dos judeus à
miséria. A exigência do conhecimento do idioma polonês escrito aos judeus artesãos
impedia-os de exercer a profissão.
Essa polarização é recorrente na história, porém, com a queda do Império Russo, a
Europa Ocidental e a Oriental viviam dilemas econômicos, recheados pelo nacionalismo. O
conceito que valorizava o espaço de nascimento e moradia, também, infiltrou-se entre os
judeus, abrindo uma fenda na comunidade entre os ideais sionistas80 e os socialistas.
Desse modo, a fase de convivência e absorção do judeu como parte integrante da
sociedade local, chamada de emancipação, abriu espaço às mulheres para participarem de
várias atividades econômicas, indo para dentro das escolas e conquistando lugar entre os
letrados. Quebrou-se o estigma de que a mulher não tinha condições intelectuais de
aprendizado, e muitas marcaram a história, a filosofia e a literatura, mudando os
paradigmas comportamentais, como nos lembram Hannah Arendt e Marie Curie.
As mudanças de mentalidade e os movimentos sociais penetraram nas comunidades
judaicas da Europa e Varsóvia que já se consagravam pela densidade populacional judaica,
assistiam a esses movimentos.
A violência contra o povo judeu havia iniciado e os ataques à população (pogroms),
expulsão dos empregos, de suas casas e perda de posses tornaram-se práticas comuns. Em
guetos ficaram confinados (bairros fechados e controlados, em condições de miséria
humana). Em circunstâncias mínimas para garantir a saúde física, sobreviveram à falta de
água, aquecimento, alimentação e medicamentos. Sem atividade ou possibilidade de
produção econômica ao menos para a subsistência, e sem encontrar no horizonte uma
esperança de liberdade, a agonia da dignidade maculava a sanidade mental. Os
acontecimentos geraram transformações que a guerra terminou por arrancar pessoas e, não
raro, famílias desta existência.
O momento era de fugas e esconderijos para zonas rurais ou onde fosse possível,
pois, na maioria dos países potencialmente receptores de imigrantes, já, imperava o sistema
de cotas e os judeus não estavam na lista dos preferenciais. Os destituídos estavam
obrigados a depender das entidades assistenciais, ou seguir, intermináveis caminhadas que
levariam por entre esconderijos a outros países, como na França, Itália, Inglaterra e Países
baixos.
As mulheres, às vezes, como esposas e mães ou filhas exerceram um papel de
destaque na luta pela sobrevivência. Suas articulações, ingerências, estratégias e atuação

80
- Movimento ideológico surgido em finais do século XIX na Europa Ocidental que propunha a criação de
um Estado para o povo judeu.
como porta-vozes do grupo que protegiam, puderam mostrar sua força, inteligência e
competência para resistir e vencer em tempos de guerra, enquanto os homens permaneciam
escondidos, fugindo da possibilidade de serem arrancados dali e submetidos a trabalhos
forçados.

Sefarditas e Orientais
Em países da Europa Ocidental e Oriental e nos banhados pelo Mediterrâneo
existiam, sobretudo, judeus sefarditas, tais como: França, Itália, Turquia, Chipre, Grécia,
Bulgária Tunísia, Líbia, Marrocos, Argélia e Egito, provenientes da Península Ibérica, e
identificados pelo idioma ladino. Próximos, os judeus orientais viviam no mundo árabe:
Palestina, Iraque, Síria, Líbano e Egito falando, em geral, o idioma árabe. O grupo sefardita
representava no século XII, 90,0% da população judaica mundial, caindo em 1700 para
50,0%, como conseqüência de emigrações forçadas, ficando reduzida a 10,0% em 1930.81
No Oriente Médio, de modo geral, os judeus concentraram-se nas grandes cidades,
pois contavam com o apoio dos califas, no endosso às oportunidades de estudos e ao
exercício de cargos de confiança, como apontam os censos demográficos do Professor
Hayim Cohen (LEFTEL, 1997: 49). No Egito, o composto cultural de judeus:sefarditas,
orientais e ashkenazitas, gerou um espírito cosmopolita ao conjugar o Ocidente e o Oriente.
A relação entre os judeus sefarditas que emigraram para o Oriente e se defrontaram
com uma comunidade judaica local seguiu: “(...) três cursos distintos: assimilação total aos
autóctones, preservação completa ou parcial da cultura dos exilados e a influência direta e
recíproca entre os dois grupos” (BEN AMI, 2003: 35), que Ianni (2000: 16 e 202) viria a

intitular de transculturação. Essa linguagem moderna traz em si a constatação da revolução


permanente, ao não negar a permanência ou a reiteração da identidade, seja individual ou da
comunidade. Ianni, ainda, enfatiza que são várias as formas que podem configurar os
movimentos de combinações, soltando as desamarras que as análises sociológicas e
ideológicas impõem ao pré-definirem “o que veio, o que deve ter vindo e como deverá vir a
ser”.

81
SEPHARADIC POPULATION FIGURES THOUGH HISTORY – rufina@netactire.co.za
A comunidade sefardita vai caracterizar-se no Oriente Médio, pela manutenção da
cultura e tradições da origem e pela tendência mundial e cíclica entre integração e
secularização ou o forte apego religioso.
Os sefarditas como os orientais valorizavam a religião e primavam pela educação
religiosa aos filhos, que começava antes mesmo da escola regular. Os meninos eram
encaminhados ao “Kutab” (LEFTEL, 1997: 26), (quarto para estudos, equivalente ao
“chedder” entre os ashkenazitas), dirigido às crianças do sexo masculino e sobretudo, aos
mais abastados que poderiam sustentar os filhos em dedicação total aos estudos, por longos
períodos. No estágio escolar seguinte, os demais ingressavam nas escolas laicas.
Já, no início do século XX, a “Alliance Israélite Universelle” oferecia espaço aos
judeus com a uma educação ocidental, era a possibilidade do aprendizado de idiomas, como
o francês, o inglês ou italiano, habilitando-os ao mercado de trabalho. Era uma organização
internacional de origem francesa que acreditava numa tendência espiritual nova, mais
aberta (LEFTEL, 1997: 54), e de forte interesse cultural.
A difusão cultural possibilitou que, nas primeiras décadas do século XX, as cidades
cosmopolitas do Oriente Médio estivessem misturando os vários idiomas, utilizando o
francês em casa, o árabe com os criados e o inglês nas melhores escolas e ainda, não raro,
encontravam interlocutores armênios, turcos e iranianos.82 Assim, os judeus orientais eram
percebidos como integrados à comunidade local, que era tolerante ao exercício da
religiosidade, a população era agregada, não havia grande separação entre judeus e outros.
A partilha da Palestina, determinada pela ONU, intensificou nos países árabes
posturas nacionalistas. Em 1948, no Egito, onde vivia a maior comunidade judaica do
Oriente Médio, responsável pelo incremento comercial, industrial e bancário, fazendo parte
dos grupos que alavancaram a economia do país, inclusive, em cargos político-
administrativo, Senado e Câmara dos Deputados. Alguns, “chegaram a manter ligações
próximas com a aristocracia egípcia muçulmana, e os mais pobres, de modo geral vindos
das áreas rurais logo se identificaram com a proposta israelense, para onde buscaram
imigrar” (DECOL, 1999: 182), recorrendo a subterfúgios dados os impedimentos impostos
pela Liga Árabe.
Os sefarditas distinguiram-se dos outros dois grupos culturais significativos para
este estudo, por contar com maior participação efetiva feminina nas sinagogas e serviços
82
REVISTA MORASHÁ - SETEMBRO, 1995, P.51
religiosos. As moças aos 12 anos, também, faziam sua iniciação religiosa e apresentavam-
se oficialmente à comunidade. A liturgia sefardita contava com canto de coros mistos que
permeava todo o serviço religioso, num diálogo em que se alternavam fiéis e coro. Incensos
eram usados e dos salmos eram frisadas as entrelinhas compostas, permeando de
simbologias o universo místico da maioria das mulheres sefarditas. Esse grupo cultural
abriu espaço para a participação feminina nos estudos religiosos, trazendo a
institucionalização do “Bat-mitzva” (festa da maioridade feminina) no Brasil.
As mulheres orientais permaneceram em suas casas concentradas no grupo familiar
feminino e suas várias gerações que se desdobravam em afazeres femininos como a
educação dos filhos, a cozinha, os trabalhos manuais e artesanais. No grupo, expressavam-
se livremente os sentimentos, mas, mantidos numa atmosfera hermética do universo
feminino. As casadas, mães, avós e tias eram as interlocutoras desse universo para o mundo
masculino e público. A literatura e a música eram as aptidões diferenciadas e aceitas dentre
as práticas permitidas às bem-educadas, às recatadas moças de olhar baixo preparadas para
o casamento indicado e acertado entre as famílias.

Novos Horizontes
O extermínio de 6.000.000 de judeus pelo Nacional-Socialismo Alemão, mais de
um terço de sua população mundial (DELLA PERGOLA, 1986), resultou em grande
número de sobreviventes, desalojados, refugiados de uma Europa destruída e sem destino.
Na busca por alternativas de sobrevivência, imigraram legalmente para o Brasil e outros
países, estimulados pelas múltiplas possibilidades que essas economias, em expansão,
poderiam oferecer.
Do grupo imigrante, as mulheres judias, provenientes de vários países, onde
vivenciaram circunstâncias hostis ao exercício da religião e das tradições judaicas, ao
imigrarem encontraram no sudeste brasileiro, um período de crescimento demográfico e
econômico, circunstâncias favoráveis às iniciativas profissionais.
A maioria dos imigrantes de São Paulo era formada de italianos, seguida de
portugueses e espanhóis e, em menor escala, japoneses, sírios, libaneses, poloneses, judeus,
armênios e alemães. A cidade também contava com um movimento migratório de outras
regiões brasileiras, criando tons diversos ao sotaque paulista. Essa multiplicidade étnica
modificou o tecido sociocultural, compondo uma nova urbanidade.
O censo de 1950 apontava para a cidade de São Paulo os números de 2.198.096
habitantes, demonstrando a multiplicação de sua população em relação a 1,32 milhão de
habitantes 1940 (CARIGNATO, 2002: 94-95). Este crescimento populacional é fruto de
movimentos migratórios que, ao final de 1959 já somava mais 700.000 (LESSER, 2000:
26), novos imigrantes.
Os dados da tabela mostram o número total de imigrantes na cidade de São Paulo no
período entre 1945 e 1956.

TABELA - Total de imigrantes por ano e segundo o sexo feminino


Anos Números Mulheres
1945 3 230 1 232
1946 13 039 4 592
1947 18 753 7 843
1948 21 568 10 077
1949 23 844 9 925
1950 35 492 12 980
1951 62 594 *
1952 88 150 *
1953 80 242 *
1954 72 248 28 332
1955 55 166 24 136
1956 44 806 19 762

FONTES: Departamento Nacional de Imigração e Instituto Nacional de Imigração e Colonização.


Dados da Tabela extraídos de: Anuário estatístico do Brasil 1949. Rio de Janeiro: IBGE, v. 10, 1950.
Anuário estatístico do Brasil 1952. Rio de Janeiro:IBGE, v. 13, 1953. Anuário estatístico do Brasil 1955.
Rio de Janeiro:IBGE, v. 16, 1955. Anuário estatístico do Brasil 1956. Rio de Janeiro: IBGE, v. 17, 1956.
Anuário estatístico do Brasil 1957. Rio de Janeiro: IBGE, v. 18, 1957. Anuário estatístico do Brasil 1960.
Rio de Janeiro: IBGE, v. 21. 1960. * Dados não encontrados

Destaques da Pesquisa
As judias que se instalaram em São Paulo, originárias da Europa Central e Oriental,
eram ashkenazitas; as de origem Ibérica, sefarditas de países da Europa Ocidental e Oriental
e das terras do Mediterrâneo e, o terceiro grupo, o oriental, proveniente dos países árabes,
entre os quais, Líbano, Síria, Egito e Iraque. Este estudo reflete uma participação maior de
imigrantes de origem ashkenazita - 17 participantes - garantindo 10%, proporcionalidade
dos demais grupos culturais, garantindo a significância.
A partir de 1945, os efeitos da política discriminatória contra os judeus tornaram-se
mais flexíveis, mas, ainda os vistos eram outorgados caso a caso. As solicitações de entrada
eram analisadas pela diplomacia brasileira, ponderando-se sobre a qualificação do
solicitante, apesar da manutenção da exigência da “carta de chamada” (documento de
convite ao estrangeiro com especialização profissional de interesse do residente e desde que
fosse para o exercício da atividade profissional junto e sob responsabilidade deste).
Nem sempre donos de seu destino, os emigrantes vagaram entre acasos e
fatalidades. No entanto, os diversos deslocamentos impostos aos judeus ao longo de sua
história, cunharam características na estrutura comunitária que favoreceram uma rápida
acomodação aos novos sistemas econômicos, culturais e políticos. A estruturação do
trabalho, em condições de escassez de recursos, cristalizou moldes baseados em
organizações familiares, perpetuando um comportamento dinâmico de inserção contra a
marginalização.
Num contexto de crescimento, rapidamente, as imigrantes ousaram agir. Buscaram
soluções econômicas para resolver a questão premente da sobrevivência, sempre
considerando a família a razão da mobilização e em contrapartida, contando com ela. Entre
as entrevistadas, 50,0% confirmam ter iniciado seu negócio com envolvimento de
familiares e ou parentes. As demais deixam brechas interpretativas em seus discursos sobre
a diminuta valorização da consangüinidade, ampliando o sentimento de família para além
dessa fronteira, passando a absorver os companheiros ou irmãos de viagem (schifsbrider)
como gesto de solidariedade, amalgamado a família. Salientamos ainda a força de
identificação com a origem, pois em mais de 40,0% o apoio veio de fora do grupo étnico.

“Na casa de meu tio, tínhamos almoços com os “irmãos de viagem”83, a família que
pudemos reconstruir.....”84.
83
A expressão “irmãos de navio” refere-se aos companheiros de travessia oceânica, consolidada em relações
familiares, independentes de laços de consangüinidade.
84
Luiza ,aos 22 anos, casada, empreendeu uma produção artesanal de roupas para os filhos seus e de
amigas. Relato de Luiza a Marie Felice Weinberg ou MFW em São Paulo, 2000.
Este nome, como os que se seguem são fictícios, de modo a preservar a identidade das entrevistadas, em
acordo a exigência das mesmas. Os textos das entrevistas encontram-se na dissertação de mestrado na área
de Língua Hebraica, Literatura e Culturas Judaicas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, defendida em 03/09/2004, sob o título: “Histórias Recontadas: Judias
“Eram aqueles que chamamos de família que trabalhavam, e a maioria morava junta. No
começo, as compras fazíamos para todos, sem divisão.”85

“Eu e as outras companheiras, a “nossa”família, sempre que tínhamos tempo livre


ajudávamos na impressão dos textos clandestinos. Tudo era nosso e para nós”86.

Enquanto os imigrantes criavam uma nova São Paulo, é interessante constatar que,
não tinham percebido que estavam fazendo parte de uma importante transformação
socioeconômica na cidade. Mas esta trajetória foi fruto de muito trabalho e não raro sem
discriminação. “Ser imigrante é não ter nada a perder”, definiu uma das entrevistadas87 e
sem a preocupação com a imagem e seus papéis sociais, sentiam-se livres para tentar fazer
o que fosse possível. Assim, fizeram self-made-men (IANNI, 1965: 36), ou melhor, self-
made-women, como este trabalho vem constatando.
Para esses indivíduos, em sua maioria, as profissões exercidas eram relacionadas às
funções desempenhadas pela família em sua terra de origem, atividades próprias do
proletariado-urbano como: alfaiates, sapateiros, costureiras,. Outro papel importante e que
já vinha sendo desempenhado pelos imigrantes de anos anteriores, era o “Klinteltichik”,
mascate ou prestamista, que era adequado aos recém-chegados que necessitavam fazer sua
rede de conhecimentos, partindo dos clientes de seus fornecedores.
Neste espaço, reconstruiu-se a família que passou a ser composta, também, dos
irmãos de navio de travessia do oceano em direção ao Novo Continente. A convivência
com os pares, aqueles que se percebem, tendo os mesmos objetivos, transforma o individual
no projeto de todos. Cada um começa a identificar-se com o outro e com os anseios,
complementando solidariamente as atividades e fortalecendo o grupo (VELHO, 1980: 33).
Essa construção social foi tecida, mesmo que, inconscientemente, pelos novos imigrantes
que elaboraram, na geografia da cidade, o projeto de inserção econômica, ao mesmo tempo
em que consolidavam sua identidade.

Imigrantes Empresárias em São Paulo (1945-1956)


85
”.
Amelie, 36, viúva e com filhos, começou a fábrica de lingerie fazendo soutiens sob medida. Relato a MFW
em SP, 2000.
86
Ruth, 34, casada, com filhos, ativista política, trabalhou no comércio de roupas. Relato a MFW em SP,
2000.
87
Dália, 27, casada, mas não teve filhos. Vendeu uma Bíblia relíquia para comprar a primeira máquina de
costura da fábrica de calças e camisas. Relato a MFW em SP, 2000.
A reconstrução individual do elo de continuidade judaica no novo mundo ancorou-
se baseada na comunhão dos destinos e foi forjada na nova cidade, São Paulo, local onde os
valores puderam ser refeitos.
No início do processo de integração ao novo país e todas as dificuldades inerentes a
uma emigração forçada, o Brasil foi uma possibilidade favorável. A segurança física e o
cenário de crescimento econômico, tão divulgados entre os refugiados foram fatores
estimulantes, como podemos perceber no relato de Dália, uma ashkenazita: “Meu marido
fez um curso profissionalizante de caldeiras e turbinas, porque falaram que aqui tinha
grandes oportunidades e muita água, digo, litoral”.
O grupo cultural ashkenazita, ao imigrar, apresentava uma grande diferença entre os
demais grupos culturais. Diante da impossibilidade de portarem seus bens, valorizaram o
grande oceano que os separava do mundo das perseguições, mortes, humilhações e guerra,
para um mundo de esperança de uma vida digna, mesmo sem ter em suas mãos algo no que
apostar.
As mudanças que irão acontecer nos anos seguintes serão várias e o conflito sobre o
modo de vida judaico perpassará por várias etapas, e uma delas foi o abandono do idioma
ídiche, substituído pelo português como idioma do cotidiano. Essa alteração religiosa e
cultural, também, teve como ingrediente os outros grupos culturais judaicos, pois a partir da
década de 80 do século XX, uma nova fase de profusão dos costumes sefarditas está em
expansão.
Ao emigrar, os imigrantes do Oriente Médio, diferenciaram-se dos ashkenazitas, por
trazerem bens materiais e idéias não menos arrojadas que serviram de insumos na
implantação de uma economia de sobrevivência das famílias. Trouxeram em sua bagagem o
“capital” intelectual que se desdobrou nas iniciativas que ajudaram a desenhar a cidade de
São Paulo. “Além da coleção de Chamsa” (figura de mão como símbolo contra o mau-
olhado), ainda trouxemos o caderno de receitas de doces, que foi a base da minha
chocolataria artesanal, da qual sobrevivo até hoje.”88

88
Claudete, 28, casada e com filhos, faz e vende, desde então, doces artesanais. Relato a MFW em SP,
2000.
Conta uma das sefarditas entrevistadas, ou ainda, na declaração de uma de origem
oriental: “Tínhamos um plano arrojado que era baseado no interesse pelas pedras
brasileiras, já que nossa família trabalhava com ourivesaria, há varias ‘gerações.”89
A participação das três mulheres de origem sefardita e duas orientais, que aceitaram
contar sobre a luta pela sobrevivência é o resultado participativo possível de entrevistadas
de uma estrutura familiar judaica, acentuadamente, mais patriarcal e conservadora, se,
comparada com as mulheres oriundas da Europa Central e Oriental.
Acentua-se, ainda, como conseqüência da divisão dos papéis as questões sobre a
propriedade do capital, do prover e representar a família, tidas como atribuições
masculinas. Mesmo tendo como referência de origem, as mães das entrevistadas, que em
41,0% dos casos, já trabalhavam fora de casa com remuneração, podendo servir de
modelo para as iniciativas e alternativas de rentabilidade, porém, sempre relacionadas as
atividades ditas femininas. “Eu dava aula de órgão, que aprendi com as freiras italianas”,
comentário da sefardita Isabel.
Dentre comentários das ashkenazitas, podemos destacar a fala de Sofia: “As
mulheres ajudavam nas colheitas de morango, e as mais fracas cuidavam dos idosos e
doentes. Eram enfermeira.”
Regina relata: “Éramos feirantes de meias, e minha irmã, que era linda, trabalhava
como balconista”. NItza conta que: “Tínhamos um negócio de mulheres há muitas
gerações, fazíamos corsette e soutien e cintas.”
No universo pesquisado, houve grande resistência das entrevistadas em se
identificarem como empreendedoras, apesar das iniciativas econômicas realizadas.
Assim, cuidados semânticos foram necessários para o entendimento de palavras que não
raro podem ser tomadas como sinônimas: “trabalhar” e “ajudar”, característica do
patriarcalismo, cuja ótica atrela a identidade da mulher a seu marido.
Luiza acrescenta: “Eu comecei a costurar, não era trabalho. Depois fiz para as
amigas, e foi virando uma pequena produção, e o meu marido cuidava disso, eu só dava as
idéias. Deu certo, e assim é.”
Consideramos empresárias aquelas que arriscaram seu próprio capital investindo ou
transformando-o em produtos e serviços diversos (SANDRONI, 1987: 138-139), pelo uso

89
Margareth, 32, viúva com filhos projeto familiar de joalheria, hoje de envergadura internacional. Relato a
MFW em SP, 2000
de atributos próprios, independentes da participação de outros nas distintas fases do
processo.
Miriam diz: “Eu comecei sozinha para pagar a feira. Quando começou a dar certo,
é que meu marido largou seu emprego para me ajudar com as vendas.”
Para a ashkenazita Sofia, “Conhecemos um austríaco muito necessitado vendendo
um lote de couro de muito boa qualidade. Eu não deixei meu marido revender tudo, e
resolvi inventar como o meu pai fazia. Devo a ele a nossa fábrica de bolsas e carteiras.”.
A oriental Juliette declara:

Comecei vendendo meus próprios tapetes. Depois passei a importar através de contatos
com amigos de lá e com a ajuda do meu filho, que fazia as viagens. Assim que a situação
do meu marido se estabilizou, ele pediu que eu parasse com o negócio. Vendi o negócio
para um conterrâneo, mas continuo com uma participação. Até hoje eu falo para o
meu marido que recebo dinheiro do meu filho para as minhas bobagens pessoais.

Há o relato de Linda, ashkenazita, que utiliza seu capital de conhecimento e de


risco. Ela trabalhou para o tio, por ter feito um curso profissionalizante de contabilidade.
Neste trabalho teve a oportunidade de negociar um lote de tecido que seria descartado, por
estar fora das especificações, e com ele costurou uma série de colchas em matelassê. Este
foi o embrião de seu negócio, que hoje exporta colchas e roupa de cama.
Há ainda o caso de Esmeralda, também ashkenazita, após a morte do marido, passou
a trabalhar como sacoleira em repartições públicas no Centro de São Paulo.
Ainda de Ruth, cujo marido foi perseguido político na Europa e no Brasil, por ser
socialista. Adquiriu capital para montar a sua loja, vendendo livros e quadros originais, que
são frutos do relacionamento que mantém até os dias de hoje com figuras de destaque no
universo cultural. A loja de roupas na Rua Rui Barbosa servia, inclusive, para acobertar as
atividades políticas de seu marido, pois no fundo da casa ficava a tipografia, que imprimia o
jornal ídiche.
Os empreendimentos na área de malharia e confecção representam 45 e 36,0% e
estão no ramo do comércio. Uma das pesquisadas monta uma joalheria baseada na
experiência familiar no ramo de ourivesaria. O caso do frigorífico repete esse mesmo
padrão:
O relato da ashkenazita Zélia cita que: “O que trouxemos de mais importante foi a
faca de meu sogro que era shochet90. A partir dos conhecimentos que aprendi, observando
meu pai que era fazendeiro e meu sogro em suas atividades, é que decidi tentar o
açougue e depois ampliamos para um açougue convencional”
Diante do cenário pesquisado, 17 mulheres chegaram a São Paulo casadas e, das 22
entrevistadas, apenas duas não tiveram filhos. No período do início de seu empreendimento,
18 já eram mães, destas, 11, ainda tinham filhos em idade pré-escolar, para tanto tiveram de
contar com a participação do marido, parentes e ajudante contratada nas tarefas domésticas.
No início do empreendimento, 45,0% das mulheres trabalhavam em casa e podiam
administrar o próprio lar, era imperativo contar com apoio logístico para as tarefas
domésticas. É importante ressaltar que, quatro maridos, sendo eles ashkenazitas, dentre os
casos analisados, dividiam a responsabilidade dessas tarefas, dando suporte para que elas
pudessem dar andamento às atividades do empreendimento. Entretanto, isto nos remete ao
declínio do número de filhos por família, entre os três grupos culturais, embora houvesse
diferenças numéricas nas famílias de origem, possibilitando mais rápido às mulheres uma
imediata mudança de seu ciclo vital e, estando os filhos em idade escolar, abriram-lhes um
espaço de tempo produtivamente econômico.
O trabalho doméstico sendo entendido como um ciclo que cada dia se repete, as
tarefas diárias da casa deixam de ser valorizadas. Ao não serem reconhecidas como trabalho
e só notadas como importantes, quando não são feitas, isso pode explicar o interesse
demonstrado pelas mulheres, em geral, pelo trabalho não-doméstico. No entanto, embora
elas mesmas tenham se tornado empresárias, escorregavam nas respostas, apresentando
valores de sentido afinado com um padrão patriarcal:
Margareth, a oriental, relata que: “Algumas trabalhavam, mas era sinal de que o
homem não podia sustentar”. Esse comentário, reforça o patriarcado introjetado.
Não muito diferentes são os comentários entre as ashkenazitas, que ainda
minimizavam os feitos daquelas que estavam envolvidas com afazeres fora de casa:
Miriam considera que: “Não eram obrigadas, as casadas podiam ajudar os
maridos, as solteiras trabalhavam se quisessem”.

90
Shochet é aquele que aplica o abate de animais e aves (shechitá), prescrito pelas leis dietéticas para que a
carne seja considerada “kosher” (apta ao consumo). UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e
Tradições, p. 241.
As mulheres entrevistadas foram as que, efetivamente, trabalharam e manifestam
opiniões compatíveis com o grupo familiar. Para garantir a possibilidade de exercer
atividades profissionais, preservando o código de conduta estabelecido dentro da família e
comunidade, a maioria delas criou esquemas, nos quais o “respeito” ao marido e pai
(autoridade masculina) fosse preservado.
“Tem que saber levar. Há artifícios como a subserviência” comenta uma
ashkenazita Luiza: “No meu caso, eu não tive opção, mas eu fazia isso escondido dos
amigos do meu marido”.91
Essas mulheres mesmo sendo responsáveis pela estabilidade econômico-familiar
submetem-se ao código patriarcal que receberam como modelo, exemplificado pela
autoridade do irmão mais velho, de família de origem oriental:
Segundo Margareth: “Não era bonito, mas no meu caso, eu estava cumprindo um
plano familiar. O meu irmão estava na Suíça montando a rede de lojas na Europa para as
jóias que eu aqui fabricaria”.
Pelo depoimento acima, não se surpreende que elas se recusem a serem
reconhecidas como empresárias, banalizando e minimizando suas iniciativas
empreendedoras e entregando esse mérito a seus maridos.
Samantha afirma que: “A mulher, que tem sucesso, não pode perder a humildade,
principalmente, com o marido. Guarde este lema!.”
Dentre as entrevistadas, Isabel, uma sefardita, fez questão de contar a respeito do
êxito de seu novo empreendimento. O lançamento do livro de culinária, fruto de seu
sucesso nas festas ao longo de sua história, que só poderia coroar a “Terceira Idade”.
Nem todas as entrevistadas, tiveram êxito nas atividades econômicas que
empreenderam, porém, de acordo com os códigos culturais, o efeito nos estudos e a
ascensão econômica dos filhos refletem a medida de sucesso valorizada pelo grupo
estudado.
Para as ashkenazitas como Nitza: “Essa união das pessoas que passaram pelo pior
é o que nos deu força para construir algo melhor para nossos filhos”. Ainda, para
Esmeralda: “O fato de ser imigrante permitia certas ousadias, ao mesmo tempo em que se
abria espaço para novas amizades e contatos.”

91
Relato de Claudete a MFW em SP, 2000. Op. cit. p.15.
Esta visão é compartilhada pela entrevistada Juliette, de origem oriental: “Tinha o
espírito de não ter nada a perder.”
Por ser um grupo étnico que valoriza o êxito econômico, há um comportamento
tácito de também buscar soluções independentes da comunidade judaica. Este ponto é
reforçado quando analisamos a rede de relacionamentos apontada pelas entrevistadas para a
implementação do negócio. Dentro do universo pesquisado, a metade dos que participaram
dos empreendimentos, como clientes ou fornecedores, não pertenciam à comunidade
judaica, o que pode demonstrar, também, a iniciativa de ampliar ações, para além das
fronteiras do grupo.
Para Amelie: “A perspectiva de transformar o pequeno negócio iniciado na França
numa fábrica de lingerie que daria sustento a toda família.” Apesar de raramente assumir
o papel de empresária e, muitas vezes, dividir seu êxito com o marido e familiares ou com a
própria sorte, ainda menciona: “A gente precisa ter sorte na vida para tudo.”
Duas entrevistadas ashkenazitas que vivenciaram experiências em países
diferenciados, como na Suécia e Inglaterra, cidades cosmopolitas que valorizam uma
posição feminina de maior liberdade:
Rosa afirma: “A independência é o primeiro passo para a conquista da própria
identidade.” Assim, Samantha considera que: “Para a mulher a escola e o trabalho são
sinônimos de liberdade.”
Na declaração da entrevistada sefardita, Claudete: “Se não fosse a minha cara-de-
pau de entrar nos prédios, eu não teria chegado a lugar nenhum e nós teríamos
passado fome.”, e a oriental Juliette afirma que: “Foi uma questão de visualizar as
oportunidades e uni-las aos relacionamentos.”. Ambas exaltam sua contribuição na
liderança da solução financeira.
A pesquisa buscou avaliar as percepções das entrevistadas, sobre suas contribuições
à cidade de São Paulo por meio de suas iniciativas: Claudette, nascida em Alexandria,
declara: “Aqui não havia trufas de chocolate, só quando alguém recebia presentes de fora.
Passei pela fase onde o industrializado era o mais valorizado, e agora de novo o artesanal
é o bom. Eu sofri, mas sobrevivi.”92

92
Relato de Claudette a MFW em SP, 2000. Op.cit. p. 15.
Seguindo a mesma linha, Margareth que comercializa jóias com pedras brasileiras
em São Paulo e, em outras cidades do mundo, acredita ter influenciado a valorização da
beleza destas pedras, inclusive entre as brasileiras.
O caso que interferiu no padrão estético de decoração de interiores, Juliette conta
que, muito antes dos europeus, os paulistanos já tinham acesso aos tapetes vulgarmente
conhecidos como “persas”.
Sofia, também da Europa, a dona da loja de artigos de couro acredita ter elevado os
produtos paulistanos à categoria européia: “Os produtos de couro, eram simples e de
péssimo acabamento. A minha fábrica trouxe um padrão europeu que transformou a cara
da cidade antiga para a de uma metrópole.”93
A mesma auto-percepção tem Myetta, a primeira e maior fabricante de manteaux do
Brasil, em seu tempo.
De origem alemã, Nitza cita que a empresa contribuiu para a mudança da moda
íntima: “Com o tempo, fui modificando os moldes de minha coleção. As peças foram
ficando cheias de rendas, decotes, bicos e bojo, mas não tanto quanto hoje!”94
Em um período de crescimento da cidade de São Paulo e de novas oportunidades no
mercado de trabalho às mulheres, temos o caso de Samantha, empresária de origem
polonesa, educada na Inglaterra, que considera ter implantado a moda para executivas,
usando a tecnologia de novos tecidos que se mantinham impecáveis, durante a jornada. “Os
modelos de soutien que eu trouxe da França eram ultramodernos, eles modelavam. Não
havia nada parecido aqui”, declara Regina que aprendeu a profissão com sua tia
ashkenazita.

Considerações finais
Sendo o período estudado período econômico favorável face às altas taxas de
crescimento, o mercado produtivo reagiu, criando uma forte demanda. As empresas
crescendo e tornando-se complexas, abriam espaço para a contratação de mão-de-obra
administrativa. No entanto, o papel central familiar continua sendo adequadamente exercido
nas pequenas e médias empresas (PISCITELLI, 1999:13).

93
Sofia, 26, casada com filhos, aproveitou sobras de couro para aplicar conhecimentos técnicos absorvidos
pela observação da atividade profissional do pai, na origem. Relato a MFW em SP, 2000.
94
Nitza, 36, casada com filhos criou uma marca de roupa íntima. Relato a MFW em SP, 2000.
Neste contexto, as imigrantes puderam produzir recursos para resgatar o padrão
familiar de consumo, num contexto social de aumento geral da participação feminina no
mercado de trabalho. Essas atividades eram em sua maioria habilidades desenvolvidas no
ambiente familiar, o que “borra” (BRUSCHINI, 1994: 194) a percepção sobre a capacidade
técnica e o dom, permitindo uma minimização do caráter profissional.
Para os casos estudados, estas mulheres tinham um capital cultural que as
diferenciava e as colocava afinadas com a camada social dominante. Eram preponderantes
nas decisões do processo produtivo, pois criavam e reproduziam os gostos e padrões de
consumo, de acordo com as camadas mais abastadas, consolidando seu papel de mentoras,
ainda que em atividades fortemente relacionadas ao universo feminino.
Diante das conquistas relativas, as mulheres e os familiares começaram a participar
transformando rapidamente em “nosso” o resultado do trabalho, sem caracterizar o dinheiro
ganho como de propriedade da empreendedora. De acordo com Scott (SCOTT, 1990: 86),
constatamos, que as mulheres ainda, necessitam da aprovação dos homens em suas
conquistas comerciais e, assim, mantêm a subordinação à competência do masculino.
Assim, envolvidas com a imagem idealizada de suas funções femininas, abriram
mão do poder e da autonomia financeira para serem reconhecidas em seu papel “maior”:
encaminhar os filhos para serem motivos de orgulho familiar; administrar o orçamento e o
lar, exemplarmente, sem, contudo, deixar de ser a esposa ideal. Neste sentido, este trabalho
mostrou-se diferente de outros estudos sobre empresários, como o de Piscitelli (1999: 97),
que afirma ter encontrado “um tom neutro dentro das atividades de descendência”. Ao abrir
mão, da autoria de suas iniciativas, a maioria permanece omitindo atitudes relativas à
competência do universo masculino.
No entanto, os papéis passaram por mudanças que podem ser constatadas entre as
descendentes, que mesmo não tendo sido envolvidas no negócio familiar, são graduadas e
exercem suas profissões. Fato relevante para os imigrantes, em geral, que apostaram numa
ascensão social, também, via projeto educacional e profissional dos filhos (OSMAN, 1997:
27), exceção feita às filhas de famílias religiosas que se dedicam à vida doméstica. Reforça-
se aí uma característica destas empreendedoras que não projetaram durabilidade de seus
negócios, privilegiando a ambição e vocação de seus descendentes. Esse desdobramento
pode ser justificado por uma percepção de atuação econômica circunstancial e sem
significado.
Surpreendeu-nos, em especial, a banalização demonstrada, nas histórias recontadas
sobre as iniciativas e conquistas alcançadas. E diante de um questionamento mais profundo
a questão da preservação dos segredos sobre as iniciativas femininas foi reafirmada e
apresentada como uma articulação para a manutenção da harmonia familiar, pois esta, ainda
permanece alicerçada no código da família patriarcal-judaica que faz uma clara referência à
divisão de papéis de gênero.
Pelos relatos, verificamos que a diferenciação sobre os graus de conservação das
relações patriarcais judaicas contrapõe-se às personalidades marcantes, que ousaram e com
muita coragem e energia, assumiram riscos. Da ação educativo-idiomática passando pelos
ajustamentos relativos aos mecanismos econômicos, as regras sociais, entre outros
aprendizados. As mulheres teceram, dia a dia a rotina familiar reafirmando o valor da
família. Dessa maneira, mantêm suas iniciativas restritas ao âmbito privado, eternizando a
divisão de papéis de gênero. Diante da densa neblina, que encobre a divisão entre o espaço
público e privado, as histórias permanecem como “segredos nossos”.
A singularidade das histórias que compõem este trabalho dá significado ao reexame
do ângulo da visão e à possibilidade dos ecos na sociedade patriarcal judaica, grifada pela
pequena participação numérica, mas significativa, das vozes vindas entre as sefarditas e
orientais. Mais resistentes às mudanças, ao diferente, tornam inconcebíveis certas
conquistas, mantendo com eufemismos os sorrisos e olhares condescendentes.
A pesquisa pretendeu reler os velhos momentos, embora pareçam novos ou, de fato,
momentos de inflexão que cada fala tem, ao perturbar o movimento previsível dos grupos
culturais judaicos. Desse modo, apoiados, nesta questão, apresentamos algumas nuances
que percorreram o cotidiano das entrevistadas, trazendo a necessidade de reconhecer o
contexto e as possibilidades não somente de ser, mas estar na comunidade. Os resultados
prevalecem na questão de gênero ou sexo, neutralizando outras tantas variáveis, alinhadas
aqui.

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CAPA: o jeito luterano de atuar com os pequenos agricultores no sul do Brasil95

Tarcísio Vanderlinde96

RESUMO
A idéia do Capa – Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor – é considerada como o sinal
luterano de se envolver com a questão da terra: voz e presença da IECLB – Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – na realidade agrícola brasileira, marcada
por tanta injustiça na terra. A idéia se identifica com a formulação da identidade da Igreja
Luterana no Brasil e preconiza, juntamente com os pequenos agricultores, num processo de
libertação, a construção de uma “nova paisagem” no meio rural.
PALAVRAS-CHAVE: IECLB, mediação, identidade, pequeno agricultor, Capa.

ABSTRACT
The idea of Capa - Small Farmer Support Center – is considered to be a Lutheran sign of
getting envolved with the land issue: the voice and presence of the IECLB – Evangelical
Church of Lutheran Confession of Brazil – in the Brazilian agricultural reality, marked by
so much injustice on the land issue. The Idea finds its identity with the formulation of the
identity of The Lutheran Church of Brazil and, in a liberation process, it commends, along
with the small farmers, the building of a “new landscape” in the rural areas.
KEYWORDS: IECLB, mediation, identity, small farmer, Capa.

A título de introdução e esclarecimentos

Em número anterior desta revista (VANDERLINDE, 2002a:61-88), desenvolvemos


artigo onde se discutiu o surgimento da IECLB e a emergência do Capa no oeste do Paraná.
O artigo havia se originado de Dissertação de Mestrado e envolveu a temática da agricultura
familiar e formas associativas no campo. Como estudo de caso, a investigação levou em
conta o surgimento e o modus operandi do Capa, com recorte espacial para o núcleo oeste
do Paraná (VANDERLINDE, 2002b). O presente artigo retoma a questão e aprofunda a
discussão no que concerne aos aspectos relacionados à mediação desenvolvida pelas
entidades aqui mencionadas: IECLB e Capa. No que se refere ao surgimento do Capa, a

95
O artigo em pauta emerge de Tese de Doutorado defendida pelo autor, intitulada “Entre dois Reinos: a
inserção luterana entre os pequenos agricultores do sul do Brasil”.
96
Doutor em História pela UFF (Universidade Federal Fluminense). É professor do CCHEL – Centro de
Ciências Humanas, Educação e Letras, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail:
ebenezer@certto.com.br.
discussão leva em conta novas fontes coletadas durante a fase atual da pesquisa e que
culminou em Tese de Doutorado.

Sobre as origens do Capa

O Capa - Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor caracteriza-se como organização


não-governamental ligada à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB.
Juridicamente constitui um departamento da Instituição Sinodal de Assistência Educação e
Cultura – Isaec/Capa, sendo reconhecida como entidade filantrópica.
O XIII Concílio Geral da IECLB, em 1982, tratou do tema “Terra de Deus – Terra
para todos”. No documento final do concílio o Capa é reconhecido como instrumento de
apoio aos objetivos propostos, em sinal de compromisso da Igreja com a continuidade da
proposta original, orientando-se sempre pela própria recomendação do Concílio Geral:
“Todo o processo de conscientização, de sinais de apoio, reivindicações e propostas
concretas deve ser marcado à luz do Evangelho, por um espírito de amor, diálogo e
persistência luterana” (HISTÓRICO DO CAPA, 2003).
A organização objetiva principalmente promover a união dos agricultores familiares,
visando à diversificação da produção e à comercialização, além de desenvolver tecnologias
que preservem o meio ambiente. Visa, igualmente, na sua concepção resgatar a consciência
da função social da terra, como produtora de alimentos sadios e abundantes para o povo,
além de apoiar e lutar pelo desenvolvimento da saúde comunitária.
No ícone que representa o Capa, a cruz que aparece no símbolo da Igreja Luterana
“transforma-se” numa cruz ecológica e lembra uma semente brotando, “ressuscitando”. É
uma cruz viva que pode representar vida. O globo de onde “brota” a “nova cruz” ou uma
“nova semente” assenta-se sobre o ícone de um livro que pode indicar os novos
conhecimentos agroecológicos mediados pelo Capa mas que se adequam também aos
ensinos de Lutero e ao que está escrito na Bíblia. A “nova cruz” do Capa pode ser entendida
como um símbolo de libertação.
Considerando os efeitos da modernização agrícola, a exclusão dos pequenos
agricultores e os efeitos nefastos às vezes provocados pelas migrações destes, o Capa, no
início, foi relacionado a uma “agricultura libertadora”, que poderia viabilizar a permanência
do agricultor em sua pequena propriedade. Ao ressaltar o significado místico da agricultura
libertadora, Hélio Musskopf retrata o contexto que legitima o surgimento da entidade:

Desde os tempos de Abraão, o povo migrava para a ‘terra prometida’, para Canaã. Ainda
hoje, no Brasil, o povo continua migrando, talvez não pelas mesmas razões. O povo do sul
já procurou os Estados do Paraná, do Mato Grosso e Território de Rondônia. Já migrou até
para países vizinhos! Muitos tentaram voltar. Muitos morreram na peregrinação. Alguns se
deram bem. Outros choram saudade da terra natal. Projetos de colonização levaram, e
continuam levando, muitos de um lugar para outro. Desalojados pela construção de
barragens, as pessoas marcham forçadas rumo às novas áreas. O capitalismo selvagem
impõe técnicas e políticas agrícolas que acabam levando pequenos agricultores ao
desespero, à miséria, à venda de suas terras para pagar dívidas acumuladas, à
marginalização rumo às luzes artificiais das cidades ou aos acampamentos às margens das
estradas, senão ao crime. Até quando o povo migrará ‘porque lhe falta o conhecimento’
(Oséias 4.6)?”(MUSSKOPF,1982:66).

A IECLB tem sua história marcada pela trajetória dos pequenos agricultores. No
tempo presente, apesar do êxodo rural, ainda metade dos membros da Igreja vive em áreas
rurais, enquanto que a realidade demográfica brasileira aponta para uma alta concentração
da população em zonas urbanas. O processo de modernização da agricultura no país afetou
profundamente a vida dos agricultores familiares. Uma forte intervenção do Estado através
do crédito subsidiado para a adoção do novo padrão tecnológico, baseado nos insumos
agroquímicos e na mecanização, rompeu a lógica da agricultura familiar, cuja trajetória foi
de uso intensivo de mão-de-obra e diversificação de culturas agrícolas. A mudança de
relações de produção também resultou em novas relações sociais. A lógica do mundo da
colônia, de que quem trabalha progride, passou a não valer mais. Passou a progredir quem
tivesse acesso ao crédito e condições de desenvolver uma agricultura de capital intensivo.97
Nos anos 80 do século passado, os efeitos negativos do modelo de desenvolvimento
da agricultura brasileira eram evidentes. Houve concentração de terra, degradação do meio
ambiente e aumento das diferenças sociais no campo. A colonização das áreas do Centro-
Oeste-Norte do país, proposta pelo governos militares como uma alternativa para a não-
realização da reforma agrária no Sul, revelou-se como um “grande fracasso”. As cidades
cresceram rapidamente, surgindo os grandes cinturões de favelas. O emprego urbano já não
para ter direito ao pão de cada dia, precisa ser revisto em decorrência das profundas mudanças pelas quais a
sociedade está passando. “O rolo compressor da modernidade avança sem se importar muito com os que
vão sendo esmagados, ou seja, aqueles que não encontram mais espaço para viver dignamente a partir dos
frutos de seu trabalho” (CHRISTMANN, 2003:2).
era mais um forte atrativo para o êxodo rural. O Capa emerge nesta circunstância e, desde a
sua fundação, passa a desenvolver iniciativas para auxiliar os agricultores diante do
contexto de exclusão no campo que se foi instalando(HISTÓRICO DO CAPA, 2003: 18-
19).
Além de buscar, juntamente com os agricultores, o “conhecimento que liberta” e
permitir que o agricultor permaneça em sua pequena propriedade, o Capa surge com o
objetivo de empenhar-se em apoiar e estimular o sindicalismo e desenvolver políticas no
sentido de reduzir o êxodo rural, em especial o dos jovens. Segundo Arzemiro Hoffman, o
trabalho desenvolvido pelo Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor, ao longo de sua
existência, vem demonstrando sua eficácia na construção da cidadania no meio rural. A
consulta às fontes indica que os resultados alcançados pela entidade se viabilizam, pela via
técnica e comunitária. Afirma o pastor que "a construção cidadã de pequenos agricultores
exigiu sempre um esforço pedagógico de perceber o lugar vivencial onde o grupo se
encontra (seu hábitat, seus costumes, suas referências...) para, a partir daí, construir
alternativas viáveis para sua sobrevivência econômica e social” (HISTÓRICO DO CAPA,
2000:1)98
É possível concluir que o propósito do Capa, como uma entidade não-governamental,
vincula-se aos interesses da IECLB em relação mediata, porém não exclusiva, com os
evangélico-luteranos.
O Capa, como entidade mediadora da IECLB, envolve-se com a idéia de que é
possível construir uma nova paisagem no meio rural. Uma paisagem que inclua a inserção
responsável do homem sem necessariamente deteriorar o ambiente onde ele está inserido.
Uma tarefa que não é considerada fácil e exige considerável esforço e sabedoria de todos os
envolvidos na empreitada. A idéia parte da constatação de que a revolução verde não
resolveu qualitativamente o problema alimentar, além de deteriorar significativamente o
meio ambiente com a introdução maciça dos chamados agrotóxicos. As conseqüências disto
foram as mais perversas possíveis, fazendo os agricultores abandonarem práticas saudáveis
de uso do solo em busca do lucro rápido. Este pode ser considerado o cenário em que atua o
Capa. Além de estimular a desintoxicação da terra, preocupa-se também em “reeducar” o
agricultor no sentido de não apenas garantir sobrevivência a ele e à sua família, mas
também proporcionar mais saúde a produtores e consumidores. Esta pode ser entendida
como a “nova paisagem” preconizada pelo Capa. Uma paisagem em que se possibilita a
reconstrução de um ambiente saudável para todos.
A origem do Capa está diretamente ligada à história da IECLB cuja trajetória
acompanha o mesmo movimento que trouxe os imigrantes alemães para as "colônias
velhas", ou seja, as primeiras regiões colonizadas a partir de 1824, na região do Vale dos
Sinos. Com a expansão da fronteira agrícola e o deslocamento de colonos para outras
regiões do Estado/País, a IECLB, também foi ampliando sua área de intervenção.
Primeiramente em direção às "novas colônias" e, mais tarde, para o noroeste do Rio Grande
do Sul e oeste de Santa Catarina, para onde foram "empurrados" os descendentes dos
colonos alemães. Os latifúndios instalados nas terras planas do sul se impunham como uma
barreira intransponível a impedir que a nova corrente migratória para lá se dirigisse.
Na conferência dos pastores regionais realizada nos dias 17 e 18 de maio de 1978, é
criado o Capa, iniciando as suas atividades em 15 de junho de 1979, na cidade de Santa
Rosa/RS, atuando numa área que inicialmente abrangia 112 municípios do noroeste do Rio
Grande do Sul e oeste de Santa Catarina. O Capa, em suas diferentes fases, foi financiado
por entidades da Alemanha. Atualmente, o Capa é financiado pela Associação Evangélica
de Cooperação e Desenvolvimento – EZE/EED99. Apurou-se que os recursos, destinam-se à
formação de um fundo rotativo destinado a pequenos empréstimos aos agricultores
familiares, fundos que seriam ressarcidos posteriormente em produtos agrícolas. Além
disso, os recursos são destinados à manutenção e operacionalização técnica e administrativa
da entidade.
Constatou-se que há uma preocupação, por parte da entidade, em torná-la menos
posteriormente recursos públicos para viabilizar seu trabalho. A organização apóia o
trabalho no campo do desenvolvimento realizado por igrejas e outras ONGs. A entidade
coopera com parceiros em mais de 80 países da África, Ásia, América Latina e Caribe,
freqüentemente por intermédio de Conselhos de Igrejas nacionais e regionais, e com a
assistência de agências especializadas em desenvolvimento(Folder de divulgação da EZE,
s. d.). Em 2001, juntamente com mais três outras organizações ligadas às igrejas
evangélicas na Alemanha se integraram a EDD (Serviço das Igrejas Evangélicas na
Alemanha para o desenvolvimento). A informação consta em correspondência da EDD
endereçada ao Capa, núcleo de Marechal Cândido Rondon, Pr, 11 de junho de 2001.
dependente de recursos externos. Em carta encaminhada pela coordenação do Capa, núcleo
de Marechal Cândido Rondon, PR ao secretário de agricultura do município, ficou explícito
que mais de 90% dos recursos ainda são externos, provindos da solidariedade internacional,
basicamente da EZE (SAAR, 2001).
Nos primeiros anos, as atividades do Capa ficaram limitadas à 3ª Região Eclesiástica
da IECLB, região onde foi idealizado o projeto.100 A intenção, no entanto, era estender o
trabalho a âmbito nacional, utilizando as estruturas existentes da IECLB. Atualmente o
Capa conta com cinco núcleos de atuação no sul do Brasil: Marechal Cândido Rondon e
Verê no Paraná, Erexim, Santa Cruz do Sul e Pelotas no Rio Grande do Sul. O núcleo de
Marechal Cândido Rondon atua no oeste Paranaense enquanto que o de Verê no sudoeste
do mesmo Estado. O núcleo de Erexim tem sua área de abrangência no norte do Rio Grande
do Sul e oeste de Santa Catarina. O núcleo de Santa Cruz do Sul tem sua abrangência na
região central gaúcha, enquanto que o de Pelotas atua no sul daquele Estado. A
concentração de sínodos101 no sul do país revela a região histórica da colonização alemã,
onde ainda permanecem o maior número de famílias e predomina a pequena propriedade. É
interessante observar que os 13 sínodos que se concentram no sul do país equivalem
aproximadamente à área geográfica do Sínodo Brasil Central. Em dados estimados, os 13
sínodos contam com 232.550 famílias-membro, enquanto que o Sínodo Brasil Central conta
com apenas 500 famílias. O número de famílias dos 5 sínodos restantes, perfazem 17.800
famílias. Destaca-se o Sínodo Espírito Santo a Belém com 13.000 famílias. O número
relativamente elevado de famílias-membro neste sínodo mais ao norte do país, deve-se a
colonização luterana que aconteceu no Estado do Espírito Santo (SCHÜTZ, 1999: 75-
77)102.
A rede Capa, de atendimento aos pequenos agricultores localiza-se no sul do país
onde há maior concentração de famílias e pequenas propriedades. De acordo com
informações coletadas junto a coordenação do Capa do Município de Marechal Cândido
Rondon, PR, talvez só em Rondônia e no Espírito Santo poderiam ser desenvolvidos
serviços semelhantes ao que o Capa realiza no sul do país. Para Rondônia teria emigrado
102
Conforme dados disponibilizados pela edição especial do Jornal Evangélico Luterano de outubro de 2002,
a IECLB contava com 644.644 pessoas distribuídas em 1624 comunidades e 422 paróquias nos seus 18
sínodos.
número razoável de pequenos agricultores luteranos do sul, e, quanto ao Espírito Santo,
pela forma de colonização de luteranos lá havida. Mencionou-se que no caso do Estado do
Espírito Santo, este já possuiria trabalho similar ao que é realizado pelo Capa nos estados
do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Em seus cinco núcleos de atuação no sul do
Brasil, o Capa atende hoje cerca de 4,5 mil famílias (JORNAL EVANGÉLICO
LUTERANO, 2001: 1).
O Capa nasce com proposta alternativa de produção e consumo no mesmo momento
em que explodem, na região, ao final dos anos 70, as lutas sociais e políticas que se
constituíram nos quatro principais movimentos de trabalhadores rurais, ou seja, Movimento
Sindical Combativo, Movimento dos Sem–Terra, Comissão Regional dos Atingidos por
Barragens e Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais (NOVA PAISAGEM, 1998).
A proposta do Capa se fundamenta na disseminação de práticas alternativas,
econômica e ecologicamente sustentáveis, questionando o modelo de desenvolvimento e o
papel da extensão oficial, contrapondo-se aos “pacotes” da modernização e aos vínculos de
dependência criados pela integração do pequeno agricultor familiar à agroindústria de
alimentos.
Ao destacar 103 experiências inovadoras no meio rural gaúcho, Markus Brose ressalta
que, no auge da expansão do pacote tecnológico da revolução verde no interior do estado, a
Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB passou a se preocupar cada vez
mais com o crescente número de seus membros que se tornaram migrantes e deixavam as
comunidades rurais, em especial aqueles que se dirigiam a Mato Grosso e Rondônia. Em
meados dos anos 70, foi criado o Centro de Aconselhamento ao Migrante - Cami, que
procurava assessorar estas famílias migrantes. No entanto, diante do vulto que o movimento
de êxodo acabou tomando, a IECLB decidiu tentar atuar junto à origem do problema, já que
a causa desta situação não estava nas famílias dos produtores, mas no modelo então vigente
no campo (BROSE, 2000:169).
Cabe ressaltar que a entidade, em seu modus operandi, dá relevância à informação,
que é feita de forma diversa, ou seja, nas reuniões, ou através de outros meios de
comunicação. Neste caso, os panfletos explicativos e cartilhas são de uso corrente entre os
associados103. Sobre o informativo técnico-rural “Nova Paisagem”, registre-se que começou
103
Vale destacar, neste contexto, o desenvolvimento do projeto Terra Solidária, em curso no núcleo de
Marechal Cândido Rondon, que visa possibilitar que os agricultores concluam o ensino básico através de
módulos ministrados periodicamente. Entre outros objetivos, este projeto visa preparar agricultores como
a ser publicado em dezembro de 1979. Em 1988, ainda como suplemento do Jornal
Evangélico, atingia um público de 12.000 leitores. Registra-se, igualmente, o programa de
rádio que era produzido pelo Centro de Produção da Material (CEM), gravado nos estúdios
da Instituição Sinodal de Assistência, Educação e Cultura (ISAEC) em São Leopoldo,
transmitido por 20 emissoras, em espaços patrocinados por empresas comerciais locais.
De acordo com Vilmar Saar, o surgimento do núcleo do Capa no oeste do Paraná
aconteceu em função de um esforço comunitário envolvendo membros e obreiros da
IECLB, e, considerando que a região é de caráter predominantemente agrícola. Segundo
Saar, o Capa faz um trabalho a partir de organização de grupos de pequenos agricultores,
desenvolvendo paralelamente serviços técnicos de apoio à produção, comercialização,
divulgação técnica e relações institucionais, onde a entidade busca as mais diversas formas
de parcerias com outros órgãos e prefeituras. Questionado se o trabalho do Capa, surgindo
sob a égide da IECLB, não estaria apenas voltado aos interesses dos agricultores luteranos,
Vilmar esclarece tratar-se de um trabalho ecumênico, onde não há distinção de
confessionalidade, muito embora a origem possa ser luterana, principalmente em se
tratando dessa área de atuação, ou seja, a agricultura familiar. Vilmar informa que, em
muitos lugares onde atua o Capa, este conta com apoio de lideranças que pertencem a
outras denominações religiosas (SAAR, 2000).
No contexto do serviço pastoral luterano no campo, a criação do Capa e, o
estabelecimento de novas diretrizes pastorais a partir do ano de 1979 é saudado como um
importante passo na mudança da posição da Igreja, evidentemente dentro de um processo
antecedido por diversas discussões teológicas. Werner Fuchs104 se refere ao Capa como um
bom exemplo de combinação entre assistência técnica e organização sociopolítica (SAUER,

agentes de desenvolvimento rural.


104
Pastor militante no meio agrário luterano, é autor de vários artigos que relacionam a IECLB com sua
função social no campo. Escreveu Under tents of black plastic sheets or de agrarian question and the
church: complicity and new challenges. Paper presented at the bi-annual meeting of the Latin American and
Caribbean committee of the National Council of Churches of Christ in the USA. Stony Point, NY, April 13,
1992. O pastor Fuchs, através da Comissão Pastoral da Terra, teve uma atuação relevante na luta pelos
atingidos pela barragem de Itaipu no Paraná, no final dos anos 70 e início dos anos 80. Auxiliou os
agricultores da região na fundação do Movimento Justiça e Terra. Em agosto de 2003, entre outras
lideranças ligadas à CPT, organizou os “25 anos dos atingidos de Itaipu”. Tem participação ativa nas
Romarias da Terra no Paraná. Na 18ª edição, que aconteceu na cidade de Guaíra no Paraná (31 de agosto de
2003), Werner Fuchs proferiu a mensagem principal do evento. No que se refere a militância de pastores,
registre-se a atuação do pastor luterano Gernote Kirinus eleito deputado estadual pelo Paraná em 1978.
Gernote se reelegeu por duas vezes. Lançando-se candidato a deputado federal não consegue se eleger em
1990. Sua atuação se deu principalmente no oeste do Paraná a partir do momento em que surge o
Movimento Justiça e Terra.
1996: 128-129).
Entre os que se integram à entidade, é entendido que o Capa tem por missão
contribuir ativamente na promoção do desenvolvimento que proporcione vida digna a todas
as pessoas, sendo que as suas ações estão centradas no fortalecimento da cooperação e
organização da agricultura familiar para a produção agroecológica, utilizando metodologias
de trabalho que valorizem a participação e o conhecimento local, associem a teoria com a
prática e promovam a eqüidade das relações, autonomia e bem-estar das famílias. A
estratégia de intervenção do Capa tem como elementos centrais: buscar a autonomia dos
agricultores familiares; o fortalecimento da organização dos agricultores; o trabalho com
grupos organizados para irradiar as ações; a construção de alianças e parcerias para
potencializar as ações; considerar as diferentes perspectivas; de gênero e de geração;
influenciar as políticas públicas rumo à agricultura sustentável, como componente do
desenvolvimento sustentável; proporcionar espaços de formação e buscar elevar o nível
educacional (escolarização); promover o protagonismo dos agricultores familiares”.105
O Capa, no seu objetivo de levar solidariedade e sustentabilidade ao agricultor
familiar pela via da agroecolgia, procura mostrar aos agricultores que por ela são apoiados
que aquilo que se chama hoje de agricultura convencional é, na verdade, agricultura
predatória, não sustentável e traz danos à saúde de homens e animais. Como foi possível
constatar na investigação realizada, esta não é uma tarefa das mais fáceis. O trabalho do
Capa foi definido por um dos seus técnicos como sendo uma gota d’água no oceano, tal a
predominância, na área de sua atuação, da agricultura convencional, que é aquela que
funciona a jusante das indústrias e do comércio de agrotóxicos. É possível imaginar aí uma
luta de Davi contra Golias, e que, a exemplo do relato bíblico, poderá ter igualmente um
final feliz. Muitos dos agricultores que são assistidos pelo Capa podem ser considerados
“sobreviventes” da revolução verde e vêem nessa entidade a possibilidade de reconstruir
suas vidas com qualidade, enquanto agricultores familiares, na medida em que,
progressivamente, reconstroem a biodiversidade de suas pequenas propriedades.

105
Lembrado pela equipe coordenadora do Capa-Erexim,RS, ao responder a questionário sobre “Os dois
reinos”, elaborado por este historiador. Erexim, Abril, 2003.
A construção do sagrado nos processos de mediação

Um dos aspectos considerados relevantes nos processos de mediação refere-se a


construção da mística ou do sagrado. A fundamentação religiosa dos discursos de mediação
é entendida como uma força motivadora e propulsora das lutas dos agricultores. Em
entrevista concedida a este historiador, Sérgio Sauer comentou sobre as dificuldades que
acompanham os processos de mediação na transição da “mística” para a “prática” nos
assentamentos. Entre outros assuntos considerou que ainda estaria para ser elaborada uma
“teologia da terra” neste particular (SAUER, 2003).
A construção da mística faz parte do discurso de mediação em que se envolvem
entidades religiosas, procurando motivar o agricultor nos objetivos que se pretendem
alcançar. Trata-se de criar referenciais e visões de mundo, onde o sagrado indica um
caminho viável a ser seguido. A mística é capaz de criar um encantamento na luta do
agricultor e um historiador atento poderá identificá-la em muitos movimentos e momentos
relacionados à história dos camponeses. O camponês tem uma religiosidade que nem
sempre coincide com aquela que lhe chega mediada por entidades religiosas. Através de sua
religiosidade, assim como nos “silêncios” e seus significados, o camponês também resiste e
avança. É o contato com a natureza e a percepção da seqüência dos dias e estações que
formulam uma experiência “espiritual” própria ao camponês. Este sentimento
fundamentado numa concepção de vida pode entrar em sintonia com outros discursos mais
“refinados” mediados pelos agentes religiosos.
José de Souza Martins, além de outros pesquisadores, estiveram atentos a este
particular e registraram exemplos da formulação e da intenção que acompanha a construção
da mística entre camponeses (MARTINS, 1994). É também da compreensão de Pierre
Bourdieu que o interesse religioso tem por princípio a necessidade de legitimação das
propriedades simbólicas associadas a um tipo determinado de condições de existência e de
posição na estrutura social. Neste caso, a mensagem religiosa mais capaz de satisfazer os
interesse religioso de um grupo determinado de leigos, e de exercer sobre ele o efeito
propriamente simbólico de mobilização, é aquela que lhe fornece um sistema de
justificação das propriedades que estão objetivamente associadas ao grupo na medida em
aquele ocupa uma determinada posição na estrutura social (BOURDIEU, 1987: 51).
Ao desenvolver sua tese sobre os processos de organização da vida cotidiana nos
assentamentos rurais, Davi Felix Schreiner, analisa a construção da mística através da
mediação. Informa o autor que, subordinados nos processos de expropriação, fragmentação
e apropriação do território, pelo capital, os camponeses conseguem construir uma
insurgência em muitos casos motivados por referenciais político-religiosos da Teologia da
Libertação mediados pela CPT, que os levaram a traduzir seus próprios valores em
movimentos que se caracterizaram como resistência transformadora com repercussões para
além do espaço local (SCHREINER, 2002: 12-13).
A base para a construção da mística remete à “tradução” que a CNBB e a CPT
fizeram a partir da denúncia do modelo de modernização excludente implantado durante o
ciclo militar. De acordo com documentos da CNBB mencionados por Schreiner, expressões
como “Terra para quem nela trabalha” e “A terra é uma dádiva de Deus”, passaram a ser
incorporadas pela CPT e transmitidas em cantos, imagens, rituais, orações, cadernos de
formação, material de apoio para reuniões nas CEBs e de preparação para as Romarias da
Terra (SCHREINER, 2002: 169-170). A teologia da libertação, na ação mediadora da CPT,
reatualiza os valores de uso da terra e, através da interpretação bíblica, deu legitimidade
moral à mobilização dos trabalhadores sem terra ou com pouca terra que, fortalecidos pela
idéia, passaram a realizar acampamentos e ocupações. Na visão de Schreiner,
compartilhada por Douglas Teixeira Monteiro, o acampamento é compreendido como um
espaço e tempo de reencantamento, num processo de reconstrução que se faz a partir de
valores ameaçados pela crise, mas que pode ultrapassar este sentido. Neste caso, o
reencantamento na luta dá-se pela materiliazação de valores referidos à modernidade. Em
seu estudo, o autor revela que a CPT teve papel hegemônico na elaboração deste amálgama,
substrato para coesão interna necessária à ação coletiva direta dos agricultores
(SCHREINER, 2002: 171-174).
Inspirado pelos escritos de Thompson, e, considerando o processo que provoca o
encantamento, Schreiner chama ainda atenção para a criação dos símbolos mediadores
como a bandeira, a cruz de cedro ou outros da cultura camponesa que imbricados a
elementos de ordem moral, como honestidade, confiança, sacrifício, reforçam laços de
solidariedade, transformando o cotidiano presente em potencialidade do futuro. Em
decorrência, aparece uma cultura rebelde, que subverte ao reviver formas socioculturais
tradicionais e ao mobilizar para a luta através da interpretação e significação que os
camponeses conferem às próprias existências (SCHREINER, 2002: 181-182).
A partir de 1930, com as frentes pioneiras de colonização, logo que o grupo de
migrantes se instalava, construíam uma capela para cultos e missas. Schreiner enfatiza que
a disposição geográfica das capelas representa a centralidade religiosa na vida da
comunidade. Os ritos e símbolos religiosos, seus significados, importantes na vida cotidiana
do acampamento para coesão, mobilização e fortalecimento da luta, foram recriados no
assentamento numa perspectiva tradicional, tanto pelos assentados, quanto pela presença da
Igreja (SCHREINER, 2002: 220). Não é difícil compreender que havia uma certa facilidade
em construir o encantamento nos processos de luta pela terra a partir da “mística” que de
certa forma constitui uma característica aparentemente inata à vida camponesa.
Em que pese a crítica de Martins, a criação da CPT pode ser considerada como um
elemento mediador que deu um novo fôlego ao trabalho pastoral no meio rural, envolvendo
inclusive outras igrejas, como foi o caso da IECLB. Numa reflexão compartilhada com Ivo
Polleto, Cândido Grzybowski e Vitor Westhelle, Sérgio Sauer, destaca que, desde o
princípio, estavam muito claros e explícitos a intencionalidade e o compromisso, por parte
da CPT, de afirmar e lutar pela autonomia e pelo protagonismo dos próprios trabalhadores e
trabalhadoras. A CPT procurou desenvolver sua atuação pastoral tendo em vista a
valorização da autonomia dos movimentos sociais, o que resultou inclusive na articulação e
organização do MST, postura esta, segundo o pesquisador, freqüentemente reafirmada e
enfatizada pela CPT. Na prática, no entanto, essa postura acabou sendo marcada, às vezes,
por um basismo simplista ou por um direcionamento político que ia além de uma simples
assessoria ou apoio às lutas. Sauer qualifica a ação da CPT afirmando que a postura política
de colaboração e reafirmação constante da autonomia dos movimentos sociais foi
determinante para consolidar canais de expressão do protagonismo dos próprios
trabalhadores e trabalhadoras. Afirma que a prática pastoral partindo de demandas, lutas e
perspectivas concretas dos trabalhadores acabou dando qualidade à mediação política e
oportunidade para o crescimento das lutas no campo. Uma das dificuldades foi reduzir toda
essa riqueza prática a uma concepção limitada da própria ação pastoral. Sauer reafirma que
a freqüente reafirmação dessa concepção de serviço impediu um enriquecimento das
reflexões e uma maior elaboração teórica sobre a prática. Segundo o autor, esta concepção
de serviço impediu a definição clara de uma concepção de reforma agrária. A posição
dominante nas formulações teóricas era de que, como entidade de apoio, não deveria
formular tal projeto. Postura que não impediu que a CPT, assim como outras entidades de
mediação, acabassem defendendo, no final dos anos 80, uma reforma agrária com cunho
economicista e produtivista, argumento inclusive incluído na nova Constituição. Sauer
observa que, apesar da postura e da resistência a formulações teóricas mais explícitas, o
trabalho pastoral era baseado nos pressupostos bíblicos e teológicos da Teologia da
Libertação e na Doutrina Social da Igreja Católica, os quais ofereciam um cabedal teórico,
teológico e eclesial para fundamentar as ações práticas(SAUER, 2002: 163-167).
A questão da mediação religiosa é pertinente e, pela atualidade, está presente em
muitos trabalhos. A formulação da exclusão de trabalhadores rurais, de sua não-cidadania
ou de uma cidadania de segunda classe, traz consigo a necessidade da categoria mediação.
A concepção hoje ultrapassa barreiras epistemológicas. Regina Reyes Novais, contudo,
alerta que é preciso atentar para o perigo de, ultrapassando a polissemia, chegar à
banalização do uso da noção sem estabelecer um arcabouço teórico. O estudo dos
assentamentos rurais pela sua diversidade de atores e instituições sociais envolvidas pode
ser um lócus privilegiado para fazer avançar a reflexão envolvendo a categoria (NOVAIS,
1994: 177-183). Outras experiências de mediadores entre agricultores podem ser
igualmente interessantes como ponto de partida para estudos que envolvam mediação. A
inserção da IECLB nas questões do campo pode ser considerada um exemplo para esta
discussão. Embora em diversos momentos essa Igreja, numa postura interconfessional,
tenha desenvolvido trabalhos sociais com outras igrejas, mais notadamente com a católica,
não quer dizer que ela não se tenha preocupado com a problemática e desenvolvido idéias e
ações voltados à problemática do campo.

A mediação do Capa

O discurso mediador formulado pelo Capa representa interesses eclesiais da IECLB, e,


embora aponte a construção de um novo saber numa óptica de mão dupla a partir dos
mediadores e mediados, o processo apresenta suas resistências peculiares como já discutiu
Delma Pessanha Neves (NEVES: 1997).
Ao pesquisar sobre a atuação do Capa núcleo de Marechal Cândido Rondon no
Paraná, detectou-se que agricultores tinham que, às vezes, dar um passo para trás, no que
tange à utilização de insumos agrícolas não permitidos na agroecologia. As dificuldades que
os agricultores enfrentam em dedicar-se integralmente à agroecologia como base para
sobrevivência é um outro problema detectado. Outra questão é o cerco físico e psicológico
provocado pelos agricultores que continuam se dedicando à agricultura convencional, mas
que acaba gerando um efeito positivo de resistência e fortalecimento coletivo do grupo
envolvido com a agroecologia. É possível concluir que esta é, sem dúvida, a situação que
gera um discurso ideológico de resistência. Mais que isso, a opção dos agricultores
mediados pelo Capa leva os agricultores a romperem com o sistema “convencional”, que
passa a ser totalmente desqualificado diante da emergência do novo106.
A organização comunitária constitui uma das ações que são priorizadas pelo Capa, e é
onde também ocorre resistência. A ação é desenvolvida com grupos e associações e se
fundamenta na crença de que se trata de um trabalho inovador e participativo de uma ação
que seja transformadora, promova autonomia e possa ser potencializada e multiplicada. Na
opinião dos mediadores da entidade, este trabalho exige análise sociológica e proposta
pedagógica e metodológica que promova e valorize a participação ativa e consciente. A
entidade mediadora entende que o espírito individualista, muito presente entre agricultores
tem como uma das causas principais o fracasso de inúmeras iniciativas comunitárias que,
apesar das boas intenções e objetivos, não lograram êxito. Na visão do Capa, é através da
organização comunitária, em especial das associações de agricultores familiares
agroecológicos, que se torna possível construir espaços de discussão, elaboração e
implementação de ações que possibilitam superar o individualismo. O individualismo é
visto como uma atitude negativa dos agricultores que pode atrapalhar o desenvolvimento
dos objetivos da entidade. A superação do individualismo, na visão do Capa, proporciona
alternativas de organização que se revertem em mais renda e dignidade para os agricultores
familiares. Esta postura também permite uma maior interferência nas políticas públicas,
fazendo com que os poderes e órgãos públicos estejam voltados para a agricultura familiar
(REVISTA DO CAPA, 2002: 11).

106
Para maior aprofundamento Cf. NEVES, Delma Pessanha. O Desenvolvimento de uma outra agricultura: o
papel dos mediadores sociais. In: FERREIRA, Ângela Duarte Damasceno e BRANDENBURG, Alfio
(org.). Para pensar outra agricultura. Curitiba: EdUFPR, 1998.
No que se refere às formas de resistência articuladas pelos mediados, Delma Pessanha
Neves nos ensina a prestar atenção nas “querelas” que emanam num processo de mediação.
Algo que, às vezes, só é possível de perceber após um largo período de observação numa
pesquisa participante. Neste caso, as condições de pesquisa podem influir numa maior ou
menor identificação deste particular. Como já vimos, o individualismo é apontado pela
entidade mediadora como uma resistência que traz resultados negativos no processo
mediador, podendo inclusive comprometer o alcance dos objetivos propostos. Uma
entrevista pode, às vezes, esconder formas de resistência subterrâneas, passíveis de serem
identificadas apenas a partir de uma observação mais apurada. Quando o agricultor diz que,
na aplicação da metodologia e das técnicas aprendidas na mediação do Capa, precisa dar
um passo para atrás, é porque pode estar se utilizando de algum expediente que é indicado
pela entidade, porém por razões diversas não viável para o agricultor.
Na pesquisa realizada entre agricultores associados ao Capa - núcleo oeste do Paraná,
se considerados apenas os depoimentos orais aqui destacados, foi possível perceber que a
avaliação da entidade mediadora é de maneira geral positiva. Se verificadas as dificuldades
que os agricultores apresentaram para continuar viabilizando sua atividade, o Capa é
considerado uma espécie de “tábua da salvação”. Na opinião de um agricultor entrevistado,
que acompanhou a história do Capa no oeste do Paraná desde o início, talvez o trabalho
desempenhado pela entidade mediadora não fosse suficiente como se queria, pois sempre se
sonha ter mais ajuda do que é possível, numa alusão à estrutura de atendimento limitada da
entidade (STOEF, 2000). O interesse em se dedicar à agroecologia é viabilizado
tecnicamente pela ação mediadora do Capa (HEDEL, 2000). A deterioração da terra e as
condições de saúde fazem com que o agricultor familiar se volte para a agroecologia. Porém
as condições favoráveis do mercado aos produtos agroecológicos é outro motivador no qual
é percebida positivamente a inserção do Capa. O Capa é reconhecido como uma entidade
que cria espaços para que os agricultores inclusive estudem, possibilitando a conclusão de
cursos interrompidos em outros momentos (BOCK, 2000). A produção orgânica trouxe a
condição de viabilizar as atividades na propriedade familiar. O Capa é visto, nas palavras de
um agricultor, como um local de assistência técnica especializada e diferenciada que se
adequa aos seus interesses, possibilitando-lhe saúde, uma vez que o afastou da manipulação
de produtos químicos tóxicos ao organismo (KAISER, 2000). Mesmo que desenvolva a
agroecologia em caráter experimental e não se dedique integramente a ela, o trabalho do
Capa é reconhecido como uma entidade mediadora que apresenta “muito conhecimento”, e
que atende às expectativas do agricultor(BESEN, 2000).
A metodologia do Capa, é explicada na óptica da própria entidade, a partir da idéia
que “revela” o jeito de fazer acontecer. Como entidade que promove ou realiza uma
atividade social, ela entende que deve caminhar “na frente para guiar, ao lado para
animar” ou “atrás para impulsionar”. No entanto, ela mesma coloca estas proposições em
questionamento ao remeter ao leitor a indagação sobre qual deveria ser o papel e postura de
uma entidade que não possui fins em si mesma? Com esta indagação a entidade chama uma
certa neutralidade ou imparcialidade sobre ela mesma na condução das ações entre os
mediados. A entidade entende que realiza suas ações embasadas numa metodologia que
parte da realidade dos agricultores, respeitando sua cultura e seus desejos. É propositiva,
mas sempre parte do que eles possuem em termos de infra-estrutura, mão-de-obra e
recursos financeiros, o que permite que as questões do que e como fazer são definidas
conjuntamente com as famílias envolvidas (REVISTA DO CAPA, 2002:7).
Chamam atenção aqui os aspectos contraditórios que envolvem os processos de
mediação em que mediadores e mediados partem em busca de um novo saber. Ao mesmo
tempo que é desqualificado o individualismo do agricultor, “lugar” onde podem estar
escondidos aspectos de sua cultura, afirma-se que as proposições partem dos mediados
havendo respeito às peculiaridades do grupo, como cultura e desejos, por exemplo. A forma
de relação entre mediados e mediadores, além de subjetiva, caracteriza-se como
estruturalmente contraditória, indicando um processo que deve ser constantemente gerido,
uma vez que não pode ser superado plenamente. A aceitação do discurso mediador do Capa
não garante que os mediados, e mesmo os mediadores, não lidem com reinterpretações e
reapropriações diversas. No discurso da parceria que procura valorizar a cultura do
agricultor, o conteúdo acaba sendo valorizado conforme os momentos e contextos do
processo. O que é indesejado no processo acaba sendo desqualificado. O processo é
conduzido sempre tendo em mente o fortalecimento da nova identidade do grupo mediado.
É adequado lembrar que a ação dos mediadores não deve ser reduzida a uma
intercessão ou a uma interligação. Ela só se produz por novas construções e modos de
gestão das contradições derivadas da posição de intercessão. Daí a relação contraditória que
se estabelece nos processos. Os mediadores não se encontram tão distanciados do processo
para que se identifiquem apenas como elo de união de mundos diferenciados. Na
“parceria”, inevitável às vezes de ser contornada, são os próprios mediadores que
constroem as representações dos mundos sociais que pretendem interligar e o campo de
relações que viabiliza este modo específico de interligação. Significados diversos num
processo contraditório de difícil superação vão-se ordenando para viabilizar o trabalho
mediador. Neves lembra que na defesa dos interesses de suas instituições, mediadores
podem desconhecer que uma prática política orientada por objetivos emancipatórios
remonta a projetos de reordenação do mundo social construídos em outros contextos e
mediante outros objetivos. De qualquer forma, a mediação do Capa se fundamenta numa
concepção que ultrapassa a dimensão economicista do processo, não se resumindo a uma
“teologia da contestação”, como também discutiu José de Souza Martins em outros
contextos de mediação (MARTINS, 2000). Percebe-se aí também a crença de que a ação
que se constrói entre mediadores e mediados pode criar as condições favoráveis para a
transferência de ensinos e técnicas (numa perspectiva solidária) que, personificada num
exercício de cidadania, conduza a uma prática social amancipatória, autônoma e
antiexcludente. O trabalho mediador do Capa pode ser considerado pertinente, na medida
em que contribui no processo reflexivo para uma objetivação mais adequada e apreensível
de novas forças “invisíveis” e “incompreensíveis” que interferem no mundo dos mediados e
que, embora exteriores, acabam sendo consideradas imprescindíveis para a construção de
um novo modo de vida.
O desencadeamento de ações da entidade a partir da realidade é entendido como um
diferencial significativo relacionado a outras entidades congêneres. Busca-se assim atuar a
partir da realidade das famílias em seus grupos, somando esforços e priorizando ações
conjuntas e compartilhadas, a fim de que os resultados do trabalho possam ser
multiplicados. Esse “jeito de fazer acontecer” é entendido pela entidade como algo que a
diferencia da maioria das demais entidades que atuam com agricultura familiar. A
organização na defesa do seu jeito de atuar conclui que a maioria das demais entidades
tende a centrar suas ações em um só aspecto, enfocando só a organização, apenas a
produção ou só objetivam a comercialização. Ações que, se desenvolvidas numa forma
fragmentada, acabam não dando conta de toda a diversidade que constitui o universo da
agricultura familiar. Trabalhar a agricultura familiar nas suas diversas dimensões visa à
construção de sujeitos de um projeto alternativo de desenvolvimento rural. A entidade
entende que suas ações contemplam a organização comunitária, a assessoria técnica à
produção agroecológica e o apoio à comercialização. A busca de parcerias e do
comprometimento de demais entidades sociais denuncia o propósito da ONG de atuar
articuladamente. Ela indica, como uma questão central de sua missão, comprometer os
poderes públicos com um novo projeto de desenvolvimento da agricultura familiar, baseado
na sustentabilidade e na solidariedade.
A assessoria técnica para a produção agroecológica é justificada pelo Capa como
imprescindível entre as famílias de agricultores tendo em vista os efeitos da agricultura
convencional.107 A entidade mediadora, no entanto, entende que sua ação vai além de uma
mera assistência técnica. Neste caso, atua com uma visão integral das unidades produtivas,
das propriedades e das próprias famílias. Respeitando-se as condições naturais e da família,
é elaborado um plano de reconversão e de produção da propriedade e definido “o que
fazer”. Na formação integral dos agricultores, o novo saber leva em conta a retomada da
concepção do amor à “mãe-terra” e o despertar da consciência de que a terra retribui
generosamente o cuidado que a ela for dedicado. A idéia da inconveniência da agricultura
convencional é freqüentemente utilizada para valorizar a atividade agroecológica. A
agroecologia surge como alternativa a um mundo intoxicado e doente e, mais do que
produzir e preservar a natureza, constitui um “ato de responsabilidade cristã” (GIESEL,
s.d.). O Capa entende que, diferentemente das práticas da agricultura convencional, onde
geralmente se vendem “pacotes” prontos, na agroecologia precisam-se construir processos
produtivos e sociais. Na defesa de sua proposta mediadora, o Capa salienta que não leva
propostas prontas, mas analisa e planeja, juntamente com as famílias, o processo de
produção. Todos os aspectos, incluindo limitações e fraquezas e potenciais, são analisados.
O Capa se considera um parceiro onde o objetivo maior é construir um processo que leve à
autonomia e à emancipação das famílias onde elas possam estar planejando, executando e
monitorando o seu sistema de produção (REVISTA DO CAPA, 2002:9).
A construção de um outro saber, objetivo perseguido nos processos de mediação
pelos agentes, resulta de fato da relação dialética que ocorre entre estes e os mediados,

107
Na visão da entidade mediadora e dos agricultores por ela assistidos, agricultura convencional é aquela
que emergiu a revolução verde e se caracteriza pelo uso maciço de adubos químicos e agrotóxicos.
indicando um processo que deve ser administrado constantemente, uma vez que apresenta
dificuldade de superação plena. Porém, mesmo que se considere a mão dupla no processo
de mediação, ele apresenta resistências peculiares, explícitas ou dissimuladas nem sempre
previstas no curso das atividades. A mediação do Capa pode ser inserida no processo de
construção de uma outra agricultura, que se fundamenta mais em laços de solidariedade
entre mediados e mediadores e na preservação do meio ambiente do que na economia de
mercado. Neste caso, a mediação pressupõe uma prática que não pode apenas se pautar na
suposta inocência das boas intenções e dos compromissos, mas que deve ser
constantemente questionada ou colocada sob avaliação e reordenação, se de fato os
objetivos a ela atribuídos são desejados e se, de fato, o horizonte vislumbrado é a
construção de novas formas de cidadania e de participação social e política.

Algumas considerações sobre a “nova paisagem” do Capa

Na relação dialética que se verifica entre o Capa e os agricultores é possível perceber


a crença de que uma nova paisagem pode ser construída. Com relação a isso, é oportuno
lembrar que, ao discutir a história das paisagens, Francisco Carlos Teixeira da Silva
informa tratar-se de uma especificidade mais antiga que a própria história social ou a
história demográfica, pois, bem antes do despertar contemporâneo das preocupações
ecológicas, estudiosos de vários países europeus, no início do século passado, já
produziram obras nesse sentido. A idéia que se tem, quando se fala de paisagem, remete-
nos imaginariamente a locais geralmente amplos, com castelos, campos de cereais, perfis de
cidades, montanhas com florestas e rios, aldeias de pescadores, grandes metrópoles e assim
por diante. Elas refletem a ação do homem, mesmo que, a princípio, nem sempre
percebamos esse parâmetro. Para estudar as paisagens não existe uma receita pronta, sendo
que a eficiência do trabalho do pesquisador depende muito da sua sensibilidade e
criatividade (SILVA, 1997: 203-216).
O Capa, na sua relação com os pequenos agricultores busca a reconstrução de uma
nova paisagem em tempos de pós-modernidade. Os benefícios do progresso tecnológico
não são descartados na construção dessa paisagem. Porém o progresso é discutido
qualitativamente. O que se observa é a busca de uma inserção responsável da técnica no uso
do solo. Busca-se recuperar uma relação holística do homem com o meio, onde os campos
de cultivo não sejam vistos apenas como commodities que flutuam unicamente em
decorrência do perverso humor do mercado, mas como uma paisagem que possa ser
sustentada por atitudes responsáveis entre o homem e a terra e desenvolvida por relações
solidárias entre os protagonistas que comungam neste mesmo local seus ideais.
Parafraseando Milton Santos, pode-se dizer que muito se tem falado nos progressos
da engenharia genética, que conduziriam a uma mutação do homem biológico, algo que
ainda é do domínio da história da ciência e da técnica. Porém pouco se fala das condições,
também hoje presentes no meio rural, que podem assegurar uma mutação filosófica do
homem, capaz de atribuir um novo sentido à existência de cada pessoa e da paisagem onde
esta se insere (SANTOS, 2000:174). A mediação do Capa, parece mostrar esta direção.
Neste caso, a construção dessa paisagem se revelaria a partir de uma atitude, de uma
postura cultural, uma posição que se toma frente ao mundo, que leva o ser humano a
estabelecer, além de uma relação de sobrevivência, um elo afetivo entre ele e o lugar ou o
ambiente em que vive (TUAN, 1980).
Perseguindo a trilha aberta por Yi-Fu Tuan, Solange T. de Lima Guimarães percebe
uma paisagem que se reconstrói pelo vivido. Sua análise parece indicar um caminho
semelhante ao que o Capa e os pequenos agricultores estabelecem numa relação
envolvendo informações e práticas solidárias de ação(GUIMARÃES, 2002:140). Observa-
se que mediante a consignação, percepção, afetividade e memória, há a tentativa de
reconstruir mundos vividos – percebe-se um sentimento de volta às origens – resgatando a
multiplicidade das imagens do meio ambiente, pois naquele resgate poderia residir a
identidade de um ser humano, a conservação de seus testemunhos, o legado cultural,
mediante a narrativa da própria história de vida, através das paisagens de seus espaços e
lugares. Na relação entre o Capa e os agricultores, estabelece-se a crença de que a paisagem
que resulta do trabalho desses agricultores é transformada ao associarem o contexto da
dimensão do vivido, transmutando o conteúdo de uma realidade banal em sagas de magia e
encanto das tradições, adquirindo um novo existir.
Em sua atual trajetória de ações entre agricultores, o Capa parte para campos inéditos
de atuação, como demonstra o projeto de apoio aos quilombolas no sul do Rio Grande do
Sul. O projeto é desenvolvido pelo núcleo do Capa – Pelotas, daquele Estado. Este trabalho
pode ser considerado como uma inédita perspectiva de trabalho dessa entidade mediadora,
se considerada a história da IECLB108.

(...) Somos uma Igreja que afirma em seu nome e autodefinição ser uma Igreja de Jesus
Cristo no Brasil. Com esta constatação assumimos que somos parte de uma sociedade
multifacetada, multiétnica, multicultural e pluralista. A IECLB se define como uma Igreja
que quer encarnar a realidade brasileira. Como seres humanos, não estamos dispensados de
nosso estado de pecadores. Isto significa que nossas instituições também participam nos/dos
males do mundo. Por isso destacamos o princípio luterano da ‘eclesia semper reformanda’ (a
Igreja deve estar se reformando).109

Conclusão
A idéia que resultou na formação do Capa emergiu das discussões realizadas pela
IECLB em relação à problemática da terra no Brasil. É talvez uma das discussões mais
relevantes se considerada a busca da identidade dessa Igreja e a sua inserção na realidade
social brasileira. A idéia do Capa não é descolada da discussão geral sobre reforma agrária,
mas circula melhor na comunidade luterana por se identificar mais com a história da
formação daquela Igreja no Brasil.
Ao final dos anos 70, A IECLB, através de seu conselho diretor, estabelece a reforma
agrária como uma das suas prioridades de reflexão e ação. O Concílio da Terra aconteceu
em 1982 e, entre outros assuntos, considerou-se pertinente a inserção da Igreja no assunto
se consideradas as Sagradas Escrituras e os ensinos de Lutero. A terra é de Deus, e como tal
mereceria atenção social e teológica devida. Mesmo antes do concílio, como também
depois, o assunto voltou em pauta reiteradas vezes.

108
Registre-se parceria recente entre Capa e Comin – Conselho de Missão entre os Índios, da IECLB. Através
de parceria, o Capa passou a desenvolver apoio técnico para plantações entre 17 famílias de Mbya-
Guaranis. A aldeia onde o Capa desenvolve seu trabalho situa-se em Coxilha do Sul, município de Barra do
Ribeiro/RS (BUCHWEITZ, 2003: 72-78). Além do envolvimento com os índios, o Capa integra um
conglomerado de entidades que objetivam implantar uma área de cultivos livre de agrotóxicos na região
impactada pela hidrelétrica de Itaipu e pela modernização agrícola no Estado do Paraná. O Capa nasce no
Rio Grande do Sul no mesmo ano em que explode a luta dos atingidos pela barragem de Itaipu. No tempo
presente, em outra conjuntura, o Capa se torna parceiro da Empresa Binacional juntamente com outras
entidades que buscam com os agricultores, reconstruir, nas condições possíveis, a região impactada. Além
de Itaipu, o projeto recebe apoio do governo estadual que, na resistência contra a disseminação de produtos
geneticamente modificados, pretende tornar o Paraná uma área livre de transgênicos.
109
Trecho da manifestação do Simpósio “Abrindo as portas da Igreja: Afro-brasileiros luteranos, sonho ou
possibilidade?”, citado na fundamentação teológica do projeto de inserção da IECLB entre os quilombolas.
Na formulação do ideário do Capa, pouco se enfatizam termos como “invasão”,
“ocupação”, “acampamentos” e “assentamentos”. Estas concepções relacionadas à reforma
agrária dificultam a discussão sobre o assunto nas comunidades luteranas, o que não
significa concluir que a Igreja só atue em movimentos que tenham a “cara” do Capa.
Porém, mesmo com resistências internas, a Igreja tem avançado neste particular. Há que se
ressaltar que, no jeito luterano de atuar, o Capa tem avançado em áreas de ação até bem
pouco tempo não pensadas entre os luteranos, e não há como pensar isso a não ser como
uma forma de avanço, apesar das resistências.

Bibliografia

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Depoimentos orais

BESEN, Marlene. Entrevista concedida a Tarcísio Vanderlinde. Marechal Cândido


Rondon, 21 de novembro de 2000.
BOCK, Rudi. Entrevista concedida a Tarcísio Vanderlinde. Marechal Cândido Rondon, 22
de novembro de 2000.
HEDEL, Luiz Valter. Entrevista concedida a Tarcísio Vanderlinde. Marechal Cândido
Rondon, 24 de nov. 2000.
KAISER Livar. Entrevista concedida a Tarcísio Vanderlinde. Marechal Cândido Rondon,
22 de novembro de 2000.
SAAR, Vilmar. Entrevista concedida ao quadro “personalidade da semana”. Rádio
Difusora do Paraná, 18 junho de 2000.
SAAR, Vilmar. Entrevista concedida a Tarcísio Vanderlinde. Marechal Cândido Rondon, 6
de fevereiro de 2001.
SAUER, Sérgio. Entrevista concedida a Tarcísio Vanderlinde. Marechal Cândido Rondon,
01 fev. 2003.
STOEF, Bruno. Entrevista concedida a Tarcísio Vanderlinde. Marechal Cândido Rondon,
24 de nov. 2000.
Resenha

ORY, Pascal. L’Histoire culturelle. Paris, Presse Universitaires de France, 2004.

Pedro Paulo A. Funari110

Pascal Ory, professor da Sorbonne, estudioso da História Cultural e autor de outros


clássicos sobre o tema, como L’Entre-deux-Mai: histoire culturelle de la France, mai 1968
– mai 1981 (Paris, Le Seuil, 1983), apresenta um balanço das discussões sobre a trajetória e
principais questões epistemológicas desse campo de pesquisa, não apenas na França, como
também em outros países, em especial no ambiente anglo-saxão. Começa pelas raízes mais
profundas, que localiza na sociologia durkheimniana e nas subseqüentes discussões sobre
representações mentais coletivas e sobre as identidades. Define a História Cultural, assim,
como a História Social das Representações. Mostra como os textos não existem sem seus
paratextos, sendo a História Cultural uma História da circulação e do relacionamento.
Volta-se, em seguida, para os debates gerados por essa abordagem e, portanto, para
as objeções apresentadas por seus detratores, que se referem à subjetividade da
representação, ao papel da exceção à regra da representação dominante, à diversidade das
formas. Conclui que o objeto da História Cultural é a regra, no que retoma as origens
durkheimnianas da disciplina, e que o conceito de aculturação, criticado na Antropologia,
continua útil para os historiadores. Esclarece, contudo, de que aculturação se trata: das
influências culturais entre culturas dominantes e dominadas (cultura das elites e culturas
populares), centrais e periféricas. Ao enfatizar os aspectos coletivos da cultura, critica um
dos erros típicos, a seu juízo, da História Política, que consiste em supor que os homens
políticos de peso são grandes teóricos, conhecedores das obras de referência da ideologia
que esposam quando, no mais das vezes, têm um conhecimento apenas indireto, por meio
da leitura de epígonos e vulgarizadores. A História Cultural desconfia a priori das
interpretações unificadas que falam de um homem simplificado e racional, e defende que o
ser humano é atravessado ou mesmo animado por contradições internas.
110
Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas. Email: ppfunari@uol.com.br.
Dedica atenção particular à genealogia da disciplina, a começar com Heródoto,
Tucídides, passando pela História da Civilização (século XIX), a busca das mentalidades
(com os Annales). Mostra como os cultural studies anglo-saxão e a Alltagsgeschichte
(História do Quotidiano, no mundo de fala alemã) ligam-se à desconstrução tão bem
representada por Jacques Derrida, Michel Foucault, Michel de Certeau e Gilles Deleuze,
mas também à releitura da Escola Marxista de Frankfurt, ao subjetivismo de Collinwood, à
Sociologia de Pierre Bourdieu, ao conceito de Weltanschauung. O tradicional privilégio
acordado ao documento escrito (de arquivo ou impresso) é complementado pelo uso de
outros documentos, como os arqueológicos, mas também os virtuais, digitais, sonoros,
visuais, assim como não se podem perder de vista os aspectos técnicos, econômicos e
políticos da cultura. O próprio corpo humano vê-se constrangido por regras culturais de
comportamento. Lembra o papel da hermenêutica, derivada da Lingüística, a partir dos
estudos inovadores de historiadores da Antigüidade, como Detienne, Vernant e Vidal-
Naquet.
Ory situa a História Cultural no contexto historiográfico e acadêmico de nossa
época, envolta na subjetividade e na diversidade de pontos de vista, de interesses e práticas.
Mostra, contudo, como suas fontes de inspiração epistemológica são muito variadas. A
História, como disciplina, não almeja produzir uma epistemologia própria, voltada que está,
por definição, ao particular, específico, irrepetível, efêmero, como já advertia Aristóteles.
A Filosofia e, modernamente, outras disciplinas como a Lingüística e as Ciências Sociais,
fornecem esses quadros heurísticos. A História Cultural, até por lidar com a cultura, “o
conjunto das representações coletivas de uma sociedade”, beneficia-se de uma pletora de
conceitos, nem sempre da mesma origem ou com os mesmos pressupostos, mas que podem
ser agenciados pelo historiador cultural de forma original e eclética, de Marx a Collinwood,
de Heródoto a Foucault. Se não tivermos isso em mente, poderemos entender como
confusão e falta de fidelidade aos cânones algo que é inerente à História Cultural e que faz
parte de sua riqueza.
Em seguida, e não menos importante, está a variedade do campo documental, que
engloba um universo bem mais amplo do que o tradicional documento escrito,
proveniente da tradição textual, arquivístico e/ou impresso. A História Cultural não pode
prescindir das representações sonoras, visuais, materiais e, por isso, interage,
intimamente, com disciplinas afins, como a Música, as Ciências da Comunicação ou a
Arqueologia. Por fim, a diversidade de pontos de vista, de objetos, de abordagens, que
caracteriza a História Cultural, revela sua mais importante característica, um dos motivos
de seu grande êxito: o pluralismo e o respeito à diversidade. Ao afastar-se do discurso a
ser seguido, do caminho correto, da reta ‘opinião’ (doxa), para usarmos um termo de
Bourdieu, retomado dos gregos (ortodoxia), a História Cultural abre caminhos inovadores
para a pesquisa e para a prática social e atrai a tantos, insatisfeitos com a submissão à
doxa, seja ela qual for.
Resenha

BOSI, Antônio de Pádua. Reforma Urbana e Luta de Classes. Uberabinha/MG (1888 a


1922). São Paulo: Xamã, 2004.
Ana Paula Cantelli Castro•

As questões propostas por Antônio de Pádua Bosi em Reforma Urbana e Luta de


Classes – Uberabinha/MG (1888 a 1922) contribuem para a compreensão das
contradições sociais presentes no meio urbano, bem como das intervenções normativas
dos poderes públicos na tentativa de encobrir tais contradições. Este trabalho, publicado
pela editora Xamã, é fruto da pesquisa que resultou, originalmente, na tese de
doutoramento pela Universidade Federal Fluminense, em 2002, sob o título
“Constituição do espaço urbano e conflito social: Uberabinha/MG (1888 a 1922)”.

Debruçando-se sobre amplo arcabouço documental, Antônio de Pádua Bosi nos


oferece um estudo cuidadoso sobre as relações sociais, nas primeiras décadas da
constituição do espaço urbano em Uberabinha. No livro, o autor discute, além das questões
urbanas, importantes aspectos do mundo do trabalho, perpassando temáticas pertinentes à
compreensão do processo constitutivo de uma cultura relativa ao mundo do trabalho no
Brasil.
Partindo do questionamento “O que exatamente define a constituição do espaço urbano
e quais mecanismos efetivamente operam tal definição?” (p.27) o autor estabelece um
diálogo com uma ampla bibliografia. A pesquisa documental de fôlego permite ao leitor
um contato com as contradições e a dinâmica da luta de classes naquele espaço. Esta
dinâmica é explicitada por Bosi na análise da constituição de um Estado, que buscava
em cada nova lei, cada nova intervenção nos usos dos espaços, uma forma de se afirmar
como poder, utilizando-se dos recursos públicos para acumulação de capital. Para tanto,
o poder público valeu-se da dotação de infra-estrutura, os chamados “melhoramentos
urbanos”, ao mesmo tempo em que buscou formatar a população, interferindo nas suas
práticas, inclusive profissionais, para que fossem condizentes com o modelo de
progresso e desenvolvimento pretendido pela classe dominante. Entretanto, essa
população não esteve, nem está apresentada pelo autor, destituída de vontade e de ação
nesse processo.
O grande mérito do autor foi conseguir buscar nos documentos, evidências da
participação da população na construção da cidade. É importante salientar que quase
toda a documentação relativa a Uberabinha foi produzida pelos poderes públicos ou por
memorialistas que, financiados por tais poderes, construíram uma versão ufanista e

Mestre em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail:
anacantelli@centershop.com.br.
asséptica da cidade. Já na introdução da obra, Bosi revela como essa documentação se
apresenta ao pesquisador, muitas vezes, com a força de “evidência histórica”. Entretanto,
o autor conseguiu se desvencilhar destas armadilhas, o que merece destaque, pois muitos
que procuraram analisar os mesmos documentos não conseguiram evitá-las.
No que diz respeito, por exemplo, à instituição de impostos, prática que se fez presente
no Brasil com maior rigor a partir da instituição da República, Bosi desvenda a
resistência dos trabalhadores ao seu pagamento. O autor mostra como esta prática,
mesmo raramente articulada entre os trabalhadores, obstava as pretensões dos poderes
públicos.
No quinto capítulo, o Bosi demonstra, a partir do trabalho de um memorialista que é
uma referência nos trabalhos sobre esta cidade, como a resistência da população
incomodou a classe dominante que, servindo-se do poder público, aplicava os métodos
que estivessem a seu alcance para fazer valer seu projeto de cidade. A análise do autor
define alguns desses métodos. Com uma leitura cuidadosa da documentação ele os
revela, especialmente, ao referir-se à gestão de Severiano Rodrigues da Cunha.

Um dos colaboradores do livro de Pezzuti referiu-se ao Cel. Severiano


Rodrigues da Cunha – que fora agente executivo por duas vezes – como
um ‘senhor de coração boníssimo, odiava a violência na hora de praticá-
la’. Não há porque duvidar de que homem era realmente violento, (...) Isto
nos dá uma idéia sobre um dos recursos empregados à época para
garantir o cumprimento da legislação municipal.(p.211)

Se por um lado, o poder público, muitas vezes, afirmou-se tendo como instrumento a
violência, o autor explicita que, por outro, a população encontrou outros caminhos, como
no caso de João Borges e outros populares que recorreram à própria Câmara a fim de
obter concessões para que pudessem manter sua sobrevivência. A Câmara buscou
legislar sobre a venda de carnes, sobre a prática da caça, sobre a criação de animais,
enfim, toda atividade popular que pudesse fazer frente a uma nova lógica de mercado
que se pretendia impor. Por meio da leitura das atas da Câmara Municipal, Bosi
desvendou as estratégias que, por meio do poder público, tornaram ilegais as atividades
populares que pudessem fazer frente ao mercado que se procurou instituir nesta cidade.
Esta é uma das manifestações do conflito de classes percebidas pelo autor.
Reforma Urbana e Luta de Classes demonstra ainda, que as pretensões econômicas dos
poderes públicos não estiveram apenas centradas na transformação das feições do espaço
urbano.

“Para a classe dominante, não era somente, portanto, uma questão de mudar
o espaço, mas de padronizar também os usos desse espaço e, principalmente,
adequar os comportamentos às suas necessidades e perspectivas sociais.”
(p.210)
Neste sentido, Bosi contribui com uma análise que permite ao leitor enxergar as
múltiplas contradições estabelecidas no urbano, nas disputas para configuração de novos
hábitos e valores num espaço em construção.
Os novos valores implicavam também em novas relações de trabalho. A obra trata de um
processo complexo, uma vez que esta questão não foi específica de Uberabinha. A
interferência nos comportamentos dos trabalhadores, incutindo-lhes a noção de trabalho
assalariado, presumia uma nova noção tempo e de disciplina do trabalho. Revela-nos
ainda como “não havendo mais a prática oficial da coação física, a ‘obrigatoriedade do
trabalho’ requeria outros invólucros”(p.229).
Na análise de Antonio de Pádua Bosi, percebemos que os trabalhadores negros sofreram
de forma talvez mais contundente estas mudanças nas relações de trabalho, mas não
foram os únicos. “De uma forma mais específica, porém, em Uberabinha, era a
vadiagem negra que mais incomodava a ordem e mobilizava as penas dos
legisladores.” (P.238) A obra aponta também, como tais transformações chegaram ao
cotidiano dos trabalhadores imigrantes estrangeiros e migrantes rurais, outro alvo da
legislação e interferência do poder público.
A perspectiva de uma população ordeira e em consonância com os projetos de uma
cidade limpa e garrida, anunciada de forma sistemática pelos memorialistas que são
referência à escrita da história de Uberabinha é desmistificada na obra de Bosi. Dentre os
memorialistas o mais importante talvez tenha sido o cônego Pedro Pezutti.

“É necessário lembrar neste ponto que boa parte do que fora salientado no
livro escrito por Cônego Pezzuti chegaria até a década de 1980, na visão da
historiografia local, como imagem profundamente divulgada e aceita sobre a
cidade: sua vocação para o comércio, para o progresso, para a ordem, para o
trabalho.” (p.65)

O autor discute neste sentido, a formação da cidade como importante entreposto


comercial no início do século XX, ultrapassando a consagrada equação: estrada de ferro,
Companhia de Autoviação e ideário burguês. E o faz, dialogando criticamente com uma
rica historiografia local já existente. Tal diálogo, e o levantamento de questões de ordem
teórico-metodológica enriquecem o trabalho, embora tenham custado um adiamento da
abordagem efetiva da realidade dos trabalhadores em Uberabinha, o que foi feito nos
dois últimos capítulos. Este procedimento não desmerece o trabalho do autor, pelo
contrário, revela a seriedade com a qual encarna o oficio do historiador.
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