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REVISTA DO

MESTRADO DE HISTÓRIA
(Universidade Severino Sombra)

Volume 9 - n° 10

Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 1


Revista do Mestrado de História ISSN 1415-9201
Revista Semestral da Universidade Severino Sombra
Presidente da FUSVE Editores Responsáveis
e Reitor da USS José D’Assunção Barros
Américo da Silva Carvalho Miridan Britto Falci
Rosângela de Oliveira Dias
Vice-Reitor da USS
Antônio Orlando Izolani
Revista do Mestrado
Coordenadora do Programa de Tiragem de História
Mestrado em História 700
Surama Conde Sá Pinto

Conselho Editorial
Ana Maria da Silva Moura Fundação Educacional
Eduardo Scheidt Severino Sombra – FUSVE
Cláudia Regina Andrade dos Santos Universidade Severino Sombra – USS
José Jorge Siqueira Praça Martinho Nóbrega, 40 (Centro) Volume 9 - n° 10
Lúcia Helena Pereira da Silva Cep: 27700.000 Vassouras, RJ
Philomena Gebran Telefax: (24) 2471-1287/ 2471-8203
Surama Conde Sá Pinto

Conselho Consultivo
Carlos Eugênio Líbano Soares Edição produzida por
Cristina Maria Teixeira Martinho Coordenadoria do Programa de
Eulália L. Lobo Mestrado em História Miridan Britto Falci
Francisco Carlos Teixeira da Silva Rua Dr. Fernandes Júnior, 89 (Centro)
Vassouras
Rosângela de Oliveira Dias
João José Reis José D’Assunção Barros
Tel: (24)2471-8272
José Flávio Sombra
e-mail: cpmh@uss.br
Manolo Florentino
Maria Gabriela Dávila
Maria Lígia Coelho Prado
Silvia Petersen

Revista do Mestrado de História / Mestrado em História /


Universidade Severino Sombra – v.i (1998) – Vassouras 1998
Anual (v.I 1998), (v.2 1999), (v.3 2000), (v.4 n.1-2, 2001-2002),
(v.5, 2003), (v.6 2004), (v.7 2005), (v.8 2006), v.9 (2007)
ISSN 1415-9201
Universidade Severino Sombra
1.Brasil – História – Periódicos. I. Universidade Severino Sombra.
CDD981.005
Todos os direitos reservados (Lei 9.610/98)

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SUMÁRIO

Apresentação ....................................................................... 7

ARTIGOS

O Fim da História .............................................................. 11


Keith Jenkins
O Brasil na Criação da Ordem Militar da Torre e Espada, a
mais alta Condecoração Portuguesa ............................... 23
Humberto Nuno de Oliveira
Os Últimos Anos da Escravatura no Brasil: uma Análise da
Contribuição Historiográfica de Robert Conrad ............. 45
Valéria Zanetti; Maria Aparecida Papali; Maria José Acedo
del Olmo
História e Rádio: Um Campo de Estudos Promissor ..... 71
Lia Calabre
O Corpo entre a Linguagem e o Silêncio: o Caso
Nietzsche ........................................................................... 93
Gabriel Giannattasio
O Prefeito da Varinha de Condão: A Engenharia Política
de Paulo de Frontin na Prefeitura do Distrito Federal
(1919) ............................................................................... 129
Surama Conde Sá Pinto
O Relato Hagiográfico como Fonte Histórica ............. 161
Ana Paula Lopes Pereira
Panorama do Pensamento Urbanístico na Cidade do Rio de
Janeiro ao longo do Século XIX ........................................ 171
Lúcia Silva
História Social: Caminhos de um Campo Histórico .... 192
José D’assunção Barros

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CONFERÊNCIAS APRESENTAÇÃO
A Revista do Mestrado em História da USS tem buscado apresentar,
Construindo Políticas Públicas: Cultura e Patrimonio Cul- desde o momento de sua criação, uma reflexão diversificada e atualizada
sobre as grandes questões históricas, bem como um debate teórico e uma
tural .................................................................................. 223
produção de conhecimento em História direcionada para objetos
Déa Ribeiro Fenelon*
historiográficos específicos. Seu objetivo maior é a criação de espaços
para o desenvolvimento da crítica histórica e de sua historiografia, recebendo
trabalhos de profissionais de várias partes do Brasil e do exterior.
RESENHAS Tal como nos números anteriores, a presente revista procurou
agregarartigos relacionados à área Concentração do Programa –
História Social – e mais especificamente às suas Linhas de Pesquisa:
Futebol por Todo o Mundo, de Marcos Alvito e Victor Andrade História Cultural e História Política, para além de artigos recionados
de Melo (orgs) .................................................................... 243 a aspectos teóricos, metodológicos, e à historiografia propriamente
Rosângela Dias dita. Os artigos foram selecionados através de sistema de pareceristas.
Neste número da Revista, que em sintonia com os critérios
Teorias da História (Uma Proposta de Estudos), de Astor An- divulgados pela CAPES busca evitar a endogenia da produção e
tônio Diehl. ......................................................................... 257 divulgação do conhecimento histórico, apresentamos apenas três
Diogo da Silva Roiz* artigos de professores da Instituição. Os demais articulistas
pertencem a outras Universidades e Centros de Pesquisa, e
remeteram suas contribuições de acordo com as normas para
publicação fixadas ao final deste número, para submissão ao corpo
Normas Editoriais .......................................................... 263 de pareceristas, com exceção dos dois artigos internacionais com
os quais abrimos a presente edição, cujos articulistas foram
convidados a apresentar artigos especialmente para esta edição.
Apresenta-se aqui uma programação diversificada na qual
busca-se representar o alargamento das fronteiras do conhecimento
e o aprofundamento de questões historiográficas, e que nos aproxima
da interdisciplinaridade tão almejada nas reflexões da História.
Iniciamos com o artigo do bem conhecido historiador inglês Keith
Jenkins, que autorizou a tradução para o português de um de seus
mais recentes artigos publicados na Inglaterra. O artigo, desenvol-
vido em torno de uma reflexão historiográfica intitulada “O Fim da
História”, foi originalmente publicado na The Philosophers’
Magazine, e traduzido pela historiadora Gisele Iecker de Almeida.
O segundo artigo internacional – “O Brasil na Criação da
Ordem Militar da Torre e da Espada” – é de autoria de Humberto
Nuno de Oliveira, historiador português que, entre outras
especialidades, tem-se dedicado ao estudo da História Diplomática
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e da Heráldica, além de atuar como professor na Universidade
Lusíada de Lisboa.
O conjunto dos demais artigos distribui-se entre os campos
da História Cultural e da História Política, direcionando-se a tempo-
ralidades e espacialidades diversificadas. Assim, entre as discus-
sões historiográficas sobre domínios históricos e novas abordagens
de fontes que se abrem aos historiadores, apresentam-se nesta
edição tanto discussões relacionadas à contemporaneidade, como
o artigo de Lia Calabre sobre “História e Rádio - um campo de
estudos promissor”, como textos que se referem a temporalidades
mais recuadas, como é o caso do ensaio sobre “Fontes Hagiográficas”
escrito por Ana Paula Lopes Pereira. De igual maneira, há lugar
para discussões historiográficas propriamente ditas, como o artigo
de José D’Assunção Barros sobre a “História Social”, ou como o
artigo sobre a contribuição de Robert Conrad para a historiografia
da escravidão, de autoria de Zanetti, Papali e Del Olmo.
A interface entre História e Filosofia nos é trazida por Gabriel
Giannattasio, com seu artigo “O Corpo entre a Linguagem e o ARTI G O S
Silêncio: o Caso Nietzsche ”. O âmbito historiográfico dos estudos
urbanos nos é trazido por Lúcia Dias, com seu artigo sobre o
“Panorama do Pensamento Urbanístico na Cidade do Rio de Janeiro
ao longo do Século XIX”, enquanto Surama Conde Sá Pinto nos
transporta aos tempos da Primeira República para analisar “A
Engenharia Política de Paulo de Frontin na Prefeitura do Dis-
trito Federal”.
A seção final nos traz a brilhante conferência de Déa Ribeiro
Fenelon intitulada “Construindo Políticas Públicas: Cultura e
Patrimonio Cultural”, na qual se aborda uma questão mais do que
atual: as atuações do Estado e da sociedade na construção das
políticas públicas de cultura.
Por fim a seção de resenhas apresenta textos de Rosângela
Dias e Diogo da Silva Roiz sobre duas obras recentemente
publicadas.
Miridan Britto Falci
Rosângela de Oliveira Dias
José D’Assunção Barros
Editores da Revista do Mestrado em História, da USS

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O FIM DA HISTÓRIA**
Keith Jenkins∗

Abstract
The article approaches the possibilities of a post-
modern historiography, after the great narratives of
failed ideologies. Dealing again with some of the points
discussed in “Re-thinking History”, the always polemic
Keith Jenkins gets to the point of suggesting an
abandonment of history. Through the concepts of
argumentations, texts and narrative substances found
in the works of Frank Ankersmit, Jenkins reconsiders
the questions of sources’ factuality, the historians’
politics when granting them meaning and the
relationship between reality and representation, mediated
by the researcher. His considerations suggest a new
direction to the future of historiography and alert us
of reflections to be made at the present moment.

Keywords: F. Ankersmit, postmodernism, historiography, end of history

Resumo
O artigo aborda as possibilidades de uma
historiografia pós-moderna, posterior às grandes
narrativas de ideologias falhas. Retomando alguns
dos temas presentes em “A História Repensada”, o
sempre polêmico Keith Jenkins chega a sugerir um
abandono da história. Através dos conceitos de
argumentações, textos e substâncias narrativas

* Keith Jenkins é professor de Teoria da História na University of


Chichester, Reino Unido. É autor do livro A História Repensada
(São Paulo: Contexto, 2001).
** Originalmente publicado em The Philosophers’ Magazine, edição
20, pp.46-8, Outono de 2002.(Traduzido do original em inglês por
Gisele Iecker de Almeida)

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encontrados na obra de Frank Ankersmit, Jenkins novamente, ainda que como farsa; a pequena narrativa, com letra
reconsidera as questões da factualidade das fontes, minúscula, foi há muito tempo conservadora, preocupada com seu
da política do historiador ao dar sentido a estas e da próprio bem, não-mundana, “acadêmica”. E então pareceu a alguns,
relação que se forma entre realidade e representação, como costumava parecer a mim, como se o pós-modernismo tivesse
mediada pelo pesquisador. Suas ponderações
que inventar seus próprios gêneros. Mas qual a necessidade disso?
sugerem uma nova direção ao futuro da
Se críticas pós-modernas têm mostrado que o passado é totalmente
historiografia e alertam para as reflexões que devem
ser feitas no presente momento. promíscuo, que ele vai com qualquer um, se ele vai obedecer a qualquer
“leitura”, se ele vai apoiar todo mundo no geral, mas ninguém em
Palavras-chave: F. Ankersmit, pós-modernismo, historiografia, particular, se a condição de todo conhecimento histórico além da
fim da história argumentação e da crônica foi fatalmente lastimada por ceticismos,
relativismos e neo-pragmatismos pós-modernos de qualquer
É possível que tenhamos atingido o “fim da história.” E isso maneira, então, porque deveríamos nos importar com a história
é “boa coisa”. Realmente, não existe motivo algum que nos impeça pós-moderna? Qual seria a utilidade de um discurso tão
de dar adeus a este fenômeno totalmente casual para vivermos profundamente problematizado e ultrapassado?
felizes entre os imaginários consoantes com o pensamento pós- Não vimos nada como a historiografia ocidental dos séculos
moderno contemporâneo e recente, um pós-modernismo isento XIX e XX em qualquer outra época ou lugar. Conseqüentemente,
de todo fundamento histórico, mas que pode nos fornecer todos os não existe justificativa para que o pós-modernismo carregue consigo
recursos intelectuais necessários para pensar de maneira orientada as estranhas maneiras encontradas pela modernidade de historicizar
ao futuro e – espero – de maneira emancipadora e democratizante. o passado. Portanto, proponho que podemos esquecer a história.
Esta, pela menos, foi a conclusão a que cheguei em Why History? Aqui quero explicar a contribuição para o meu argumento do
Ethics and Postmodernity. trabalho de Frank Ankersmit sobre argumentações, textos e
Esta conclusão desafia as histórias pós-modernas, que substâncias narrativas, teorizações que mudam o foco dos aspectos
historicizam o passado de maneira mais diversa que histórias investigativo e arquivístico do trabalho do historiador para a
modernistas (por exemplo, a historiografia pós-estruturalista, moldagem, estetização, tropos e aspectos performativos e
pós-feminista, pós-colonialista ou pós-marxista), e que são “textuais” da historização do passado, uma mudança que ele pensa
abertamente partidárias, apontando e registrando seu ponto de que a maioria dos historiadores profissionais abominam contemplar.
vista em algum momento “confessional”. Enquanto essas Ankersmit detalha estas mudanças em seus livros Narrative
“histórias que saíram” são um avanço com relação às histórias Logic (1983) e History and Tropology (1994), mas o ponto principal
modernistas, que afirmam – em diferentes graus quando de seus argumentos talvez seja mais acessível em dois ensaios –
questionadas – não tanto criar histórias do passado mas encontrá- “Resposta a Zagorin” e “The Linguistic Turn, Literary Theory
las nele, estas histórias pós-modernistas não enfrentam realmente and Historical Theory”. Sobre a relação entre argumentações e
os desafios propostos pelo pós-modernismo. textos, Ankersmit afirma que o tribunal dos fatos está disponível
Existem dois tipos reconhecíveis de histórias: a antiga meta- no nível das argumentações, mas não no nível dos textos ou
narrativa com letra maiúscula (como os Hegelianismos e narrativas, e que a tarefa do historiador é, portanto,
Marxismos) se encontra agora muito arcaica para funcionar necessariamente selecionar, o que outorga significado.

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O primeiro ponto é que textos históricos (e, obviamente, Geralmente, concorda-se que não existe a tal coisa chamada “fato
textos na capacidade de textos) consistem em várias histórico”, e isto parece ser verdade no sentido de que “fatos”
argumentações individuais, a maioria das quais oferece uma precisa obtém esta classificação através de muita interpretação, pesquisa
ou “verdadeira” descrição de alguma “circunstância” que existiu e designação. Mas, feito este trabalho, o resultado não é que não
no passado. Estas argumentações “evidenciais” são “encontradas” há fatos, mas que há milhões deles. Consequentemente, a situação
no arquivo “histórico” e têm ao seu redor – quando corroboradas encontrada pelo historiador não é uma de não-existência ou
– a aura factual. Esta aura emerge na fase de pesquisa da prática carência, mas sim de abundância ou plenitude. Dessa forma, o
histórica, mas vem à tona em um texto repleto de aparatos de problema do historiador é selecionar, distribuir, “pesar”, dar sentido
erudição (como notas de rodapé) que sugerem que o que está (que nunca se encontra ali previamente), sempre para apenas
sendo representado é o passado como tal. Mas desde “O discurso alguns dos “fatos”, em combinações problemáticas relativas a uma
da história” de Roland Barthes, ninguém realmente aceita a visão série de interesses que sempre os combina em contextos arbitrários
da história como um discurso comprometido em buscar o passado e casuais. Assim, diz Ankersmit, “escrever textos históricos requer
em algum tipo de estado pré-discursivo: o passado historicizado é do historiador uma política com relação à argumentação” e “o
“sempre já” textual. Pois, como comenta Tony Bennett, tudo o texto é um resultado desta política”.
que já foi ou será tema de um discurso histórico é o que pode ser Os historiadores têm cuidado com suas argumentações, diz
extraído intertextualmente da documentação e de arquivos Ankersmit, porque estas argumentações “determinam a ‘imagem’
genéricos, sendo este (em si mesmo discursivo) constructo que da parte do passado que eles visam apresentar a seus leitores
funciona como o referente do historiador no que ele constitui “a como uma proposta de como compreender aquele passado”. E
última corte de apelação para a veracidade de argumentações assim imediatamente vemos o problema de tentar verificar tal
históricas (não textos, argumentações)”. ‘imagem’ ou ‘proposta’ como ‘objetiva’ ou ‘verdadeira’: a imagem
O primeiro ponto de Ankersmit é que enquanto esta “corte ou proposta (geralmente em forma narrativa) pertence a uma
de apelação” existe (ainda que sempre problematicamente) no categoria diferente em relação às argumentações singulares, de
nível de argumentações singulares (ou a crônica), ela não existe tal forma que prová-la é impossível. Pois enquanto argumentações
onde mais interessa – no nível do texto: o passado historicizado individuais de tipo cognitivo podem ser verificadas através de
pode ser sempre textual, mas nunca é literalmente um texto, o que rastros discretos de evidência para checar se correspondem,
significa, diz Ankersmit, que a história como prática discursiva imagens ou propostas não podem ser verificadas desta forma
nunca foi e nunca será uma epistemologia, que objetividade e simplesmente porque o passado não tem em si imagens ou
verdade portanto não se encontram finalmente em discussão (e propostas de si mesmo anteriores a esta combinação para verificá-
nunca poderão estar em discussão) no nível do texto histórico. las. Assim, devemos concordar com Ankersmit (e Hayden White)
O segundo ponto deriva disto. Com a possível excessão de que a “história” é sempre tão imaginada quanto encontrada, e
algumas áreas do passado com rastros quase inexistentes, os historicizações são “inexpurgavelmente relativistas”, estéticas, não-
eventuais rastros e assim as argumentações evidenciais cognitivas, posicionadas. Ankersmit conclui que dizer coisas
“verdadeiras” disponíveis à maioria dos historiadores possibilita- verdadeiras sobre os rastros do passado no nível da argumentação
os de escrever muitas outras argumentações verdadeiras sobre o é fácil – qualquer um pode fazer isso – mas dizer coisas
passado histórico além daquelas encontradas em seus textos. verdadeiras, coisas cognitivas, sobre os rastros do passado no nível

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do texto é categoricamente impossível – ninguém pode fazê-lo. da evidência ao texto. Mas é evidente que isso é um equívoco. No
Pois textos não são entidades cognitivas, empíricas e historicizar do passado – na maneira que ele é moldado, tropeizado,
epistemológicas, mas convites especulativos e ligados a propostas compreendido, narrado – tudo acontece no percurso em que a
para imaginar o passado no infinito. O slogan de Ankersmit é: “a descrição se torna apresentação, deixando-nos com o insolúvel
argumentação é moderna, o texto é pós-moderno”. problema de tentar adivinhar onde termina a apresentação e
Esta teoria de argumentações e textos é complementada começa a realidade, onde termina a realidade e começa a
pela teoria de Ankersmit de substâncias narrativas. Esta teoria apresentação. Tomemos a Grã-Bretanha dos anos 60 como
aproxima-se da asserção de Willard van Orman Quine, em “Dois exemplo. Digamos que todo um grupo de historiadores concorde
Dogmas do Empirismo”, que o discurso sempre ocorre com a sua descrição, com os fatos dos anos 60. Então eles devem
acompanhado de argumentações “sintéticas” sobre a “realidade” decidir como apresentar os anos 60. Foi uma década de trauma
e argumentações “analíticas” surgidas auto-referencialmente fora ou foram anos de banalidades? De alegria? Ou foi mesmo uma
de práticas linguísticas. Ankersmit nos dá como exemplo a lei de década preguiçosa, uma década meio dorminhoca? Ou foram
Newton que afirma que força é produto da massa e aceleração. realmente os anos dourados? A maneira que os anos da década
Podemos dizer que esta argumentação é uma verdade sintética, de 60 foram continua exatamente a mesma. Eles são sinteticamente
pois concorda com o comportamento observado em objetos físicos. finitos. Mas as maneiras em que eles podem ser narrados
Mas também podemos dizer que é uma verdade analítica, já que historicamente são infinitas. E como poderíamos saber se os anos
parece verdadeira por definição, pois “força” significa apenas o 60 foram realmente dourados e não dorminhocos? Portanto, para
produto de massa e aceleração. E, para Ankersmit, isto é Ankersmit, substâncias narrativas se constituem precisamente
paradigmático da maneira que o significado é colocado na através do uso de nomes próprios como, O Iluminismo, O
“realidade” de nosso mundo: neste caso, através do uso necessário Renascimento, A Revolução Industrial, Os Anos Rebeldes. Eles
de ambos o conceito não-mundano, imaginário e analítico de força, são constituídos conceitualmente, analiticamente, sem levar em
massa e aceleração e a observação empírica do comportamento conta as reais condições do passado:
de objetos físicos. Significados são tanto imaginados (analíticos)
“substâncias narrativas são apenas ‘verdadeiras’
quanto encontrados (sintéticos).
analiticamente através das argumentações internas
Consequentemente, o conhecimento histórico nunca é do texto e nunca externamente (sinteticamente)
apenas do tipo cognitivo, empírico, sintético; a evidência “histórica” verdadeiras porque não há um Iluminismo [por
nunca dita completamente a categoria analítica pela qual é dotada exemplo] ‘lá fora’ com o qual possa existir uma
de significado, portanto, sempre uma mistura do imaginário e do correspondência antes da sua criação como um
real apresentada através de mediações que outorgam aos fatos substantivo composto/próprio para seu grupo de
sua aura de real, o âmbito empírico do conhecimento histórico argumentações.”
entra em colapso: a história não é uma epistemologia. Claro, diz Se uma substância narrativa como O Renascimento se torna
Ankersmit, é fácil notar porque os historiadores se sentem atraídos corrente entre historiadores, então pode parecer como se realmente
pela idéia de que a “evidência histórica” dita qual representação o existisse um Renascimento lá fora que foi descoberto. Mas o que
historiador deveria produzir sobre o passado, pois apenas neste realmente está acontecendo é a aceitação geral de uma maneira
caso poderia-se dizer que nada de interessante ocorre no caminho de pensar proposta, de uma categoria analítica. Nada mais.
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Então, resumindo, o historiador se depara com uma de classes; a tradição da pequena narrativa com letra minúscula
abundância de fatos para utilizar na construção de um texto, se situou mais nos galhos, mas, ainda assim, continuou
uma interpretação, uma imagem de parte do passado, uma enfocando o tronco. O pós-modernismo modificou a direção e
proposta de compreender o passado de uma certa maneira. Já o objeto do olhar do historiador numa direção diferente daquela
que o tribunal dos fatos está disponível apenas no nível da do tronco e os galhos (pode-se talvez adicionar os ramos e os
argumentação, esta mesma interpretação não pode ser caules) para as folhas. Numa visão pós-moderna da história, o
verificada com relação a um passado independente. A aceitação objetivo já não é mais a integração síntese, totalidade,
geral de uma substância narrativa, em si mesma uma mistura objetividade ou verdade dialética. Se queremos privilegiar
de categorias analíticas com evidências sintéticas, pode levar alguma coisa, na visão pós-moderna, podemos privilegiar apenas
ao congelamento daquela substância e à ilusão de que ela as folhas. Diz Ankersmit que o pós-modernismo é o outono da
corresponde a um passado independente. Mas isto é uma ilusão. história: as folhas caíram da árvore.
Pois não há um passado-base através do qual possamos Acho que pode ser útil fazer um adendo à metáfora da
comparar, por exemplo, diferentes imagens do Renascimento árvore. Já que nunca houve realmente algo além das folhas,
para ver qual corresponde ao próprio passado, o próprio passado elas não se desprenderam de algum tipo de árvore. Nunca houve
não possui papel algum no discurso histórico. Do ponto de vista uma árvore. Nunca houve um tronco. Nem galhos. Nem ramos.
do conhecimento histórico, este referencial, este passado Nem caules. O que sempre existiu são as folhas, e não temos
sintético é uma noção inútil. Tudo o que temos são textos, idéia de onde elas vêm, o que significam ou porque existem
combinações do sintético e do analítico, e podemos comparar (existiram). Mas desta existência fenomenal inferimos essências
textos apenas a textos. Intertextualidade, e não o passado em fantásticas, significados, teleologias, objetividades e verdades
si, é o sempre problemático e interpretativo ponto final. para explicá-las. No varrer e amontoar das folhas, nas várias
Esta indecisão radical é, para Ankersmit, parte integral pilhas em que tentamos colocá-las, temos tentado compreender
para a compreensão da liberdade política e possibilidades através delas, como fazemos com as folhas no chá1 , todo tipo
futuras. Para haver liberdade deve existir escolhas, de previsão do futuro. Mas como dissolvemos tudo isso em
oportunidades para decisões. Pois se houvesse apenas uma eventualidade, neste relativismo que simplesmente é a condição
interpretação do passado, não haveria mais uma interpretação, humana, restam-nos apenas as folhas.
mas a verdade. E esta teria então que ser aceita por todos O próprio Ankersmit tem nostalgia do passado histórico
menos aqueles contentes em ser do contra e em ser tratados e historicizado, como fica claro em sua apreciação da micro-
de acordo. Politicamente, não é o relativismo relaxado que história ou folha-história no último capítulo de History and
deveríamos temer, mas pessoas, instituições e estados que Tropology. Mas para que esta nostalgia? Da perspectiva de
afirmam conhecer a verdade das coisas no que é na realidade trabalhar em direção a um futuro emancipador além do
irredutível a uma questão de interpretação. experimento da modernidade, o jeito deve ser, como Hayden
E é esta indecisão radical, digo eu, que leva ao fim da White afirmou, não entrar na história mas sair dela. Se for
história. Ankersmit compara a história a uma árvore: a tradição assim, qual o motivo para mais um monte de folhas mortas?
metanarrativa com letra maiúscula enfocou o tronco, utilizando- Talvez devêssemos deixar as folhas em paz.
o para definir a essência da árvore, como o progresso ou a luta

18 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 19
BIBLIOGRAFIA: Andrew Hussey, Paris underground (Penguin)
Lucy Iragaray, Speculum of the other Woman (Cornell)
ANKERSMIT, F.R. Narrative Logic. A Semantic Analysis of the Lucy Iragaray, To Be Two (Athlone)
Historian’s Language. Estados Unidos: Kluwer, 1983. Lucy Iragaray, Democracy Begins Between Two (Routledge)
__________. History and Tropology: The Rise and Fall of Metaphor. Keith Jenkins, Why History? Ethics and Postmodernity (Routledge)
Berkeley: University of California Press, 1994. Keith Jenkins (ed.), The Postmodern History Reader (Routledge)
__________. The Linguistic Turn, Literary Theory and Historical Jean-François Lyotard, A Condição Pós-Moderna (José Olímpio)
Theory. Historia, vol. 45, no 2, 2000. pp. 271 -311. Lois McNay, Foucault and Feminism (Polity)
__________. Resposta a Zagorin. Topoi, Rio de Janeiro, março 2001. Christopher Norris, The Truth About Postmodernism (Blackwell)
pp. 153-173. Christopher Norris, Deconstruction and the Unfinished Project of
__________. História y Tropologia: Ascenso y caída de la metáfora. Modernity (Athlone)
México: Fondo de Cultura Economica, 2004. Richard Rorty, ‘Filosofia como um tipo de escrita’ em seu
JENKINS, Keith. A História Repensada. São Paulo: Contexto, 2001. Consequências do Pragmatismo (Instituto Piaget)
QUINE, Willard van Orman. Dois Dogmas do Empirismo. In RYLE,
STRAWSON, AUSTIN & QUINE. Coleção Os Pensadores. São Paulo:
Abril Cultural, 1980, p. 231-248.

LEITURA RECOMENDADA

Ankersmit, Frank. Narrative Logic. Dordrech: Kluwer, 1996.


Frank Ankersmit, History and Tropology (University of California
Press)
Jean Baudrillard, Simulacros e simulação (Antropos)
Jean Baudrillard, Selected Writings (Polity)
Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo (Contraponto)
Jacques Derrida, Espectros de Marx (Relume-Dumará)
Michel Foucault, História da Sexualidade I – A Vontade de Saber
(Graal)
Michel Foucault, Vigiar e Punir (Vozes)
Michel Foucault, The Foucault Reader (Penguin)
Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem (Loyola)
Jürgen Habermas, O Discurso Filosófico da Modernidade (Martins
Fontes)
David Harvey, Condição Pós-Moderna (Loyola)
Andrew Hussey, The Game of War: The Life and Death of Guy
Debord (Plimlico)

20 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 21
O BRASIL NA CRIAÇÃO DA ORDEM MILITAR DA
TORRE E ESPADA, A MAIS ALTA CONDECORAÇÃO
PORTUGUESA
Humberto Nuno de Oliveira*

Resumo
Há duzentos anos, recém desembarcado no Brasil
o regente D. João instituía – ou recriava – a Ordem
da Espada, embrião da Ordem Militar da Torre e
Espada, Valor, Lealdade e Mérito que, embora criada
para fazer face a necessidades conjunturais
específicas, a breve trecho se transformou na mais
importante – e consequentemente mais desejada –
das condecorações militares portuguesas. Neste ano
do duplo centenário da sua instituição importa
relembrá-la na sua antecessora tardo-medieva, nos
seus objectivos iniciais e, ao mesmo tempo, bosquejar
a conjuntura que envolve o Brasil na sua instituição.

Palvras-chave: Ordem da Torre e Espada / Falerística / Brasil

Abstract
Two hundred years, just after disembarked in Brazil
regent John instituted - or recreated - the Order of
the Sword, embryo of the Military Order of the
Tower and Sword, Valour, Loyalty and Merit.
Created to face specific conjunctural necessities, it
soon watched its transformation into the most
important - and consequently most desired - of all

* Humberto Nuno de Oliveira é Professor de História Diplomática da


Universidade Lusíada de Lisboa; Director dos Serviços Editoriais,
Comunicação
. e Imagem da Fundação Minerva (Universidade
Lusíada); membro da Academia Lusitana de Heráldica, da Sociedade
de Geografia de Lisboa, da Sociedade Histórica da Independência
de Portugal, e PHD in Military and Diplomatic History .
.
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Portuguese military decorations. In this double Comemora-se, assim, neste ano de 2008 tão repleto de
centenarian year it is interesting to recall its late- comemorações luso-brasileiras, a do duplo centenário da Ordem
medieval predecessor order, its initial objectives and Militar da Torre e Espada3 , a primeira ordem criada no Rio de
also to remind the conjuncture that involves Brazil Janeiro e que assim liga o Brasil de modo indissociável à história
in its institution. falerística portuguesa e à da mais importante condecoração
Keywords: Order of the Tower and the Sword / Phaleristics / Brazil portuguesa, porque apesar de brasileira na instituição, portuguesa
se manteve durante toda a permanência da corte no Brasil, não
Pouco se escreve na historiografia de expressão portuguesa, sendo então atribuída a naturais brasileiros4 .
particularmente em Portugal, e cremos que outro tanto ocorrerá Foram pois, como se verá, circunstâncias muito especiais
no Brasil1 , sobre a temática falerística2 , trata-se, assim, ao invés que levaram o príncipe regente D. João a criar, ou recriar, a Ordem
de outros países, de uma área de estudo que não vem merecendo da Espada, cuja origem como ordem de cavalaria remonta ao
a devida e desejada atenção. Exceptuam-se naturalmente os já reinado de D. Afonso V. Este rei, com efeito, haveria instituído,
antigos trabalhos de Henrique de Campos Ferreira Lima, e algumas como era moda na época, e apanágio das suas preocupações
outras, poucas, visitações, igualmente distantes, nas excelentes emblemático-simbológicas (Oliveira, 1998), uma ordem de
Revista Militar e Jornal do Exército. Sem falsa modéstia cavalaria de duração efémera, destinada a recompensar os feitos
pensamos presentemente integrar um recente esforço de alteração gloriosos cometidos durante as conquistas em território muçulmano
de tal panorama (Estrela 2005, 2006a e 2006b, Furtado 2008, no norte de África e que lhe valeram o cognome de “Africano”.
Oliveira 2005, 2006 e 2007 e Oliveira e Furtado 2008). Não existe porém confirmação documental coeva a respeito
A transferência da Corte de Portugal para o Brasil, há desta fundação, embora ela venha referida, por vezes de modo pouco
duzentos anos, quando as tropas invasoras francesas comandadas preciso, em inúmeras obras a partir do século XVI. Se esta Ordem,
por Junot calcorreavam já a metrópole, que correspondeu a uma tema de escritos vários, na ausência de um acto fundacional terá sido
notável e até então inédita opção estratégica de deslocalização da devida a uma intenção, a um qualquer comentário proferido, a uma
sede do poder com vista a impedir a sua captura por forças inimigas. lenda recente, ou a uma efectiva realidade, não o podemos saber.
Permitiu, além do mais, opor com eficácia aos interesses continentais A primeira referência, de 1552, à “Ordem de Espada” é
franco-hispanos, uma plena aliança com a potência marítima dominante, devida a João de Barros que na sua Ásia, Década I, nos diz:
a Grã-Bretanha. Terá sido este reforço da tradicional aliança luso- “na qual guerra de Africa teve tanto contentamento,
britânica, bem como a activa participação e envolvimento de por as boas venturas que nella houve, que
militares e diplomatas britânicos na transferência da corte para empreendeo, (se lhe os negócios do governo do
terras de Vera Cruz, lord Strangford foi aliás um dos primeiros Reyno deram lugar,) ir tomar per sua pessoa a
recipiendários da Grã-Cruz da nova Ordem, e mais tarde na defesa Cidade de Fez, e todo o seu Reyno, pera que tinha
de Portugal continental, que teve como inesperada consequência ordenado huma Ordem chamada de Espada”. (Livro
a criação da Ordem da Espada, embrião da Ordem Militar da II, Cap. II, p. 149)
Torre e Espada que em poucos anos se haveria de alcandorar ao A referência de 1595 de Fr. Hieronimo Roman nas suas
mais alto lugar de entre as condecorações portuguesas, Republicas del Mundo é particularmente importante porquanto,
destronando, rapidamente, as tradicionais, disputadas e vetustas a fazer fé neste frade espanhol da Ordem de Santo Agostinho,
Ordens Militares de Cristo, de Avis e de Santiago de Espada. que residiu em Portugal, no Convento da Graça em Lisboa, durante

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alguns anos, na década de sessenta e, mais tarde, na década de documentos em que ela vinha nomeada constavam, como afiança
oitenta, por altura da aclamação de Filipe II como rei de Portugal Frei Hieronimo Roman, do arquivo da Sereníssima Casa de
nas Cortes de Tomar, os documentos relativos à Ordem não apenas Bragança, porque os não consultaram os autores posteriores que
teriam existido efectivamente, como por si teriam sido consultados. pouco mais vão fazendo do que repetir aquilo que o agostinho
Poderemos fazer fé neste autor que, por ter vivido em Portugal escreveu? Se na realidade a simples hipótese de os mesmos se
não apenas obteve um aprofundado conhecimento da história terem perdido, sido levados ou simplesmente desaparecido não
nacional, como ainda um privilegiado acesso às fontes sobre as pode ser posta de parte como hipótese de trabalho importa constatar
quais mais tarde iria redigir textos fundamentais, entre outras coisas, que, dificilmente, poderemos encontrar fundamentados motivos
para o estudo das Ordens Militares? que levassem aquele frei espanhol a tão rebuscada invenção.
“Jo agora como anduuiesse buscado diuersas cosas
A verdade é que no século XVII as referências não só
en el Reyno de Portugal, y estuuiesse viendo los continuam como se intensificam. Em 1670 o capuchinho Frei
papeles de la casa de Bragança para la historia que Jacinto de Deus no seu notável tratado sobre sessenta e uma ordens
escriui de aquella casa, tope con algunos libros que militares não deixa de referenciar a criada por D. Afonso V,
conteniam cosas varias y de mucha curiosidad, y chamando-lhe, porém, de “Sant’Iago da Espada”,
entre ellas tope con la fundacion de la orden de la “instituio hua Ordem, sob sua protecção, & nome,
espada de Sanctiago que hizo el Rey Don Alonso el & deu-lhe por diviza, & habito, hua espada
quinto de Portugal. Y aunque alli no se contenia más atravessada na Torre, pendente de hum collar, com
que la regla, después andando con cuydado busque este titulo: Sant’Iago da Espada (…) differente da
por otras partes papeles sueltos adonde halle alguna outra de Sant’Iago, de quem se tratou no § I” (§
mas luz”. (Livro VII, Cap. XX, p. 432) LX, pp. 229-230)
Descreve Fr. Roman que D. Afonso V teria determinado a Sem maior interesse complementar se referem à Ordem
criação de tal ordem de cavalaria por a mesma se mostrar Militar da Espada os escritos do historiador Manuel de Faria e
necessária na distinção dos cavaleiros mais valorosos e que os Sousa, Epitome de las Historias Portuguesas, Europa
mesmos fizessem uso de um colar e divisa para público Portuguesa e Africa Portuguesa, respectivamente de 1677,
reconhecimento. Relata, ainda a lenda, que servirá de modelo 1680 e 1681.
posterior, que na cidade de Fez havia uma torre em cuja pedra O século XVIII, que precede o da criação, ou recriação,
cimeira um mouro colocara supersticiosamente uma espada, da Ordem Militar da Torre e Espada, é um verdadeiro alfobre
dizendo que enquanto a espada aí permanecesse se manteria o de informações sobre a mesma. Além de um manuscrito
domínio muçulmano do Norte de África, ao invés se a mesma integrando a Miscelânea Histórica citado por Serrano (1966,
fosse retirada por um príncipe cristão terminaria esse domínio. p, 23-27), atribuível a este século mas não datável com precisão,
Afirma, ainda que, entre esses papéis, se definia o modelo da venera é sem dúvida a notável obra de Alexandre Ferreira, Historia
e se estipulava o número de cavaleiros da ordem: vinte e sete das Ordens Militares, que houve no Reyno de Portugal, de
tantos quantos os anos do soberano quando passara a África. 1733 o mais completo acervo de informação sobre a “Ordem
Todos quantos estudaram esta temática e particularmente de Santiago da Espada”, que ocupa o capítulo II da obra, e que
Maria Alice Serrano (1966), não podem deixar de estranhar a desde logo sobre o eventual desaparecimento das fontes nos
total ausência de referências coevas à dita Ordem; e se os invectiva com uma culpabilização global:

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“Entro a escrever de huma Ordem, que instituîda “Que elle Rey havia de ser o primeiro Graõ Mestre,
há duzentos e setenta e quatro annos, conserva taõ e o primeiro que recebesse o Habito, e que nella só
poucas memorias, e deveo taõ pouco aos poderiaõ entrar os Principes, e os mais aventajados
Historiadores, que ainda de breves noticias nos Fidalgos de Portugal em obras heróicas de valor,
deixaraõ muy poucas lembranças: sempre nos ou em Nobreza e Qualidade: grandes motivos para
queixamos dos antigos, como senaõ fossem reos a desejarem todos, que vinhaõ a ter o mais honrado
da mesma culpa os modernos; sendo a verdade a brazaõ para as suas Famílias, (…)
alma da Historia”. (p. 77) O Habito particular que haviaõ de trazer ao peito,
era huma Venera de ouro, e nella sobre huma roda
A lenda contemporânea aos sucessos do soberano em huma Espada atravessada na Torre; e a Venera
África e que motiva o surgimento da nova Ordem é detalhadamente andaria pendente de hum Collar de ouro com este
explicada, embora sem novidade de substância: titulo: Santiago da Espada. O Habito publico e para
as funções da Ordem, era hum Manto de damasco
“Hum Cacís Mouro depositou em Fez, na Torre da branco com Murceta ou Capello de terciopello
homenagem, huma espada (a que chamavaõ fadada) negro, muy pomposo, e de authoridade, e Bonete
com o prognostico, que quando os Christãos a de terciopello carmezim, acompanhado da Venera
tirassem, se perderia aquella Cidade, e o Imperio particular. A Bandeira, ou Pendão da Ordem, havia
Africano se renderia ao domínio daquelle Catholico de levar gravada a Torre, com a propria Espada,
Príncipe, que a tirasse: a espada estava cravada até para que os Cavalleiros no sequito da Bandeira se
o meyo pelo capitel da torre; este prognostico, e lembrassem da Espada, e da Torre, a que os
este vaticínio se conservava nas tradições daquellas encaminhava o Habito da Ordem, que professavaõ;
gentes, e na veneração por ser de hum Cacís, e a e na Venera do peito a infundirlhe espiritos no coraçaõ,
para a gloriosa empreza de tirar aquella Espada, e
espada na Torre”. (p. 121)
arruinar aquelle barbaro dominio. (pp. 126-127)
A justificação advém do facto de o soberano, crente que tal Quanto às Constituições: eu as não pude achar
fortuna lhe estaria destinada, após o sucesso de Alcácer Seguer, escritas, (…)” (p. 128)
estar seguro que a glória vaticinada lhe não escaparia: Os ideais de cavalaria tão característicos de D. Afonso V
os podemos igualmente apreender nas palavras de Alexandre
“porque o amor próprio he muy senhor do nosso Ferreira, como quando refere que como cabeça da Ordem mandou
entendimento, e da nossa vontade; e para infundir edificar a igreja de Santiago, na freguesia lisboeta do mesmo nome,
novo animo nos Cavaleiros, e captar a sua onde qual émulo da famosa “távola redonda”:
benevolência ou inclinaçaõ, instituîo huma nova
Ordem Militar, que chamou da Espada, porque com “Parece se ordenou (…) que nesta Igreja de Santiago
as suas haviaõ de trabalhar por aquella. Este o estivessem na Capella môr vinte e sete cadeiras, muy
motivo de instituir esta Ordem” (p. 122) ricas e curiosas, em que se accommodassem os
Cavalleiros, quando alli se achassem, e em cima de
Pormenoriza, de seguida, os aspectos concretos: modo, cada huma as Armas, ou Insignias daquelle
forma, hábito e constituição desta Ordem da Espada: Cavalleiro, a que pertencia”. (pp. 128-129)

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Sobre a data da fundação da Ordem fornece-nos Alexandre Melo, 22 – o alcaide de Arronches e mordomo mor D. Álvaro de
Ferreira uma que reputa de precisa, face às divergências dos Sousa, 23 – o mordomo mor do infante, D. Fernando de Meneses
anteriores autores: “o Roxo”, 24 – o senhor de Távora e Mogadouro, Álvaro Pires de
Távora, 25 – o capitão dos ginetes, Vasco Martins de Sousa
“Porém seguramente hey de dizer, que esta Ordem Chichorro, 26 – o conde de Abranches, D. João de Abranches de
foy instituída no anno de 1459, o que provo com
Almada, capitão de Lisboa e 27 – o visconde de Vila Nova de
evidencia. Todos os que allego, confessão que El
Cerveira e alcaide de Ponte de Lima, D. Leonel de Lima.
Rey D. Affonso tinha vinte e sete annos de idade ao
tempo desta instituição (…), que somados sobre
D. António Caetano de Sousa na sua Historia Genealogica
1432 annos que corriaõ quando nasceo na celebre da Casa Real Portugueza, tomo III, emite julgamento abonatório
Villa de Cintra em 28 de Janeiro, ajustaõ pontualmente sobre a veracidade histórica da fundação da Ordem, baseado nos
os 1459, tendo já os vinte e sete de idade, e vinte e escritos de Fr. Roman:
hum de governo” (p. 132) “Nenhum dos nossos Chronistas antigos fez mençaõ
desta Ordem, e devemos a noticia della ao Padre
Fornece-nos ainda o catálogo ou rol dos primeiros (e únicos?) Fr. Jeronymo Roman, o qual no tempo em que
cavaleiros da Ordem que o “Africano” instituíra. Relação, nalguns passou a Portugal, entre os papeis, que vio na
casos incompleta e pouco precisa que se completou com as Serenissima Casa de Bragança para a Historia, que
posteriores pesquisas pessoais e de outros autores posteriores. desta Casa escreveo, refere, que nella achara alguns
Foram eles: 1 – o rei D. Afonso V, 2 – o príncipe D. João, 3 – o livros, que continhão varias cousas de grande
infante D. Fernando, Grão-Mestre da Ordem de Santiago, irmão curiosidade, e entre ellas encontrara a Fundação da
do rei, 4 – o infante D. Henrique, Administrador da Ordem de Ordem de Cavallaria da Espada de Santiago, que
Cristo, tio do rei, 5 – o senhor D. Afonso, duque de Bragança, tio ElRey D. Affonso V instituira”. (livro IV, p. 3)
do rei, 6 – o marquês de Vila Viçosa, D. Fernando, filho do duque Após abordar os motivos de tal decisão e da lenda
de Bragança, 7 – o conde de Odemira, D. Sancho de Noronha, muçulmana da espada da torre de Fez, acrescenta:
governador de Ceuta, 8 – o conde de Vila Real e de Viana, D.
Pedro de Meneses, 9 – o conde de Monsanto e camareiro mor, D. “E determinado na Conquista da Africa, e querendo
Álvaro de Castro, 10 – o conde de Marialva, D. João Coutinho, 11 com o seu ardor infundir mayores espiritos nos
– o conde de Atouguia, D. Martinho de Ataíde, 12 – o alferes mor, Cavalleiros, instituîo huma nova Ordem Militar, a
que deu o nome da Espada com allusão à Torre de
D. Duarte de Meneses, governador de Alcácer Seguer, 13 – o
Fez, e assim intentada a poz em pratica. Era a divisa,
grão-prior do Crato, D. Fr. Vasco de Ataíde, 14 – o duque de
pendente de hum Collar de ouro, huma venera
Guimarães, D. Fernando, neto do duque de Bragança, 15 – o
redonda, tambem de ouro, em a qual em esmalte
marquês de Montemor-o-novo, D. João, neto do duque de branco, se via atravessada huma Torre com a
Bragança, 16 – o conde de Faro, D. Afonso, neto do duque de Espada. Para esta Ordem escolheo vinte e sete
Bragança, 17 – o conde de Penela, D. Afonso Vasconcelos e Cavalleiros, em memoria de outros tantos annos,
Meneses, 18 – o conde de Cantanhede, D. Pedro de Meneses, 19 que tinha ao tempo, que a instituîo, e se achava
– o alcaide mor de Moura e almirante do reino, D. Nuno Vaz de victorioso em a propria Africa, que vem a ser o
Castelo Branco, 20 – o marechal do reino, D. Fernando Coutinho, anno de 1459, e pelo que se collige, no seguinte já
21 – o conde de Olivença, guarda mor do rei, Rodrigo Afonso de estava instituîda.” (livro IV, p. 4)
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Retomando a letra da Historia das Ordens Militares, Dom fora eleito em seu lugar. Determinou-se, que houvesse
António Caetano de Sousa esclarece em seguida a composição hum Secretario (que na verdade era hum Chronista)
da Ordem, a característica de esforçados e insignes fidalgos que o qual Chronologicamente escrevesse os sucessos
acompanharam D. Afonso V a África, e revela-nos os usos que memoraveis dos Cavalleiros; admiravel advertencia,
acompanharam esta Ordem nos seus primeiros tempos de para que naõ esquecessem com o tempo as gloriozas
existência, acrescentando alguns aspectos novos pelo que se empresas daquella Cavallaria, costume, que devia de
solicita a indulgência dos leitores para a extensão do transcrito: ser em todas praticado, porque naõ se sentiria taõ
repetida falta de acçoens gloriosas; porém sem
“Destes Principes, e Grandes Senhores, se formou embargo desta prevençaõ, o tempo até desta Ordem
esta Ordem, e entendemos, que elles foraõ os que naõ deixou memoria nas Chronicas do Reyno. (...).
sómente a receberaõ: ElRey lhe ordenou os Estatutos, Era o dia mais solemne o do Patraõ de Hespanha o
e obrigaçoens, que nella se haviaõ de guardar. Apostolo Santiago, agora especial Protector da nova
Primeiramente lhe assinou para dias de funçaõ, e Ordem de Cavallaria, que festejavaõ com solemnes
Capella, huns mantos de damasco branco, com certas vesperas, a que ElRey havia de assistir com todos os
murças de veludo negro, com barretes encarnados. Cavalleiros, que se achavaõ na Corte, revestidos com
Promettiaõ os desta Ordem de Cavallaria, sobre huma os seus mantos, sobre que acentavaõ os Collares
inviolavel fidelidade a ElRey de seguir a guerra, (…). O Cavalleiro, que falecia, era obrigado a deixar
principalmente contra os Mouros, em que seriaõ à Ordem o seu Collar, para a Capella da Igreja de
antepostos huns aos outros, sómente pellas acçoens, Santiago, o qual se convertia em prata, ou
e feitos sinalados que se encaminhassem ao augmento ornamentos do culto Divino. [...] Se estes grandes
da Religiaõ, e da Fé Catholica. Nella naõ podiaõ entrar Senhores, que deraõ principio a esta Ordem, a
pessoas, se naõ de grande cathegoria, e estados : receberaõ, e continuaraõ depois mais alguns, naõ o
porém se algum se assinalasse muito na guerra contra sabemos, nem menos se esta idéa delRey D. Afonso
os Infieis, se poderia igualar para ser admittido à passou à execuçaõ, porque nenhum vestigio achamos
honra da Ordem. Naõ excedia o numero de vinte e do seu principio, nem do seu estabelicimento; porque
sete, e quando se provesse algum lugar havia de ser os apontamentos que o Padre Roman allega, podiaõ
por authoridade delRey, como Graõ Mestre, e de muito bem ser huma premeditaçaõ da idéa delRey, e
consentimento de doze Cavalleiros ao menos, que dos que destinava honrar com ella, a que nos
eraõ como do Conselho; porém se na Corte se persuade o silencio dos Chronistas, e dos
achassem mais Cavalleiros, todos seriaõ chamados monumentos daquelle tempo, que em nenhum se acha
para o provimento, e para todas as mais cousas, que nomeado algum daquelles Senhores por Cavalleiro
pertencessem a esta Ordem de Cavallaria. Tomou da Espada”. (livro IV, p. 5-7)
ElRey por Protector desta Ordem ao Apostolo
Santiago, e para que nella fosse o Santo venerado, Uma vez mais não podemos todavia deixar de estranhar a
fez fundar em Lisboa huma Igreja, que dedicou a total ausência de referências coevas à dita Ordem5 ; e se os
este Apostolo, em a qual se lavrou um Coro muy documentos em que ela vinha nomeada constavam do arquivo da
rico, com vinte e sete cadeiras, em cada huma das Sereníssima Casa de Bragança, porque os não os viu e consultou
quaes se via o Escudo das armas do Cavalleiro, que D. António Caetano de Sousa, competente investigador que
a occupava, e por sua morte se ajuntava às do que efectivamente trabalhou nesse arquivo?
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Para além dos extensos contributos de setecentistas de dessa Ordem. Causas próprias de uma complexa conjuntura em
Alexandre Ferreira e de D. António Caetano de Sousa outros que o príncipe-regente sentiu a necessidade de instituir esta nova
notáveis autores se referiram ainda, com menor extensão, à ordem condecoração “puramente civil” para a qual, seguramente, não
criada por D. Afonso V. Encontram-se entre eles Manuel Severim poderia prever tão significativa quanto rápida ascensão. Os
de Faria nas Noticias de Portugal, 1740, o Padre João Baptista objectivos da sua criação encontram-se no texto do próprio Decreto
de Castro no Mappa de Portugal, 1744 e Damião de Lemos e resumem-se aos seguintes:
Faria e Castro na sua Historia Geral de Portugal, 1787. - para “remunerar os mais relevantes serviços, assim como
De qualquer modo, longe destas preocupações heurísticas dos seus Vassalos, como de ilustres Estrangeiros, que não tiverem
e de modo relevante para este estudo, a memória, real ou lendária, outro prémio, que lhes seja equivalente, senão o da honra”;
da Ordem da Espada foi recuperada pelo príncipe-regente D. João - para comemorar épocas assinaladas, “não podendo deixar
em 1808, por ocasião da transferência da corte para o Brasil. O de se contar entre estas a presente Minha feliz Jornada para estes
texto do alvará de (re)criação refere as curiosas componentes Estados do Brazil, donde Espero hajão de resultar não só grandes
históricas anteriores, sendo por isso de considerar que se terá reparos aos danos actualmente experimentados pelos Meus Povos
directamente inspirado nas obras de autores anteriores. no Reino de Portugal, mas também muitos lucros e successos de
A transferência da Corte para o Brasil, como se disse, honra, e de gloria, devidos a sua fidelidade, e a abundanciados
correspondeu a uma notável opção estratégica portuguesa Meus Thesouros da América, e liberdade de Commercio, que Fui
(monarquia à qual não sucedeu o que então foi comum na Europa, Servido Conceder aos seus Naturaes”;
a captura do rei e a sua substituição por um familiar ou apoiante - para recompensar pessoas “que tão lealmente me
de Napoleão Bonaparte) que veio alterar de modo inequívoco a acompanharão, e assistirão, sacrificando os seus próprios interesses
história dos dois países e que entre as profundíssimas ao maior bem da honra, e da vassalagem, que Me he devida”;
transformações operadas teve como inesperada, mas directa, - por “nenhuma das tres Ordens Militares, que actualmente
consequência a criação da Ordem da Espada, cujos quatro presistem nestes Meus Reinos, por serem juntamente religiosas, se
primeiros documentos que a regulam são promulgadas no Paço pode applicar áquellas Pessoas, que não tiverem a felicidade de
na cidade do Rio de Janeiro, o Palácio da Boavista: o Decreto de professarem a nossa Santa Religião, aliás merecedoras das mais
13 de Maio de 1808, a Carta de Lei de 29 de Novembro de 1808, dintinctas honras por Armas, ou outros quasquer empregos, ou serviços,
o Alvará de 5 de Julho de 1809 e o Alvará de 23 de Abril de 1810. de cujo merecimento Me seja necessário usar com muita frequência”.
O Decreto de 13 de Maio esclarece que a ideia da nova Foram, assim, estres quatro motivos “e outros igualmente
Ordem é contemporânea da chegada da frota à Baía de Todos- dignos” que levaram D. João a “renovar, e augmentar a única Ordem
os-Santos6 , em 21 de Janeiro de 1808, ou eventualmente do de Cavallaria, que se acha ter sido instituída puramente civil por algum
histórico momento ocorrido no dia seguinte em que, pela primeira dos Senhores Reis Portuguezes, qual a intitulada Ordem de Espada,
vez na história, um príncipe soberano europeu pisava o continente que o foi pelo Senhor Rei D. Affonso V, de muito illustre e esclarecida
americano, uma vez que o próprio documento refere que o príncipe- memoria; para cujo fim Fui já Servido na Cidade da Bahia mandar
regente com ela já havia “gratificado dois beneméritos Vassalos abrir huma medalha com esta letra – Valor e Lealdade”.
do Meu fiel, e antigo alliado El-Rei da Gran-Bretanha” (um deles
provavelmente lorde Strangford). O carácter extraordinário da A Carta de Lei de 29 de Novembro do mesmo ano, alterou
“restauração” da Ordem, e das suas razões, encontra-se no a designação de Ordem da Espada, para Ordem da Torre e Espada,
Decreto instituidor, que aponta as causas para a “restauração” introduzindo-lhe outras alterações. Repetem-se, quase nos mesmos
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moldes os motivos de instituição especificando-se, que a Ordem Alferes, o infante D. Pedro Carlos (sobrinho de D. João),
serve “para premiar distictos Serviços Militares, Políticos, e Civis, determinando-se que para futuro “serão sempre Grans Mestres
sendo esta moeda da honra a mais inexhaurivel, e a de mais subido os Senhores Reis desta Monarchia e Grans Cruzes os Príncipes, e
preço para estimulo de acções honradas”, o relevante facto que Infantes, sendo Commendador mor o Sucessor Presumptivo da
constituiu a chegada da corte ao Brasil é de novo igualmente Coroa, e Claveiro o mais velho dos Infantes, e Alferes o que se
referenciada, “assignallar nas Eras vindouras esta memoravel lhe seguir”. Além destes a Ordem compreenderia doze grã-cruzes,
Epoca, em que Aportei felizmente a esta parte importantissima dos quais seis efectivos e seis honorários, oito comendadores
dos Meus Estados, os quaes por meio deste grande, e extraordinario efectivos, e um número ilimitado de comendadores honorários e
acontecimento, e pela immensa riqueza dos Thesouros, que lhes cavaleiros, em número ilimitado. No caso dos grã-cruzes e
prodigalizou a natureza, e pela liberdade, e franqueza do comendadores os honorários só ascenderiam a efectivos,
Commercio, que Fui Servido conceder aos seus Naturaes, hão de respeitando-se a sua antiguidade, por morte de algum deles. Para
elevar-se a hum gráo de consideração mui vantajoso”, outrossim os cavaleiros, cujo número não era definido, aplicava-se outra
a dedicação dos que acompanharam a família real é de novo disposição: como aos primeiros nomeados nesta categoria caberia
relembrada, “premiar também aquelles Meus Vassallos, que uma tença de cem mil reis, aos que posteriormente fossem
proferirão a honra de acompanhar-Me a todos os seus interesses, nomeados se aplicaria idêntico procedimento, aguardariam a morte
abandonando-os para terem a feliz dita de me seguirem” e de algum deles para por antiguidade lhe suceder na referida tença.
finalmente a necessidade de condecorar estrangeiros não católicos, A insígnia da Ordem consistia numa “chapa de Ouro redonda,
impossibilitados, assim, de ser condecorados com as antigas Ordens que terá de hum lado a Minha Real Effigie, e no reverso huma
Militares em uso devido à sua carga religiosa, “premiar os distinctos Espada com a Letra – Valor, e Lealdade – para os simples
Serviços de alguns illustres Estrangeiros, Vassallos do Meu antigo, Cavalleiros: e para os Commendadores, e Grans Cruzes, terá mais
e fiel Alliado ElRei da Grã-Bretanha, que Me accompanhárão com huma Torre no cimo della; e poderão na Casaca usar de Chapa,
muito zelo nesta Viagem (…) porque tendo-se-lhes unido em que tenhão a Espada, e Torre, e a Legenda acima referida”.
instituições, e cerimonias religiosas, não quadrão aos estrangeiros As medalhas eram pendentes de uma fita azul; aos grã-cruzes
de diversa crença, e communhão merecedores de premios desta competia o uso de banda, também azul. Para os dias de Corte e
natureza”. É, pois, para fazer face a tais necessidades que D. grande gala, estava previsto o uso do colar formado por torres e
João recriou esta Ordem por ser a “única Ordem puramente espadas alternadas. Dispunha-se, ainda que em caso de
Politica, e de instituição Portuguesa (…) que foi creada na Era de falecimento dos grã-cruzes as mesmas deveriam ser entregues
mil quatrocentos cincoenta e nove pelo Senhor Rei D. Affonso V ao Ministro de Estado dos Negócios do Brasil para que este as
(…) com o Titulo de Ordem da Espada, para celebrar o ditoso desse ao regente para de novo serem conferidas.
acontecimento da Conquista (…) Fui Servido Instaurar, e Renovar Estando o regente no Brasil, onde a Ordem foi instituída, e
a sobredita Ordem da Espada (…) e para Dar-lhe mais estabilidade sendo necessário encontrar as comendas para a mesma foi, pois,
e explendor (…), Hei por bem Determinar (…) [que] A mencionada no continente americano que D. João as teve que encontrar o que,
Ordem ficará designada com o nome da Torre e Espada”. ainda mais liga o Brasil à instituição desta Ordem, “Sendo o fim
A Ordem da Torre e Espada restaurada por D. João passaria principal da renovação desta Ordem o premiar as grandes acções,
a ter a seguinte composição: por Grão-Mestre, o rei; o Grão-Cruz e Serviços, que se Me fizerem, Hei por bel Estabelecer seis
Comendador Mor o príncipe da Beira (D. Pedro); o Grão-Cruz Commendas para os seis Grans Cruzes Effectivos, que hão de
Claveiro, o mais velho dos infantes (D. Miguel); o Grão-Cruz consistir em huma doação de duas léguas7 de raiz, ou quatro
36 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 37
quadradas de terra cada huma, e oito Commendas de legoa e Finalmente o Alvará de 23 de Abril de 1810, vem definir
meia de raiz, ou duas e hum quarto de quadradas para os alterações nos modelos e utilização das insígnias da Ordem:
Commendadores”. Tais comendas seriam instituídas, na dimensão “havendo estabelecido pela Carta de Lei de vinte e nove de
definida, em terrenos incultos e desaproveitados que não se Novembro de mil oitocentos e oito, que os Grans-Cruzes, e
encontrassem na posse de nenhuma outra pessoa, sendo lícito aos Commendadores da nova Ordem da Torre e Espada usasem na
comendadores aforarem o terreno a colonos para aumento da casaca de huma Chapa na forma do Modelo, que com a mesma
cultura e povoação. A totalidade destas comendas constituiria o Carta de Lei se imprime: Sou Servido, que da mesma continuam a
património da Ordem, e para tal tornava-se necessário o usar, com a differença somente, que a Legenda Valor e Lealdade
envolvimento das capitanias do Brasil “para se conhecer onde há seja inscrita com Letras de Ouro em campo azul ferrete: E
terrenos incultos, e desaproveitados, que convenhão para esta Determino outrosim, que os Cavalleiros da dita Ordem usem
Instituição, cujo regímen se estabelecerá melhor nos Estatutos, também da Torre sobre a Medalha, á maneira dos
que Mando formar para esta Ordem”. O papel do Brasil revela- Commendadores”.
se fundamental ao ser estabelecido que: “Devendo ter esta Ordem Não obstante os cuidados postos na criação desta Ordem,
Estatutos apropriados para o seu regímen, e não convindo, que se como a própria natureza desta recriação indicava, a Ordem da
fação senão depois de creada, e estabelecidas as Commendas; Torre e Espada teve de início uma suposta diminuta influência,
Ordeno que pelo Meu Ministro, e Secretario de Estado dos aparentemente destinando-se mais aos círculos estrangeiros do
Negócios do Brazil, se expeção ordens para os Governadores das que aos portugueses. Cedo, porém, estas supostas premissas se
diversas Capitanias deste Estado, a fim de que informem os terrenos alterariam, tornando-a cobiçada entre as suas congéneres, tanto
que há nas suas Capitanias baldios, e que nunca fossem possuídos, mais que, de modo evidente, rompia com o passado (numa
e com as circunstancias necessárias para o estabelecimento destas perspectiva simbológica) e se constituía como Ordem de uma nova
Commendas”, medida que foi implementada com zelo, face à realidade emergente. Estava porém destinada a sofrer ainda mais
determinação de D. João nesta instituição. um restabelecimento, ligado também ele à evolução política do
Definia-se, também o dia da Ordem como sendo vinte e país o que ainda mais a consolidou.
dois de Janeiro “em memoria daquelle em que Aportei a estes Seria uma sangrenta guerra civil em que se opuseram
Estados”, o juramento e modo de investidura perante a Mesa da legitimistas, partidários do Rei D. Miguel I, e liberais, defensores
Consciência e Ordens, em que o juramento seria de “Valor, e da realeza de D. Maria II (cujos direitos lhe advinham de seu pai,
Lealdade” após o que um cavaleiro ou comendador, com a D. Pedro I, Imperador do Brasil). Não dispunha D. Pedro como
assistência de outros dois, lhe imporiam a venera, lavrando-se premiar os actos de valentia às forças liberais, às quais se chamava
termo no livro respectivo. “Exército Libertador”8 , já que todas as ordens militares se
Devido à ausência de definição de alguns aspectos o Alvará encontravam sob alçada do legítimo governo de D. Miguel. Data
de 5 de Julho de 1809 tenta contrariar uma eventual vulgarização assim de 28 de Julho de 1832 (no decurso do cerco do Porto) o
da Ordem que assim perderia o seu “preço, e valor”, pelo que Alvará que cria novamente a Ordem da Torre e Espada,
determina em complemento à legislação do ano anterior, que o coexistindo duas neste conturbado período da história de Portugal
número de comendadores honorários não exceda os vinte e quatro até ao final da guerra civil em 26 de Maio de 1834.
e que o de cavaleiros se confine a cem “não podendo pessoa
alguma requerer, nem devendo conferir-se qualquer destas Mercês,
em quanto estiver cheio o numero acima referido”.
38 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 39
1833 - António Teles da Silva Caminha e Menezes, marquês de
Resende, Gentil-homem da Câmara e Embaixador do Império do
Brasil
1841 - D. Pedro II
1888 - D. Pedro, Príncipe do Brasil
1919 - Assistência da Colónia Portuguesa do Brasil aos Órfãos de
Guerra
1933 - General Getúlio Vargas
1956 - Juscelino Kubitschek de Oliveira
1967 – Marechal Arthur Costa e Silva
1972 – Almirante Augusto Hamann Rademaker Grunewald
1973 - Emílio Garrastazu Medici
1985 - Tancredo de Almeida Neves
Grã-Colar da 1992 - Fernando Collor de Mello
Ordem da Torre e Espada 2002 - Fernando Henrique Cardoso
2008 - Luís Inácio Lula da Silva

São ainda condecoradas com a Ordem da Torre e Espada, Valor,


Lealdade e Mérito (grau de Oficial) as seguintes entidades militares
das Forças Armadas Brasileiras:
Corpo de Alunos da Escola Naval do Brasil (1923);
Corpo de Cadetes do Brasil (1941);
Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha Brasileira (1958).

Em 1945, a título de curiosidade, foi ainda condecorado o herói da


Força Expedicionária Brasileira o então Coronel Mário Travassos,
Comandante do 4º Escalão da 1ª. Divisão de Infantaria
Expedicionária (contrariamente aos planos originais foi apenas
mobilizada esta Divisão) com o grau de Comendador da Ordem
da Torre e Espada.

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42 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 43
NOTAS OS ÚLTIMOS ANOS DA ESCRAVATURA NO BRASIL:
1
uma Análise da contribuição historiográfica de Robert Conrad
Tirando o interessantíssimo e já distante artigo de Orlando Guerreiro
de Castro (1937), não temos conhecimento de outros cultores desta Valéria Zanetti*
temática na Nação irmã. Maria Aparecida Papali**
2
Importa definir o âmbito da temática, pouco divulgada, ou mesmo Maria José Acedo del Olmo***
desconhecida, da maioria dos leitores. A Falerística – termo que advém
Resumo
da expressão latina phaleræ – outrora um sub-domínio da
O objetivo deste artigo é apresentar e ressaltar a importância
numismática que se ocupava das ordens, condecorações e medalhas,
de um dos trabalhos do brasilianista Robert Conrad, “Os
reclamou já o seu espaço próprio como disciplina autónoma que se
últimos anos da escravatura no Brasil”. O livro, uma das mais
dedica ao estudo das insígnias e distinções atribuídas. Estuda, pois,
importantes obras acerca do processo de transição do trabalho
os sinais de distinção portáveis, visíveis e de reconhecimento. Assim,
escravo para o trabalho livre no Brasil, infelizmente ainda é pouco
por insígnia, poderemos entender o conjunto dos sinais de distinção
conhecido e utilizado no mundo acadêmico. Lamentavelmente,
destinados a serem utilizados no vestuário e as distinções como
o livro de Robert Conrad está esgotado e sem previsão de nova
englobando as ordens, condecorações e medalhas. Fora da Falerística,
tiragem. Quem conhece seu teor espera ansiosamente por
ficam então as insígnias e distinções não portáveis e todas aquelas
uma reedição à altura do seu significado histórico.
que, ainda que portáveis (como por exemplo armas de honra) se
situam para lá do seu âmbito Palavras-Chave: escravidão, abolição, 13 de Maio. Trabalho escravo,
3 trabalho livre no Brasil.
Prevista a publicação, no âmbito do duplo centenário, no decurso
do presente ano, do livro Valor, Lealdade e Mérito. Duzentos anos Abstract
da Ordem da Torre e Espada, do autor e do colega e amigo Paulo The objective of this paper is to present and emphasize the
Jorge Estrela a quem publicamente agradeço o permanente apoio e importance of one of the works of Robert Conrad, a scholar
incentivo nestas questões falerísticas. on Brazil’s history. It is one of the most important works on the
4
Embora, posteriormente, sejam brasileiros, cidadãos ou instituições, process of transition from slave labour to free labour in Brazil as
dos mais condecorados com esta elevadíssima distinção (cfr. Anexo). well as on the meaning of May 13 and the implementation of
5 our Republic. Unfortunately, such production is not well
O que aliás nem sequer é totalmente estranho a este soberano,
known in the academic world due to the lack of a new
lembremos, a título de exemplo, o mistério que envolve a sua divisa
republishing that came close to its historical meaning.
e empresa – o famoso “JAMAIS” e o rodízio – tão impenetrável
quanto falha em informação coeva (Oliveira 1998). Key words: slavery, abolition, May 13, slave labour, free labour in Brazil.
6
Cidade onde permaneceram por mais de um mês só vindo a
* Professora da Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP- São José dos
desembarcar no Rio de Janeiro em 8 de Março.
Campos), doutoranda em História da PUCSP. Autora de Calabouço urbano:
7
Cada légua correspondia a 5 555,55 metros. escravos e libertos em Porto Alegre (1940-60). Passo Fundo: UPF, 2002.
8
Embora, na realidade, fosse composto na grande maioria por ** Professora da Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP- São José
mercenários britânicos comandados, até à captura da cidade do Porto, dos Campos), doutora em História da PUCSP. Autora de Escravos,
por D. Pedro a partir dos Açores.. libertos e Órfãos. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2003.
*** Professora da Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP- São José
dos Campos), Mestre em História Social pela PUCSP.

44 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 45
Boa e representativa parte da historiografia brasileira é de braço intelectual do imperialismo e colecionadores de dados úteis
autoria dos chamados brasilianistas, ou seja, de estrangeiros que aos interesses dos Estados Unidos.2
se dedicaram à história do Brasil.1 Foi particularmente na década Especulações a parte, não podemos negar a importância
de 60 que se evidenciou o interesse de estrangeiros, principalmente dos trabalhos dos estrangeiros para a nossa historiografia ao propor
de norte-americanos, pela nossa história. Subsidiados pelo estado, questões, ampliar debates e estimular a criação de centros de
esses estudiosos recebiam numerosos financiamentos para a documentação voltados para a pesquisa histórica. Nomes como
realização de suas pesquisas. Grandes levas de sociólogos, os de Thomas Skidmore, Frank Tannenbaum, Mary Karasch,
antropólogos, cientistas políticos e, principalmente, historiadores, Robert Slenes, Leslie Bethell, Russel Wood, Richard Graham,
passaram a voltar a atenção para os estudos brasileiros motivados, Richard Morse, Fredéric Mauro, Charles Boxer, Warren Dean,
inicialmente, pela surpresa da revolução cubana de 1959. Stuart Schwartz, Robert Levine, Kenneth Maxwell, Joseph Love,
Os EUA preocupavam-se com a formulação de uma política Robert Conrad entre outros, enriqueceram sobremaneira a
externa independente aliada a um movimento nacionalista de forte produção historiográfica brasileira.
oposição ao investimento de capitais norte-americanos na América Debruçando sobre a nossa história do século XIX, os
Latina. Temia-se que mais regiões americanas surpreendessem com brasilianistas se interessavam por questões como a estrutura de
uma ruptura do tipo cubano. A fim de acompanhar o desenvolvimento classe dentro da economia escravista; as transformações que
e movimentação desses países, foram criados nos EUA centros acabaram com a escravidão e a dependência do Brasil dentro da
de estudos com financiamentos generosos do Estado e das fundações realidade econômica internacional (Graham: 1979).
de pesquisa, como a organização Ford e a Fulbright. Suas teses propiciaram momentos de reflexão sobre as
As universidades norte-americanas passaram a oferecer ótimas peculiaridades do processo de formação histórica, social, política,
colocações para economistas, cientistas políticos, críticos literários, econômica e cultural do Brasil. Com relação aos estudos sobre a
antropólogos e historiadores interessados na América Latina. escravidão, além da importância dos demais estudiosos citados
Organizaram-se cursos de pós-graduação em história do Brasil, da acima, Robert Conrad se destaca com dois grandes clássicos: Os
Argentina, do México, enfocando temas sobre desenvolvimento últimos anos da escravatura no Brasil,3 publicado em 1972 e
econômico, revolução, política externa, problemas agrários, etc. Tumbeiros,4 de 1979; magníficas referências a respeito do processo
Com condições privilegiadas na medida em que possuíam de abolição e tráfico negreiro para o Brasil, respectivamente.
generosas verbas para a pesquisa e acesso a arquivos O interesse de Conrad pelos estudos latinos, especialmente
tradicionalmente fechados aos pesquisadores brasileiros, a produção Brasil, México e Colômbia, remonta à segunda metade do século
dos brasilianistas se destacou na vida acadêmica nacional. Certos XX, quando nestes países residiu.5 Preocupado “com as iniqüidades
trabalhos primaram pelo ineditismo, pela reunião considerável de impostas tanto aos negros norte-americanos quanto às populações
fontes elucidativas sobre a nossa realidade e por abrirem novas ‘não-brancas’ da América Latina” (Conrad, 1975: XIX), Conrad
frentes de pesquisas a serem exploradas. iniciou seus estudos sobre o assunto na Universidade de Colúmbia,
Embora bem recebidos pessoalmente pela decantada em 1962.6 Momento em que as tensões sociais passavam a se
hospitalidade brasileira, os brasilianistas foram duramente criticados manifestar com maior desenvoltura através das primeira Ligas
pela inteligentsia local. Dizia-se que gozavam de privilégios nos camponesas em Pernambuco.7
difíceis caminhos para as fontes e arquivos, normalmente fechados Assim como os demais brasilianistas da época, Conrad
aos pesquisadores nacionais. Por vezes, eram acusados de recebeu auxílio financeiro da NDFL-Fulbright-Hays, assim como
colaborar com “forças ocultas”. Eram vistos, em suma, como o subvenções da Sociedade Filosófica Americana e da Universidade
46 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 47
de Illinois, em Chicago. Tornou-se membro da Associação o governo devia procurar atender o sentimento público procurou,
americana de história e da Associação de estudos latino- àquela hora, condenar a escravidão.8
americanos. Em 1972, nos presenteia com o livro Os últimos anos Por um longo tempo, o ato de libertação de 1888 relacionado
da escravatura no Brasil ao propor uma história dos momentos à figura da Regente, a Redentora, ficou gravado no imaginário
que antecederam o 13 de maio, tornando referência obrigatória coletivo dos afro-descendentes. Comemorar o 13 de maio implicava
para as pesquisas escravistas. Por ora, vamos nos deter na reverenciar a representante da Casa de Bragança que,
compreensão de Os últimos anos.... paradoxalmente também fora a grande responsável pela
manutenção do cativeiro quase até o século 20. Essa harmoniosa
e pueril visão do 13 de maio, reforçada pela ideologia dominante,
retirou da memória popular a ativa participação da grande massa
escravizada. A transição, sem violências e convulsões sociais, seria
obra de líderes esclarecidos e humanitários.9 Isso nos lembra a célebre
frase de Marx “toda sociedade tem necessidade de seus grandes
homens´ e, quando não os encontra, cria-os” (Konder, op.cit: 373)
Na década de 50 também existiam as explicações que
aboliam a perspectiva da ruptura, num estrito compromisso com a
Ordem. Argumentava-se a favor do amor à Pátria na Verdade e
na justiça, semeando o interesse cívico. 10 (Menezes, 1956) Outros,
indo mais longe, atribuíam as vicissitudes da nossa história ao poder
da Providência divina. (Gouveia,1955)
O fim da instituição escravista também foi atribuído às
causas externas, mais precisamente aos esforços britânicos que,
Figura 1. Capa do livro Os Últimos Anos da Escravatura
a partir de sucessivas leis proibitivas, impediam a entrada de
no Brasil, de Robert Conrad africanos no Brasil.11 A alegação da influência da Inglaterra no
processo de abolição é desbancada por Conrad. Segundo o autor,
Sobre as notas de cada capítulo desse livro vê-se um texto depois de 1850, quando o império assinou o tratado de proibição
à parte, fundamental para uma melhor compreensão da obra. Sua da importação de cativos africanos, os senhores continuaram
leitura deixa entrever o eficaz pesquisador que, ao esbarrar com abastecendo seus plantéis através do contrabando financiado,
fragmentos sobre a problemática da escravidão, transforma-os em inclusive, por empresários ingleses e norte-americanos.
sustentáculos da história global, denunciando valores e evidenciando O fato é que a lei de 1850 não registrou avanços políticos
ações para sustentar as permanências, características de uma no movimento abolicionista. Conrad mostra a euforia dos
sociedade extremamente conservadora e dada ao tradicionalismo. escravistas depois da proibição do tráfico. A diminuição da oferta
A tese de Conrad complementou a historiografia acerca de mão-de-obra escrava e a demanda crescente de trabalhadores
das explicações para a aprovação da lei de 1888 que libertava os para as zonas cafeeiras elevou o preço do escravo, possibilitando
cativos. Alguns estudiosos reforçaram a ação humanitária da aos senhores vantajosas operações creditícias. Lembrando que
regente, consagrada no imaginário popular como a redentora. Para trezentos dos quinhentos anos do Brasil foram marcados pela
essa tendência historiográfica, a princesa Isabel, convicta de que escravidão, não é de estranhar que as imposições contra o tráfico
48 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 49
de escravos e contra a própria escravidão tivessem demorado Conrad segue a mesma linha metodológica de Clóvis Moura,
tanto. As pendengas judiciais, atreladas às discussões partidárias Stanley Stein, Emília Viotti da Costa, Florestan Fernandes, Nélson
entre os ditos liberais e persuasivos conservadores faziam prolongar Werneck Sodré, Caio Prado Jr, Antônio Cândido, Octávio Ianni,
as relações escravistas. Quando finalmente alguma lei era etc. Os pressupostos teóricos no trabalho dos intelectuais da década
aprovada, na prática, tornava-se letra morta. de 50 “nem sempre são assumidos francamente por eles, seja
Parte da historiografia atribui aos fazendeiros do Oeste porque nem sempre são perceptíveis aos olhos daqueles que os
Paulista o privilégio de desbancar o cativeiro, ao adotar o trabalho encampam, seja porque não convém serem abertamente
livre em suas propriedades.12 No intuito de facilitar a introdução publicados” (Konder, 1998: 359). Todos esses autores
de imigrantes europeus, esses latifundiários, amparados por um desenvolveram suas análises da escravidão e do passado escravista
projeto de atração de mão-de-obra assalariada, argumentavam a partir do agir econômico e social dos trabalhadores escravizados.
que o trabalho escravo retardava o crescimento da população e o A estes estudiosos interessava as duras condições de existência e
desenvolvimento cultural, provocando a desigualdade moral e legal. as contradições sociais da ordem escravista.
Acima de tudo, a permanência do cativeiro envergonhava o Brasil O livro Tumbeiros de Conrad ajudou na formalização da
ante o estrangeiro (Conrad, 1975:126). idéia iniciada em Os últimos anos... Dedicando-se ao estudo do
Para Conrad, “os paulistas não foram tão liberais assim. tráfico negreiro para o Brasil, o autor procurava esclarecer uma
Enquanto havia o recurso dos escravos, os plantadores de café de grande questão: se as condições de vida dos trabalhadores
São Paulo mostraram pouco interesse em usar trabalhadores escravizados eram tão excelentes como propagadas pelas idéias
nacionais livres.” (Idem:162) Na opinião do autor, o que transformou de Gilberto Freyre, como entender a incessante reposição de
os paulistas em emancipacionistas foi a falta de cooperação e escravos, através do tráfico negreiro?
hostilidade dos escravos (Idem: 163). Amparados pelos Com relação à abolição, Conrad valoriza o abolicionismo
abolicionistas que, desiludidos com a resistência dos teimosos urbano-popular, evidenciado nas vozes de antiescravistas como
cafeicultores em manter a agonizante mão-de-obra escrava, na Luiz do Patrocínio, André Rebouças, Joaquim Nabuco, Luiz Gama
década de 1885, partem para métodos ilegais. e outros, unidas à ação dos próprios escravos no processo de
A teoria de Conrad permitiu ampliar as discussões extinção da escravatura. Examinando criticamente a tradição
historiográficas. Maria Helena Machado, nos rastros do autor, herdada de Freyre e de outros historiadores oficiais no sentido de
reforçou a atuação da população pobre livre urbana. De acordo minimizar a barbárie da escravidão no Brasil, as duas obras de
com a autora, o abolicionismo não foi um projeto das elites, mas Conrad constatam, apesar dos diferentes enfoques, o quão difícil
resultado da primeira união dos excluídos brasileiros em torno de foi romper com a nefanda instituição e como a classe dominante
um ideal. O movimento abolicionista foi o primeiro movimento se aferrou ao princípio escravista até o final.
político de massas na história do Brasil que congregou milhares de Ao iniciarmos a leitura de Os últimos anos da escravatura
despossuídos. A arraia-miúda, composta pelos deserdados da sorte, no Brasil deparamo-nos com uma ilustração de autoria de Richard
negros, pardos, mulatos e brancos, fizeram bastante barulho e Burton, intitulada Explorations of the highlands of the Brazil.
causaram fortes distúrbios, nas vias públicas de cidades como do Trata-se do registro de uma reunião quinzenal dos escravos numa
Rio de Janeiro e São Paulo. A abolição para essa autora aparece fazenda, em Morro Velho, região cafeeira do Vale do Paraíba
como uma frente ampla de idéias e tendências muito variadas, fluminense. Aos menos desavisados, a obra de Burton é percebida
mais do que um movimento monolítico, monopolizado por um setor apenas como uma simples ilustração. Novos ângulos de visão
bem determinado das elites políticas cafeeiras (Machado, 1994). sobrevoavam a imagem a partir do entendimento da obra de
50 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 51
Conrad. Essa cena ilustra, por volta de 1869, o pensamento do As quase quatrocentas páginas que compõem o livro vão
brasilianista sobre a história da abolição, denotando a luta de classes no sentido de reforçar a idéia embutida na ilustração que inaugura
implícita nas relações escravistas brasileiras. o texto. A obra foi subdividida em duas partes; uma dedicada ao
período de 1850 a 1879 e a segunda, de 1879 a 1888. O livro é
considerado o melhor painel sobre o abolicionismo e sobre a
destruição do escravismo em diferentes regiões do país. O autor,
aliando a sistematicidade anglo-saxã a uma extraordinária coleção de
fontes, descortina, por meio da análise dos discursos e ações
abolicionistas, as estratégias para a manutenção do sistema escravista,
num contexto em que a instituição, em estado terminal, agonizava.
Sem grandes mudanças, a segunda edição de Os últimos
anos... de 1978, tanto em língua portuguesa quanto inglesa apenas
incorporou, no capítulo I, uma resposta à crítica de José Honório
Rodrigues sobre a “resistência dos escravos”. Em artigo publicado
no Jornal do Brasil, em 1º de dezembro de 1973, José Honório
A Reunião Quinzenal dos Escravos na Casa-Grande, Morro Velho (Richard
Rodrigues alfinetava a historiografia da década de 60, a partir de
Burton, Explorations of the Highlands of the Brazil, Londres: 1869, vol.I) uma crítica à análise de Conrad. O brasilianista era acusado por
Honório Rodrigues de negar o significado histórico do 13 de maio,
O cenário deixa claro se tratar de uma grande propriedade ao definir a superação do escravismo como um “negócio de
que contém um plantel considerável de trabalhadores escravizados. brancos”, onde os cativos, principais interessados, não teriam papel
No primeiro plano, fazendeiros, administradores e capatazes significativo ou ganhos substanciais. (Conrad, 1975: XIX)
conversam, de costas, para a numerosa mão-de-obra escrava. Esse Em situação de réplica, Conrad esclarece que o sucesso da
grupo de trabalhadores, compondo o cenário nos espaços devidamente liquidação do regime de trabalho escravista resultou do esforço
separados por gêneros, contemplava seus algozes. Intermediando das massas escravizadas aliado à ação dos setores abolicionistas
a casa-grande e os agrupamentos humanos, avista-se a parca plantação radicais, com grande pressão do liberalismo internacional. Resultado
de café que, já nos idos da segunda metade do século XIX, mostra de uma comunhão de forças, a emancipação dos escravos, para
evidentes sinais de decadência no Vale do Paraíba fluminense. Nesse Conrad, só foi pensada como questão nacional a partir de 1880.
momento, o café já tinha tomado rapidamente as férteis terras do Isso quando o papel dos abolicionistas como André Rebouças,
Vale do Paraíba Paulista (Lorena, Bananal, Areias, Taubaté). José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, Luís Gama e outros, se
A figura de Burton deixa escapar evidências do momento. juntaram com a sempre presente vontade de resistir dos escravos.
Visualizam-se os decadentes escravistas fluminenses, arruinados A periodização definida por Conrad determina duas fases
por dívidas e esgotamento do solo, discutirem saídas apoiados pela da jornada abolicionista. A primeira (1850-79) é definida pelo autor
poderosa tropa de punição. Apoio imprescindível, quando se leva como emancipacionista. Trata-se do momento em que a abolição,
em consideração a força numérica condicionada à escravidão. defendida pela política internacional, principalmente liberal inglesa,
Que Burton fez questão de enunciar em seus traços. O artista fez contagia alguns segmentos liberais brasileiros, a partir da proibição
questão de destacar competentemente as distintas posições das do tráfico internacional de cativos, decretado pela Inglaterra em
classes que representavam a sociedade escravista. 1850. As origens desse movimento datam de 1850, com a lei
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Euzébio de Queiroz, inaugurando uma tendência irreversível e claro o autor, esses sintomas foram tolhidos e comprometidos pela
cumulativa para a abolição. sobrevivência de atitudes tradicionalistas. Posição compreensível,
A lei do Ventre Livre (1871)13 e dos Sexagenários (1885)14 quando temos em mente que a elite brasileira prescindia da
foram resultados representativos dessas pressões internas. No escravidão; da monocultura; do grande latifúndio agrícola, da
entanto, de acordo com o autor, o movimento ainda era bastante economia orientada para a exportação, de um mercado interno
inexperiente nesse período. Apoiava-se em estratégias para evitar muito limitado e do preconceito contra o trabalho braçal. A
o abalo significativo das relações de trabalho. A intenção era segurar existência desse estado de coisas tinha estreita ligação com a
a abolição total dos cativos para que os senhores pudessem ganhar permanência e fortalecimento político e econômico da nossa
tempo para substituírem gradualmente o trabalho escravo pelo livre. solidificada aristocracia latifundiária. (Idem)
Já o período subsequente, compreendido entre 1879 a 1888 Justamente em função dessa ligação quase visceral do
marcou, para Conrad, o momento de nossa revolução senhor com seus cativos é que se pensou, num primeiro momento,
abolicionista. Para o brasilianista, foi somente na década de 80 em convencer os escravistas, sem grandes radicalizações, a
que forças sócio-políticas e econômicas definiram as novas substituírem aos poucos seus cativos. Essa não foi uma tarefa
estratégias e intenções dos agentes com vistas à supressão da muito fácil para os abolicionistas. Além de persuadir a aristocracia
escravidão. Sobretudo porque, nesse momento, “a maior parte do latifundiária, tinham que se esforçar em convencer os capitães do
Brasil já progredira para um sistema de trabalho livre” (Conrad, mato e categorias afins, ligadas ao cativeiro, que a emancipação dos
1975: XVI). No Nordeste, nas zonas de açúcar e de algodão, e escravos levaria a substituição de sua atividade por outra, igualmente
regiões menos prósperas, o interesse da escravatura já tinha se assalariada (Idem: 177). Isso nos remete à idéia de como a cultura
dissipado por volta de 1885. Os mais ávidos defensores da escravista também era disseminada entre a população pobre.
escravidão eram das províncias produtoras de café (RJ, MG e As novas áreas cafeeiras exigiam uma considerável
SP), que rejeitavam a todo custo a cruzada anti-escravatura. demanda de trabalhadores escravizados (Rio de Janeiro, Minas
Enraizada nos costumes do Brasil, a escravatura era mais Gerais e São Paulo). A solução encontrada após a proibição do
do que uma instituição econômica, fazia parte dos seus sistemas tráfico internacional foi estimular a migração de escravos das regiões
de valores e de seus costumes, ou seja, de sua cultura. O do norte, do oeste e do extremo sul do país. A seca que assolou a
pensamento hegemônico escravista conflituava com um seleto e província do Ceará e regiões vizinhas, a partir de 1847, aumentou
restrito público brasileiro influenciado por idéias e filosofias consideravelmente o fluxo dos escravos do norte para o sul.
estrangeiras ligadas ao progresso. Atitudes antiescravatura já eram Com a carestia e valorização da mão-de-obra escrava a
comuns na Europa e parte da América. O grande problema é que partir de 1850, até os cativos com defeitos e vícios, antes
os brasileiros simpatizantes das idéias emancipacionistas eram indesejáveis, encontravam compradores. Fruto de ambição dos
constantemente “(...) obrigados, pela estrutura econômica e política senhores e dos negociantes, a difícil aquisição da força de trabalho
da sociedade e pelas exigências de seus mais importantes cidadãos, cativa, por vias legais, fez aumentar o valor dos cativos e despertar
a seguirem políticas que assegurassem a continuidade da importação o interesse pelo contrabando, fazendo surgir uma nova categoria
de africanos. A validez de alguns conceitos tradicionais passaram a profissional, a dos compradores de escravos viajantes.
ser questionados, mais precisamente, depois de 1850”. (Idem) O papel de escoadouro, antes representado pela África em
Amparados pelo discurso internacional, grupos liberais, à tempos de vigência do tráfico intercontinental transformou, a partir
luz dessa nova mentalidade, acabaram adotando medidas para de 1851, as regiões do norte e extremo sul no grande mercado
enfrentar o novo momento de progresso. Todavia, como deixa negreiro. Batendo de sítio em sítio, de porta em porta, os
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comerciantes de escravos não abrandavam a dureza da viagem, levantou a discussão da passagem, no Brasil, de um sistema de trabalho
fazendo-nos lembrar bastante das péssimas condições de transporte livre, iniciada nas zonas nordestinas fornecedoras de mão-de-obra
nos navios tumbeiros que chegavam da África. Quando não vinham escrava. O início do tráfico interprovincial que atendeu, num primeiro
amontoados nas embarcações, expostos ao sol e à chuva, homens, momento, às necessidades de mão-de-obra dos cafeicultores,
mulheres e crianças recém nascidas percorriam, por terra, caminhando acabou se tornando um pesadelo para esses latifundiários.
pelo interior da Bahia e Minas Gerais, até chegar às regiões do café. As províncias do Norte, que viram sua população escrava
Conrad registrou que o amplo tráfico negreiro interno, diminuir, passaram a adotar, sem alternativa, a mão-de-obra livre
iniciado em 1850, assim como o internacional, também não poupava assalariada, tornando-se, inclusive, porta-voz das mudanças no
as famílias. Amparado pelas tendências econômicas, o mundo dos mundo do trabalho. Contrariando os desejos das áreas produtoras
negócios negreiros separava as mães de seus filhos e os maridos de café do sudeste, os nortistas desejavam a eliminação gradual
de suas mulheres. A quebra da família escrava é evidenciada pelo do sistema de escravos e a adoção do regime de trabalho livre.
brasilianista em tempo de crise. A conjuntura favorável gerada a Em 1881, “o abolicionismo transformou o Ceará num movimento de
partir do colapso no abastecimento de mão-de-obra, por um lado massa, ameaçando a escravatura na totalidade brasileira” (Idem: 218).
e, da necessidade de se livrar dela em áreas economicamente Foi o debate nacional em torno da lei do nascimento livre de
decadentes, por outro, fez com que a lógica escravista falasse 1871 que evidenciou, a partir daí, a divisão político-espacial. De
mais alto. Essa tese contraria, por certo, algumas análises um lado, os deputados das províncias produtoras do café
historiográficas que difundem, parcialmente submersos na sua declaravam uma guerra organizada contra o governo e contra o
ideologia, a harmonia e estabilidade do tronco escravo. imperador manifestando sua rejeição à proposta (Idem: 114). Do
Com duração entre os anos de 1851 a 1881, o tráfico interno outro, os representantes das províncias do norte mostraram-se
do Norte só diminuiu em 1862, quando a Guerra civil norte- acessíveis a uma reforma, naquele momento, ainda moderada.
americana ofereceu perspectivas favoráveis para o algodão Apegando-se à idéia que o direito de propriedade da criança
brasileiro e reduziu o mercado norte-americano de café. Os “era uma extensão do direito de propriedade da escrava e da mesma
senhores do norte ativaram suas lavouras de algodão e frearam, natureza que elle”, os escravistas acreditavam que a reforma
por pouco tempo, a saída de sua força de trabalho da região. Esse significava “um direito de propriedade ofendido”, uma vez que “o
pequeno período de euforia da economia nordestina voltou à escravo era capital e, também, um instrumento de trabalho” (Idem:
normalidade após novas estações de seca que fez, por sua vez, 120). Para outros, argumentando a favor da medida, a lei
reativar a migração escrava. representaria um assassinato em massa, uma vez que os senhores
O fim do tráfico internacional, decretado pela Lei Euzébio não teriam qualquer interesse em cuidar dos filhos de suas escravas
de Queiroz (1850), não significou a adoção imediata do trabalho (Idem:121), bem como a emancipação da sua prole poderia suscitar
livre. Os cativos africanos continuaram entrando no Brasil via reivindicações dos mesmos direitos à liberdade por parte dos pais
contrabando, para atender a demanda das áreas cafeeiras, particu- dos escravos beneficiados (Idem:122).
larmente da Província de São Paulo. Mas a medida, como nos Os representantes do Rio Grandes do Sul também votaram
mostrou Conrad, abalou as bases das relações de trabalho escravistas. contra a proposta de libertar os filhos das cativas. Essa província
A grande proposição do autor foi mostrar as próprias “apresentava uma grande e valiosa concentração de escravos,
contradições internas do sistema escravista a partir da vigência representando mais do que vinte e um por cento da população
do tráfico de escravos interprovincial. Segundo o brasilianista, o total da província” (Idem:116) Mas essa posição não era unânime,
tráfico interno, ao oposto de resolver o problema dos cafeicultores, pois segundo Conrad, circulava, entre as províncias do Pará ao
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Rio Grande do Sul jornais defensores da Lei Rio Branco (Idem:117) Lutando contra a força dos resistentes senhores cafeicultores do
Possivelmente, a força desse grupo talvez fosse a responsável Vale do Paraíba, até d. Pedro via seus poderes limitados. Sabia
pela popularização das manumissões sem compensações nessa que a sua sobrevivência e do regime que representava dependia,
província, por volta de 1885. (Idem:140) A rica cidade de Pelotas, em parte, da manutenção dessa elite que ressentia de atitudes
região de gado do Rio Grande do Sul, tinha um forte jornal mais liberais do imperador que as permitidas pela legislação.15
abolicionista, resultado da ação do Clube Abolicionista, fundado Cuidadosamente, o monarca se atentava para não promover medidas
em agosto de 1881(Idem:182) irreparáveis, ao mesmo tempo preparando para o inevitável,
De acordo com Conrad, a escravidão no Rio Grande do Sul prejudicando o menos possível os interesses estabelecidos. Foi
foi minada por várias características especiais da província. A por extrapolar as aspirações de classe que alguns projetos que
“proximidade das repúblicas de língua espanhola, onde a visavam reduzir o sistema da escravatura foram arquivados.16
escravatura já há muito deixara de existir, e a presença de uma Lançando moda e torcendo para ser seguido pelos obstinados
grande população de origem estrangeira, que demonstrava pouco escravocratas, o chefe da casa Imperial chegou a libertar seus cativos
entusiasmo pela escravatura, foram fatos que exerceram efeitos e os de sua filha, concedendo-os pagamento diário e educação. O
liberalizantes sobre a população nativa” (Idem:247). A abolição mosteiro de São Bento chegou a reluzir com a caixa de rapé de
no RS, seria uma questão de tempo, embora o movimento de 1884, diamantes dada ao seu prior, por libertar os filhos de escravas de sua
julgado vitorioso pelas libertações de centenas de escravos, ainda propriedade e por servir de exemplo a ser seguido por outras ordens
os mantinham presos sob condições. religiosas e principalmente por particulares (Idem: 94).
Completamente desacreditada internacionalmente e D. Pedro, pressionado de um lado pelos senhores cafeeiros,
reconhecida como instituição em vias de extinguir-se por alguns que tentavam manter o cativeiro e, de outro, pelos abolicionistas,
segmentos no Brasil, a escravidão passou a ser rechaçada, com descontentes com as falsas promessas de eliminação da escravidão,
mais afinco, a partir de 1860. O resultado da Guerra Civil norte- fazia valer sua autoridade. Entre a cruz e a Espada, o imperador
americana, com a vitória dos estados do Norte, que empregavam propunha a emancipação lenta, gradual e, antes de tudo, prudente
o trabalho livre sobre os vencidos estados escravistas do sul, (Idem). Quando os ânimos políticos eram exaltados, sua estratégia
motivou um sentimento da necessidade da abolição da escravatura. de controle consistia em mudar o gabinete, ora acabando com as
Os segmentos auto-intitulados liberais eram convencidos que a atitudes conservadoras radicais, ora podando as asas dos liberais.
escravidão era incompatível com seus princípios políticos. Essa atitude representa mais gás na luta abolicionista, pois
Nabuco de Araújo, pai do futuro Joaquim Nabuco, o novo gabinete, liderado pelo Visconde do Rio Branco, estava
representando a ala liberal, tentara aplicar a proibição do tráfico convencido que a reforma já não podia ser adiada por mais tempo,
de escravos, já em 1837. Suas sugestões foram a base da em razão das crescentes exigências internas. Longe de ser um
complicada legislações de 1871 que aboliu a escravidão dos liberal convicto, defendia a emancipação lenta e gradual por ser
ingênuos. Em 1868, seu filho, Nabuco de Araújo seguindo o “a mais razoável e moderada solução possível nas difíceis
caminho do pai, colocou-se à cabeça da oposição ao ministério circunstâncias que a nação enfrentava (Idem:124).
conservador liderada pelo Visconde de Itaboraí, defendendo a Nabuco de Araújo, senador baiano, acompanhou de perto a
causa do emancipacionismo (Idem:140). extinção gradual da escravidão no norte. Como membro fundador
A substituição da Câmara liberal em 20 de julho de 1868 do Centro Liberal exigiu amplas reformas que ultrapassavam,
por uma unanimidade conservadora fortaleceu o movimento inclusive, o âmbito das relações de trabalho (Idem:104). Com um
emancipacionista, despertando os sentimentos reformistas. imponente discurso convincente, Nabuco argumentava que a
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escravatura era “um fato autorizado por lei”, mas “era um fato Contribuiu para agravar ainda mais esse quadro a
condenado pela lei divina... pela civilização... pelo mundo inteiro” ineficiência do Estado em controlar o cumprimento da lei e de
(Apud. Conrad:103). Nesse momento valia-se de tudo, ora para seus funcionários que alegavam que nos salários não foram
acabar ou para perpetuar a escravidão. incorporados o ônus da função para percorrer grandes
Argumentos morais e religiosos desbancavam os longos distâncias para vigiar. A lentidão, inatividade, incompetência e
períodos de escravização brasileira. O cativeiro passava a significar desvios de verba da burocracia imperial impediam os resultados
uma infração dos direitos humanos. Tentava-se persuadir, pela reais da aplicação das determinações legais de 1871. Segundo
nova lógica, que havia uma diferença entre o direito do proprietário Conrad, um quinto do dinheiro fora gasto, até 1878, em livros de
de possuir uma coisa e seu direito de possuir uma pessoa (Idem.: registro, gratificações e outras despesas não especificadas (p.138).
127) Em conseqüência das novas necessidades públicas, o direito Para Conrad, o fracasso da lei de 1871 teve como causa
natural é revisto. De coisa, os escravos passam a ser aceitos como principal a ociosidade dos agentes fiscais, portadores de forte dose
“entes moraes, que têm direitos e obrigações próprias que lhes de “apatia e desdém geral pelos regulamentos (p. 136). Enquanto
foram dadas pelo Creador.” (Idem) isso, os ingênuos que sobreviviam ou que não tinham sido
No calor das discussões de aprovação da reforma de 1871, abandonados, eram vendidos aos montes como escravos, até 1884
o decoro constantemente era perturbado. Acusações mútuas faziam (p.142). O que nos sugere que a ineficiência da nossa burocracia
das posições políticas uma arena de gladiadores. A despeito da forte servia aos interesses da elite agrária ao retardar a execução do
atuação dos segmentos liberais, Conrad acredita que, até 1870, eles processo de transformação da mão-de-obra.
foram mais emancipacionistas que abolicionistas. Neste período, apesar Se por um lado, os sintomas da lei Rio Branco (1871) eram
da luta contra a instituição ser intensa, as armas de defesa dos quase imperceptíveis; por outro, na década de 1880, esse quadro
escravistas ainda dominavam significamente o cenário nacional. teve um efeito positivo para o projeto de abolição. Os críticos da
Conrad realça os poucos efeitos da lei de 1871. A lei “não escravidão, entendendo que o fracasso da Lei Rio Branco
trouxe qualquer mudança imediata nas vias da maioria dos escravos contrariava as aspirações nacionais, tornavam seus discursos mais
e nem mesmo as crianças cuja liberdade fora garantida podiam contundentes. Condenavam, entre outras coisas, os proprietários
obter qualquer benefício prático de seu status até alcançarem sua de escravos por sua má-fé e falta de patriotismo. De emanci-
maioridade legal”(p.129). O fundo de emancipação, previsto no pacionistas, cuja política visava a defesa da passagem gradual da
artigo 3, “criado por meio dos impostos sobre os escravos, loterias escravidão para o sistema assalariado, os denunciadores da
nacionais, multas e contribuições” (p.134), que já era uma verba escravidão tornavam-se, na década de 80, convictos abolicionistas.
insuficiente para a emancipação dos cativos, foi abusado de outras Esse período, segundo Conrad, se diferencia do anterior por
formas. Elevava-se o preço dos escravos oportunizando aos senhores evidenciar a escassez, o cansaço e, junto com tudo isso, a revolta
de se livrarem dos doentes, cegos, inúteis e perturbadores. (p.139) tutelada da mão-de-obra. A resistência escrava, apoiada pela ala
Os senhores também se aproveitavam do fundo registrando liberal, originada na década de 1860, se acentua na década de 80
seus falecidos cativos. Como não deveria deixar de ser, do fundo em virtude da dimensão que o movimento abolicionista toma,
também vinha o capital para bancar campanhas eleitorais. (p.140) principalmente na cidade do Rio de Janeiro.
Conforme observou o autor, “o fundo de emancipação não tinha a Depois de um pronunciamento que renovou o debate
intenção de ser muito mais do que um gesto humanitário (...). Foi abolicionista em 1879, proferido por Jeronymo Sodré17 , José do
um meio para os proprietários se desembaraçarem dos seus Patrocínio18 e André Rebouças,19 se animam para publicar o
escravos menos úteis a preços muito satisfatórios” (p.141). Manifesto da ConfederaçãoAbolicionista do Rio de Janeiro, liderando
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o novo movimento renovado (p. 145). A forte oposição escravista Os recursos utilizados para convencer a opinião pública
vinda da capital imperial justifica-se, em parte, ao declínio da eram variados. Certa vez, usou-se como figurante de uma procissão
economia do café na região. Na década de 1870, a capital do religiosa um escravo que, por ter sido torturado pelos esquemas
império mostrava um cenário desolador. Endividada, ameaçada com coercitivos da escravidão, exibia suas mãos perfuradas por uma
a ruína pela nova onda de abolicionismo, e assistindo as agitações faca. Exibições emocionais denunciavam os mais implacáveis
escravas, a região acabou por concentrar o núcleo opositor. aspectos do cativeiro identificados, de forma bastante sentimental,
Os discursos de Joaquim Nabuco20 , eleito para a Câmara aos martírios de Cristo (p. 294).
em 1878 por Pernambuco, ganham dimensões populares. Sensibili- Conrad admite a dificuldade em determinar até que ponto o
zando a massa, argumentava-se que a escravidão já não era mais espírito rebelde dos escravos contribuiu para a abolição, mas esse
necessária. Os jornais abolicionistas denunciavam21 as crueldades espírito, segundo o autor, foi crucial, certamente durante a última
do sistema, motivando a população. A luta de Nabuco conseguiu fase do movimento anti-escravatura (p.18). A leitura de Conrad
novo alento no final da década de 70 com a adesão à causa dos nos faz duvidar que a insurreição dos cativos da província paulista,
jovens intelectuais da Faculdade de Direito de São Paulo. Entre eles tenha alguma ligação com reivindicações contratuais de trabalho,
se destacava Castro Alves, Rui Barbosa, e Luiz Gama (p. 105). como querem alguns estudiosos do presente, influenciados pelas
A significativa adesão de Luís Gama, influente advogado e atuais relações neo-liberais. Essas teorias reforçam o caráter
ex-escravo, enchia de ânimo a defesa pró-abolição. Ganhando as essencialmente pacífico da civilização brasileira. A essência patriarcal
ruas, o discurso antiescravista se propagou através dos clubes, do da ordem escravista aparece como o corolário da natureza magnânima
jornalismo e das reuniões emancipacionistas, bastante animadas e do brasileiro, fugindo de qualquer confronto de raça, credo e classe.
eufóricas. Contudo, apesar dos esforços sobrenaturais desse grupo, No livro de Conrad transparece, ao contrário, uma extrema
as eleições de novembro de 1881 revelavam que a onda tensão política e social entre as partes envolvidas. Escravos e
abolicionista era barrada pela força dos escravocratas. escravizadores se estranhavam a todo momento. Na fase terminal
Os defensores da abolição se convenceram de que os meios da instituição, no lugar da transcendental negociação, tão propalada
legais utilizados até o momento não tinham surtido muitos efeitos. por uma parte da nova historiografia, a realidade evidenciou a
Cansados de argumentar, resolveram radicalizar. Na noite de Natal desorganização do sistema pela fuga dos cativos. Na visão de
de 1886, apesar das fracassadas rebeliões simultâneas de escravos Conrad, a abolição não foi uma dádiva dos senhores, mas sim uma
nas fazendas paulistas, os cativos abandonavam as propriedades conquista dos escravos. De fato, deve-se considerar que, como
aos montes e “não havia força no Brasil que os pudesse deter” observou Conrad, muitos obedeciam e satisfaziam os desejos de
(p.291). Incitando os escravos, agentes do movimento abolicionista seus senhores. Mas, também é verdade que outros tantos
chamados caifazes22 percorriam as fazendas encontrando meios recusavam a submissão permanente. A existência de inúmeros
de convencê-los a fugir e escoltando-os até um local de refúgio. quilombos que atemorizavam a população é uma evidência desse
Nessa segunda fase de convencimento, considerada pelo fato, apontado pelo autor de Os últimos anos.....
autor como fase do “abolicionismo ilegal” (p. 199), os radicais, A ação estrutural das massas escravizadas arquitetou,
trabalhando na subvenção, informavam aos cativos a possível durante a permanência dessas relações, as condições para o fim
liberdade. Atiçando revoltas, os abolicionistas se aproveitaram do da escravidão. Foi a inviabilidade do sistema mostrado através da
despreparo da polícia e do exército. Enquanto isso, casas indisposição da mão-de-obra escrava em colaborar que possibilitou
particulares, armazéns, fazendas e estabelecimentos comerciais o fim das relações escravistas. A emancipação social do escravo
escondiam os fugitivos com freqüência. teve o próprio como protagonista.
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Na visão de Conrad, a libertação dos escravos não ocorreu que queriam ver eliminadas as bases escravistas e, junto com elas,
por decisão voluntária dos fazendeiros paulistas. Muito menos foi o fim do atraso econômico e social brasileiro.
uma dádiva da família imperial. Divisor de águas, a revolução A rejeição à escravidão era algo constante desde as suas
abolicionista configurada entre 1879-88 inaugurou o Brasil origens no Brasil. No entanto, a resistência escrava durante os
Contemporâneo a partir de uma grande luta popular que envolveu meses finais da escravatura era algo inteiramente sem precedentes
diretamente os próprios escravos, não na figura de exímios na nossa história (p.18). As fugas foram tão generalizadas entre
negociantes de sua categoria. 1887-1888 que os relutantes donos de escravos tiveram que se
Apoiando-se nos índices de rebeliões e crimes, o brasilianista render às exigências abolicionistas (p. 23).
sugere que os cativos estavam bem informados (p.130). Essa A transição para o trabalho livre denunciou os limitados papéis
questão nos remete a um amplo debate historiográfico. Seria o destinados à maioria da população recém egressa do cativeiro. A
escravo um agente histórico, capaz de transformar sua realidade? ela, reservava-se o trabalho nas terras de seus antigos senhores,
Seria a abolição coisa de branco? Agentes da transformação social, longe dos direitos da educação e da participação política (p.192).
Conrad fala da forma consciente pela qual “setenta e três homens, A quem podemos atribuir a responsabilidade da falta de êxito da
mulheres e crianças haviam marchado, em direção a Campinas proposta abolicionista? Os abolicionistas radicais tinham consciência
para se renderem, gritando saudações à emancipação e ao que a libertação não resolveria o problema do Brasil se não viesse
republicanismo no caminho” (p.225). Exibindo uma inesperada acompanhada de reformas conjunturais. A educação era algo
compreensão dos acontecimentos políticos, os escravos se mostravam imprescindível para ampliação dos direitos de cidadania.
uma força poderosa contra a resistência de seus algozes. No projeto dos abolicionistas esperava-se que a educação
Resumindo, a análise de Conrad prima pela fantástica fosse estendida a todas as classes como forma de ampliar a
estruturação da idéia de evidenciar que, além da força dos participação política e conceder melhores oportunidades para
abolicionistas, a mão-de-obra escrava lutou em prol do sucesso de milhões de negros e mulatos e outros setores menos privilegiados
13 de maio. Agentes da transformação, os escravos se da sociedade brasileira (Apud Conrad, op. Cit:193). Suas propostas
empenharam na sua libertação unidos, logicamente, às infinitas visavam “emancipar e instruir” através de uma educação popular.
causas dos abolicionistas. No seu estudo, a Abolição não aparece Era indispensável para esse grupo “ensinar a ler e escrever e dar
como o resultado de sentimentos humanitários do imperador e da um ofício a todos os cidadãos brasileiros” (Idem:194). Visavam,
princesa regente, convictos de que o governo deveria procurar a entre outras coisas, preparar os antigos escravos para a cidadania.
paz compactuando com o sentimento público. Para Conrad, a questão da educação eficaz teria transformado o
Nem tampouco aparece como algo consensual entre os sistema social e econômico do Brasil ainda mais do que a abolição
estadistas do império. Privilegiar apenas a pressão da Inglaterra da escravatura.
para o fim da Abolição é esquecer, segundo o autor, que as ações Além da educação, a causa mais defendida pelos
enérgicas britânicas uniram-se às circunstâncias nacionais propícias abolicionistas visava a democratização do solo. Sabiam que
para pôr fim ao tráfico de escravos. O espírito rebelde dos escravos dependia dela “a grande barreira à prosperidade, à imigração, à
contribuiu para a abolição certamente durante a última fase do emergência de uma classe média e ao funcionamento de um
movimento anti-escravista. Os escravos, que até a década de 1880 governo constitucional”. Propunham uma reforma agrária
lutavam sozinhos, tinham agora, como aliados, importantes setores implicando “o desmantelamento de grandes propriedades agrícolas
da sociedade. A Abolição, para Conrad, não foi uma dádiva dos e a criação de pequenas fazendas onde os imigrantes, os brasileiros
senhores, mas uma conquista de escravos ajudados por aqueles pobres e os escravos libertados pudessem encontrar alguma
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independência e prosperidade econômica e social” (p. 194-5). A pesquisa de Conrad revitaliza a idéia de que foi com muita
A reforma agrária, associada ao movimento de libertação, luta, sofrimento e morte que os cativos conquistaram, com o apoio
seria um estímulo à pequena propriedade e ao trabalhador nacional. tardio de alguns setores da sociedade, sua originária condição de
Concederia, em parte, melhores condições à grande massa saída homens livres, em 13 de maio de 1888. Infelizmente, Os últimos
do cativeiro. O magnífico estudo historicista sistemático da abolição anos da escravatura no Brasil está esgotado e sem planos de
no Brasil, empenhado por Conrad conclui que “o abolicionismo ser reeditado. Uma nova tiragem seria mais do que oportuna, visto
significava mais do que libertação, seria a primeira de uma série que constantes releituras de lúcidas obras tradicionais são
de reformas nacionais tendo por intenção acabar com o domínio fundamentais e necessárias para as abordagens historiográficas
da classe tradicional dos proprietários de escravos sobre as nascentes. A leitura de Conrad é um agradável convite para
instituições de nação” (Idem). conhecer a complexa produção intelectual que se empenhou em
O problema é que as propostas do projeto de libertação da interpretar e justificar a história e a realidade brasileiras. Quem sabe
mão-de-obra pelo Estado não coincidiram com as propostas dos o leitor se sinta convidado a assumir o desafio de agir em favor da
abolicionistas. Ela não veio acompanhada de uma reforma agrária promoção de mudanças significativas da nossa realidade.....
e de leis protetoras do trabalhador emancipado. Seus desastrosos
resultados mantiveram a população negra liberta numa situação
BIBLIOGRAFIA:
de miséria e longe de poder integrar-se à sociedade brasileira
enquanto cidadãos. BEIGUELMAN, Paula. Formação política do Brasil. São Paulo, 1969;
No entanto, os limites históricos da Abolição não devem BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: a
minimizar a importância do 13 de maio. Marco histórico da Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de escravos; 1807-
sociedade brasileira, a abolição destruiu o modo de produção 1869. Rio de Janeiro: Expressão cultura/Edusp, 1976;
escravista colonial que, por mais de três séculos, definira a nossa CALÓGERAS , João Pandiá. Formação do Brasil. São Paulo:
sociedade. As fugas em massa dos escravos, conforme observou Brasiliana; CALMON, Pedro. História do Brasil. São Paulo: Brasiliana;
Conrad, provocaram o último suspiro da instituição, embora parte VIANNA, Hélio. História do Brasil. São Paulo: Brasiliana.
da historiografia não leve em consideração esse fato. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil - 1850-
No passado, os escravos sofreram violências que deixaram 1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
nítidas marcas no corpo e na alma. Hoje, as marcas são realçadas
__________.Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil. São Paulo:
pelo domínio das palavras que enunciam um terno passado Brasiliense, 1985.
escravista. A negociação está na moda, tanto no pensamento quanto
COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à colônia. São Paulo: Brasiliense,
nas terminologias e na linguagem. Parece-nos que os escravos
1989;
acreditavam mais na sua força do que alguns descrentes estudiosos
do presente. A idealização da escravatura, a idéia romântica da COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Corpo
suavidade e brandura da escravatura do Brasil, juntamente com a e Alma do Brasil, n. 19, 1966. p. 280.
descrição do escravo leal e do senhor benevolente, amigo do FREITAS, Décio. Insurreições escravas. Porto Alegre: Movimento, 1976.
escravo, foram, conforme assinalado por Emília Viotti da Costa, FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala, Brasília, Ed. Universidade
“interpretações que acabaram prevalecendo em nossa literatura e de Brasília, 1963.
em nossa história. Foram alguns dos mitos forjados por uma sociedade GASPARI, Élio. A história do Brazil: o passado do país está sendo
escrava para defender um sistema considerado essencial.”23 escrito em inglês. Revista Veja, N. 168, de 24 de novembro de 1971.

66 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 67
2
GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990. Sobre esse assunto conferir: GASPARI, Élio. A história do Brazil: o
_________. O escravismo Colonial.São Paulo: Ática, 1988. passado do país está sendo escrito em inglês. Revista Veja, n°168, de
GRAHAM, Richard. Escravidão, reforma e imperialismo. São Paulo: 24 de novembro de 1971, p.36; SODRÉ, Nélson Werneck. Movimento,
Perspectiva, 1979. N. 3, 21 de julho de 1975; CADERNOS de pesquisa. n° 4, 1978.(
GOULART, Maurício. Escravidão africana no Brasil: das origens à Tudo é história: será que devemos beber história como bebemos
extinção do tráfico. São Paulo: 1949. coca-cola?); MASSI, Fernanda Peixoto. Brasilianismos, brazilianists
e discursos brasileiros. São Paulo: IDESP, 1988; Uma história
GOUVEIA, Maurílio de. História da escravidão. Rio de Janeiro:
empenhada. Folha de São Paulo. Caderno Mais, 06 de junho de 2004.
Gráfica Tupy, 1955. 3
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil -
HOLANDA, Sérgio B. de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio,
1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
1969. 4
IANNI, Octávio. Escravidão e racismo. São Paulo: Hucitec, 1978. CONRAD, Robert.Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil.
São Paulo: Brasiliense, 1985.
KONDER, Leandro. História dos intelectuais nos anos cinqüenta. In: 5
FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). Historiografia Brasileira em Conrad morou no Brasil entre os anos de 1965-1969. CONRAD.
perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. Op. Cit. p. XX.
6
LAMOUNIER, Maria Lúcia. Da escravidão ao trabalho livre; a lei de Entre as produções de Conrad em língua inglesa estão: The
locação de serviços de 1879. Campinas: Papirus, 1988. Destructin of Brazilian Slavery, 1850-1888. University of California
Press, 1972; Joaquim Nabuco, Abolitionism: The Brazilian Anti-
MACHADO, Maria Helena. O Plano e o Pânico, os movimentos sociais
Slavery Struggle, University of Illinois Press, 1977; Brazilian
na década da Abolição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, SP, EDUSP, 1994.
Slavery: An Annotated Research Bibliography, G. K. Hall, 1977;
MAESTRI, Mário. A servidão negra. Porto Alegre: Mercado Aberto, Children of God’s Fire: A Documentary History of Black Slavery in
1988. Brazil, Princeton University Press, 1983; World of Sorrow: The
MASSI, Fernanda Peixoto. Brasilianismos, brazilianists e discursos African Slave Trade to Brazil, Louisiana State University Press (Baton
brasileiros. São Paulo: IDESP, 1988; Uma história empenhada. Folha Rouge, 1986); Sandino, the Testimony of a Nicaraguan Patriot:
de São Paulo. Caderno Mais, 06 de junho de 2004. 1921-1934, Princeton University Press, 1990; In the Hands of
MENEZES, Djacir. O Brasil no pensamento brasileiro. MEC, 1956. Strangers: Readings on Foreign and Domestic Slave Trading and
MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo: Edições Zumbi, the Crisis of the Union, Pennsylvania State University Press, 2001.
1959. 7
KONDER, Leandro. História dos intelectuais nos anos cinqüenta.
MOREIRA, Regina da Luz. Brasilianistas, historiografia e Centros de In: FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). Historiografia Brasileira
documentação. CPDOC. em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998.
SODRÉ, Nélson Werneck. Movimento, N. 3, 21 de julho de 1975; 8
Ver, entre outros: CALÓGERAS, João Pandiá. Formação
CADERNOS de pesquisa. N. 4, 1978.( Tudo é história: será que devemos do Brasil. São Paulo: Brasiliana; CALMON, Pedro. História
beber história como bebemos coca-cola?). do Brasil. São Paulo: Brasiliana; VIANNA, Hélio. História do
Brasil. São Paulo: Brasiliana.
9
NOTAS Conferir em: MEDEIROS, Maurício de. Aspectos da formação e
1
Esse termo foi empregado pela primeira vez em 1969 por Francisco evolução do Brasil. , 1953; ABREU, S. Fróes. Aspectos da formação
de Assis Barbosa, na apresentação de Brasil: Getúlio a Castelo, livro e evolução do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Jornal do Commercio, 1953.
11
de Thomas Skidmore e acabou sendo adotado pelos próprios norte- Conferir em: GOULART, Maurício. Escravidão africana no Brasil:
americanos. Cf. MOREIRA, Regina da Luz. Brasilianistas, das origens à extinção do tráfico. São Paulo: 1949; BETHELL, Leslie.
historiografia e Centros de documentação. CPDOC. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: a Grã-Bretanha, o Brasil
68 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 69
e a questão do tráfico de escravos; 1807-1869. Rio de Janeiro: HISTÓRIA E RÁDIO: UM CAMPO DE ESTUDOS
Expressão cultura/Edusp, 1976; FREITAS, Décio. Insurreições
escravas. Porto Alegre: Movimento, 1976. PROMISSOR
12
Ver COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à colônia. São Paulo:
Lia Calabre*
Brasiliense, 1989; IANNI, Octávio. Escravidão e racismo. São Paulo:
Hucitec, 1978. p. 40. Nesta linha também estão os trabalhos de
HOLANDA, Sérgio B. de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio,
1969; BEIGUELMAN, Paula. Formação política do Brasil. São Resumo
Paulo, 1969; LAMOUNIER, Maria Lúcia. Da escravidão ao trabalho
livre; a lei de locação de serviços de 1879. Campinas: Papirus, 1988. Vivemos em uma sociedade articulada em redes de
13
Essa lei libertava as crianças recém-nascidas de mães escravas. informação, habituada a receber notícias em tempo
14
real, que vivencia um processo constante de
Em 28 de setembro de 1885 o governo imperial promulga a Lei multiplicação dos meios de comunicação de massa. A
Saraiva-Cotegipe, conhecida como Lei dos Sexagenários, que libertava importância e a necessidade da promoção de estudos
os escravos com mais de 65 anos. A decisão é considerada de pouco que tenham como principal objeto o papel dos meios
efeito, pois a expectativa de vida do escravo não ultrapassa os 40 anos. de comunicação nas sociedades contemporâneas não
15
Estamos falando das leis do Ventre Livre e dos Sexagenários, que é mais colocada em questão pelos especialistas do
não abalaram significativamente as relações de trabalho, ao contrário, campo das ciências sociais. Entretanto ainda é pequeno
foram estratégias para os senhores ganharem tempo. o número de trabalhos sobre o tema nas áreas de
17
Jerônymo Sodré, deputado nordestino que “denunciou a Lei Rio história, sociologia e antropologia social e, ao nos
Branco como sendo uma reforma vergonhosa e mutilada, pedindo a referirmos especificamente aos estudos sobre o radio,
extinção total e rápida da escravatura”. CONRAD, Robert. p. 167. o quadro de escassez se agrava. Este artigo pretende
18
José do Patrocínio era filho de um padre fazendeiro, dono de apresentar algumas reflexões sobre o difícil e também
escravos em Campos dos Goitacazes, na província do Rio de Janeiro promissor campo de estudos das relações entre rádio
e de uma negra, vendedora de frutas. CONRAD, Robert. p. 187 e história, começando com uma breve narrativa da
19 trajetória da presença deste importante meio de
André Rebouças era engenheiro e professor de botânica, cálculo e
comunicação no Brasil e passando para a apresentação
geometria na Escola Politécnica.
de alguns estudos e questões sobre o tema.
20
Joaquim Nabuco, advogado, descendia, pelo lado do pai, de uma
família política e de sua mãe, de antigas e poderosas famílias de Palavras-chave: Rádio; história do rádio; mass media; história
fazendeiros de Pernambuco. CONRAD, Robert. Op. cit. p. 186. cultural; rádio e história
21
Entre a imprensa abolicionista circulava: Gazeta da Tarde e
Associação Central Emancipadora,
22
Termo derivado provavelmente de uma complexa associação *
Doutora em história pela Unversidade Federal Fluminense,
religiosa ou mística do alto sacerdote que entregou Jesus a Pôncio pesquisadora-chefe do Setor de Estudos de Política Cultural da
Pilatos. CONRAD, Robert. Op. cit. p. 294. Fundação Casa de Rui Barbosa, autora de A Era do Rádio
23
COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: (Zahar,2002) e O rádio na sintonia do tempo: radionovelas e
Corpo e Alma do Brasil, n. 19, 1966. p. 280. cotidiano -1940-1946. (FCRB,2006)

70 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 71
Abstract presença deste importante meio de comunicação no Brasil e passando
para a apresentação de alguns estudos e questões sobre o tema.
We live in a society structured in information O desenvolvimento do rádio brasileiro acompanhou as
networks, used to receiving news in real time, tendências tecnológicas internacionais sem grandes defasagens.
which lives a process of constant multiplication of Internamente, o início do funcionamento do rádio, no Brasil, ocorreu
mass media. The importance and the need to dentro de um processo de transformação de uma sociedade agrária
promote studies whose main object is the role of em uma sociedade urbano-industrial. O rádio no Brasil adotou, na
midia in contemporary societies is undisputed by maioria das vezes, um modelo empresarial e esteve, tanto no nível
social science scholars. However, the number of econômico como no social, vinculado ao movimento de
studies about the topic is still small both in history transformações culturais urbanas.
and in sociology or social anthropology. When we
No Brasil a primeira transmissão radiofônica ocorreu em
refer to specific studies about the radio, the number
1922, na Exposição Nacional comemorativa do Centenário da
is yet smaller. This article aims at presenting some
thoughts about the difficult – but promising – field
Independência. O sucesso e a repercussão, na imprensa escrita,
of research, that is, the relations between history das primeiras transmissões radiofônicas, contribuíram para que,
and the radio. It satrts with a brief narrative of its em 1923, surgisse a primeira emissora de rádio no Brasil, a Rádio
presence in Brazil and evolves to the discussion of Sociedade do Rio de Janeiro. Os pioneiros, Roquette Pinto e
some studies and issues related to the subject. Henrique Morize, ambos da Academia Brasileira de Ciência,
criaram a rádio com finalidades estritamente culturais e educativas,
Key words: Radio, history of the radio; mass media; history nos moldes europeus. Quando a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro
cultural; radio and history iniciou suas atividades, a radiodifusão era ainda um investimento
muito caro e o único país a possuir um grande número de emissoras
e de aparelhos receptores de rádio era os Estados Unidos.
Vivemos em uma sociedade articulada em redes de O setor radiofônico brasileiro se desenvolveu lentamente
informação, habituada a receber notícias em tempo real. Tal cotidiano ao longo da década de 1920. Em 1923, foram fundadas duas
se deve à existência e a crescente multiplicação dos meios de emissoras, cinco em 1924, três em 1925, três em 1925. Em 1930,
comunicação de massa, os principais responsáveis pelo processo da o país contava com 16 emissoras. Apesar do número modesto de
construção dos acontecimentos no mundo contemporâneo. A emissoras o rádio atraía a atenção de uma boa parcela da
importância e a necessidade da promoção de estudos que tenham população. Um dos sonhos de consumo das famílias na época, era
como principal objeto o papel dos meios de comunicação nas o de ter um aparelho de rádio na sala de estar.
sociedades contemporâneas não é mais colocada em questão pelos Na década de 1930 algumas emissoras já haviam se tornado
especialistas do campo das ciências sociais. Entretanto ainda é pequeno muito populares, como, por exemplo, a carioca Mayrink Veiga.
o número de trabalhos sobre o tema nas áreas de história, sociologia Foi exatamente nesse período, em 12 de setembro de 1936, que
e antropologia social e, ao nos referirmos especificamente aos surgiu a Rádio Nacional do Rio de Janeiro. A Nacional iniciou
estudos sobre o radio, o quadro de escassez se agrava. suas atividades com a pretensão de vir a ser a maior e mais
Este artigo pretende apresentar algumas reflexões sobre importante emissora do país. Tais objetivos foram atingidos nas
o difícil e também promissor campo de estudos das relações entre décadas de 1940 e 1950. Já na inauguração contava com um cast
rádio e história, começando com uma breve narrativa da trajetória da de artistas exclusivos,1 onde estavam presentes os cantores Aracy
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de Almeida e Orlando Silva. As vozes que colocaram a emissora Os prefixos musicais eram a marca registrada dos programas,
no ar foram as de Celso Guimarães, Ismênia dos Santos e Oduvaldo fenômeno que também ocorre com a televisão.
Cozzi (todos como speakers). A Nacional possuía várias orquestras O rádio criou uma corte imaginária, com Rainhas do Rádio,
e entre seus maestros, encontrava-se o jovem e talentoso Radamés Reis da Voz, sempre seguidos por súditos fiéis. O sucesso dos
Gnatalli. Em 1940, a Rádio Nacional, que integrava o conjunto de astros e das emissoras era tão grande que foram lançadas revistas
empresas do grupo A Noite, foi incorporada ao patrimônio da união. especializadas em rádio, como a Revista do Rádio e a Radiolândia,
A Rádio Nacional foi, reconhecidamente, a emissora de maior com distribuição nacional. As pessoas desejavam saber que
penetração e audiência por todo o país. Pelos índices de aparência possuía, o que vestia, o que consumia e como morava
popularidade e eficiência financeira atingidos, a emissora logo se cada um de seus astros prediletos. Os ouvintes queriam ver e, se
tornou uma espécie de modelo, que foi seguido pela maioria das possível, tocar nos donos das vozes que embalavam seus sonhos.
rádios brasileiras. Esses astros poderiam ser vistos e quase tocados nos famosos
Com o crescimento da popularidade do rádio, os ouvintes programas de auditório que levavam multidões até as rádios.
passaram a não mais querer somente ouvir seus artistas Foram os programas de auditório que criaram e alimentaram
favoritos. Na década de 1930, as emissoras de rádios passaram o fenômeno dos fã-clubes. Cada fã-clube organizava-se em torno
a receber o público em seus estúdios. Preocupadas com a do nome de um determinado artista, tinha uma sede, acompanhava
freqüência do público ouvinte, no final da década de 1930 e seus astros prediletos nas excursões e arrecadava dinheiro para
início da de 1940, diversas emissoras ampliaram seus auditórios, que, durante todo ano, pudessem organizar festas e presentear o
passando mesmo a cobrar ingressos. artista. Foram famosos os fã-clubes de cantores como Emilinha,
O modelo de programação utilizado pelo rádio desde sua Marlene, Ângela Maria, Dalva de Oliveira e Caubi Peixoto.As disputas
criação e que vigorou até a década de 1960, tinha como base a mais famosas da história dos fã-clubes ocorreram entre os adoradores
música, a dramaturgia, o jornalismo e os programas de variedade. das cantoras Marlene e Emilinha Borba.
As emissoras radiofônicas possuíam um elenco artístico muito mais No campo dos noticiários radiofônicos foi a grande estrela
diversificado do que muitas das atuais redes de televisão. o Repórter Esso, que também serviu de modelo para muitos dos
Entre os campeões de audiência na programação radiofônica jornais radiofônicos e televisivos que o sucederam. A primeira
estavam as novelas, as dramatizações em geral. No Rio de Janeiro, a edição do Repórter Esso foi ao ar em final de agosto de 1941, na
principal emissora a se destacar nesse tipo de programa foi a Rádio Nacional do Rio de Janeiro. No rádio, o Repórter Esso
Rádio Nacional e no caso paulista a Rádio São Paulo. ficou no ar até dezembro de 1968. O Repórter Esso era “O primeiro
A música tem um papel especial dentro de uma emissora a dar as últimas” e a “Testemunha ocular da história”. Em quatro
de rádio, a ausência de imagens faz da sonoplastia e do fundo emissões diárias com 5 minutos de duração cada uma, apresentada
musical apoios fundamentais. Durante as três primeiras décadas sempre com absoluta pontualidade - as famílias criavam o hábito
de existência, as emissoras de rádio trabalhavam muito com de acertar os relógios pelas edições do noticiário- , o jornal
apresentações de música ao vivo. As de maior porte, como a conservou durante todo o período de sua existência uma legião
Rádio Nacional do Rio de Janeiro, costumavam possuir duas fiel de ouvintes. As notícias somente eram consideradas confiáveis
ou mais orquestras (que executavam tanto peças musicais se transmitidas pela “Testemunha Ocular da História”.
clássicas como populares), pequenos conjuntos (regionais), O rádio também levou a sério a função de divertir. Os
contando também com alguns maestros que eram os programas humorísticos radiofônicos alcançavam altos índices de
responsáveis pelos arranjos musicais de toda a programação. audiência, concorrendo com os programas de música e
74 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 75
radionovelas pelo título de campeão de popularidade. Dentre eles interferiu em comportamentos, alterou práticas rotineiras, entretanto
destacam-se o PRK-30, que esteve no ar por 18 anos e o Balança tanto sua presença quanto os conteúdos que veiculou, ainda são
mas não cai que ficou em cartaz por 20 anos e foi transferido pouco estudados. A segunda parte deste artigo apresenta alguns
para a televisão. O programa criou, dentre outros, dois personagens dos estudos, na maioria teóricos, que tratam da questão dos meios
extremamente famosos: o primo pobre e o primo rico. de comunicação de massa e, em especial, do rádio.
Outro gênero de programa muito popular era o de
variedades, apresentados por animadores renomados como César
de Alencar, Paulo Gracindo e Manoel Barcelos. Tais programas Os estudos no campo dos meios de comunicação de massa
foram irradiados pela Rádio Nacional e contavam com a presença
do público que superlotava os auditórios da emissora. São comuns Os trabalhos produzidos pela chamada Escola de Frankfurt,
as histórias das filas de ouvintes que se formavam na porta das que têm entre seus integrantes, Max Horkheimer, Siegfried
emissoras, desde a véspera dos programas, em busca de ingressos. Kracauer, Herbert Marcuse e Theodor W. Adorno, constituem
As pessoas dormiam nas calçadas da emissora, amanheciam na um marco no processo de inserção dos meios de comunicação de
rua, tudo era válido para ver o artista favorito de perto e concorrer massa no campo dos estudos acadêmicos. A expressão indústria
aos prêmios distribuídos pelos apresentadores dos programas. cultural foi cunhada por Horkheimer e Adorno na década de 1940,
Presença constante nos lares, o rádio converteu-se em um estabelecendo um novo conceito. Em artigo datado de 1947, 3 os
meio fundamental de informação e de entretenimento. Ao longo estudiosos inserem a lógica de produção dos conteúdos veiculados
da década de 1950, o rádio se tornou um objeto acessível à grande pelo cinema e rádio da época dentro do sistema industrial capitalista.
maioria da população, nesse mesmo momento tinha início o Segundo os autores este era um sistema de comunicação que tornava
processo de lançamento e valorização da televisão no Brasil. Já todos os ouvintes iguais ao sujeitá-los, autoritariamente, aos idênticos
no final da década de 1950, com a diminuição das verbas programas que eram apresentados pelas várias estações de rádio.
publicitárias e com a concorrência da televisão, o rádio iniciou um Em um artigo posterior (da década de 1960) Adorno
processo de reformulação da programação irradiada. As grandes explica que ele e Horkheimer, ao criarem o termo indústria
orquestras, os imensos casts de atores e atrizes que geravam cultural estavam, propositadamente, colocando-o no lugar de
muitas despesas tornavam-se cada vez mais difíceis de caber nos cultura de massa. Os teóricos desejavam evitar qualquer
orçamentos das emissoras. O modelo de rádio que conquistou possibilidade de se acreditar que o que fosse produzido neste âmbito
multidões nas décadas de 1940 e 1950 foi gradativamente sendo pudesse pertencer à esfera de uma cultura espontânea, oriunda
transferido para a televisão, tais como as radionovelas, os das próprias massas. No mesmo artigo, Adorno reafirma sua idéia
programas humorísticos, os programas de calouros e o Repórter de que a Indústria Cultural se funda em um domínio manipulatório
Esso. Essas mudanças deram origem a novos modelos de da mensagem sobre o receptor: “O consumidor não é rei, como a
programação radiofônica, muito diferente daquela que esteve no indústria cultural gostaria de fazer crer, ele não é o sujeito dessa
ar nos “anos dourados” do rádio brasileiro. história, mas seu objeto”. (Adorno, p.92) Tais pressupostos teóricos
Nesse universo fantástico que é o da relação entre o rádio fizeram com que durante muito tempo todas as referências a Rádio
e o cotidiano pode ser encontrada uma série de invenções de Nacional do Rio de Janeiro, entre a década de 1940 e 1950, seus
tradições que, segundo Eric Hobsbawn, são conjuntos de práticas, tempos de extrema popularidade, tivesse o conjunto de sua
de natureza ritual ou simbólica que inculcam
2
valores e normas de programação analisada como a de um aparelho ideológico de
comportamento através de repetição. O rádio criou modas, estado, mais especificamente do estado varguista.
76 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 77
Essa visão do meio e da mensagem como dominadores e pouco sobre o que é produzido e o que acontece
dos receptores como dominados foi a que predominou na maioria com os receptores. (Canclini, 1998. p. 257)
dos estudos ao longo das décadas de 1960 e 1970. Tal pressuposto
teórico terminava por impor uma espécie de simplificação aos Ao destacar tais reflexões nosso objetivo não é o de negar
estudos sobre os meios de comunicação de massa. No caso da a tentativa e mesmo a utilização, pelas camadas dominantes da
Rádio Nacional, por exemplo, principalmente pelo fato de ser uma sociedade, de elementos culturais das camadas trabalhadoras ou
emissora do governo, alguns estudos associavam o projeto do populares (ou subalternas), com a finalidade de criar um controle
Estado ao conteúdo que era veiculado pela emissora. O resultado ideológico, de determinar visões de mundo ou de moldar
de tal processo era o da classificação da programação da rádio comportamentos. Pois, como alerta o historiador Roger Chatier,
como populista e popularesca, imposta arbitrariamente pela adotar tal perspectiva “significa esquecer que tanto os bens simbólicos
ideologia dos estado e seus ouvintes como massa manipulada. como as práticas culturais continuam sendo objeto de lutas sociais”.
Na América Latina em geral, por volta dos anos 1980, (Chartier, 1995. p.184) O que está em questão é a eficácia de tal
segundo Martín-Barbero, tentativa, a idéia de controle absoluto de uma classe sobre a outra, a
visão maniqueísta dos acontecimentos e as noções de cultura de classe
...alguns pesquisadores começaram a suspeitar puras e estanques, como algo que não circula. Ou ainda, pensar os
daquela imagem do processo na qual não cabiam meios emitindo mensagens que são impressas integralmente nos
mais figuras além das estratégias do dominador, na receptores, como se estes fossem folhas de papel em branco.
qual tudo transcorria entre emissores-dominantes e Afastando-se também da visão de dominação absoluta dos
receptores-dominados sem o menor indício de consumidores pelos meios, Edgar Morin, ainda na década de 1960,
sedução nem resistência. ( Martín-Barbero, p.43) definia cultura de massa como produto de um diálogo entre
Barbero se inclui entre os pesquisadores que passaram a produção e consumo. Segundo o autor esse diálogo é desigual, no
rever seus pressupostos teóricos e a repensar a relação meios de qual o consumidor não fala, entretanto, ele ouve, ele vê ou se
comunicação/sociedade de maneira mais complexa. Em Culturas recusa a ouvir ou a ver. Para Morin, na cultura de massa; o
Híbridas, Néstor Canclini também busca fugir de uma visão verdadeiro problema é o da dialética entre o sistema de produção
unidirecional da comunicação, que acreditava na manipulação cultural e as necessidades culturais dos consumidores. Nesse
absoluta dos meios sobre a recepção das mensagens, sem descartar processo estão envolvidos o produtor, as leis e as regras ditadas
o uso do conceito de indústria cultural, mas questionando o alcance pelo Estado e que regulamentam a produção e um público médio que
de seus efeitos. Para o autor: é o consumidor que garante a sobrevivência do sistema. Dentro desse
conjunto de reflexões, Edgar Morin termina definindo a cultura de
A noção de ‘indústrias culturais’, útil aos massa como “o produto de uma dialética produção-consumo, no centro
frankfurtianos para produzir estudos tão de uma dialética global que é a da sociedade em sua totalidade”.
renovadores quanto apocalípticos, continua servindo
(Morin, p.46-47) A principal questão colocada pelo estudioso é a de
quando queremos nos referir ao fato de que cada
que o consumo de produtos culturais é um processo sutil, que não
vez mais bens não são gerados artesanal ou
individualmente, mas através de procedimentos
pode ser mecanicamente comparado ao processo de consumo
técnicos, máquinas e relações de trabalho industrial pura e simplesmente. Mesmo que o conjunto dos mass
equivalentes aos que outros produtos da indústria media seja controlado pelo Estado, o consumidor pode não ligar o
geram; entretanto, esse enfoque costuma dizer aparelho de rádio, de TV, ou não ler o jornal.
78 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 79
As tendências dos estudos dos mass media aqui trabalho mais sistemático com o rádio foi Alcir Lenharo, escolhendo
apresentadas nos permitem trabalhar com o rádio dentro do campo a música, mais especificamente os cantores do rádio como seu
da história cultural. Em seu trabalho com as questões da cultura objeto de estudo. Lenharo, logo na introdução de seu trabalho,
popular, o historiador Roger Chartier é outra voz que se levanta chamou a atenção para a necessidade de se “levantar o véu que
para alertar aos pesquisadores sobre a necessidade dos estudos cobre os anos 50, na sua versão massiva, e duvidar na rapidez
de história cultural, no campo dos mass media, avançarem para com que se fala nos cantores de rádio, assim como suas músicas
além dos limites da idéia de submissão absoluta do receptor à são lançadas no esquecimento” (Lenharo, p.9)
mensagem. O historiador afirma que: Essa massificação radiofônica, que alcançou seu ápice na
A mídia moderna não impõe, como se acreditou
década de 1950, teve no rádio dos anos de 1930 o ponto de partida.
apressadamente, um condicionamento homogenei- Segundo Mártin-Barbero, a década de 1930 é a do período do
zante, destruidor de uma identidade popular, que início do processo de massificação na América Latina, por ele
seria preciso buscar no mundo que perdemos. A considerada como o de uma cultura urbana formada dentro de um
vontade de inculcação de modelos culturais nunca processo de hibridização do nacional e do estrangeiro. Em seus
anula o espaço próprio da sua recepção, do seu uso trabalhos, Martin-Barbero pretende tornar investigáveis os
e da sua interpretação. (Chartier, p. 1995. p.186) processos de constituição do massivo para além da chantagem
culturalista que os converte inevitavelmente em processo de
Existem muitas diferenças entre o que o emissor pretendeu degradação cultural. O autor pretende romper com os estudos
trasmitir com a mensagem daquilo que foi efetivamente recebido. Os que crêem que o surgimento do rádio, do cinema e da televisão
conteúdos veiculados pelos meios de comunicação interagem com o substituiu as tradições populares por novas formas de controle
cotidiano, interferem na realidade, ao mesmo tempo que se renovam social. Para o autor, a comunicação de massa deve ser vista como
constantemente, principalmente no caso do rádio e da TV, na busca um processo social integrado nas práticas culturais da vida cotidiana
da manutenção de uma audiência cativa. Como afirmou Canclini: e não como algo imposto arbitrariamente.
As tecnologias comunicativas e a reorganização Passando especificamente para o caso brasileiro, o sociólogo
da indústria da cultura não substituem as Renato Ortiz considera que os estudos sobre cultura brasileira e
tradições nem massificam homogeneamente, mas indústria cultural no Brasil devem levar em consideração as próprias
transformam as condições de obtenção e condições sobre as quais estas se consolidaram. Entre elas destaca
renovação do saber e da sensibilidade. Propõe o fato de ser a sociedade brasileira subdesenvolvida, onde:
outro tipo de vínculo da cultura com o território,
do local com o internacional, outros códigos de É necessário mostrar que a interpenetração da esfera
identificação das experiências, de decifração de de bens eruditos e a dos bens de massa configura
seus significados e modos de compartilhá-lhos. uma realidade particular que reorienta a relação entre
Reorganizam as relações de dramatização e a arte e a cultura popular de massa. Esse fenômeno
credibilidade com o real. (Canclini, 1998. p.263) pode ser observado com clareza quando nos
debruçamos nos anos 40 e 50, momento em que se
No Brasil, o estudo da participação do rádio nesse processo constitui uma sociedade moderna incipiente e que
de transformação das condições de obtenção e renovação dos atividades vinculadas à cultura popular de massa
saberes da sociedade, se restringiu à pequenas e superficiais são marcadas por uma aura que em princípio deveria
referências. Um dos poucos historiadores brasileiros a iniciar um pertencer à esfera erudita da cultura.(Ortiz, p. 65)
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O rádio dos anos 1940 e 1950 mostra-se como um campo É importante reafirmar que os mass media devem ocupar
especial para a observação dos fenômenos da valorização do popular um lugar privilegiado nos estudos do campo da História Cultural
e do consumo cultural massivo, apontados por Renato Ortiz. Este do século XX. Segundo o historiador Roger Chartier, uma história
foi um período rico na criação de diversos ídolos da música popular, cujo projeto é o de reconhecer como os atores sociais investem de
o que era um fato novo no cenário cultural brasileiro e instaurava sentido suas práticas e discursos, deve dedicar uma atenção
uma certa aura em torno do mito e do produto da fama. Ao observar- especial à tensão entre as capacidades inventivas dos indivíduos,
se o fenômeno da produção da indústria cultural a partir da década ou dos grupos sociais, e as normas que os cerceiam. (Chartier,
de 1980 (ou até mesmo antes em alguns setores), verificamos que 1994. p. 106) O campo dos mass media se apresenta como um
já não causa nenhum estranhamento a aura adquirida - no sentido lugar privilegiado para a observação de tal fenômeno. Estão
que lhe atribuiu Walter Benjamin à obra de arte - pelos produtos presentes nos meios de comunicação de massa, principalmente
oriundos da indústria cultural de massa que, em geral, não são no rádio e na televisão, práticas e discursos que têm sua origem
considerados como artísticos e sim industriais. O cinema e a em atores sociais diversos (tanto indivíduos quanto grupos sociais),
televisão se mantiveram como fábricas de ídolos, de deuses. Ortiz ou seja, eles são os canais de divulgação dos discursos e das
chama ainda a atenção para o fato de que, na década de 1940, mais representações de natureza variadas, seja tanto entre os diversos
especificamente, ocorre um processo de incorporação de campos (político, cultural, social, etc), quanto dentro dos mesmos.
manifestações culturais representativas de um certo segmento da Esta diversidade que gera conflitos permanentes entre o que pode
sociedade (que nos trinta primeiros anos do século XX, eram tidas (quando pode), o que deve ser transmitido por esses medias e o
como exclusivamente populares) ao conjunto das manifestações que lhes está interditado, ainda que temporariamente, é exatamente
representativas da nacionalidade brasileira, destacando o rádio uma das grandes riquezas apresentadas por esse tipo de fonte.
como um elemento fundamental na consolidação desse processo.4 Em 1988, o historiador francês Jean-Noël Jeanneney 6
O rádio, a televisão o cinema são expressões que englobam publicou um artigo no qual um dos principais pontos de reflexão
um conjunto de significações e atividades diferenciadas. Analisando era o do fato de que apesar da evidente importância do papel
o caso do rádio, especificamente, a expressão deve ser utilizada cumprido pelos meios de comunicação de massa na sociedade
com um caráter amplo. O que se verifica é a existência de um contemporânea, eles ainda não haviam se tornado objetos de estudo
campo da produção radiofônica,5 que deve ser visto como um freqüente - nos anos 80, os historiadores ainda não tinham feito
espaço onde atuam diversos grupos em constante disputa pelo deste setor um importante campo de trabalho. (Jeanneney, 1996)
poder hegemônico. A produção radiofônica não pode ser tratada Na tentativa de justificar tal ausência, o autor elenca uma série de
como uma totalidade homogênea. O rádio enquanto um meio de questões e de dificuldades que considera as responsáveis por tal
comunicação de massa que atinge indiscriminadamente a toda quadro, tais como: a da multiplicidade dos meios, a da dispersão
população brasileira. É por natureza, um veículo “sem mensagem” das informações e a de um certo temor, associado a um grande
pré-concebida. Cada emissora, em separado, produzirá preconceito existente entre os intelectuais franceses, de realizar
determinadas mensagens, muitas vezes buscando atingir uma qualquer tipo de trabalho ligado aos meios de comunicação de massa.
audiência específica, previamente demarcada. O somatório do No caso brasileiro, podemos afirmar que as questões que determinam
processo de seleção do conteúdo, elaboração da mensagem e a presença reduzida de estudos sobre os meios de comunicação de
transmissão da mesma (com todas as variantes e intervenientes massa são as mesmas que foram apontadas pelo estudioso francês.
que isso possa significar) resulta no campo da produção radiofônica No início de 1997, praticamente dez anos depois, Jeanneney
onde atuam profissionais dos mais diversos. publicou um novo trabalho cujo objetivo era o de realizar a recons-
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tituição do que ele denominou de: “a trajetória de um longo do terceiro tomo é dedicado aos temas “economia e cultura” no
esforço para que a historiografia universitária admitisse em período de 1930 a 1964. Encontramos aí estudados a poesia e a
seu âmbito o interesse pelos estudos dos meios de comunicação prosa de ficção; o cinema; a música e a malandragem, e, por fim,
audiovisuais”, (Jeanneney, 1997. p. 147) referindo-se basicamente o teatro. Quanto ao rádio, nada!
ao rádio e à televisão. Apesar de apontar a ampliação do número Isso não significa que a importância do papel do rádio na
de estudos sobre esses meios, por parte dos historiadores, o próprio sociedade brasileira seja negada. Apesar de poucos estudos específicos,
título do artigo já expressa sua conclusão sobre os resultados o rádio é comumente citado
7
como um elemento cultural importante
encontrados: Audiovisuel: le devoir de s’en mêler. Segundo o na sociedade brasileira . Um outro exemplo dessa dicotomia pode
autor, a História estaria se privando de uma fonte essencial para a ser observado na coleção História da Vida Privada no Brasil que
compreensão do século XX, se continuasse a negligenciar esse apesar de utilizar o rádio como um marco na história brasileira,
domínio de estudo, deixando-o somente a cargo dos sociólogos e intitulando o volume n° 3 da coleção com o sub-título República: da
dos cientistas políticos. Ao longo do artigo o autor lista algumas Belle Époque à Era do Rádio e apresentar na capa uma foto extraída
das obras e alguns dos grupos dedicados, desde a década de 70, da revista Seleções, de 1942, onde se vê uma mulher sintonizando
na França, ao estudo dos meios de comunicação de massa. seu rádio, não dedica nenhum de seus capítulos ao estudo da Era
Jeanneney, nesse artigo, faz um breve relato das diversas medidas do Rádio ou da relação deste com a sociedade brasileira.
que vinham sendo tomadas na busca de se obter formas eficazes É importante destacar que o número de trabalhos acerca
de preservação do material produzido pelo rádio e pela televisão da radiodifusão produzidos no campo da história e das ciências
franceses, tais como o da criação de um órgão especializado para sociais ainda é pequeno tendo em vista o papel social cumprido
o depósito legal do material transmitido pelos mesmos. O autor pelo rádio em seus quase 80 anos de existência no Brasil, a
chama a atenção para o fato de tratar-se de um campo de estudos variedade e riqueza dos conteúdos veiculados e o número de
que vem crescendo de forma contínua, porém, lenta, no qual a emissoras existentes em todo o país. A própria diversidade e
maioria dos trabalhos foi realizada a partir do final dos anos de fragmentação das fontes que nos permitem recuperar a história
1980, e onde muito ainda se encontra por fazer. da presença do rádio no Brasil fizeram com que a maioria dos
Às reflexões de Jeanneney podem ser acrescidas as do trabalhos se concentrasse em um aspecto determinado privilegiando
antropólogo mexicano Néstor Garcia Canclini, que afirma que um tipo específico de fonte. Alguns escolheram as revistas
no campo dos estudos culturais existe uma quase total ausência especializadas como a Revista do Rádio como fonte privilegiada,
de trabalhos de um subsetor que ele considera o mais dinâmico outros centraram suas observações sobre os depoimentos dos
desse campo de estudos, que é o das indústrias culturais pioneiros do rádio, outros se preocuparam com a interferência do
(Canclini, 1991. p. 34). Estado. Em geral, a opção dos pesquisadores foi a de concentrarem
Em A Moderna Tradição Brasileira, Renato Ortiz afirma o esforço de análise em uma determinada faceta da produção
que as manifestações da indústria cultural, propriamente ditas, radiofônica. A seguir serão apresentados alguns dos principais
somente começaram a ser objeto de estudo no Brasil, no campo trabalhos sobre o rádio brasileiro.
da Sociologia, da década de 1970. Entretanto, verificamos que a No que diz respeito à relação rádio/sociedade, de forma
escassez de análises das questões pertinentes ao rádio continua a mais ampla, temos o trabalho do historiador Antonio Pedro Tota,
se evidenciar também nas décadas seguintes. Ilustraremos esta intitulado A locomotiva no ar: Rádio na cidade de São Paulo;
afirmativa com um exemplo que consideramos paradigmático: na 1924/1934 (originalmente sua tese de doutoramento). Neste
coleção História Geral da Civilização Brasileira, o volume quarto trabalho o autor mostra a relação existente entre rádio e
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modernidade em São Paulo, nas décadas de 20 e 30, estudando as das muitas lacunas existentes na história desse popular meio de
alterações ocorridas nesta sociedade a partir das interferências comunicação de massa ainda que de forma sintética, terminando
impostas pela cultura de massa. Antônio Pedro Tota chama a atenção por apontar novos caminhos a serem trilhados pela pesquisa.
para a dificuldade do trabalho com o tema rádio devido à ausência de Dentro do conjunto da produção radiofônica temos como
uma história social dos meios de comunicação. Segundo o autor, sua destaque a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, que foi efetivamente
tese tem como ponto de partida a História do Cotidiano e as propostas a mais importante emissora de rádio do Brasil dos anos 1940 e
de análise das estruturas de longa duração para resolver algumas 1950, seja observando pelos altos índices de audiência que a
questões metodológicas. Esse é um dos poucos trabalhos que busca emissora registrava em todo o país, seja pelo fato de a mesma ter sido
entender e resgatar o papel social do rádio no cenário nacional. considerada como um modelo de rádio a ser seguido pelas emissoras
Apesar de centrar suas preocupações na relação rádio/ contemporâneas. Por sua importância a Rádio Nacional foi objeto
modernidade e tomar como locus específico a cidade de São Paulo, de alguns trabalhos específicos, dentre os quais listamos quatro.
o estudo de Antônio Pedro nos permite traçar um panorama da O primeiro deles, intitulado Por Trás das Ondas da Rádio
situação do rádio no Brasil nas primeiras duas décadas de Nacional, de Miriam Goldfeder, publicado em 1980, é originalmente
existência relacionando-as com o período seguinte. O autor uma dissertação de mestrado defendida em 1977, no Instituto de
assinala que já nos anos de 1920 ocorre o início do processo de Ciências Humanas da Universidade de Campinas. O segundo, de
transformação cotidiano da casa com a presença de um “indiscreto autoria de Luís Carlos Saroldi e Sônia Virgínia Moreira: Rádio
aparelho”, que vai, por exemplo, substituir as orquestras e os Nacional: O Brasil em sintonia - trabalho vencedor de um
8
gramofones nos saraus domésticos concurso de monografias sobre a Rádio Nacional, promovido pela
A partir do final da década 1980 e mais propriamente dos Divisão de Música Popular do Instituto Nacional de Música da
anos 90, começaram a surgir alguns trabalhos na área de FUNARTE, em 1983. O terceiro é uma tese de doutorado
comunicação social que pretendiam resgatar a história e o papel apresentada ao Departamento de Comunicação e Artes da ECA/
do rádio no Brasil , dentre eles trabalhos foram destacados dois. USP em 1992, por Doris Fagundes Haussen, sob o título: Rádio e
O primeiro deles é o de Gisela Ortriwano, A informação Política: Tempos de Vargas e Perón. E por último Quando Canta
no rádio: os grupos de poder e a determinação dos conteúdos. o Brasil - A Rádio Nacional e a construção de uma identidade
O principal objeto de análise do estudo é a mensagem jornalística. popular: 1936-1945, de Cláudia Maria Silva de Oliveira,
Entretanto para realizar seu trabalho, a autora vai resgatar parte da dissertação de mestrado, defendida em 1996, na Pontifícia
história os sistema de radiodifusão brasileiro, analisar diversos aspectos Universidade Católica do Rio de Janeiro.
do cotidiano radiofônico tais como a propaganda, a legislação, as
ligações com a política, sempre em uma perspectiva histórica. O largo A caminho da conclusão
recorte temporal - o rádio de seus primórdios até o final da década
de 1980 – e a diversidade dos temas tratados fez com que a maioria O rádio tornou-se popular, estabelecendo uma espécie de
dos temas fossem tratados mais superficialmente a partir de relação de cumplicidade com o conjunto da sociedade que se
fontes secundárias e de alguns dados estatísticos. efetivava num complexo processo de co-participação da
O segundo é o de Sônia Virgínia Moreira, O Rádio no construção do conteúdo que era veiculado. A participação do
Brasil, que tem como objetivo reatualizar a história do rádio, público no processo de construção da programação se expressa
utilizando bibliografia secundária e realizando pesquisas em diretamente na aceitação ou rejeição daquilo que é irradiado. Tendo
periódicos especializados, a autora buscou preencher algumas o rádio brasileiro, na maioria das vezes, adotado um modelo
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comercial, o sucesso dos programas era determinante para a própria Ilustrada e Carioca, os arquivos particulares e depoimentos e
sobrevivência da emissora. O sucesso ou o fracasso de um memórias de profissionais que atuaram no setor radiofônico. Estes
programa, a aprovação ou a rejeição de um determinado modelo últimos encontram-se guardados em instituições de pesquisa como
de programação pelo público ouvinte é, em geral, medida pelas o Museu da Imagem e do Som e o Centro Cultural São Paulo e
pesquisas de audiência9, podendo manifestar-se, também, através publicados em relatos de memórias (livros, crônicas, artigos, etc).
de cartas e telefonemas que eram os canais de comunicação Deve-se destacar ainda o fato de a Rádio Nacional do Rio de
disponíveis na época entre o público e as emissoras de rádio. Janeiro ser a única emissora no eixo Rio - São Paulo a possuir um
O rádio construiu uma sólida relação de credibilidade com arquivo que preserva uma parte significativa daquilo que foi por
o público ouvinte. Ao conteúdo veiculado passou a ser atribuído ela veiculado. O acervo de registros sonoros que a emissora
um caráter de verdade. A reconstituição de parte do processo da conservou está dividido entre um setor de pesquisa na própria
entrada e da integração da sociedade brasileira na chamada era Nacional e o Museu da Imagem e do Som – RJ – neste último o
da comunicação de massa, na qual os mass media se tornaram material já se encontra totalmente digitalizado.
canais e lugares privilegiados de informação, da formação de uma Aa informações fragmentadas podem ser colhidas através
opinião pública, pode e deve ser o objeto de novos estudos. de dados estatísticos oficiais, pesquisas de opinião, depoimentos,
Com a complexificação tecnológica das sociedades, os programação das emissoras, entre outros. As colunas diárias dos
homens multiplicaram e, ao mesmo tempo, fragmentaram os jornais e de algumas revistas forneceram material para a
registros de suas trajetórias. Os mass media passaram a ocupar reconstituição da relação estabelecida entre o rádio e o conjunto
um lugar de destaque no processo de produção cultural, na criação da sociedade – ouvintes e não-ouvintes radiofônicos. As crônicas
de códigos de identificação entre as pessoas e no estabelecimento publicadas nesses periódicos comentavam os temas mais diversos
de normas de comportamento. Reafirmo que os meios de do mundo radiofônico, tanto com elogios como com críticas, como
comunicação de massa devem se tornar objeto de estudo para os por exemplo as mudanças internas ocorridas nas emissoras, as
historiadores. E mais do que isso, que também os conteúdos por alterações nas instalações técnicas, as reações dos ouvintes, a
eles veiculados são fonte de elucidação de questões para as quais vida pessoal dos artistas, os projetos governamentais, entre outros.
as fontes tradicionalmente consagradas não trazem respostas, Também nos jornais diários podem ser encontradas, ainda que de
como por exemplo na aparição dos “fenômenos de popularidade”, forma um pouco irregular, as grades das programações das emissoras.
na da ampliação do “consumo cultural” e na da própria constituição A essas informações foram somadas as encontradas nas pesquisas
de uma sociedade de consumo de base urbano-industrial. realizadas pelo IBOPE desde 1943 até 1959, especialmente nas
A inexistência de um centro de documentação ou arquivos pertencentes aos volumes das Pesquisas Especiais, que eram realizadas
públicos ou particulares que reúnam informações sobre o setor por todo o país. Nos depoimentos realizados / depositados no Museu
radiofônico brasileiro, faz com que parte significativa das da Imagem e do Som – RJ e no Centro Cultural São Paulo e nos
informações tenha que ser obtida através das colunas sobre rádio, livros de memória e entrevistas de profissionais da área de
publicadas na imprensa diária. No caso das décadas de 1940 e comunicação, podem ser retiradas informações sempre com o cuidado
1950 temos, por exemplo, o Diário de Notícias, A Noite, A metodológico que requer o trabalho com relatos orais e memórias.
Manhã, O Globo e o Diário da Noite. Também podem ser Enfim, se por um lado as pesquisas no campo da história, que
consultadas revistas especializadas, tais como a Revista do Rádio têm como principal objeto o rádio, são extremamente trabalhosas e
e a Radiolândia, os diversos volumes do Anuário do Rádio, as complexas, elas são igualmente gratificantes, nos permitindo desvelar
revistas Publicidade e Negócios e Propaganda, A Noite outras faces da realidade social oculta nas tradicionais fontes oficiais.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS NOTAS

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__________,Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico. 7
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90 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 91
O CORPO ENTRE A LINGUAGEM E O SILÊNCIO: O
CASO NIETZSCHE
Gabriel Giannattasio∗

Resumo:
Tomando o corpo como uma categoria chave do
pensamento, procura-se observar o modo como ele
– o corpo – passa a operar na filosofia nietzscheana.
Ao mesmo tempo em que se avalia os desdobramen-
tos, que a emergência do corpo opera, nas articulações
entre a linguagem e o silêncio. A partir destas considera-
ções iniciais, toma-se, o chamado período delirante
da biografia de Nietzsche (1889-1900), não mais como
um momento circunstancial a ser esquecido, mas,
como uma – dentre tantas perspectivas – manifestação
plena de sua obra e de seu ‘tornar-se o que se é’.
Palavras-chave: História do pensamento, Nietzsche, corpo,
linguagem e silêncio.

Abstract:
Taking the body as a key category of the thought, it is
intended to observe the way it starts to perform in the
nietzschean philosophy. The developments that the
emergence of the body operates in the articulations
between language and silence are also evaluated. Based
on these initial considerations, the so-called delirious
period of Nietzsche’s existence (1889-1900) is taken
not as a circumstantial moment to be forgotten, but
as – among so many perspectives – a full manifestation
of his work and his ‘becoming what one really is’.
Key words: History of thought, Nietzsche, body, language and silence.

∗ Professor da Universidade Estadual de Londrina (PR). Doutorado


em História pela Universidade Federal do Paraná, UFPR. Pós-
Doutorado pela Université de Provence (Aix-Marseille I), UP, França

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O corpo: tema perene na história do pensamento. Se, como aponta Sloterdijk, constitui uma tendência da
história cultural do Ocidente o tensionamento entre, por um lado,
O corpo é um dos problemas perenes na história do as forças civilizatórias de amansamento e domesticação e, por
pensamento. E, ao longo do tempo, o homem dedicou-lhe outro, as técnicas de aprimoramento e criação seletiva do homem, o
diferentes lugares e distintas funções: a ele se vinculam, por humanismo – com seu projeto de amansar e domesticar este homem
exemplo, todas as formas de ascetismo, a querela nas relações pela via da educação – estaria superado diante das novas perspectivas
entre matéria e espírito e as dimensões da cultura e da lin- que se abrem através das antropotécnicas contemporâneas.
guagem. Contemporaneamente, o conjunto dos saberes criados E, segundo Sloterdijk, a crise do humanismo está aberta,
pelo homem concede-lhe um lugar de destaque na história do em função da incapacidade deste último de sustentar,
pensamento, pois, nele pode estar guardada a chave para os contemporâneamente, o projeto de domesticação do homem
mistérios da vida. através, seja da educação, seja da linguagem. As chamadas
Há, entretanto, capítulos à parte no interior desta longevidade antropotécnicas – projeto que nasce a partir do cruzamento entre
histórica do corpo. Capítulos que constituem uma espécie de genética e educação – apresentam-se no horizonte cultural do
arqueologia – camadas sedimentadas, mas que se comunicam pelas ocidente como o instrumento mais adequado para esta tarefa de
suas fissuras e em suas zonas fronteiriças – e que podem ser amansamento do homem. E, os investimentos que a ciência
observados, tanto nos seus vasos comunicantes, quanto na sua contemporânea tem depositado neste projeto são inquestionáveis.
singularidade. A filosofia nietzscheana é um destes capítulos e o Ainda assim, podemos afirmar que está em curso a mais profunda
que se pretende reconhecer aqui são as contribuições deste pensar, crise do humanismo que se expressa através da difícil sustentação
não só para a história do corpo no Ocidente, mas, também, para de uma compreensão espiritual do homem.
um diagnóstico da euforia científica de nosso tempo. Retornemos à questão formulada por Spinoza, para o qual
Somos testemunhos, ainda uma vez, de um estado de nós não sabemos o que pode um corpo. Neste sentido, Giacóia
intensificação das ilusões, movido pelas novas possibilidades que a afirma que jamais saberemos, pois o corpo ocupa um lugar superior
engenharia genética e a micro-biologia contemporâneas anunciam ao da consciência, do espírito e da alma. O corpo é, nas palavras
(Giannattasio:2004). O corpo, ao longo da história humana, foi uma dele, ominoso, o que nos leva a tomá-lo sob a forma do agorento,
espécie de espectro, ora posto em evidencia, ora estigmatizado. Foi nefasto, detestável e paradoxal. Ainda assim, é a única expressão
lido, em alguns momentos, como a fortuna, em outros, como a desgraça do real que nos constitui.
que devíamos suportar. Objeto da filosofia, da teologia, da história e É no corpo que testemunhamos os inexoráveis traços, vestígios
da ciência, não cansou de assombrar e desafiar todas as formas e marcas do tempo. Ele se transformou, também, no campo de batalha
anunciadas de sua domesticação. O fenômeno com o qual nos entre o homem e sua finitude, bem como, entre a cultura e o
deparamos contemporaneamente, nada é que o mais recente esforço determinismo biológico (Araújo Junior:2006). Uma pluralidade de
formulado pelo conhecimento humano para capturá-lo (Sibilia:2003). saberes foram chamados a desempenhar seu papel neste ‘front’, a
À clássica pergunta ‘o que pode o corpo’, apresentaram-se medicina, a estética, a farmacêutica, a psicanálise, a educação física,
as mais variadas respostas. O ocidente moderno, em particular, cada qual contribuindo com o seu quinhão para fazer do corpo um
oscilou entre dar uma resposta que leva em consideração as forças suporte inexpressivo do tempo: um Dorian Gray que, para além das
acumuladas pela cultura e os instrumentos de uma sociedade agruras da vida, seja capaz de manter todo seu frescor físico.
civilizada, e/ou oferecer, ao dilema, as técnicas de aprimoramento Se muitas, dentre as atuais formas de saber, dedicam-se à
e melhoramento das raças. decifrar esta que é uma das mais importantes questões perenes
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da humanidade, deve-se reconhecer que este esforço constitui-se Ascetismo, s.m. (teol.) Moral fundada no desprezo do corpo
como uma antiga obsessão do homem. A partir deste imenso e das sensações físicas.
trabalho, é possível enunciar pelo menos três perspectivas distintas Asceta, s.m. ou f. Pessoa devota que se dedica inteiramente
que, certamente, fazem-se ver no interior das várias conjunturas aos exercícios espirituais, mortificando o corpo3 .
históricas testemunhadas pelo homem1 , a saber: um movimento Pensar, portanto, na possibilidade da existência de morais
de negação do corpo (desde que admitidas as suas tantas variações, que ataquem o ascetismo significa pensar na expressão de um
pode ser nomeado de ascetismo), um movimento de afirmação da paradoxo ou numa contradição dos termos. Digamos, logo de
potência explicativa do corpo2 (aqui, também, deve-se pressupor partida, toda moralidade funda-se na ausência ou, para usar uma
uma pluralidade de perspectivas científicas) e, por fim, um expressão de minha preferência, na presença mitigada do corpo.
movimento que não é, nem de negação, nem de afirmação de sua Diríamos, inicialmente, que o universo do ascetismo é
potência explicativa, mas que o toma pelo que ele é, última, constituído por uma pluralidade de possibilidades, cada qual dando
irredutível, perene e inexplicável presença do animal no humano um sentido ou um significado particular ao conceito. Teríamos,
(poderíamos chamá-lo de uma filosofia trágica do corpo). assim, um ascetismo religioso, um ascetismo filosófico, um
Não seria estranho se começássemos oferecendo as ascetismo psicológico, um ascetismo cultural. Sendo que todos
definições mais usuais dos termos, inclusive para observamos como eles pressupõem e exigem, em maior ou menor grau, a ausência
elas se encontram encarnadas secularmente na mentalidade do ou a negação do corpo. Deste ponto de vista, fazer a história do
homem ordinário. Já que corpo e ascetismo são valores que, na ascetismo significa percorrer a história do corpo pelo avesso, ou
história do pensamento, assumiram uma relação de negação e se se preferir, pela sua momentânea ausência.
complementariedade, oferecemos os sentidos de ambos: As práticas ascéticas têm uma longa história de gestação.
Corpo: O substantivo corpo vem do latim corpus e corporis. Porém, trata-se de um processo nada linear, atravessado por re-
Dagognet (apud Greiner:2005) explica que corpus sempre designou significações periódicas, e que foi, permanentemente, testemunha
o corpo morto, o cadáver em oposição à alma ou anima. Já na da incômoda presença de seus críticos. Estes últimos assumiram
tradição não ocidental, como a indo-iraniana, a palavra corpo teria também múltiplas conformações e carregam as marcas de
uma raiz em krp que indicaria a forma, entretanto, diferentemente profundos processos de rupturas. Possivelmente, seja o período
da matriz grega que usou soma para designar o corpo morto e trágico dos gregos – refiro-me à Grécia pré-socrática – e ao
demas para o corpo vivo, esta não estabelece tal distinção. Renascimento – período que entremeia os primeiros sinais da ruína
Aristotélica e a ainda não anunciada aurora do naturalismo moderno
Teríamos, na conceituação grega, a gestação de toda a de Descartes, Locke e Rousseau – que se configurou como um dos
tradição ocidental que se habituou a separar o material e o mental, momentos históricos nos quais concebeu-se uma cultura, um
o corpo morto e o corpo vivo. A noção de corpo pode estar pensamento e uma mítica capaz de articular, numa mesma unidade
associada, ainda, à idéia de sensível, palpável, visível, dotado de tensionada, cultura e natureza, espírito e corpo (Rosset:1989, p. 126).
forma; em oposição ao inteligível, intocável, etéreo e supra-sensível. Antes mesmo do socratismo-platônico e do cristianismo,
Ascetismo. S.m. 1. Prática da ascese. 2. Doutrina que teríamos no orfismo4 um momento privilegiado no processo de
considera a ascese como o essencial da vida moral. 3. Moral que ruptura entre alma e corpo. Apresentam-se os primeiros traços de
desvaloriza os aspectos corpóreos e sensíveis do homem. um irreconciliável antagonismo entre os termos. A essência do
Ascese. S.f. Exercício prático que leva à efetiva realização orfismo traduz-se na soteriologia (Brandão:1991, p. 202). A
da virtude, à plenitude da vida moral. soteriologia inaugura uma prática fundada na ascese, ‘jejuns,
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abstenção de carnes e de ovos, ou, por vezes, de qualquer alimento, lado defendemo-nos contra uma vaidade que aqui
castidade no casamento ou até mesmo castidade absoluta, [...] também quereria levantar a voz: como se o homem
meditação, cânticos, austeridade no vestir e no falar’ tivesse sido o grande pensamento último da
(Brandão:1991, p. 208). evolução animal. Não é de modo algum a coroa da
O orfismo, portanto, é um movimento do pensamento que criação; cada ser encontra-se junto a ele no mesmo
marca a expressão do ascetismo nos mais diferentes momentos grau de perfeição... E, pretendendo isto, vamos
da história do pensamento ocidental: nos pitagóricos, na filosofia demasiado longe; o homem é, relativamente, o mais
socrático-platônica e aristotélica, no judaísmo-cristianismo. deficiente dos animais, o mais enfermiço, o que se
O corpo: Nietzsche e o materialismo moderno. extraviou dos seus instintos mais perigosamente, certo
de que, com tudo isto, é também o animal ‘mais
O materialismo moderno forneceu uma outra dimensão ao
interessante!’. – No que respeita aos animais,
corpo, realizando o grande trabalho no sentido de incorporá-lo ao
Descartes foi o primeiro que teve o admirável
saber e, mais que isso, em transformá-lo numa categoria explicativa atrevimento de considerar o homem como
dos mistérios. Este grande esforço do pensamento moderno é ‘máquina’: toda a nossa fisiologia se esforça em
profundamente debitário de precursores como Lucrécio5 e os demonstrar esta proposição. (MAI/HHI. ‘Fenômeno
atomistas (Wolff:2005). Toda a natureza, segundo o filósofo e poeta e coisa em si’) (Nietzsche:2000, p. 25)
romano, é constituída por corpos e vazio, nada mais! Os corpos
são distintos, sua aparência é múltipla, as qualidades são plurais, A filosofia nietzscheana apresenta-se como negação da
mas todos são constituídos pela mesma matéria: uma infinidade tradicional separação, realizada pelo pensamento ocidental, entre
de partículas minúsculas e fisicamente indivisíveis. Os materialistas corpo e espírito. Mas, ao elaborar esta negação, Nietzsche recusa
atomistas espiritualizam o corpo e sacralizam o átomo como o o idealismo espiritual, que submete o corpo ao espírito, assim como,
mais novo sucedâneo laico da alma. o mecanicismo biológico e explicativo do corpo, o que significa
Esta vertente do pensamento irá se desdobrar na dizer, toda a tradição de leitura do corpo como organismo funcional,
modernidade e se re-apropriará do corpo de forma duplamente tomado como resultado de relações de causa e conseqüência
ambígua. Se, de um lado, o materialismo re-propõe e reata as (Blondel:1986, p.280).
relações entre corpo e pensamento, por outro, alimenta a ilusão de A primeira sinalização de mudança no método é indicativa.
que na matéria encontraríamos a grande matriz explicativa dos O humanismo inaugura-se como um movimento marcado pela
mistérios. O corpo seria, então, nossa mais íntima maquinaria e o modéstia, pois, o homem não só não descende da nobre estirpe
homem, seu mais novo arquiteto. Mas, para além desta completude dos deuses, como também, não é, na sua origem, superior aos
harmônica, o homem reinventará seu paroxismo, um misto de animais – tese que se consagra com o darwinismo no século XIX.
modéstia e arrogância: Movimento, portanto, de retorno do homem ao originário reino dos
animais e de re-integração à natureza – se bem que, sabemos,
Nós mudamos de método. Tornamo-nos mais não permanecemos integrados a ela por muito tempo, nem por um
modestos em todas as coisas. Já não fazemos instante. Agora, é a consciência que o torna senhor do reino: aqui
descender o homem do espírito, da divindade, se encontram conjugadas a astúcia do homem como animal
colocamo-lo entre os animais. No nosso conceito é conhecedor, com a potencial possibilidade aberta de este se
o animal mais forte, porque é o mais astuto: a sua constituir num manipulador de si. Este segundo movimento terá
espiritualidade é uma conseqüência disso. Por outro uma trajetória próspera na modernidade, substituindo deus, o espírito

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e a metafísica pelo homem com a sua consciência, seus artefatos Por uma filosofia trágica do corpo.
e a ciência. O homem se produz, portanto, fazendo-se um animal
superior aos animais: um animal decifrador. Uma filosofia trágica do corpo indica que ele não será tomado,
Nietzsche pontua, o que faz a grandeza do homem é também nem numa perspectiva de redução do corpo ao espírito, alma, consciên-
a sua ruína, e isto, na perspectiva do pensador alemão, torna o cia ou outra entidade metafísica qualquer, e nem como categoria expli-
homem o mais débil e, contemporaneamente, o mais interessante cativa da natureza, o que significaria submeter a natureza e ele próprio
dos animais, mas, ainda assim, um animal como outro qualquer. a um sujeito cognoscente, ao homem do conhecimento científico.
Em seguida, Nietzsche afirma a grandeza de Descartes, Tomo de empréstimo alguns argumentos apresentados por
o primeiro – quem sabe – a reconhecer o homem como Clément Rosset em dois de seus trabalhos, o primeiro, O princípio
máquina, o que significa dizer, a estabelecer um maior e mais de crueldade (2002) e, o segundo, A anti-natureza, elementos
estreito parentesco entre a consciência e a fisiologia. O que a para uma filosofia trágica (1989). O corpo será tomado, também
tradição do pensamento filosófico ocidental fez desta aqui, como uma máscara da natureza.
aproximação é uma outra história: Em seu texto, nascido de sua tese de doutorado e intitulado
A anti-natureza, elementos para uma filosofia trágica,
Para praticar a fisiologia com boa consciência, é Rosset organiza uma espécie de duplo movimento de idéias a
preciso Ter presente que os órgãos do sentido não partir do tema natureza:
são fenômenos no sentido da filosofia idealista:
1. Num primeiro movimento – clássico e que
como tais eles não poderiam ser causas! Logo, o
conquistou uma certa hegemonia na história do
sensualismo ao menos como hipótese reguladora,
pensamento ocidental – o conceito de natureza foi
se não como princípio heurístico. – Como? E outros
forjado a partir dos interesses de uma ciência
dizem até que o mundo exterior seria obra dos nossos
prescritiva e normativa que contribuiu para a criação
órgãos! Mas então seria o nosso corpo, como parte
da ilusão de que as formas de artifício, dentre elas a
desse mundo exterior, obra dos nossos órgãos! Mas
linguagem, seriam capazes de decifrar o mundo
então seriam os nossos órgãos mesmos – obra de
sensível. Que a cópia era expressão da coisa, que a
nossos órgãos! Esta é, a meu ver, uma radical
representação era expressão do representado. De que,
reductio ad absurdum [redução ao absurdo]:
portanto, o conceito de natureza seria capaz de traduzir
supondo que o conceito de causa sui [causa em si
fielmente o mundo.
mesmo] seja algo radicalmente absurdo. Em
conseqüência, o mundo exterior não é obra de nossos 2. Num segundo movimento – marginal e que só
órgãos - ? (JGB/BM § 16) (Nietzsche:1997, p. 21) circunstancialmente conquistou ares hegemônicos –
a natureza foi tomada como potência inapreensível
pelo homem. Nesta tradição do pensamento, por mais
Nietzsche volta-se, aqui, para uma das manifestações do que a natureza seja o objeto da ciência, a representação
materialismo moderno, o sensualismo, e toca num ponto construída é tão somente uma pálida e desfigurada
fundamental para a formulação de uma concepção trágica do lembrança daquilo que insiste em nos escapar. Nascia,
corpo. Não só o mundo exterior, o real, não deriva de nossos órgãos, assim, a idéia de que todo o conhecimento nada mais
como ainda, o nosso corpo mesmo não possui nenhum domínio é que artifício, de que, portanto, a própria ciência
sobre si mesmo. deveria Ter consciência de seu grau de ilusão.
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Se o corpo é uma das máscaras da natureza, o que pode, então, Nietzsche, o heróico asceta: o santo, o filósofo e o poeta.
o corpo? Se, em muitas das dimensões do ascetismo, tentou-se apartar
o saber do mundo empírico, sensível – pois se reconhecia nele um Num primeiro movimento da filosofia nietzscheana, o da
mundo do equívoco e do engano – a ciência moderna – e aí o chamada metafísica do artista, a ascese é evidente e a linguagem,
reconhecimento de mérito da filosofia cartesiana – re-introduziu o ainda que não a linguagem conceitual e representativa, mas, a
corpo e a fisiologia, garantindo-lhes legitimidade investigativa. poética, metafórica e artística, ocupará o lugar da ausência do
Afirmar, entretanto, que o ato de conhecer é um ato, corpo8 . Mesmo quando a consciência se dá conta de seu alcance
fundamentalmente, de criação e não de reapresentação, não de superfície e se reconhece enquanto linguagem artística, ainda
significa dizer que o real – leia-se aí natureza e corpo – seja uma assim, o corpo não está lá, ou se está, apresenta-se transfigurado,
dimensão que se ofereça ao trabalho do homem como criador. transtornado, transmutado e fantasiado. Esta idéia levará Nietzsche
O que, ainda segundo Rosset(2002), caracteriza o real? Há a se interrogar sobre a força genealógica da ascese e se ela não é
dois importantes valores que o constituem, ele é incognoscível e cruel. condição para a constituição do homem, elemento, portanto,
A incognoscibilidade do real quer aqui traduzir duas idéias, a primeira, que formador do processo de ominização (Rabelo:2002). A partir desta
ele não se deixa capturar – princípio tão antigo quanto os gregos: a verda- perspectiva não teria havido, na história do homem, um único
deira natureza das coisas gosta de ocultar-se – a Segunda, que o momento sequer no qual o ascetismo não tenha se feito presente.
fato do real ser escorregadio e inapreensível não significa dizer que Mesmo na sua expressão humana mais elevada, nobre, guerreira
ele é menos real, ou ilusório, ou ainda, sujeito a dominação do homem. e aristocrática – como na Grécia de Homero e Arcaica –
Ainda, o real é cruel, pois, por maiores que sejam os esforços encontraríamos, lá também, uma incontornável necessidade de
lançados pelo homem – esforços para edulcorar, maquiar, mascarar, justificar a existência:
inventar, criar, idealizar – ele é incapaz de transcendê-lo. Portanto,
ainda que imprevisível e incognoscível, o real é uma força presente, O grego conheceu e sentiu os temores e os horrores
imanente e incontornável, e isto lhe confere uma fisionomia cruel. do existir: para que lhe fosse possível de algum modo
Este é, certamente, um dos maiores dramas humanos. A viver, teve de colocar ali, entre ele e a vida, a
imprevisibilidade, a incerteza! Não é contra isto tudo que o homem resplendente criação onírica dos deuses olímpicos.
se debate há milênios? O que nos permitiria afirmar que não há [...] Para poderem viver, tiveram os gregos, levados
nada de mais trágico do que viver. E o corpo é, inegavelmente, a pela mais profunda necessidade, de criar tais deuses,
manifestação mais íntima e irrecusável do real. O corpo é, assim, um cujo advento devemos assim de fato nos representar,
princípio do real, uma máscara de Dionísio, a expressão do que deveria de modo que, da primitiva teogonia titânica dos
ser a dimensão mais ‘natural’ do homem. E, ainda assim, ele é um terrores, se desenvolvesse, em morosas transições,
estranho para nós mesmos e nós contribuímos, inegavelmente, no a teogonia olímpica do júbilo, por meio do impulso
trabalho de torná-lo nossa mais íntima e antípoda sombra. da beleza – como rosas a desabrochar da moita
Os momentos ou movimentos históricos que mais se abriram espinhosa. De que outra maneira poderia aquele povo
a estes princípios de incerteza foram, também, aqueles que melhor tão suscetível ao sensitivo, tão impetuoso no desejo,
expuseram este homem diante de sua frágil e pálida imagem: a tão singularmente apto ao sofrimento, suportar a
Grécia pré-socrática, os movimentos de pensamento pré-cartesiano, existência, se esta, banhada de uma glória mais alta,
as vanguardas artísticas modernas6 e o nascimento do homem não lhe fosse mostrada em suas divindades? (GT/
problemático do início do século XX7 . NT § 3)(1992, p.36/7)

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Notem. Estamos tratando, aqui, da vida que necessita ser nenhuma meta melhor para a vida do que perecer
justificada. Problema central do processo de ominização. Quem junto ao que é grandioso e impossível, animae
sabe não resida aí o motivo que levou o filósofo alemão, magnae prodigus 9 (HL/Co. Ext. II § 9)
diferentemente do procedimento adotado por uma história da (Nietzsche:2003, p. 83/4).
ascese, a não reconhecer no orfismo um momento inaugural da E, se há algo de grandioso no homem – que o dignifica e o
sua gestação? O ascetismo decorreria, pensava Nietzsche, da distingue de sua natureza – esta grandeza está intimamente ligada
necessidade de dar um sentido à vida diante do ‘non sense’ e do à capacidade de pôr-se a questão: para que estas aí? Questão
absurdo que era o viver em sofrimento: enobrecedora e, ao mesmo tempo, indicativa de sua ‘doença’, pois,
Se desconsiderarmos o ideal ascético, o homem, o a partir dela, a vida passa a ser avaliada pelo seu sentido.
animal homem, não teve até agora sentido algum. Contudo, é preciso que se diga, Não é a dor que passa a
Sua existência sobre a terra não possuía finalidade: desempenhar um papel inédito no pensamento nietzscheano, ou
‘para que o homem?’ – era uma pergunta sem que o sofrimento vem ocupar um espaço inequívoco na produção
resposta; faltava a vontade de homem e de terra; simbólica do homem. A dor foi sempre o pano de fundo de toda a
por trás de cada grande destino humano soava, como criação, ou seja, ela já ocupava o centro da filosofia trágica de
um refrão, um ainda maior ‘Em vão!’ O ideal Nietzsche. E, se ele retorna à cultura Grega arcaica, é por entender
ascético significava precisamente isto: que algo que lá, melhor do que em qualquer outra época, o homem soube
faltava, que uma monstruosa lacuna circundava o dar um sentido artístico e cultural ao seu sofrimento.
homem – ele não sabia justificar, explicar, afirmar a Retomar as passagens, ao longo dos textos nietzscheanos,
si mesmo, ele sofria do problema do seu sentido desde Da utilidade e desvantagem da história para a vida até
(GM/GM. III, § 28) (Nietzsche:1998, p. 148/9) a Genealogia da moral – nas quais memória e esquecimento
Afinal, para que sofrer? O objeto, portanto, não era o estão intimamente associados ao processo de enfraquecimento
sofrimento, mas o seu sentido. Para fazer da vida um fardo do animal em homem – permite-nos identificar os múltiplos sentidos
suportável, dando um para quê ao sofrimento, é que o ascetismo da ascese ao niilismo. A história aparecerá aqui como instrumento
foi se constituindo, apresentando-se, também, como uma resposta de justificação, construção específica de uma linguagem orientada
ao niilismo. Já na Segunda Extemporânea, Nietzsche afirmaria: na perspectiva de dar um sentido, uma legitimidade à memória.

Porque o mundo está aí, porque a humanidade está Corpo: consciência, fisiologia e filosofia em Nietzsche.
aí, não deve por enquanto, absolutamente nos
preocupar, pois isso seria como se quiséssemos
fazer uma piada conosco mesmos: pois a presunção No Nascimento da tragédia as palavras corpo e ascetismo
do pequeno verme humano é agora a coisa mais não aparecem citadas uma única vez. Isto confirma que, no tocante
divertida e mais hilariante sobre o palco terrestre. a este período, as relações entre pensamento e corpo não se
Mas, para que tu, indivíduo, estás aí, eu te pergunto constituem em temas irrecusáveis da filosofia nietzschenana. Será
e nenhum de vós nada diz, para justificar, mesmo só com o início da Segunda fase de seu pensamento, que os
que a posteriori, o sentido da tua existência, de tal primeiros indícios da relevância e pertinência do tema começam a
modo que tu mesmo antevejas uma meta, um alvo, dar seus primeiros sinais. Do Humano, demasiado humano,
um ‘para isso’, um elevado e nobre – não sei de passando por Aurora, o tema vai adquirindo importância até chegar

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a se constituir em reflexão de abertura da Gaia Ciência. Nesta, O preconceito do ‘puro espírito’. – Em toda a parte
Nietzsche fala da gratidão do convalescente, afinal, todo o livro em que predominou a doutrina da pura
expressa o divertimento após um longo e demorado processo de espiritualidade, ela destruiu, com seus excessos, a
privação e impotência. A doença a que se refere Nietzsche tem força nervosa: ela ensinou a menosprezar,
um nome, ela se chama romantismo. Não casualmente, o momento negligenciar ou atormentar o corpo, a desprezar e
deste reencontro nietzscheano com sua grande saúde é também o mortificar o próprio homem por causa de seus
momento no qual o corpo passa a assumir papel fundamental em seu instintos; ela gerou almas ensombrecidas, tensas,
pensamento. Mais que isto, é como se Nietzsche tornasse consciente oprimidas – que acreditavam, além disso, conhecer
as profundas relações entre saúde e pensamento filosófico, a causa do seu sentimento de miséria e poder talvez
eliminá-lo! “Ela tem de estar no corpo! Ela ainda
identificando sua obra de juventude a uma espécie declinante de
floresce em demasia!” – desse modo concluíram,
saúde, em analogia a este novo estado inaugural que se abre. A
enquanto, na verdade, ele elevava protestos e
pergunta decisiva que o filósofo apresenta, deverá ser, a partir de protestos, com suas dores, contra o seu perpétuo
agora: ‘foi a doença que inspirou o filósofo?’. Assim, como quem escarnecimento. Enfim, um supernervosismo geral
investiga seu próprio movimento filosófico, Nietzsche especula: e crônico foi a sina daqueles virtuosos espíritos
Num homem são as deficiências que filosofam, num puros: conheceram o prazer apenas na forma do
outro as riquezas e forças. O primeiro necessita de êxtase e de outros precursores da loucura – e o seu
sua filosofia, seja como apoio, tranquilização, sistema atingiu o ápice quando tomou o êxtase como
medicamento, redenção, elevação, alheamento de objetivo maior da vida e como gabarito para
si; no segundo ela é apenas um formoso luxo, no condenar tudo terreno. (M/A I, ‘O preconceito do
melhor dos casos a volúpia de uma triunfante puro espírito’) (Nietzsche:2004, p. 37/8)
gratidão, que afinal tem de se inscrever, com
maiúsculas cósmicas, no firmamento dos conceitos A distância tomada em relação à filosofia de Schopenhauer
(FW/GC § 2) (Nietzsche:2001, p. 10/11). faz-se evidente, ao mesmo tempo em que indica o processo de
demonização do corpo, ou em outras palavras, demonização de
Nietzsche está, sem dúvida alguma, pensando nos seus uma parte significativa da vida:
primeiros textos filosóficos e no romantismo como ‘pensamentos
de um convalescente’. Mais que isto, o corpo passa a ser tomado [...]. Em toda moral ascética o homem venera uma
como crivo avaliador do pensamento, pois, o filósofo alemão se parte de si como Deus, e para isso necessita
interroga, ‘a filosofia, de modo geral, não teria sido apenas uma demonizar a parte restante. (MAI/HHI § 137)
interpretação do corpo e uma má-compreensão do corpo’ (FW/ (Nietzsche:2000, p. 105/6).
GC § 2) (Nietzsche:2001, p. 12). Sabe-se que a fantasia sexual é moderada ou quase
Vânia Dutra de Azeredo (1999) afirma que só no livro suprimida pela regularidade das relações sexuais, e
Aurora aparece claramente o argumento nietzscheano que associa inversamente se torna desenfreada e dissoluta com
introspecção excessiva do ‘puro espírito’ e degenerescência a abstinência ou a desordem nessas relações. A
orgânica, ainda que de uma forma embrionária. Afinal, segundo a fantasia de muitos santos cristãos foi incomumente
autora, é no terceiro período da obra nietzscheana10 que a fisiologia obscena; graças à teoria de que esses apetites eram
passa a ser concebida como força produtiva de valores: verdadeiros demônios que lhes assolavam o íntimo,

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não se sentiam muito responsáveis por eles; a este determinação que opera o conhecimento moderno, desejando
sentimento devemos a franqueza tão instrutiva de submeter, por exemplo, os estados oníricos aos da vigília.
suas confissões. [...], a sensualidade teve de ser A relação, então, entre corpo e consciência pode ser
cada vez mais difamada e estigmatizada, [...] (MAI/ traduzida pela relação entre multiplicidade e unidade:
HHI § 141) (Nietzsche:2000, p. 108)
Viver e inventar. – Por mais longe que alguém leve
Aqui se apresenta a sugestiva indicação de se ler a seu autoconhecimento, nada pode ser mais
devassidão como criação da santidade e o ascetismo como sombra incompleto do que sua imagem da totalidade dos
impulsos que constituem seu ser. (M/A II, ‘Viver e
perene de uma sensualidade extraviada.
inventar’) (Nietzsche:2004, p. 91)
O momento em que o corpo passa a desempenhar um papel
decisivo na filosofia nietzscheana, coincide com o momento de viragem A introdução do corpo na filosofia nietzscheana exige de
de seu pensamento. Já não mais falamos de uma ‘metafísica de artista’. nós um permanente estado de alerta e atenção. Pois, a entrada
Inicia-se, aí, uma reversão dos valores e, mais que isto, das relações triunfal dele na cena filosófica constitui-se numa espécie de limite
de dominação entre as forças apolíneas e dionisíacas. no esforço de transformação dos nossos instintos em animais
Como, então, o corpo se apresenta ao pensamento domésticos. Afinal, é pela consciência que até aqui se desejou
nietzscheano? O corpo situa-se como ponto de encontro do caos estabelecer um controle do animal, seja sobre os outros animais,
original com a consciência, suporte constitutivo do caosmos. O seja sobre si mesmo. É contra este projeto de domínio ou de auto-
corpo seria, portanto, fisiologia interpretante, território de domínio que o corpo conspira11 .
negociação entre o caos absoluto do mundo com a simplificação
unitária do intelecto. Mas a fisiologia interpretante não é, ainda, a [...] as leis de sua alimentação – Nietzsche se refere à
consciência. O homem, tal como todas as criaturas vivas, pensa alimentação dos impulsos – permanecem inteiramente
sem parar, mas, ele não o sabe. O pensamento que se torna desconhecidas para esse alguém. [...] Nossas
consciente transforma a fisiologia interpretante na mais grosseira experiências, como disse, são todas, neste sentido,
e superficial expressão do homem, nasce assim a linguagem e os meios de alimentação, mas distribuídos com mão cega,
signos de comunicação (Cf. GM/GC. V, ‘Do gênio da espécie’) sem saber quem passa fome e quem está saciado.
[...]; se um indivíduo corre, descansa, lê, irrita-se,
(Niezsche:2001, p. 247). Há um fosso que aparta o corpo que
luta, fala ou exulta, o impulso como que tateia, em
pensa do pensamento consciente, mas estes, em Nietzsche, não
sua sede, todo estado em que se acha ele, e, se ali
constituem as dimensões daquilo que se tornará consciente e nada encontra para si em geral, tem de esperar e
inconsciente. O corpo é o conjunto, a totalidade das percepções, continuar sedento: ainda um momento e ele se debilita,
no interior das quais a consciência representa uma pequena parte. mais alguns dias ou meses de não satisfação e ele
O corpo é um mundo subterrâneo de sensações, percepções, murcha, como uma planta sem chuva. Essa crueldade
pulsões e instintos que na luta interior, constituem a multiplicidade do acaso talvez saltasse aos olhos de maneira ainda
de estados do ‘eu’. Ao se constituir numa expressão rica de sentidos mais viva se todos os impulsos fossem radicais como
e significados, muito mais extensivo que a consciência, o corpo a fome, que não se satisfaz com comida sonhada;
não se faz dominar, pois é fugidio, avesso às formas de dominação. mas a maioria dos impulsos, sobretudo os assim
Submeter o corpo à consciência significaria o mesmo que submetê- chamados ‘morais’, fazem justamente isto – se for
lo unicamente ao estômago. É no interior destas relações de permitida a minha conjectura de que nossos sonhos

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têm precisamente o valor e o sentido de, até certo de linguagem adquirida para designar certos estímulos
grau, compensar a casual ausência de ‘alimentação’ nervosos? que tudo isso que chamamos de
durante o dia. Por que o sonho de ontem foi pleno de consciência é um comentário, mais ou menos
ternura e lágrimas, o de anteontem foi brincalhão e fantástico, sobre um texto não sabido, talvez não
exuberante, um anterior foi aventureiro e de uma busca ‘sabível’, porém sentido? (M/A II, ‘Viver e inventar’)
sombria e constante? Por que razão nesse desfruto (Nietzsche:2004, p. 91/2/3)
belezas indescritíveis da música, por que pairo no ar
A relação entre consciência – tomada aqui como o campo
e vôo naquele outro, com o enlevo de uma águia, em
constitutivo do domínio, pela linguagem, dos impulsos – e o corpo –
direção a picos distantes? Tais criações, que dão
margem e desafogo aos nossos impulsos de ternura,
entendido como território da manifestação e circulação das energias
de humor, de aventura, ou a nosso anseio de música vitais – manifesta-se obediente às formas de articulação entre o uno
e de montanhas – cada qual terá à mão seus próprios e o múltiplo. Há, entretanto, entre estes dois extremos, a formação de
exemplos mais notáveis –: são interpretações de nossos outros territórios interpretantes. Sendo a consciência o mais tosco
estímulos nervosos durante o sono, interpretações instrumento de interpretação do corpo, na medida em que, ela aboli a
muito livres, muito arbitrárias, de movimentos do luta, o conflito e a disputa que se dá em nossa fisiologia em nome do
sangue e das vísceras, da pressão do braço e das consenso entre as partes. Assim, afirma o filósofo alemão, os estado
cobertas, dos sons do sino da torre, dos cata-ventos, oníricos são interpretantes mais autorizados de nosso corpo
dos noctívagos e outras coisas assim. Se esse texto, exatamente porque não nos impõe a tirania do uno. A consciência no
que em geral pouco varia de uma noite para outra, é seu árduo trabalho de tradução da experiência vital em linguagem
comentado de maneira tão diversa, se a razão inventiva comunicável, expressa-se através de sons, signos, sentidos e,
imagina, hoje e ontem, causas tão diversas para os finalmente, em conceitos. O corpo, indomado, indomável, na sua mais
mesmos estímulos nervosos: o motivo para isso está ‘enlouquecida’ profusão de sentidos, impõe-se como campo
em que o souffleur [ponto de teatro] dessa razão foi desorganizador. Nesta longa agonística, o corpo oferece suporte ao
hoje diferente do de ontem – um outro impulso quis trabalho de interpretação, ainda que ele mesmo não reconheça os
satisfazer-se, ocupar-se, exercitar-se, reanimar-se, sentidos que lhe são debitados:
desafogar-se -, ele estava em sua maré, ontem foi a
vez de outro. – A vida de vigília não tem essa liberdade – Tomemos uma experiência trivial. Suponhamos que
de interpretação que tem a vida que sonha, é menos um dia, passando pelo mercado, notamos que alguém
inventiva e desenfreada – mas devo acrescentar que ri de nós: conforme esse ou aquele impulso estiver no
nossos impulsos, nas horas despertas, igualmente não auge em nós, este acontecimento significará isso ou
fazem senão interpretar os estímulos nervosos e, aquilo para nós – e, conforme o tipo de pessoa que
conforme suas necessidades, estabelecer as ‘causas’ somos, será um acontecimento bastante diferente.
deles? que não há diferença essencial entre sonhos e Uma pessoa o toma como uma gota de chuva, outra
vida desperta? que, mesmo comparando estágios de o afasta de si como um inseto, outra vê aí um motivo
cultura bem diversos, a liberdade de interpretação para brigar, outra examina sua própria vestimenta, para
desperta, em um, não fica atrás da liberdade do outro ver se algo nela dá ensejo ao riso, outra reflete sobre
em sonhos? que também nossos juízos e valorações o ridículo em si, outra sente-se bem por haver
morais são apenas imagens e fantasias sobre um contribuído, sem o querer, para a alegria e luz de sol
processo fisiológico de nós desconhecido, uma espécie que há no mundo – e em cada caso houve a satisfação
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de um impulso, seja o da irritação, o da vontade de cosmicamente” (Nietzsche apud Safranski: 207). Sentir cosmi-
briga, da reflexão ou da benevolência. Esse impulso camente exige, antes de mais nada, romper com a tradicional
agarrou o incidente como uma presa: por que divisão da natureza orgânica e inorgânica: desnaturalizar a natureza
justamente ele? Porque estava à espreita, sedento e e, a partir daí, naturalizar o homem. Este é o ponto de partida para
faminto. [...] – O que são, então, nossas vivências? este ‘sentir cosmicamente’.
São muito mais aquilo que nelas pomos do que o que Ou seja, se a filosofia nietzscheana libera-se de seu roman-
nelas se acha! Ou deveríamos até dizer que nelas não tismo adolescente, abrindo desta forma novos territórios de
se acha nada? Que viver é inventar? (M/A II, ‘Viver e expressão do corpo no pensamento, por outro, um novo obstáculo
inventar’) (Nietzsche:2004, p. 93) a ele se apresenta: o eterno retorno como princípio cósmico. E
Por fim, Blondel (1986) reconhece que, ao contrário de se ‘este obstáculo’ perpetuar-se-á até o final de sua chamada ‘vida
perguntar o que é o corpo, deve-se perguntar o que é interpretar. intelectual consciente’. Na passagem do eterno retorno como
Pois interpretar é quase um fundamento ontológico na filosofia de princípio ético – presente na Segunda Consideração
Nietzsche. Maior a sua vontade de potência, maior a sua capacidade Intempestiva12 – para a doutrina do eterno retorno – da qual
de assimilação da diferença: temos aí a primeira metáfora Zaratustra é seu principal porta voz13 – encontramos a figura do
interpretativa, a metáfora gastroenterológica, e o corpo é tomado ‘insensato’. E, se é através da figura do ‘louco’ que Nietzsche
pela sua condição digestiva. O homem forte é capaz de digerir anuncia a ‘morte de deus’, será através da imagem de Zaratustra
seus atos da mesma forma que está à altura de digerir seus que o corpo se apresenta como o lugar da ‘grande razão’:
alimentos. Em Nietzsche, o corpo não é uma máquina, mas uma
Quero dizer a minha palavra aos desprezadores do
organização política instável, que se assenta num permanente confronto
corpo. Não devem, ao meu ver, mudar o que
de forças que nunca encontra termo ou equilíbrio: temos aqui a
aprenderam ou ensinaram, mas, apenas, dizer adeus
segunda metáfora, a política. Todos os sentidos explicativos criados ao seu corpo – e, destarte, emudecer.
pelo homem nascem do desejo de dominar, de submeter, e cada ‘Eu sou corpo e alma’ – assim fala a criança. E por
sentido possui a sua própria perspectiva, seu fim e suas metas: assim, que não se deveria falar como as crianças?
resumidamente, apresenta-se a terceira metáfora, a filológica. Mas o homem já desperto, o sabedor, diz: ‘Eu sou
Se há, no entanto, neste que seria o segundo período da todo corpo e nada além disso; e alma é somente
filosofia nietzscheana, a recusa explícita de sua metafísica anterior, uma palavra para alguma coisa no corpo’.
seu romantismo, há também um novo impedimento à emergência O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade
do corpo. A doutrina do eterno retorno – como princípio cosmológico com um único sentido, uma guerra e uma paz, um
e não mais ético, da forma como tal já se fazia reconhecer, por rebanho e um pastor.
exemplo, na Segunda Extemporânea – constitui-se numa nova Instrumento de teu corpo é, também, a tua pequena
forma de mitigar o corpo, na medida em que ele se vê enredado razão, meu irmão, à qual chamas ‘espírito’, pequeno
numa inaugural metafísica: a tese materialista do eterno retorno instrumento e brinquedo da tua grande razão.
(Cf. Safranski:2001, p. 213). ‘Eu’ – dizes; e ufanas-te desta palavra. Mas ainda
Nietzsche estava, neste momento de sua biografia intelectual, maior – no que não queres acreditar – é o teu corpo
em busca de um novo paradigma de ciência. Um conhecimento e a sua grande razão: esta não diz eu, mas faz o eu
não mais perspectivista, fundado no ‘eu’, nem um conhecimento (Za/ZA I, ‘Dos desprezadores do corpo’)
amparado no altruísmo do ‘tu’: “Para além do ‘eu’ e ‘tu’! Sentir (Nietzsche:1998, p. 51).

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Enormes problemas apresentam-se aí! O corpo passa a reconhecer o silêncio nietzscheano, seus onze últimos anos de
desempenhar um papel chave e estratégico. A ele estará associada existência, como parte integrante de sua obra, não significa oferecer
a imagem da ‘grande razão’ e aquilo que o homem ocidental chama um valor demasiado grande ao trabalho da consciência, das formas
de ‘espírito’ articula-se ao corpo como uma espécie de máscara consagradas pela linguagem, da obra metódica e reflexiva que em
menor. O corpo em Nietzsche é tomado como ponto de partida, tantos e tantos momentos o próprio Nietzsche suspeitava? Não significa
reunindo a um só tempo as dimensões do uno e do múltiplo. A manter intocáveis princípios que, há mais de um século, a própria
consciência, como um raio e um relâmpago, apresentar-se-ia como teoria do conhecimento criticou: ‘onde há loucura, não há obra’15 ?
um momento fugaz, uma espécie de instante diante da eternidade. Para o desenvolvimento de um tal suspeição, há inúmeras
Nietzsche opera uma radical mudança de perspectiva na passagens da ‘obra lúcida’ do filósofo discípulo de Dioníso. Afinal,
forma como o cânone tradicional tratou, no ocidente, as relações ainda que sem filosofia, sem rima e sem métrica, sem prosa e sem
entre corpo e espírito. Há, no pensador alemão, uma forma muito verso, sem método e sem escrita, sem deus e sem gramática, há a
particular de se apropriar da ‘alma’. Ela não será mais, como pluralidade de sentidos de um corpo que nos permite, à luz de seu
gostaria a tradição filosófica judaico-cristã, o lugar privilegiado da futuro projetado, interpretar. Podemos até reconhecer em inúmeras
unidade, expressão de identificação do ‘eu’ consigo mesmo e de destas passagens a voz do ‘profeta’, ainda dominado por aquele
reconciliação das máscaras na identidade do espírito. daimon que Cristopher Türke (1993) chamou de ‘a loucura sob o
Da mesma forma como o corpo é constituído por uma domínio e a mania da razão’:
infinidade de sentidos e destinos fisiológicos, para cada uma destas O homem louco. – Não ouviram falar daquele
metas, há a formação de uma consciência; unidade de organização homem louco que em plena manhã acendeu uma
na pluralidade de sujeitos, esta é a imagem da alma que melhor lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar
expressa o corpo como metáfora (MARONI, Amnéris, 2008) incessantemente: ‘Procuro Deus! Procuro
Entretanto, isto que dá organização ao corpo, é, ao mesmo Deus!’?(FW/GC III, ‘O homem louco’)
tempo, um estado de permanente mutação. A organização obedece (Nietzsche:2001, p.147)
a desejos ‘involuntários’ que não se dão a conhecer; são
unicamente processos, migrações, e deles conhecemos unicamente É sob a máscara da insensatez que o mais terrível se anuncia
seus efeitos de superfície. O que, de certa forma, obriga o ao homem das trocas fáceis – o homem do mercado – e dentre
pensamento a reavaliar seus propósitos: toda a filosofia é uma estes os ateus e materialistas: – E como lá se encontrassem muitos
espécie de mal-entendido sobre o corpo. É possível fazer filosofia daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isto uma
e, ao mesmo tempo, não transformá-la num mal-entendido? O grande gargalhada (FW/GC III, ‘O homem louco’)
corpo faz filosofia? (Nietzsche:2001, p. 147). Pois, nem mesmo o maior dentre seus
assassinos, entendeu a grandeza de seu ato:
Corpo: linguagem e filosofia em Nietzsche. Como conseguimos beber inteiramente o mar?
Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte?
Considerando a já consagrada recepção do pensamento Que fizemos nós, ao desatar a terra de seu sol?
nietzscheano – que se limita a organizar o conjunto dos textos do Para onde se move ela agora? Para onde nos
autor em três fases14 , sendo que a última destas se concluiria com o movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não
chamado ‘colapso mental’ do filósofo alemão em 1889 – gostaria, caímos continuamente? Para trás, para os lados,
ainda que momentaneamente, de colocá-la em suspeição. Não para a frente, em todas as direções? Existem ainda

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‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que e a gramática. Restou, por fim, a mais poderosa de todas as máscaras,
através de um nada infinito? Não sentimos na pele mas, ao mesmo tempo, a de menor poder simbólico para o homem
o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? gregário, surda, informulável e inaudita, a máscara de Dioniso.
Não anoitece eternamente? Não temos que acender Mas a potência do dionisíaco acompanhou, como uma
lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos sombra, uma a uma, as auroras nietzscheanas. É possível perceber
coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro os vestígios de sua presença, constante, perene. Em Aurora, ela se
da putrefação divina? – também os deuses faz ver sob a máscara do crepúsculo, de algo que se encontra na
apodrecem! Deus está morto! (FW/GC III, ‘O iminência de seu silêncio, até que ele encontre seu próprio silêncio:
homem louco’) (Nietzsche:2001, p. 148)
O homem perdeu, com a morte de Deus, o seu centro. Mas Dentro do grande silêncio. – Aqui está o mar, aqui
ele mesmo não está à altura de entender o seu feito. Possivelmente, podemos esquecer a cidade. Os seus sinos ainda
o próprio Nietzsche, não estivesse. Teriam que se passar anos tocam neste momento a Ave Maria – esse ruído
para que, no silêncio da máscara do insensato, o devir dionisíaco sombrio e tolo, porém doce, no cruzamento do dia
com a noite –, mas apenas por mais um instante!
nietzscheano fosse despertado.
Agora tudo se cala! O mar se estende pálido e
Assim, tomar o corpo como a grande razão, constitui,
cintilante, não pode falar. O céu traz seu eterno e
certamente, um paradoxo. O corpo como grande razão nos remete
silencioso espetáculo vespertino em cores rubras,
ao perigoso terreno do subsolo que deveria permanecer oculto, verdes e amarelas, não pode falar. As pequenas
pois, ele inaugura uma espécie de autocracia do crime; aqui não falésias e recifes que entram no mar, como que
há organização que se sustente, não há regime possível, não há buscando o local mais solitário, nenhum deles pode
previsibilidade, não há controle, não há lógica, não há sistema, não falar. Essa mudez enorme, que subitamente nos
há linguagem. Quem, por exemplo, já experimentou traduzir em toma, é bela e aterradora, diante dela o coração se
linguagem a experiência de seu próprio corpo? Não é isto o que inflama. – Oh, a hipocrisia dessa muda beleza! Como
nos é exigido numa consulta médica? Interpretamos sem poderia falar bem, e mal também, se apenas
conseguirmos nos livrar da impressão de havermos cometido quisesse! Sua língua atada e a sofredora ventura
alguma espécie de traição. Um sentimento de frustração originado em seu rosto são uma perfídia, querem zombar da
da infidelidade e, ao mesmo tempo, uma conformação de que não nossa simpatia! – Pois seja! Não me envergonho de
poderíamos ter feito diferente. Não há razão capaz de suportar ser a zombaria de tais poderes. Mas tenho
tamanha desmesura e, ao mesmo tempo, os apontamentos deste compaixão de você, natureza, porque tem de
subsolo: ‘e por vezes a própria loucura é a máscara que esconde silenciar, ainda quando é apenas sua malícia que lhe
um saber fatal e demasiado seguro’ (Nietzsche apud prende a língua: sim, tenho compaixão de você por
Deleuze:1990, p. 82) sua malícia! – Ah, faz-se ainda mais silêncio, e
Nietzsche, também ele, acreditou, por um instante, nos novamente se inflama meu coração: apavora-se ante
ouvidos do mercado. Mas por que sob a máscara do louco se uma nova verdade, também não pode falar, ele
anuncia ‘a morte de Deus’? Justamente sob a máscara que anos próprio zomba juntamente, se a boca exclama algo
nessa beleza, ele próprio desfruta sua doce maldade
mais tarde ele próprio deveria carregar? E, pouco a pouco, as
em silenciar. A fala, e até o pensamento, tornam-se
ilusões foram se partindo. O ‘véu de Maia’ foi se desfazendo: a
para mim odiosos: não escuto o erro, a ilusão, o
arte e a cultura, a moral, a ética, o homem, os ídolos, a linguagem
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espírito delirante a rir por trás da (sic) cada palavra? E, se nos propomos a falar sob inspiração de um outro ponto
Não tenho que zombar de minha compaixão? Zombar de vista, só podemos fazê-lo adotando aquele que foi o método
de minha zombaria? – Oh, mar! Oh, noite! Vocês caro ao filósofo alemão: a transvaloração dos valores e a
são maus instrutores! Ensinam o ser humano a parar possibilidade de experimentação de outras perspectivas.
de ser humano! Deve ele entregar-se a vocês? Deve Seria, de partida, necessário admitir a possibilidade de um
tornar-se, como são agora, pálido, brilhante, mudo, quarto período ‘produtivo’ da obra nietzscheana, período este que
imenso, repousando em si mesmo? Elevado sobre se inauguraria em 1889 e se estenderia até 1900. As cartas que
si mesmo? (M/A V, ‘Dentro do grande silêncio’) anunciam a ‘loucura’ nietzscheana18 são a expressão do fluxo
(Nietzsche:2004, p. 221/2) migratório da vida e da existência como permanente vadiar, através
delas Nietzsche oferece fisionomia à idéia do eterno retorno do
Era preciso tempo. O mesmo tempo que o ‘louco’ concede diferente. As missivas inauguram, ainda, o período do triunfo do
aos seus contemporâneos, ele também, generosamente, concede- corpo e a filosofia se cala definitivamente: a morte da linguagem
o ao próprio Nietzsche. Mas, de todo modo, não é assim que os traduz o triunfo desta grande razão, não mais uma razão mitigada,
contemporâneos descrevem Nietzsche após 1889: pálido, imenso, envergonhada, mas uma razão que adquire a potência do divino e
mudo, repousando em si mesmo? se faz assim em potência dominante. O ‘tornar-se’ nietzscheano
O que, até aqui, a recepção do pensamento nietzscheano indica um movimento em direção a, uma superação de si e do
tem feito – raras exceções16 – nada mais é do que valorizar a humano, da existência nas formas que configuram o homem: o
saúde como potência niveladora do eu, entendendo a doença como homem se faz deus, um deus de si e para si. As analogias com os
singularidade exacerbada: Nietzsche, doente, é único, sua doença livros dos hebreus são múltiplas, a começar pela etimologia da
é um escândalo que nenhum pensamento gregário pode palavra deus. Deus – criador – nasce por afirmação: ‘eu sou aquele
explicar ou admitir (Dias:2002, p. 265). que sou’. O homem – criatura – pelo contrário ‘é aquele que não
A linguagem como símbolo social investe o corpo de sentidos, é’. E deus – na ordem dos livros que traduz a cronologia de sua
ato de criação, mas também de dominação17 . Há uma dimensão e biografia – também se cala: gênesis, a destruição e vingança e,
uma potência do inaudito que precede a linguagem e se manifesta, por fim, o silêncio. O silêncio, nas palavras do filósofo, ensina o
surda e inominavelmente, para tudo aquilo que ela ainda não foi ser humano a parar de ser humano!
criada. Não casualmente chamamos este hiato, este intervalo O processo de constituição daquele que será o silêncio final
ocupado por um grande silêncio de loucura: ‘o informulável é a e derradeiro de Deus – eu sou aquele que sou – articula-se ao
doença do pensamento’ (Lévi-Strauss apud Kehl:2003, p. 247) e, esforço do filósofo em criar uma filosofia que seja capaz de
ao mesmo tempo, a mais plena manifestação do existir. E, transcender a condição humana – num movimento de superação
sintomaticamente, o corpo nietzscheano adoeceu. desta condição – tornando-se o que se é – superando assim aquilo
Mas, se falamos do padecimento do corpo nietzscheano, que nos mantém atados ao último homem: a linguagem, o verbo, a
assim procedemos por adotarmos uma dada perspectiva: olhar o gramática e o comunicável. A linguagem aparece articulada ao
dionisíaco a partir das lentes do apolíneo, olhar a barbárie pela homem gregário (Mosé:2005), pois, se no momento de seu
civilização, olhar a loucura pela sanidade, olhar o trágico pelo nascimento o som traduz o espanto, a euforia, a experiência original,
otimismo ou pessimismo, olhar o corpo pela consciência, olhar o única e absolutamente individualizada, ele deve rapidamente se
silêncio pela linguagem. Há uma vontade de redenção que inspira transmutar em palavra e esta em conceito. O homem faz da
os canonizadores do pensamento nietzscheano. linguagem o instrumento necessário para pôr-se em acordo rápido
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e, em meio ao perigo, evitar os desentendimentos (JGB/BM IX, seu trabalho de criação do homem gregário, de outro, na
‘O que é, afinal, a vulgaridade?’ (Niezsche:1992, p. 182). Em o possibilidade de transformá-la em potência criativa e inaugural de
Crepúsculo dos ídolos Nietzsche afirma: vida. No limite, o corpo é, muito provavelmente, a verdade da
Já não nos apreciamos suficientemente quando nos
linguagem (Blondel:1986, p. 278). Assim poderia ser enunciada
comunicamos. As nossas experiências genuínas de esta nova expressão do paradoxo. Nela, não é a linguagem que
nenhum modo são loquazes. Não poderiam, ainda detém a verdade sobre o corpo, pelo contrário, é o corpo que
que quisessem, comunicar-se, porque lhes falta a detém a verdade da linguagem. Os instrumentos da linguagem
palavra. Daquilo para que temos palavras não são capazes de anunciá-la, assim, as palavras estariam a serviço
encontramo-nos já também fora. Em todo o falar das funções fisiológicas, porém, jamais esgotariam estas últimas.
há um grão de desprezo. A linguagem, parece, O problema das palavras e da linguagem persiste e se constitui
inventou-se só para o medíocre, o comum numa constante em sua obra:
comunicável. Pela linguagem vulgariza-se já quem
fala. (GD/CI ‘Incursões de um extemporâneo’ § Somente enquanto criadores! – Eis algo que me exigiu
26) (Nietzsche:1988, p. 86/7) e sempre continua a exigir um grande esforço:
compreender que importa muito mais como as coisas
Poderíamos reconhecer aí um paradoxo que acompanhou
se chamam do que aquilo que são. A reputação, o
permanentemente o filosofar de Nietzsche. O que decididamente lhe nome e a aparência, o peso e a medida habitual de
faltava, no seu trabalho de destruição da metafísica, era a linguagem uma coisa, o modo como é vista – quase sempre uma
apropriada. O que no fundo ele desejava, ainda não estava em arbitrariedade e um erro em sua origem, jogados sobre
condições de formular, afinal, a própria linguagem é metafísica: as coisas com uma roupagem totalmente estranhas à
sua natureza e mesmo à sua pele –, mediante a crença
Nossos mais arraigados valores metafísicos são que as pessoas neles tiveram, incrementada de geração
exatamente aqueles dos quais nós nos livramos mais em geração, gradualmente se enraizaram e encravaram
dificilmente, supondo que sejamos capazes de nos na coisa, por assim dizer, tornando-se o seu próprio
livrar – estes valores que se incorporaram à língua e corpo: a aparência inicial termina quase sempre por
às categorias gramaticais e se tornaram mesmo tornar-se essência e atua como essência! Que tolo
indispensáveis, a ponto, que parece que nós acharia que basta apontar essa origem e esse nebuloso
deveríamos deixar de pensar se renunciássemos a esta manto de ilusão para destruir o mundo tido por
metafísica19 (Nietzsche apud Blondel:1986, p. 276). essencial, a chamada ‘realidade’? Somente enquanto
criadores podemos destruir! – Mas não esqueçamos
Aqui se entende, com toda a clareza, a idéia nietzscheana de também isto: basta criar novos nomes, avaliações e
que Deus, por maiores os esforços realizados para assassiná-lo, probabilidades para, a longo prazo, criar novas
sobrevive em sua, quase, indestrutível fortaleza: a gramática. A ‘coisas’(FW/GC II, ‘Somente enquanto criadores’)
linguagem é, ela mesma, metafísica, incapaz de traduzir o passado, o (Nietzsche:2001, p. 96).
presente e o vir-a-ser e, por fim, confissão de nossa ignorância maior:
a linguagem nasce para dar conta do que permanece desconhecido. Mesmo na criação, a linguagem denuncia suas limitações.
Nietzsche insistirá naquele que poderá ser seu esforço Diante do impasse, a única solução poderia ser o silêncio e,
maior. De um lado, reconhecendo as limitações da linguagem em certamente, será sobre ele que recairá a ‘escolha’ do último período
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produtivo da obra nietzscheana. O silêncio será tomado como um NOTAS
elemento precioso, mesmo quando o filósofo escreve. Como se o
1
corpo se manifestasse nas pausas, nas suspensões, no riso que O que foi alterado em cada conjuntura, não foi a presença e a
trai a sentença, na galhofa que denuncia a sisudez, numa lágrima ausência de cada uma destas respostas, mas a predominância de
que escorre por um não sei o quê. uma sobre as outras. Ou seja, os termos do problema mantiveram-se,
Na biografia de Nietzsche, Curt Paul Janz (1985) refere- ocorrendo unicamente uma alteração das relações de força entre eles.
2
se à polêmica em torno do ‘colapso mental’ do filósofo alemão. Devo, a título de esclarecimento preliminar, chamar a atenção para
Uma das perspectivas deste debate – que tem na figura de Julius o fato de que mesmo no campo de teoria afirmadora e explicativa do
Kaftan seu mais eminente representante – afirma que a ‘doença corpo, encontraremos, paradoxalmente, uma manifestação muito
mental’ nietzscheana decorre da incapacidade deste de superar o particular do ascetismo, se é que uma certa dose de ascetismo não é
condição das mais rudimentares formas de vida civilizada (Rabelo:2002).
conflito interior aberto com o anúncio da ‘morte de deus’ e que se 3
Para as várias definições utilizadas em meu texto e para avaliar
desenvolveu num anti-cristianismo posterior. Este mesmo
outras tantas transformações etimológicas dos termos, indico o
argumento aparece, com outra roupagem, inúmeras vezes quando
trabalho de Rodrigo Bueno (2002), Nietzsche e os ascetismos.
o que está em jogo é o pensamento nietzscheano: o senso comum 4
Pode-se dizer que o ‘orfismo’ manifesta seus traços característicos
– e aqui me refiro a uma espécie particular de senso comum, o já desde o século VI a.C.. Nascido do mito de Orfeu, a concepção
senso comum acadêmico – olha com desconfiança todo do orfismo estabelece os pressupostos míticos de uma origem divina
pensamento que se funda e se inspira na filosofia de Nietzsche. e imortal da alma, que se conserva, mesmo diante de sua nova
Como se a simples inspiração trouxesse riscos para aquele que configuração terrena, como uma alma agora encarnada.
nela se apóia. Como se seu ulterior destino fosse a própria 5
Titus Lucretius Carus, poeta romano do século I a.C., deixou um
confirmação do equívoco filosófico: a decorrência de uma espécie longo poema inacabado chamado Da Natureza e é considerado um
de crime do pensamento. Gostaria de sustentar um elemento da filósofo da escola epicurista.
tese aqui esboçada, mas, invertendo seus pressupostos. 6
Assim, a crise de representação que se abate sobre a figuração do
Sim, há no ‘colapso mental’ nietzscheano, uma manifestação corpo na virada do século XIX para o XX, incorpora esta problematização
de seu pensamento filosófico. Seu silêncio, sua ‘doença mental’, da consciência diante do corpo (Moraes:2002).
7
sua ‘loucura’, seu ‘castigo’ é parte de sua obra, e não um momento Consultar o trabalho de história das idéias de Franklin Baumer, O
a ser esquecido. Trata-se do momento mais contundente da Pensamento Europeu Moderno, dos séculos XVII ao XX
presença do corpo e, em Nietzsche, os testemunhos médicos o (Baumer:1990).
8
afirmam, não se trata de uma morte vegetativa. O que resta é a Nietzsche afirma, já em Verdade e mentira num sentido extra-moral,
inquietante presença do corpo carregada pela multiplicidade de um texto póstumo e portador de idéias seminais como reconhece o
sentidos que o atravessam. Mas um corpo que não quer mais próprio autor: “O que sabe propriamente o homem sobre si mesmo!
comunicar! Sim, seria ele sequer capaz de alguma vez perceber-se completamente,
A tragédia nietzscheana, segundo Rosa Maria Dias, é que: como se estivesse em uma vitrina iluminada? Não lhe cala a natureza
quase tudo, mesmo sobre seu corpo, para mantê-lo à parte das
“ele preferiu tornar-se louco a encontrar um equivalente para a
circunvoluções dos intestinos, do fluxo rápido das correntes
loucura. [...] O delírio como perda da identidade, a loucura como
sanguíneas, das intricadas vibrações das fibras, exilado e trancado
esmaecimento da razão não marcam o desmascaramento de em uma consciência orgulhosa, charlatã!” ( WL/VM § 1 )
Nietzsche, mais sua realização suprema” (DIAS, 2002, p. 267). (Nietzsche:1978, p. 46)

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9
Que sacrifica a sua vida. o bastante para um sistema – nem mesmo para meu sistema [...]’
10
Nota-se que o livro Gaia Ciência encontra-se, na biografia intelectual (Nietzsche apud Marton:2000, p. 192)
de Nietzsche, na fronteira, na zona de passagem do segundo para o 15
Se tomássemos a idéia formulada por Foucault (1992), da morte
terceiro período de sua obra. do autor e da obra, tal como a expressa em O que é um autor?,
11
Adotando como referência o ensaio de Volnei E. dos Santos, Por seríamos obrigados a reconhecer que no ponto em que se instaura
uma filosofia da distância (2006), poderíamos tomar a figura do uma pluralidades de eus, neste ponto, não teríamos obra, na medida
Espírito livre, criada por Nietzsche, no processo radical de sua em que, se o autor produz um pensamento uno, a obra é o suporte
constituição e de seu tornar-se. Assim, o Espírito livre, inicialmente de manifestação desta unidade. Deste ponto de vista, a obra não
inspirado na figura do homem Schopenhauer, poderia ter conhecido comporta a multiplicidade de perspectivas, o conceito não foi criado
sua última metáfora na chamada ‘loucura dionisíaca’. para um tal destino. Mas, se assim é, Nietzsche não é produtor de
12
No texto em que tece considerações sobre o pensamento histórico obra, do começo ao fim de sua produção. Desde, pelo menos, o final
no século XIX e na Alemanha, em particular, Nietzsche parte de do século XIX e início do XX tem-se apontado – tese esta sustentada
uma formulação decisiva para a construção de seu diagnóstico, diz ele: de forma mais enfática pela nascente psicanálise – para a idéia de
‘Quem perguntar a seus conhecidos se eles desejariam atravessar que onde há loucura também há obra (Cf. Dantas:2002) Das duas
uma vez mais os últimos dez ou vinte anos de suas vidas perceberá, uma, ou a idéia de obra – preso à sua gênese platônica e publicizada
com facilidade, qual deles está preparado para aquele ponto de vista ao povo através do método de exegese cristã – não se aplica ao
supra-histórico: com certeza, todos responderão “não”!, mas eles pensamento nietzscheano, ou o conceito se abre a re-significações e
irão fundamentar diversamente este “não”! (HL/Co. Ext II, § 1) pode ser empregado na interpretação de escritores como Nietzsche.
(Nietzsche:2003, p. 14) 16
Dentre estas exceções, citaria o trabalho inaugural de Pierre
13
Se a ‘morte de deus’ é um peso que Zaratustra deve suportar, a Klossowski Nietzsche e o circulo vicioso (2000).
doutrina do eterno retorno está destinada a ser seu lenitivo (Franck:2005). 17
A revolução linguística nos indicou que a linguagem é produtora
Se esta é uma interpretação corrente entre os comentadores da obra
do homem. À pergunta, o que precede a linguagem, tem como
nietzscheana é preciso que se diga que há outras. Existem os que
estratégia, exigir o reconhecimento da expressão simbólica na origem
consideram o eterrno retorno como expressão máxima da morte de
de tudo que diz respeito ao homem. A perspectiva trágica
deus, dentre estes, destacaria Pierre Klossovski ‘Nietzsche e o círculo
nietzscheana, dando um passo aquém, situa o problema no campo
vicioso’ e Gilles Deleuze ‘Nietzsche e a filosofia’.
14 do paradoxo. Afirmar a linguagem como produtora do homem requer
Há, no processo de recepção da obra nietzscheana, uma divisão
oferecer uma solução ao paradoxo, como se para aquém deste
desta em três fases: a primeira situar-se-ia entre os anos de 1870 a
momento nada pudesse ser afirmado. Do ponto de vista do homem
1876 e reúne os textos que se inauguram com o Nascimento da
do conhecimento, a expressão simbólica, a linguagem é seu fardo
Tragédia e se estende até as Considerações Extemporâneas, a segunda,
constitutivo. Mas admitindo que a existência é paradoxal, pode-se
abrange os anos de 1876 a 1882 e se inicia com o Humano, demasiado
afirmar que um real e um animal – ambos incognocíveis – também
Humano até Gaia Ciência, a terceira, percorre os anos de 1882 a
1889 e se inaugura com Assim falou Zaratustra até o chamado encontram-se na origem do homem simbólico.
18
‘colapso mental’ em janeiro de 1889. Neste período de sua vida, Nietzsche dialoga com seus próximos
Esta periodização tem um efeito didático poderoso, ao mesmo tempo, através de cartas breves pelas quais assume múltiplas personalidades
permite organizar o pensamento em torno de temas ou eixos temáticos re-significando figuras afamadas ou infames da história, desde Buda,
fundamentais, mas uma tal divisão permanece sendo objeto de debate Jesus Cristo, Voltaire e Napoleão, até Prado e Lesseps: O que é
entre os comentadores, pois, trata-se de uma operação que visa desagradável e constrange a minha modéstia é que todos os nomes
sistematizar um pensamento avesso aos sistemas: ‘não sou limitado da história, no fundo, sou eu (Nietzsche apud Dias:2002, p. 265).

124 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 125
19
Notre plus vieux fonds métaphysique est celui dont nous nous GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. ‘Corpos em fabricação’ in: Revista
débarrasserons en dernier lieu, à supposer que nous réussissions à Natureza Humana 5(1): 175-202, jan-jun. 2003.
nous em débarrasser – ce fonds qui s’est incorpore à la langue et __________. ‘5 aulas sobre Nietzsche’ in: http://www.rubedo.psc.br/
aux catégories grammaticales et s’est rendu à ce point indispensable artigosb/cursnite.htm capturado em 29.02.2008.
qu’il semble que nous devrions cesser de penser, si nous renoncions
GIANNATTASIO, Gabriel. Próxima parada: o haras humano.
à cette métaphysique.
Londrina:Atritoart, 2004.
GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares.
São Paulo:Annablume, 2005.
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we intend to point out that this engineer used his
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Ao longo da Primeira República, desde a criação do cargo


de prefeito pela lei n.º 85 de 1892, à frente do poder Executivo
municipal da cidade do Rio de Janeiro estiveram 27 personalidades.
Todos, sem exceção, considerados “de confiança,”foram
indicados diretamente pelos Presidentes da República. A duração
destas gestões variou, sendo algumas relativamente longas, com
*Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Professora adjunta da Universidade Severino Sombra e Coordenadora
do Programa de Mestrado em História Social da referida instituição.

128 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 129
mais de quarenta meses, como as de Francisco Pereira Passos e interpreta o papel dos prefeitos do Distrito Federal no período
Bento Manuel Ribeiro Carneiro, e outras extremamente curtas, como o de um simples administrador quanto aquele que relaciona
conforme foi o caso da gestão de Paulo de Frontin, que ocupou a a atuação do chefe do Executivo municipal ao de um interventor
prefeitura do Distrito Federal por apenas 6 meses. do governo federal no campo político carioca.
De uma maneira geral, a produção que analisa estas adminis- Ao invés de trilhar o caminho freqüentemente percorrido
trações tradicionalmente as aborda em seu conjunto priorizando pelos autores que produziram estudos sobre o tema, ou seja, o
as transformações ensejadas no espaço urbano da cidade a cada enfoque de todas as administrações em seu conjunto, para efeito
novo prefeito (REIS: 1977; CARVALHO: 1992; NORONHA SANTOS: desta análise foi feita a opção pelo resgate da ação política de um
1945). Esta ênfase nas obras de melhoramento da urbes, em parte, destes atores à frente do Executivo municipal do Distrito Federal.
justifica-se em função da própria formação destes autores, em sua O prefeito selecionado foi Paulo de Frontin. A opção feita se
maioria engenheiros, geógrafos ou mesmo funcionários públicos que justifica em função de uma série de fatores.
escreveram obras não raro patrocinadas e editadas pela prefeitura Paulo de Frontin faz parte da tríade dos prefeitos engenheiros
com o objetivo de produzir uma memória destas administrações. que escreveram os seus nomes na história da cidade do Rio de Janeiro
Apesar de apresentarem uma boa visão geral do que foram e se tornaram verdadeiros mitos ao lado de Pereira Passos, cuja gestão,
estas gestões, o enfoque utilizado nestes trabalhos, aliado ao fato diga-se de passagem, acabou transformando-se para os historiadores
do cargo não ser preenchido via sufrágio direto, tem contribuído em uma espécie de chave de leitura das administrações no período.
para a divulgação da idéia do papel do prefeito da cidade do Rio no A consagração do nome de Frontin e sua projeção na cidade estão
período como sendo o de um mero administrador das contas públicas relacionados ao episódio água em 6 dias,5 à sua atuação nas
(CURY: 2000),1 e/ ou uma espécie de interventor da união no espaço obras de construção da Avenida Central, atual Avenida Rio Branco,
da cidade (CARVALHO: 1987; BASTOS: 1984),2 esvaziando desta
forma a sua atuação enquanto um ator político, ou, na melhor das
hipóteses, relegando-a a um segundo plano (VON DER WEID: 1984).
Estudos de casos focalizando mais detidamente algumas destas
gestões,3 assim como análises sobre a atuação política destes prefeitos,
que muito contribuiriam para um melhor desenho do papel destes
atores no jogo político carioca, ainda não foram produzidos de forma
significativa, apesar do crescimento verificado nas últimas décadas
da produção relativa à trajetória política do Rio de Janeiro.4
Na verdade este é um campo praticamente inexplorado,
apesar dos prefeitos serem peças bastante importantes no jogo
político da cidade no período. Basta lembrar que boa parte da
legislação produzida na Primeira República relativa à organização do
Distrito Federal seguiu a tendência de transformar o chefe do Executivo
municipal em ator central no campo político carioca e o Legislativo
local - o Conselho de Intendência Municipal - em simples coadjuvante.
Tendo como referencial o quadro exposto, a proposta central Foto 1: Gravura “Comissão Frontin - Agua Vae” - incluída no livro
deste artigo é testar o alcance destes enunciados, tanto o que do Jubileu Acadêmico do Engenheiro Paulo de Frontin - 1889.

130 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 131
e ao grande número de melhoramentos realizados em sua gestão,
o que lhe valeu as alcunhas de Prefeito de Densidade Máxima
(REIS: 1977, 71) e Prefeito da Varinha de Condão.6
Passos, Frontin e Sampaio, na verdade, apresentam muitos
elementos em comum. O principal deles é um Curriculum
marcado pela formação educacional realizada na mesma instituição
(Escola Politécnica, antiga Escola Central) e pela experiência
anterior às suas gestões na Prefeitura carioca em diversos projetos
e obras relacionados à evolução urbana da cidade ainda no Império.
Por outro lado, se o período da administração de Pereira
Passos (1902-1906) já foi direta ou indiretamente objeto de análise
de inúmeros trabalhos acadêmicos (BENCHIMOL: 1992; KNOX,
1994) 7 e a passagem de Carlos Sampaio pela prefeitura carioca nos
últimos anos tem estimulado estudos interessantes (KESSEL:1996;
TAVARES: 1994), o mesmo não se pode dizer em relação à Frontin.
Talvez um dos fatores para se compreender a existência
desta lacuna seja a duração meteórica de sua gestão. Por outro
lado, a despeito da exigüidade de sua permanência no cargo, Frontin
à frente da prefeitura do Distrito Federal foi uma experiência singular
uma vez que, além de profissional renomado na sua área de atuação
(uma espécie de regra no caso dos prefeitos) e do impressionante
número de obras realizadas em sua gestão, era chefe daquela que se
tornaria a principal organização política da cidade a partir de fins da Foto 2: Alegoria Homenagem da União Republi-
década de 1910 e inícios dos anos 1920 – a Aliança Republicana.8 cana ao engenheiro Paulo de Frontin - 1914.
Igualmente importante ressaltar, a memória dominante que
se produziu em torno da sua imagem, sobretudo construída por depositado no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB),
seus colegas do Clube de Engenharia e discípulos da Politécnica, até recentemente não havia sido disponibilizado à consulta,
sempre primou por ressaltar a faceta do engenheiro, o profissional permanecendo praticamente inexplorado.1 0
de inquestionável competência que construiu uma carreira Dificuldades à parte, conforme será visto a seguir,
reconhecida internacionalmente (HONORATO: 1996) em confirmando a assertiva do historiador italiano Giovani Levi de
detrimento do político que no Senado, na prefeitura, na Câmara ou que nenhum sistema normativo é, de fato, estruturado o bastante
simplesmente na liderança da Aliança Republicana lançava para eliminar toda possibilidade de escolha consciente, de
muitas vezes mão de práticas, como a compra de votos, comuns manipulação ou de interpretação das regras e de negociação por
às chefias políticas regionais no período (PINTO: 2002).9 parte dos indivíduos (LEVI: 1989, 1334), Paulo de Frontin usou
Finalmente um outro fator, desta vez de ordem prática, que um cargo que a princípio fora criado de forma a garantir a
pode ser arrolado para a compreensão da falta de estudos de caso ingerência do governo federal no campo político carioca para
sobre a administração Frontin é o fato de que seu arquivo, sedimentar sua base política no Distrito Federal.
132 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 133
A engenharia política de Paulo de Frontin na prefeitura do Descendente de uma família de nobres franceses que vieram
Distrito Federal para o Brasil para escapar das perseguições religiosas na França
após a revogação do edito de Nantes, André Gustavo Paulo de
Frontin, quando convidado por Delfim Moreira para o cargo de
Capital Federal, quatorze horas da tarde de 22 de janeiro de
prefeito do Distrito Federal em janeiro de 1919, já havia acumulado
1919. Em cerimônia realizada no Ministério da Justiça e Negócios
uma considerável experiência em cargos públicos, o que inclui
Interiores Paulo de Frontin é nomeado Prefeito do Distrito Federal,
duas passagens pela direção da Estrada de Ferro Central do Brasil
cargo que seria conferido ao paraense Lauro Müller caso o
(1896-97, 1910-1914) e uma cadeira no Senado, a qual teve que
presidente Rodrigues Alves não tivesse falecido.
renunciar para assumir o Executivo municipal. 1 3
A notícia da nomeação de Frontin foi, de uma maneira geral,
Sua ligação com o jogo político na cidade havia sido
bem aceita pela imprensa carioca. Os principais jornais da cidade
formalizada quando ingressou, em 1912, no antigo Partido
não pouparam elogios ao novo chefe do Executivo municipal. Em
Republicano do Distrito Federal, criado por Barata Ribeiro e dirigido
suas páginas, estamparam afirmações como:
por longos anos por Augusto de Vasconcelos. Um bom termômetro
“O senhor Delfim Moreira obedeceu ... a um duplo do capital político (BOURDIEU: 1989,187-188) que
critério technico e democrático. Nomeou um grande cuidadosamente acumulara desde então pode ser medido na
engenheiro, um grande administrador e ao mesmo existência do centro político que, criado em 1918, levava o seu
tempo escolheu o homem que seria o prefeito eleito nome.1 4É importante destacar, a participação de Frontin em
se o governador fosse nomeado pelo eleitorado.” 11 instituições dessa natureza, além de irmandades religiosas e
“Os novos horizontes da cidade. O Rio tem o prefeito entidades culturais, teve um peso considerável na sua trajetória
desejado.”(A Política: 1919)
política. Diferente da maioria dos representantes da cidade que
O Correio da Manhã, de Edmundo Bittencourt, embora não constituíram clientelas mediante a prestação de serviços médicos
tão entusiasticamente, também destacou que a notícia da nomeação gratuitos, como foram os casos de Augusto de Vasconcelos e
de Paulo de Frontin havia sido recebida com aplausos gerais e Mendes Tavares, ou de advocacia, expediente utilizado por Irineu
terminava afirmando que do ilustre senador do Distrito Federal Machado, o canal utilizado pelo engenheiro para chegar ao eleitorado
dever-se-ia esperar sempre alguma coisa.1 2 da cidade foi, em grande medida, a participação nessas organizações.
Ainda que seja questionável a idéia de que a população Ao assumir a prefeitura da capital do país, Frontin encontrou
carioca tenha celebrado como um todo a novidade, conforme as contas municipais no vermelho. Desde 1917 a receita arrecadada
noticiaram os jornais da cidade, dado o pouco interesse que era inferior à despesa efetuada, quadro que se prolongaria
demonstrava pela participação no jogo político formal em virtude das ininterruptamente até 1922. Amaro Cavalcanti, prefeito da cidade
constantes fraudes e violências envolvidas nos pleitos, novos horizontes entre 1917 e 1918, bem que tentou aumentar a arrecadação
de fato se desenharam no campo político carioca com a nomeação municipal e, por conseguinte, equilibrar as contas da prefeitura,
do engenheiro para o Executivo municipal do Distrito Federal. criando em sua gestão um novo imposto: o de exportação. Sua
Frontin não foi o primeiro carioca a ocupar a prefeitura do Rio, iniciativa, contudo, apesar da boa acolhida entre os representantes
mas foi prefeito na mesma ocasião em que começava a tornar-se do Legislativo no Conselho de Intendência Municipal, enfrentou
figura central na política da cidade, já que no ano anterior participara forte oposição de importantes setores da cidade, sobretudo aqueles
da criação da Aliança Republicana (AR) e chefiava esta que aos ligados ao grande capital, que acabaram pedindo a sua cabeça ao
poucos se tornaria a mais importante organização partidária local. governo e a membros da elite política carioca.1 5
134 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 135
O problema era estrutural. A ineficiência administrativa
Receita anual arrecadada e despesa paga pela Municipalidade provocada pelo excesso de funcionários, a falta de controle das
do Rio de Janeiro (1889-1922) despesas públicas e a ineficácia dos mecanismos de arrecadação
fiscal foram os grandes vilões do equilíbrio orçamentário do
Ano Receita Arrecadada Despesa Efetuada município durante a Primeira República.
1889 2.281:969$829 2.275:197$032 Numa época em que a lei de responsabilidade fiscal não
1890 8.591:161$450 6.170:837$150 existia nem a idéia de orçamento contingenciado, os prefeitos
1891 3.675:182$880 4.835:914$891
do Rio no período tinham que fazer verdadeiros malabarismos
1892 17.179:632$528 18.256:893$996
1893 16.727:164$727 15.901:241$533 financeiros devido à constante situação precária da municipalidade
1894 17.029:449$274 16.938:654$977 que eles mesmos, diga-se de passagem, muitas vezes contribuíam
1895 25.876:865$590 26.910:039$336 para perpetuar. A maioria tentou imprimir uma marca em sua
1896 33.510:749$270 33.532:324$628 passagem pela prefeitura, procurou construir um lugar na memória
1897 19.703:393$454 19.116:970$008 da cidade realizando obras de grande vulto, principalmente os
1898 18.322:716$499 18.935:781$847
prefeitos engenheiros. A política mais implementada por estes atores
1899 23.484:607$080 23.418:585$198
1900 25.348:345$189 24.909:489$616
na prefeitura da capital federal na Primeira República foi a política
1901 20.677:534$885 21.179:836$338 de gastos sem maior controle. A fórmula seguida, salvo raras
1902 26.264:976$525 25.678:471$282 exceções, foi quase sempre a mesma: grandes obras, grandes
1903 30.773:377$989 31.378:810$319 empréstimos.1 6 O resultado: grandes problemas financeiros para
1904 28.211:265$569 28.217:890$888 os seus sucessores. Com isso, o colapso das finanças públicas,
1905 31.395:873$320 31.359:976$848 agravado pela ineficácia dos instrumentos responsáveis pela
1906 48.473:185$178 48.132:715$202
37.411:736$707 37.725:248$841
arrecadação de impostos, se tornou uma constante.
1907
1908 39.132:935$422 38.931:919$457 Para contornar a difícil situação financeira da Prefeitura,
1909 53.494:900$027 53.304:273$322 Frontin a princípio procurou racionalizar os gastos municipais e
1910 50.432:016$303 50.291:046$779 equilibrar as contas da prefeitura através de uma série de medidas
1911 39.071:111$959 38.792:735$996 como a supressão de automóveis oficiais, a extinção de oficinas
1912 46.972:224$686 47.780:813$496 de reparo, a simplificação dos serviços das repartições, visando o
1913 50.194:780$558 50.172:770$508
combate à burocracia, e a diminuição dos gastos com aluguéis de
1914 46.203:942$766 46.158:616$872
1915 51.515:482$862 51.553:092$889 imóveis para o funcionamento de escolas municipais. O novo
1916 57.206:681$626 56.850:340$216 prefeito suprimiu metade das escolas primárias do Distrito Federal
1917 41.028:525$023 53.615:987$595 e, por meio de decreto, determinou o funcionamento em dois turnos
1918 44.946:372$267 54.153:017$612 nos prédios mais próximos.
1919 51.082:108$166 93.132:331$134 A ação do novo prefeito foi bem menos incisiva, contudo,
1920 57.444:138$754 68.795:088$472 no que diz respeito à política fiscal. Frontin não se comprometeu
1921 65.588:386$096 84.419:415$836
1922 67.042:842$500 69.114:346$833
com a cobrança do imposto de exportação e chegou a suspender
a cobrança executiva do mais que burlado imposto predial.
Fonte: FERREIRA, João da Costa. Rio de Janeiro em Embora tenha elogiado Amaro Cavalcanti em entrevista
1922-1924. Rio de Janeiro: Prefeitura , 197-, p. 27. concedida ao Jornal A Política logo nos primeiros dias na
136 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 137
prefeitura, Frontin acabaria deixando claro mais adiante sua posição Nestas visitações, realizadas em algumas localidades do
pouco favorável em relação à cobrança tanto do imposto de expor- subúrbio carioca, as condições de vida e os principais problemas
tação quanto do imposto predial,1 7 demonstrando que os limites enfrentados pelas populações residentes eram verificados
de sua ação paravam onde começava os interesses de setores pessoalmente pelo prefeito. Era nestas ocasiões que seu
ligados ao grande capital da cidade, ao qual estava vinculado. indefectível guarda-chuva entrava em ação. Mais do que
Junto com o imposto de exportação, o imposto predial era simples peça de sua indumentária, com este apetrecho Frontin
uma importante fonte de receita da prefeitura do Distrito Federal esboçava para seus auxiliares as linhas mestras dos planos de
no período.1 8 Sua cobrança, contudo, era o que se chamava na obras que planejava de melhorias para estas localidades.2 1
época uma fonte de escândalos. Como estampou em manchete o
jornal A Rua em 7 de fevereiro de 1919: “ ... só paga (sic) quem é “Chovesse a potes, ou derretesse o calor o asphalto
tolo ou desprotegido.” 1 9 A matéria denunciava que a prefeitura das ruas, ninguém o via sem seu fraque de bolsos
não recebia dívidas de muitos contribuintes desde 1910 e apresentava laterais e externos, sem o seu chapéo-côco, sem o
algumas das estratégias acionadas pelos proprietários cariocas para seu guarda-chuvas pendurado no braço esquerdo
burlar o fisco. O problema era de longa data. Além da arrecadação pelo cabo volteado.” 2 2
de impostos na cidade apresentar falhas, desde as primeira gestões,
pouco chegando às mãos da municipalidade, boa parte era Segundo as más línguas, contudo, o uso contínuo de guarda-
arrecadada para o Executivo federal que não repassava à prefeitura chuvas pelo prefeito relacionava-se ao episódio água em seis dias.
o montante recolhido (VON DER WEID: 1984, 22). Conforme noticiaram os jornais da cidade, no dia da inauguração
A saúde financeira da prefeitura passava pela garantia das obras realizadas por Frontin caiu na cidade uma chuva
destas duas fontes de renda. Frontin, contudo, um dos principais torrencial como há muito não se via devido ao longo período de
representantes do capital imobiliário da cidade, não estava disposto estiagem, transformando o Rio em uma Veneza em caricatura.
a contrariar os interesses de um grupo do qual fazia parte nem a Desde então, o engenheiro prevenido-se não teria mais descartado
enfrentar os mesmos problemas de oposição à sua gestão, o uso deste acessório em sua indumentária.
conforme sucedido com Amaro Cavalcanti, ainda que isso custasse Através das excursões que fazia com seu guarda-chuva
o desequilíbrio das contas municipais. Além disso, o engenheiro acompanhado por seu staff administrativo, influências políticas e
carioca sabia que a sua estadia no casarão do Campo de Santana repórteres em áreas que tradicionalmente recebiam pouca atenção
não duraria por muito tempo.2 0 por parte dos prefeitos,2 3 Frontin estabeleceu um canal aberto
entre a prefeitura, as chefias locais e a população da cidade, que
Além de evitar atritos com o grande capital da cidade, até então usava tradicionalmente a imprensa para endereçar suas
Frontin desenvolveu em sua gestão uma política demandas às autoridades públicas conforme demonstrou Eduardo
inovadora no que dizia respeito a forma de administrar Silva (1988). Esta prática constitui uma das grandes singularidades
a capital do país. Mesmo com uma prefeitura sem da sua gestão e, ao mesmo tempo, elemento central da obra de
recursos, ao mesmo tempo em que deu início, num engenharia política que construiu em sua breve passagem pela
ritmo frenético, a grandes obras de infra-estrutura prefeitura do Distrito Federal.
urbana, sobretudo na zona sul, instituiu uma série de Eduardo Tourinho, que por várias vezes fez parte da
práticas até então pouco comuns à época: as visitas Comitiva do prefeito na qualidade de repórter oficial, fez um relato
de inspeção a freguesias da cidade. precioso do que eram as excursões de Frontin pelos subúrbios do Rio:
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“ Muitas vezes – como político que era – via-se Mesmo sem ter o vulto e a projeção das obras que
forçado a visitar os mais diversos pontos do Rio de paralelamente eram realizadas na zona sul, em algumas destas
Janeiro. Essas visitas se realizavam ora pela manhã, localidades do subúrbio carioca determinadas reivindicações das
ora pela tarde e, às vezes, de noite. Influências eleitorais populações nelas residentes foram atendidas pelo prefeito.
ou figuras do antigo Conselho Municipal, da Câmara
Uma das áreas suburbanas contempladas por esta ação de
Federal ou do Senado da República figuravam
sempre na Comitiva que se formava para essas Frontin foi Campo Grande, freguesia considerada zona rural da
sucessivas excursões. Quando, então, se tratava do cidade que fazia parte do chamado Triângulo - região composta
Triângulo - Santa Cruz, Campo Grande, Guaratiba – ainda por Santa Cruz e Guaratiba que, até 1915, havia sido
estava sempre presente Octacílio Camará. Como os dominada pelo médico carioca Augusto de Vasconcelos e com a
políticos, da comitiva participavam sempre jornalistas morte deste passou ao domínio político de Octacílio Câmara,
credenciados junto ao gabinete do prefeito. Por isso, membro da Aliança Republicana.
o autor desta crônica pôde conhecer todo o Distrito Frontin deu início ao processo de eletrificação de Campo
Federal. Grande, uma antiga reivindicação dos moradores que foi atendida
Resultantes dessas visitas eram largas pelo prefeito num prazo de 10 dias. A proeza apenas foi possível
reportagens em tôrno do estado da cidade. Quando em função das relações que mantinha de longa data com
ocorriam pela manhã, grandes almoços eram sempre representantes da Light, como Alexandre Mackenzie, advogado
oferecidos ao Prefeito... Quando se iniciavam à tarde da empresa que fazia parte do seu círculo de amizades.2 5
e se prolon-gavam noite a dentro, havia sempre
grande jantar.
Era certo – à sobremesa – um intérprete local
saudar o Dr. Frontin e enumerar os melhoramentos
desejados.
E, sempre, essa ou aquela obra surgia depois ...
Daí também figurarem sempre nas excursões
notáveis engenheiros da prefeitura dessa época: -
Tôrres de Oliveira, Cupertino Durão, Angelo Barata
e João da Costa Ferreira, ...
Para essas vistas, num cortejo de automóveis
deixava-se a sede da antiga prefeitura. Quanto mais
distante e acidentada era a excursão, maior interesse
tinham os jornalistas. À mesa de almoços ou
jantares, logo do José Moniz inquiria o Dr. Frontin:
- Onde estão os rapazes da imprensa? Apontava-os
o Moniz e o Prefeito se erguia para verificar se à
mesa estavam todos. E, muita vez, na torrente dos
discursos os jornalistas também falavam ...
Dessas missões civilizadoras regressava-se de
corpo moído e rosto e roupa cobertos de poeira.2 4

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A inauguração do feito, em 9 de abril, foi acompanhada de Peçanha e J. J. Seabra, rompendo inclusive com o partido que fundara
uma grande festa que incluiu desfile de alunos de escolas locais, – a Aliança Republicana. Por outro lado, é fato que, apesar de criticar
inauguração de placa comemorativa em homenagem ao prefeito a forma de escolha do sucessor a mais alta magistratura do país,
e um banquete reunindo os altos funcionários da prefeitura, como chefe da principal agremiação partidária da cidade Frontin
intendentes, deputados e, como de praxe, os jornalistas que faziam acobertava práticas bem pouco democráticas na hora da
parte da sua comitiva, além de expoentes da política local.2 6 Algo, composição das chapas eleitorais e nas próprias eleições.
aliás, que ocorria com freqüência nestas ocasiões nas quais Frontin Outra área beneficiada pela ação política de Frontin na
ampliava sua rede de relações e firmava acordos políticos. prefeitura foi o Méier. Nesta freguesia do subúrbio carioca, contudo,
Numa clara demonstração de que prefeito fazia política, não foram implementadas obras de saneamento ou infra-estrutura.
em seu discurso Frontin tratou de assegurar os louros da iniciativa O lazer foi priorizado com a construção de um grande jardim.
da obra exclusivamente para a prefeitura, destacando não ter nela Para realizar a obra, que consumiu uma área de 13 mil metros
influído nem o Congresso nem o Ministério da Viação. Seu quadrados, a prefeitura utilizou o terreno de uma antiga chácara
comentário foi bastante incisivo a esse respeito: “Não se deve particular desapropriada pela municipalidade na gestão de Bento
attribuir penas de pavão a quem não merece.” 2 7Aproveitando Ribeiro. Num prazo record de 92 dias o Jardim do Méier ficou
o ensejo para tratar da campanha presidencial em curso, o pronto, custando a obra aos cofres municipais nada menos do que
engenheiro carioca criticou os processos de consulta do chefe do 62:433$850.
Executivo federal na escolha de seu sucessor, defendendo a A inauguração do jardim seguiu ritual idêntico às solenidades
candidatura dissidente de Rui Barbosa à presidência, dando uma da mesma natureza: banda de música, bandeirinhas, aclamação
clara demonstração da autonomia que defendia para a cidade e do nome do prefeito pela população local, uma grande quantidade
para o cargo que ocupava em relação ao governo federal. de alunos de escolas municipais, as tradicionais personalidades
O teor do seu discurso se tornaria alvo da imprensa. O jornal locais e o oferecimento de um lunch para o qual a população
A Razão, na edição de 10 de maio de 1919, criticou o apoio do mais uma vez não foi convidada.2 9
prefeito à candidatura de Rui Barbosa ao invés da chapa Epitácio Ainda que a zona sul tenha sido a maior beneficiada em se
Pessôa. De acordo com a folha, o engenheiro carioca curiosamente tratando de obras de remodelação urbana, diferentemente dos
não se recordava dos ataques deferidos pelo candidato civilista, prefeitos anteriores, Frontin não voltou sua gestão apenas para
Rui Barbosa, nas eleições de março de 1910 contra sua pessoa, já uma localidade. O engenheiro fez política nos quatro cantos da
que Frontin apoiara na ocasião a candidatura oficial de Hermes cidade. Empreendendo melhoramentos em diferentes freguesias
da Fonseca. O editor do jornal lançaria a questão: A nova postura cariocas reforçava laços com influências políticas locais3 0 ao
era fruto de arrependimento cívico, paixão patriótica de ultima mesmo tempo em que conquistava a simpatia e o voto destas
hora ou manobra politiqueira?2 8 populações, principalmente nos subúrbios e na zona rural, embora
Não é tarefa fácil explicar essa mudança de posicionamento na agenda das necessidades destas populações jardins não eram
assumida pelo engenheiro carioca, mas, conforme já foi assinalado, exatamente o que se poderia chamar de prioridade.
ela é um importante indicativo da postura de autonomia pleiteada Toda esta operosidade de Frontin na prefeitura do Distrito
por lideranças da elite política carioca em relação às diretrizes do Federal foi por diversas vezes alvo de elogios e motivo para sátira
governo federal. O alinhamento nas fileiras da oposição também seria na imprensa da época.3 1
verificado na campanha de sucessão presidencial de 1922, na qual O meio utilizado, contudo, visando financiar todas estas
Frontin declarou seu apoio às candidaturas oposicionistas de Nilo intervenções no espaço urbano carioca não foi inovador. Para dar
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continuidade a tamanho número de obras Frontin recorreu a um discípulo Sampaio Corrêa ter se esforçado em justificar a falta de
expediente bem pouco original. Em fins de maio de 1919, contraiu licitações com base na exigüidade de tempo para a realização das
um empréstimo de 10 milhões de dólares junto à The Equitable obras, o fato é que a ação do prefeito realmente infringiu leis
Trust Company de Nova York. A ação provocou os seguintes municipais. Não se pode esquecer, contudo, que Frontin contava
comentários na imprensa: “A Prefeitura contrahiu um com a maioria de aliancistas no Conselho Municipal, instituição
empréstimo de 100.000.000 de dollares. O dr. Frontin, que é responsável pela fiscalização destes contratos e o Clube de Engenharia
Conde, vae ser promovido a Príncipe ... dos dóllares.”3 2 Ao (dirigido pelo engenheiro carioca) era a um só tempo uma espécie
invés da ironia, a matéria publicada no Jornal do Brasil, foi mais de consultor técnico do governo e um balcão de negócios para os
direta na crítica a Frontin: “O empréstimo municipal. Para onde empreiteiros da cidade. Finalmente no que diz respeito às reformas
nos leva o Sr. Frontin? Inconsciência ou loucura?”3 3 do Matadouro e do gabinete da prefeitura, se por um lado as
Na Câmara, a reação à iniciativa do empréstimo partiu de modificações introduzidas tenham sido justificadas com base na
Metello Jr. O deputado da representação carioca, membro do melhoria da qualidade dos serviços, por outro não se pode negar o
partido que rivalizava com a Aliança Republicana na política da cunho eleitoral das iniciativas. A criação de cargos foi uma medida
cidade, o Partido Republicano do Distrito Federal, fez um que visava ao pagamento por serviços políticos prestados.
requerimento junto ao Ministro do Interior de informações sobre a Mas não foi apenas evitando contrariar interesses do grande
natureza do empréstimo, as garantias da operação e a origem dos capital, investindo em marketing político, sedimentando alianças
recursos que a prefeitura do Distrito Federal utilizaria para o seu políticas com chefias locais e a população do subúrbio e áreas
pagamento. Apesar de se opor ao requerimento, para provar a rurais – regiões em que o controle do voto do eleitorado não era
probidade administrativa de Frontin, Octacílio Camará votou a favor, uma ficção mas uma realidade com características bastante
juntamente com os aliancistas e Nicanor Nascimento, sendo o próximas ao observado nos municípios brasileiros no período -,
mesmo aprovado.3 4 criticando os processos de escolha aplicados nas sucessões
Salles Filho, também do PRDF, foi mais incisivo. Através presidenciais e favorecendo a ação de empreiteiros, mesmo às
da tribuna da Câmara criticou a operação classificando-a como custas do comprometimento das contas públicas, que Frontin
imoral para as finanças do município. Aproveitando o ensejo, marcou sua passagem pela prefeitura da mais importante cidade
denunciou a falta de concorrência pública nas obras implementadas do país no período. Baseando-se numa experiência acumulada
por Frontin e as reformas empreendidas no Matadouro de Santa nas suas duas gestões como diretor da Estrada de Ferro Central
Cruz e no gabinete da prefeitura que, na sua perspectiva, visavam do Brasil, o engenheiro flertou também com outro ator político
beneficiar correligionários políticos.3 5 importante: o operariado municipal.
De fato, a operação se revelaria pouco saudável para o Em 1º de maio de 1919 Frontin promulgou o decreto de lei
equilíbrio financeiro da municipalidade. A grande ironia da história n.º 1.329. Elaborada pelo próprio prefeito, entre outras providências,
é que Frontin entrou na prefeitura implementando a princípio a lei concedia aos operários municipais com mais de 10 anos de
medidas visando equilibrar as suas contas, se declarava admirador serviço à prefeitura direitos e regalias conferidos apenas aos
de Joaquim Murtinho e defenderia mais adiante a política funcionários públicos do município.3 7 Com a promulgação do
econômico-financeira do Ministro da Fazenda de Campos Sales decreto, Frontin passaria a ser chamado Pae do Operariado.
neste mesmo ano de 1919 na Câmara, ao conquistar uma cadeira Um dado curioso, ressaltado na imprensa da época, é que a caneta
na representação carioca.3 6 Quanto à denúncia da irregularidade com que Frontin assinou o decreto era de ouro cravejada de brilhantes
nos contratos para a realização das obras, apesar de seu dileto e safiras e terminava com uma folha de louro em cuja ponta havia
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a data 1º de maio de 1919. A jóia teria sido um presente ofertado
pelos sócios da Sociedade Beneficente Operários Municipais. 3 8
A questão que se coloca é: como interpretar este ato do
prefeito? Mais uma medida com o objetivo de ampliar sua base
política na cidade? Um feito que visava, de fato, melhorar a situação
do operariado municipal? Ou a percepção de um estadista do
avanço do movimento operário na Europa e no Brasil, que assistira
aos acontecimentos que culminaram com a revolução russa e as
greves no Rio e em São Paulo e antecipou medidas atendendo a
antigas reivindicações trabalhistas de setores pertencentes ao
funcionalismo público para a garantia da ordem?
Para se entender esta ação de Frontin é importante levar
em consideração todas estas variáveis já que elas estão longe
de ser excludentes.
Sem dúvida, o decreto de 1º de maio teve um cunho
clientelista3 9 uma vez que, de fato, com a lei o engenheiro político
conseguiu angariar o apoio de um importante grupo de
trabalhadores da municipalidade, garantindo para si nos anos
seguintes importantes dividendos políticos.
Vale à pena lembrar que na Primeira República o
funcionalismo público representava um segmento expressivo do A verdade Eleitoral. A moralidade política não permitirá que a Verdade
pequeno universo de eleitores da cidade. Nas eleições estes saia nua das urnas. K.Lixto D. Quixote (20-2-1918)
servidores eram um grupo dos mais assíduos e aquele sobre a
qual se exercia controle, efetuado na maioria dos casos pelos aliados políticos, e pelo diretor do Matadouro de Santa Cruz –
chefes das repartições municipais. Antônio Santos Malheiros.
Esta pressão sobre o voto dos funcionários públicos foi por A Gazeta de Notícias, edição de 11 de abril de 1919, fazendo
diversas vezes retratada na literatura de cronistas da época, como uma comparação com a postura assumida por Frontin no referido
Lima Barreto. Era prática comum em períodos de eleições que os pleito, revelou manobras e abusos de Santos Malheiros:
prefeitos, através de circulares endereçadas aos chefes das repartições
municipais, indicassem os candidatos governistas a serem “Agora mesmo, quando o Dr. Paulo de Frontin dá
sufragados pelo funcionalismo, a exemplo do que faziam os chefes uma prova de que está disposto a respeitar a
políticos locais em seus currais eleitorais na Primeira República. liberdade de voto, o director do Matadouro de Santa
Cruz obriga ostensivamente os empregados a votar
O próprio Frontin, no pleito presidencial de 1919,
nos candidatos por ele indicados para as próximas
recomendou aos chefes de repartições que dessem liberdade
eleições. Na consecução do seu intuito, age também
de voto aos funcionários. Uma série de matérias, contudo,
o administrador do Matadouro, Sr. Esmerio Caetano
surgiram na imprensa na ocasião denunciando práticas de
de Azevedo, que é pao para toda obra.” 4 0
coação efetuadas por Octacílio Camará, um de seus principais
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O editor apelava ao prefeito para que não apoiasse o seu iniciativa não devia neste sentido ser festejada já que pelas razões
subordinado, compactuando com suas práticas nas eleições à expostas teria uma natureza retrógrada e humilhante.4 3
presidência da República e ao Congresso de 13 de abril de 1919. A exemplo do ocorrido com o decreto de 1º de maio, a
A invocação, no entanto, não surtiu efeito. No dia 16 a passagem de Frontin pela prefeitura do Distrito Federal, muito
mesma folha voltaria a denunciar com veemência atos elogiada por seus memorialistas, não provocou na época
praticados pelo diretor do Matadouro e seus subordinados contra unanimidade. Se havia um setor da imprensa afinado com o prefeito
a liberdade de voto e as represálias de que estavam sendo alvo também existiam vozes criticando sua gestão. Na imprensa carioca,
dois funcionários que haviam votado na chapa Epitácio Pessoa- o Jornal do Brasil serviu muitas vezes de porta voz dos setores
Pedro Reis, ao invés de sufragar a chapa Rui-Camará, apoiada descontentes. Na edição de 15 de maio, para citar um exemplo, a
por Frontin e pela Aliança Republicana.4 1 folha classificou de desastrada a administração do engenheiro
Embora a lei de 1º de maio tinha sido promulgada semanas carioca. Em uma matéria, sugestivamente intitulada Os desatinos
depois deste episódio, graças ao decreto Paulo de Frontin foi do Prefeito afirmou sofrer Frontin de megalomania e a população
homenageado por diversas organizações de trabalhadores durante da cidade de ausência de juízo. Segundo o editor, o prefeito
muito tempo, conseguindo eleger-se com votos deste segmento proporcionava pão e circo aos cariocas: “A ordem do dia é
em todos os pleitos que participou até a sua morte em 1933. applaudir ao republico magnífico, que vae proporcionando
Por outro lado, não se pode negar que o decreto implicava pão e circo ao povo. Emquanto elle nutrir essas modestas
em melhorias nas duras condições de vida destes trabalhadores aspirações da massa, não há por onde censurál-o.”
municipais. Logo nos primeiros dias de sua gestão Frontin recebeu A fama de esbanjador de Frontin, contudo, não era recente.
uma comissão formada por operários da prefeitura solicitando as Na verdade esta pecha vinha do período em que esteve à frente
mesmas garantias concedidas apenas a um seleto grupo de pela segunda vez da direção da Estrada de Ferro Central do Brasil,
funcionários. Era de fato bastante precária a situação deste segmento durante o governo Hermes. Ocasião em que, entre outros, duplicou
que não dispunha de garantias de nenhuma natureza numa época em alinha da estrada de ferro Serra do Mar.
que epidemias eram uma ameaça constante, apesar da gripe Em seu perfil, traçado por diversas pessoas, há quase uma
espanhola já ter sido debelada, a carestia de vida uma realidade e unanimidade em se afirmar junto com a tendência a gastos
a idéia de uma legislação trabalhista sinônimo de subversão. vultuosos a exagerada dedicação ao trabalho.
Mas além de voltado para as condições de vida do De certo modo o Rio Jornal, na edição de 22 de janeiro de
operariado, Frontin mostrava-se atento ao avanço de determinadas 1919, acertou na previsão do que seria a administração Frontin. O
ideologias entre estes setores, particularmente o anarquismo. 4 2 editor da folha previu uma gestão de estagnação das finanças da
O decreto de 1º de maio esteve longe de ter sido aplaudido prefeitura, mas também marcada por muitas iniciativas.
por todos. A lei foi objeto de duras críticas por parte do futuro Conforme foi visto até aqui, o plano de gestão posto em
membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) Astrogildo Pereira. prática por Frontin na Prefeitura do Rio baseou-se na realização
Num interessante artigo intitulado A Humilhação, Astrogildo imediata e simultânea de diferentes obras em vários pontos da
discutiu o significado da data de 1º de maio para o movimento cidade. A análise da sua atuação à frente do Executivo municipal
operário internacional e classificou o ato de Frontin como indica que esta foi também sua principal estratégia de ação no
burocratização destes trabalhadores municipais. Segundo o autor, campo da política carioca. Simultaneamente Frontin procurou
o funcionário do Estado seria o exemplo típico do parasita, a agradar a gregos e troianos. Desenvolveu uma política fiscal que
personificação do homem estéril, inútil, aquele que não trabalha. A não contrariou os interesses ligados ao grande capital da cidade.
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Ao mesmo tempo em que não entrava em rota de colisão com acclamado com o concurso de toda a federação
este segmento, esmerou-se por estruturar alianças com influências brasileira, para reger os altos destinos da Pátria” 4 7
políticas de diferentes freguesias, sobretudo do subúrbio e da zona
rural, conquistando o apoio também destas populações. Para Como era de se esperar, o movimento não surtiu efeito. Um
completar, ensaiou um movimento de aproximação com setores dos elementos importantes para se compreender a não permanência
do operariado da prefeitura da capital federal. Tudo isso em apenas de Frontin à frente do Executivo municipal é o fato de que ele não
seis meses de gestão. Tempo suficiente para ampliar de forma era só uma figura de destaque em sua área de atuação profissional.
considerável o seu capital político na cidade do Rio e projetar o Além de engenheiro renomado, com grandes serviços prestados à
seu nome nacionalmente. cidade e ao país, Frontin era chefe de um partido, que naquele momento
Tamanha ação à frente do Executivo municipal fez com era a mais importante força política do Rio, a Aliança Republicana.
que surgisse na imprensa especulações a cerca de uma futura É preciso observar também que sua atuação na prefeitura,
presidência da República,4 4além de um movimento por sua sobretudo no que diz respeito às alianças seladas com influências
permanência no cargo. políticas locais e à lei que favoreceu o operariado municipal, lhe
Com a proximidade de sua saída, devido à posse de Epitácio proporcionou importantes dividendos, fazendo crescer de forma
Pessôa, iniciou-se um movimento pela permanência de Frontin na significativa o seu prestigio junto a estes setores e, conseqüentemente,
prefeitura do Distrito Federal. A iniciativa foi do Partido Republicano o seu capital político. Um prefeito com uma atuação tão independente
Feminino presidido pela professora Leolinda Daltro.4 5 ameaçava a política de neutralização do campo político carioca
As adesões ao movimento vieram de variados setores da implementada a partir do governo Campos Sales visando garantir a
sociedade e inúmeros diretórios foram organizados pela cidade ingerência do governo federal nos rumos da política local. Nesse
para o recolhimento de assinaturas a serem enviadas ao presidente sentido, o posicionamento de Frontin no que diz respeito à campanha
eleito pedindo a permanência de Frontin no cargo.4 6 Além das presidencial de 1919 parece ter sido o estopim.
senhoras e senhoritas do partido Republicano Feminino, a União Ao invés de apoiar as forças governistas, representadas
dos Operários Municipais também participou do movimento, por Epitácio Pessôa, Frontin e o partido por ele dirigido assumiram
convidando inclusive a população para integra-lo. uma postura de oposição. O prefeito deixou bem claro o seu apoio
A imprensa, como não poderia ser diferente, também serviu à candidatura de Rui Barbosa, conforme foi visto, apesar do político
de veículo para os setores interessados na permanência do prefeito. baiano lhe ter endereçado duras críticas durante a Campanha
No Suburbano, Benjamin Magalhães escreveu um verdadeiro Civilista na qual Frontin se aproximara das forças políticas ligadas
libelo contra as destituições do prefeito, de Barbosa Lima da direção ao marechal Hermes da Fonseca. É bem provável que sua opção
do Lloyd e de Aureliano Leal da chefia de polícia da cidade no naquele momento em apoiar a candidatura dissidente, mesmo
novo quadriênio presidencial: sabendo das diminutas chances de sucesso, tenha estado
“Essas destituições eqüivalem a uma desgraça relacionada ao desejo de imprimir um conteúdo mais autônomo à
pública. Na Prefeitura está a última palavra do saber política carioca, já que Rui em 1909 defendera a autonomia do
humano, o gênio maravilhoso que não póde, sem Distrito Federal em sua campanha eleitoral.
humilhação para a Cidade, largar um cargo cujo Como era comum nos pleitos presidenciais do período, a
exercício tem sido a via-láctea do resurgimento da situação saiu vitoriosa. Com a derrota nas urnas, o engenheiro e
terra carioca, da qual o seu filho eminente os setores a ele ligados viram frustrados qualquer pretensão de
consagrado pela justiça popular há de sahir permanência no cargo de prefeito da cidade onde nascera.
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Por outro lado, no próprio interior da própria política carioca REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
começou a apresentar fissuras. A principal foi ocasionada pelo
racha provocado pelo apoio de Frontin a Octacílio Câmara para 1. Fontes
ocupar a cadeira que renunciara no Senado para assumir a Arquivos privados
prefeitura, preterindo uma das mais tradicionais chefias da cidade: Arquivo Amaro Cavalcanti – IHGB
Pedro Reis. Com a saída de Reis, a Aliança Republicana e Frontin Arquivo Carlos Sampaio - IHGB
não perderam a liderança que usufruíam na política carioca, mas Arquivo Paulo de Frontin – IHGB
privaram-se de um importante aliado e assistiram ao afastamento Anais da Câmara dos Deputados - 1919
de influências políticas ligadas àquela chefia. SAMPAIO, Carlos. A situação municipal. Paris: Societé Française d’
Sem possibilidade de permanecer na prefeitura, em 26 de imprimerie, 1923.
julho, Frontin entregou o seu cargo a Delfim Moreira, presidente PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL. Rio de Janeiro 1935. Rio de
responsável por sua nomeação. O ato, contudo, esteve longe de Janeiro: Officinas Graphicas do Jornal do Brasil, 1936.
significar uma derrota política. O príncipe da engenharia Imprensa: A Época - 1919; A Notícia - 1919; A Política - 1919; A Razão
nacional, como era chamado por Francisco Sá, continuaria sendo - 1919; A Rua - 1919; Correio da Manhã - 1919; Gazeta de Notícias -
figura de proa da política carioca na década seguinte. Além de 1919; Jornal do Brasil - 1919; Jornal do Commércio - 1919.
permanecer na chefia da Aliança Republicana no fim do mesmo
ano de sua saída da prefeitura seria eleito deputado pela 2. Livros e artigos
representação do Distrito Federal e reconquistaria sua cadeira no
BASTOS, Ana Marta. “O Conselho de Intendência Municipal:
Senado, pouco tempo depois, permanecendo na Câmara Alta até autonomia e instabilidade (1889-1892).“Rio de Janeiro: Centro de
o ano de sua morte - 1933. Sua presença seria ainda bastante Estudos Históricos/ Fundação Casa de Rui Barbosa, 1984 (mímeo).
marcante no governo Carlos Sampaio. 4 8
BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussman Tropical:
A renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século
À guisa de conclusão
XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e
Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação
Criado em 1892, o cargo de prefeito do Distrito Federal, de Cultural, Divisão de Editoração, 1992.
nomeação direta do presidente da República, garantia a ingerência
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand
do governo federal na política carioca. Contrariando e manipulando
Brasil, 1989.
as regras do jogo político na capital da República, contudo, e,
sobretudo negociando com diferentes atores, Frontin usou sua CARVALHO, Delgado de. História da Cidade do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes/
estada na prefeitura, em 1919, para sedimentar sua base política
Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão
no Distrito Federal e, conseqüentemente, imprimir um conteúdo
de Editoração, 1992.
mais autônomo à política local. Não é exagerado dizer, nesse
sentido, que sua ação esteve muito além do que se poderia CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a
classificar como a de um mero administrador e/ou interventor do República que não foi. São Paulo: Cia das Letras, 1987.
governo federal na cidade do Rio. ________. “Mandonismo, coronelismo, clientelismo: Uma discussão
conceitual”. In: DADOS –Revista de Ciências Sociais .Rio de Janeiro,
vol. 40, n.º 2, 1997, pp. 229-250.

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CURY, Vânia Maria. Engenheiros e Empresários: O Clube de NOTAS
Engenharia na Gestão de Paulo de Frontin (1903-1933).Niterói:
Universidade Federal Fluminense, 2000 (Tese de Doutorado) 1
Para Vânia Cury, os prefeitos bacharéis predominaram na capital
FALCI, Miridan Britto. “A historiografia das transformações urbanas da República e se preocuparam principalmente com rotinas
do Rio de Janeiro.” Rio de Janeiro: ANPUH, 1994. (mímeo) administrativas. Essa visão mostra-se em consonância com a
FERREIRA, João da Costa. Rio de Janeiro em 1922-1924. Rio de chamada política de neutralização do campo político carioca
Janeiro: Prefeitura , 197- implementada pelo Executivo Federal no período estudada por
Américo Freire em artigo publicado em 1996.
FREIRE, Américo Oscar G. “Campos Sales e a República carioca”. 2
In: Lócus: Revista de história. Juiz de Fora: EDUFJF, 1996. Esta visão do prefeito do Distrito Federal como uma espécie de
interventor nomeado pelo Presidente é veiculada nos trabalhos de
HONORATO, Cezar Teixeira. O Clube de Engenharia nos momentos José Murilo de Carvalho e Ana Marta Bastos. Diferente destes dois
decisivos da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ventosa Design, autores, Elisabeth Von der Weid trabalha com a idéia do prefeito
1996. enquanto intermediário entre o poder federal e o poder municipal.
KESSEL, Carlos. A Vitrine e o Espelho: O Rio de Janeiro de Carlos 3
Ainda está por ser feito um estudo minucioso de cada uma destas
Sampaio. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996. gestões. Um dos grandes empecilhos continua sendo a dispersão de
LEVI, Giovani. ”Les usages de la Biographie.” In: Annales ESC, acervos e, em alguns casos, a inexistência de arquivos organizados.
novembre-décembre 1989, n.º 6, pp. 1334. Dentre os poucos trabalhos já produzidos com este perfil podem ser
NORONHA SANTOS. “A cerca da organização Municipal e dos citados os estudos de Kessel sobre a administração Carlos Sampaio e
Prefeitos do Distrito Federal”. Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas O o de Sarmento que aborda a experiência Pedro Ernesto nos anos trinta.
4
Globo, 1945. Para um balanço da produção historiográfica relativa ao tema ver a
PINTO, Surama Conde Sá. Elites políticas e o jogo de poder na introdução da tese de Surama Conde Sá Pinto – Elites políticas e o
cidade do Rio de Janeiro (1909-1922). Rio de Janeiro: Universidade jogo de poder na cidade do Rio de Janeiro (1909-1922).
5
Federal do Rio de Janeiro, 2002. Em 1889 a cidade do Rio passava por sérios problemas de
REIS, José de Oliveira. O Rio de Janeiro e seus Prefeitos. Rio de abastecimento de água. Tentando resolver a questão, o Imperador
Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1977, 5 vols. divulgou uma série de editais. Paulo de Frontin apresentou um projeto
que implicava na solução do problema em seis dias e com um custo
SARMENTO, Carlos Eduardo Barbosa. Autonomia e participação:
bem abaixo do apresentado por outros engenheiros. Desafiado a tirar
O Partido Autonomista do Distrito Federal (1933-1937). Rio de
o projeto do papel, ele assim o fez com êxito. Por ter conseguido a
Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996.
proeza no prazo apresentado, o episódio ficou conhecido como água
SILVA, Eduardo. As queixas do povo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, em seis dias. Arquivo Paulo de Frontin, lata 51, documento 34. Ver
1988. também a matéria “Frontin: herói que vence a morte dando ao Rio
TAVARES, Maria de Fátima Duarte. Do Castelo ao Vale das Luzes: ‘água em seis dias,’” publicada no Suplemento Dominical do Jornal
Cultura e renovação urbana, Rio de Janeiro, 1920-1922. Brasília: do Commércio, edição de 8 de maio de 1966. Arquivo Paulo de
UnB, 1994 (Dissertação de Mestrado). Frontin, lata 52, documento 04.
6
VON DER WEID, Elisabeth. “O Prefeito como intermediário entre o A alcunha de prefeito da varinha de condão surgiu na imprensa
poder federal e o poder municipal na capital da República.“ Rio de durante a gestão de Frontin na prefeitura carioca.
Janeiro: Centro de Estudos Históricos/ Fundação Casa de Rui Barbosa, 7
O período correspondente à administração Pereira Passos tem sido
1984 (mímeo) alvo de vários estudos, muitos dos quais centrados nas
154 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 155
12
transformações urbanísticas do Rio de Janeiro. O que estes autores Correio da Manhã, edição de 22 de janeiro de 1919.
em geral destacam é o fortalecimento do poder Executivo municipal, 13
Em dezembro de 1919, meses depois de deixar a prefeitura do
sendo o símbolo máximo deste processo o fechamento do Conselho Distrito Federal, Frontin seria eleito deputado federal pelo primeiro
de Intendência no início de sua gestão – episódio que marcou o distrito eleitoral da cidade. Na Câmara permaneceu apenas até 1921
apogeu da incompatibilidade entre Passos e os intendentes. quando, por ocasião da renovação do terço, conquistou em fevereiro
8
Um bom termômetro da importância e ligação de Frontin com a novamente uma cadeira no Senado pela representação carioca, onde
cidade pode ser medido nas comemorações do seu Centenário em permaneceu até 1933. Mesmo perdendo seu mandato com a revolução
15 de setembro de 1960. Na ocasião foi organizado um fórum pela de 1930, o reconquistaria, ficando no Senado até sua morte em 1933.
Associação Comercial em sua homenagem onde foram discutidos 14
O capital político, de acordo com Bourdieu, “... é uma forma de
os problemas do recém criado Estado da Guanabara. capital simbólico, um crédito firmado na crença e no reconhecimento
9
Nem mesmo a interessante tese de Vânia Maria Cury, cujo objetivo ou, mais precisamente, nas inúmeras operações de crédito pelas quais
central é analisar as formas específicas como os engenheiros os agentes conferem a uma pessoa - ou a um objeto - os próprios
conseguiram consolidar sua posição política no cenário da República, poderes que eles lhe reconhecem”. Esse capital só pode ser
conseguiu romper com esta imagem de engenheiro por excelência conservado mediante trabalho constante de acumulação de crédito,
construída de Frontin veiculada em matérias jornalísticas e na bem como de evitar descrédito.
produção do Clube de Engenharia, seja na Revista da instituição ou 15
Em 11 de janeiro de 1918 Francisco Eugênio Leal, representando
em obras comemorativas, como o livro coordenado por Cezar a Associação Comercial do Rio de Janeiro, escreveu a Paulo de
Honorato. Frontin, senador pelo Distrito Federal na ocasião, solicitando o seu
10
O Arquivo Paulo de Frontin constitui um manancial para pesquisa empenho contra o imposto de exportação. Ver Arquivo Paulo de
praticamente inexplorado. Doado ao Instituto Histórico e Geográfico Frontin, lata 18, documento 36.
Brasileiro, em julho de 1986, por Maria da Glória Frontin Muniz 16
A gestão de Sá Freire, que sucedeu Frontin, pode ser considerada
Freire, filha do titular, possui um acervo bastante rico, reunindo uma exceção à tendência mencionada. Encontrando a prefeitura em
documentação de natureza variada, constituído por recortes de jornais, situação delicada, sobretudo porque o final da administração anterior
discursos, circulares, panfletos, programas de cursos, aulas, foi marcado por decretos que aumentaram extraordinariamente os
conferências, entre outros, sendo a correspondência passiva a parte gastos com pessoal, Freire elegeu o restabelecimento do equilíbrio
mais expressiva. Reunindo um total aproximado de sete mil financeiro das contas municipais a meta prioritária de sua gestão,
documentos textuais, além de fotográficos, o arquivo contempla um assumindo inclusive uma postura de franca oposição à pressão pela
conjunto de temas bastante amplo relativos à política carioca, Derby implementação de obras visando preparar a cidade para as
Club, política nacional e internacional, estradas de ferro, eleições, comemorações do centenário da Independência. SANTOS, Noronha,
entre outros. Uma das especificidades deste acervo são os cinco op. cit., p. 67.
álbuns que documentam mês a mês a passagem de Frontin pela 17
A Política, edição de 31 de janeiro de 1919.
prefeitura do Distrito Federal, com exceção do último mês. É 18
A prefeitura do Distrito Federal dependia fortemente do imposto
importante ressaltar, devido ao fato deste Arquivo encontrar-se em predial como fonte de recursos. Para tabelas sobre evolução anual
fase final de catalogação, quando a pesquisa que deu origem a este das receitas e despesas da prefeitura e a participação do imposto predial
artigo foi realizada, todas as referência à documentação foram ver: PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL. Rio de Janeiro 1935. Rio
reproduzidas de acordo com a planilha de cada um dos documentos de Janeiro: Officinas Graphicas do Jornal do Brasil, 1936, p. 57.
consultados. 19
11
A Rua, edição de 7 de fevereiro de 1919.
Jornal do Commércio, edição de 22 de janeiro de 1919.

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20 27
A sede da prefeitura no período estava localizada em um casarão Gazeta de Notícias, edição de 10/04/1919.
no Campo de Santana. 28
A Razão, na edição de 10 de maio de 1919.
21
Apesar do gosto refinado, da admiração pelo teatro francês, ópera 29
Aristides Caire era o chefe político do Méier. Para a cobertura na
e música em geral, mas particularmente a do compositor alemão imprensa do evento ver O Paiz e o Imparcial, edição de 25 de maio
Wagner, Frontin não se deixou seduzir pelos ditames da moda de de 1919.
Paris nem a de Londres no que dizia respeito à indumentária. Fraque, 30
A política de alianças desenvolvida por Frontin com influências
chapéu coco e guarda-chuva (que tinha o hábito de arrastar pelo eleitorais dos subúrbios cariocas além de conhecer êxito, teve longa
chão) eram as peças básicas de seu guarda-roupa. Conforme contava duração, conforme mostra a reportagem publicada no Jornal do
sua esposa, no círculo íntimo conhecida como dona Mariquinha, Brasil, edição de 19 novembro de 1929. Em boa medida foi graças a
nos seis meses me que esteve à frente da prefeitura, o então prefeito ela que o engenheiro carioca conseguir se reeleger nas eleições para
gastou nada menos do que 19 guarda-chuvas. a renovação do terço do Senado daquele ano.
22
Jornal do Brasil, edição de 22 de fevereiro de 1933. 31
Ver “O dia do Senhor Frontin: O homem em 24 horas, trabalhando,
23
Amaro Cavalcanti pode ser considerado uma exceção. Em sua discutindo, meditando,” Rio Jornal, edição de 21 de fevereiro de 1919.
gestão, o magistrado potiguar deu ênfase ao atendimento das 32
A Notícia, edição de 27 de maio de 1919.
demandas das zonas suburbana e rural, além de ter se voltado para o 33
Jornal do Brasil, edição de 23 de maio de 1919.
problema do abastecimento da cidade, incentivando a lavoura e a 34
Anais da Câmara dos Deputados, 1919, vol. I, p. 527.
produção artesanal, reparando estradas para facilitar o escoamento 35
Anais da Câmara dos Deputados, 1919, vol. III, p. 57.
desta produção. Arquivo Amaro Cavalcanti, lata 615, pasta 3. 36
24 Anais da Câmara dos Deputados, 1919, vol. XII, 1082.
Jornal do Commércio, edição de 2 de outubro de 1960. Vale destacar, 37
Augusto Malta era o fotógrafo oficial da prefeitura nestes eventos. Para cópia do decreto n.º 1.329 de 1º de maio de 1919 ver Arquivo
25 Paulo de Frontin, lata 47, documento 22. Discursando posteriormente
Alexandre Mackenzie era advogado canadense representante da
para os operários a 7 de fevereiro de 1930, em plena campanha para
Light no Brasil e o engenheiro americano Frederick Pearson o
a renovação do Senado, Frontin explicaria que pretendia estabelecer
representante dos interesses americanos da empresa. Este último,
um prazo menor de dez annos, mas como prefeito, cargo de
por indicação de Frontin, se tornaria sócio do Clube de Engenharia,
nomeação do Presidente da República, tive de ceder nesse ponto
episódio que mostra as articulações do engenheiro carioca e da
quando redigiu o decreto de 1º de Maio. (p. 5)
instituição que presidia com o grande capital, inclusive estrangeiro, 38
bem como revela o papel central do Clube de Engenharia nas A Sociedade Beneficente Operários Municipais funcionava na
articulações e transações empresariais do período. A instituição Rua Senador Eusébio 59.
39
funcionava como um verdadeiro centro de conhecimentos técnicos, O uso do conceito de clientelismo aqui segue a definição de José
contatos políticos e balcão de negócios. Murilo de Carvalho no artigo publicado em 1997 no qual analisa o
26
O jornal Gazeta de Notícias, edição de 10/04/1919, deu ampla emprego de determinados conceitos pelos historiadores.
40
cobertura ao evento. É interessante a distribuição dos lugares na A Gazeta de Notícias, edição de 11 de abril de 1919.
41
mesa do banquete narrada na reportagem: “Ao centro da mesa se “A Política em Santa Cruz”, Gazeta de Notícias, edição de 16/04/
sentaram o Sr. Prefeito, ladeado pelos Srs. Deputados Octacílio 1919. Ver também novas denúncias na edição de 5 de maio.
42
Camará, Sampaio Corrêa (discípulo de Frontin), intendentes Eduardo Em seu discurso Frontin afirmou que as vantagens que estavam
Xavier e Cesário de Mello, Drs. Rego Barros (representando a Light), sendo concedidas ao operariado municipal deveriam ser extensivas
Raul Cardoso, Raul Barroso, demais membros de sua comitiva e a todos os operários brasileiros. Ver: “A grande manifestação operária
convidados.” de hontem.”, A Rua, edição de 2 de maio de 1919.

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43
Arquivo Paulo de Frontin, lata 57, documento 02. O RELATO HAGIOGRÁFICO COMO FONTE HISTÓRICA
44
“Perfis Políticos. O constructor manirroto” – Braz de Pinna. Arquivo
Ana Paula Lopes Pereira*
Paulo de Frontin, lata 57, documento 02.
45
A Razão, edição de 10 e 19 de maio de 1919. Resumo
46
Os primeiros diretórios organizados foram na Penha e em Bangú. A literatura hagiográfica forma um corpus documental,
47
“A prefeitura, o Lloyd e a Polícia”, O Suburbano, edição de 17 de polimórfico e multilinguístico cuja produção não se interrompe
maio de 1919. durante quase mil anos, da Antiguidade Tardia ao
48
Ver carta de Jorge Street pedindo interferência de Frontin junto a Renascimento. Este artigo tem por objetivo mostrar o
Carlos Sampaio para colocação de protegido em cargo de repartição desenvolvimento dos estudos históricos que têm como
que estava sendo criada na prefeitura. Arquivo Paulo de Frontin, lata principal fonte de análise as vidas de santos. A crítica textual
18 documento 94. Assim como este documento, muitos outros e a edição dos manuscritos hagiográficos se iniciam no século
solicitando a intervenção de Frontin junto a Carlos Sampaio quando XVII, com o jesuíta Héribert Rosweyde, e com o trabalho
o último ocupava a prefeitura podem ser encontrados em seu Arquivo. monumental dos chamados Bollandistas.
Frontin foi também árbitro nas divergências entre a Prefeitura e o Há alguns anos os estudos, cujo objeto de análise são o santo
administrador do arrasamento do morro do Castelo. e a santidade, abriram-se, na historiografia européia, para
novas perspectivas de pesquisa interdisciplinar. Novas questões
sobre o santo, sua função na sociedade, as manifestações
espirituais e as atitudes mentais que concernem à construção
de uma vida santa foram colocadas, demandando novas
abordagens das fontes hagiográficas. Dos Bollandistas ao
grupo de pesquisa Hagiographies, dirigido por Guy Philippart,
um longo caminho foi percorrido. As novas pesquisas
consideram, para além do santo e de seu culto, o texto literário,
a narrativa hagiográfica. Com as ciências sociais, o relato
hagiográfico passa a ser um objeto em si : o estudo do texto,
a estrutura e a evolução da narrativa. Dos Atos dos Mártires
às Biografias Espirituais do século XIII, vemos uma
transformação dos sistemas narrativos, que acompanham e
anunciam as mudanças na percepção e na prática da santidade.
É a complexificação desse objeto e as novas perspectivas de
pesquisa aí implicadas que buscamos considerar aqui.
Palavras-chave: Hagiografia, santo, santidade, relato hagiográfico,
interdisciplinaridade

Licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense(1990), Bacharel


em História Medieval pela Universidade de Paris IV- Sorbonne (1991), Mestre
em História Medieval pela Universidade de Paris VIII- Saint-Denis (1994).
Prof. Assistente de História Antiga e Medieval da UERJ - F.F.P.

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Résumé A palavra hagiografia vem do grego hagiographon e
significa, literalmente, escrita santa. Conhecida dos autores
La littérature hagiographique comprend un corpus
antigos, mas não em sua utilização santoral, refere-se aos escritos
documentaire polymorphe et plurilinguistique, dont
ditos inspirados.1 Jerônimo traduz, na vulgata, a palavra hebraica
la production ininterrompue dure presque mil ans,
depuis l’Antiquité Tardive à la Renaissance. Cet
ketubim pelo neutro plural hagiographa, para designar os livros
article a pour objectif montrer le développement do Antigo Testamento: o livro de Jó, os Salmos, os Provérbios, o
des recherches historiques ayant comme sources Cântico dos Cânticos, o Eclesiastes, Esther, Daniel, Esdras-
les vies de saints. La critique textuelle et l’édition Néhémias, as Crônicas, Ruth, e as Lamentações. No século VII,
des manuscrits hagiographiques commencent, au Isidoro de Sevilha utiliza hagiographi para nomear os autores
XVIIème siècle, avec le jésuite Héribert Rosweyde escriturários, designação ainda empregada no século XII por Hugo
et, surtout, avec le travail monumental des Bollandistes. de São-Vitor, para quem agiographi são os que escrevem a
Depuis quelques décennies les études dont l’objet terceira parte do Antigo Testamento, posterior aos Profetas. Entre
d’analyse est le saint e a sainteté ont connu un essor os séculos IX e XII hagiographa designa mais genericamente
dans l’historiographie européenne, en conséquence « escritos santos », piedosos e sagrados. Os mais antigos
des nouvelles perspectives de recherche testemunhos desta utilização extra-bíblica são encontrados nos
interdisciplinaire. De nouvelles questions au sujet du documentos Cartuxos. No século XIII, apesar da grande produção
saint, de sa fonction dans la société, les manifestations de compilações de vidas, como a Legenda Aurea do dominicano
spirituelles et les attitudes mentales qui appartiennent Jacopo da Varazze, não vemos uma mudança semântica nos termos
à l’enjeu de la construction d’une vie de saintété ont de hagiografia e hagiógrafo. Segundo Guy Philippart, temos um
été posées, en demandant de nouvelles approches du manual de Ars praedicandi que menciona várias scripta
récit hagiographique. Des Bollandistes au groupe de hagiographica2 , sem dúvida se remetendo a Vidas e Milagres
recherche Hagiographies, dirigé par Guy Philippart, de santos, e há ainda um tratado de nomes de santos intitulado
un long chemin a été parcouru. Les nouvelles
Hagiographia em que o autor diz tratar-se de scriptura
recherches considérent, au délà du saint et de son
sanctorum3 : aqui o prefixo hagio designa especificamente santos
culte, le texte littéraire, le récit hagiographique. Avec
e não simplesmente santidade.4 Ainda, para Thomas de Aquino,
les sciences sociales, le récit hagiographique devient
un sujet de recherche en soi : l’étude du texte, la
agiographus é um escritor dotado de inspiração sobrenatural,
structure, l’évolution du récit. Des Actes des Martyrs mantendo a nuance bíblica.5
aux Biographies Spirituelles du XIIIème siècle nous Entretanto a utilização santoral que podemos começar a
voyons une transformation des systèmes narratifs, entrever não se fixa. Segundo Guy Philippart, “nenhum conceito
qui suivent et annoncent les changements dans la na Idade Média designa o conjunto do corpus literário ou histórico
perception et dans la pratique de la saintété. C’est consagrado aos santos, nem o conjunto maior ainda de documentos
la complexification de ce sujet et les nouvelles tendo relação com a santidade »6 (como livros litúrgicos,
perspectives de recherche impliquées que nous sacramentais, litanias, livros de ofícios, de rituais ou processionais,
considérons dans ce travail. calendários, miniaturas, inventário de relíquias, etc.). Assim a
literatura relativa aos santos é comumente designada na
Mots-clé: Hagiographie, saint, saintété, récit hagiographique, Antiguidade Tardia e na Idade Média de Acta, gestae, vitae,
interdisciplinarité passio, legenda7 , sendo que este último termo ganha uma
162 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 163
conotação negativa, de relato fabuloso, de pouco crédito, reduzindo cujo estabelecimento dos textos é baseado na comparação de mais
para a crítica histórica a possibilidade de utilização do imenso de 50.000 exemplares de manuscritos existentes na Bélgica, Itália,
corpus de vidas de santos fora de uma perspectiva cultual e norte da França e noroeste da Alemanha, e onde cada relato
devocional. Assim, os termos de hagiografia, para designar um hagiográfico é acompanhado de textos introdutórios sobre a origem
corpus literário e a ciência daqueles que escrevem sobre os santos, dos manuscritos, o santo, o culto, as relíquias, as datas festivas, as
os hagiógrafos, são relativamente recentes, tem dois séculos, e especialidades etc. E foi para o último desses eruditos que o
estão ligados à evolução da crítica da produção hagiográfica, que neologismo hagiógrafo foi empregado, em sua notícia necrológica,
se deu a partir do século XVII. no tomo VI dos Acta de junho, em 1715.12
Em 1607 o jesuíta Héribert Rosweyde (+1629) publica, na O termo de hagiógrafo, como especialista dos santos e como
Antuérpia, o tratado intitulado Fasti sanctorum quorum vitae in aquele que escreve sobre os santos é uma invenção do início do
Belgicis bibliothecis manuscriptae, com 1.300 atos de santos. século XVIII, quando uma nova designação foi necessária, pois a
Inserindo-se na tradição humanista e na dos editores medievais crítica hagiográfica empreendida pelos bollandistas é nova e se
das legenda, contava publicar posteriormente dezoito volumes in- aproxima da ciência. Assim, se esse termo começa a aparecer nos
folio e incluir as Vidas dos Pais do Deserto (Vitae Patrum), de grandes dicionários franceses e na Enciclopédia (tomo VIII de 1795),
Lipomanus8 , e as « Histórias dos santos » do cartuxo Surius9 . o de hagiografia, designando a « ciência do hagiógrafo », segundo o
Sua empresa foi considerada impossível e dispendiosa. De fato, a Dictionnaire de l’Académie (1835) ou a « ciência das legendas e
imprensa negligencia os textos medievais : por exemplo, a Legenda dos escritos que tratam da vida dos santos », segundo o Dictionnaire
Áurea, um dos textos mais populares da Idade Média tardia, não é national (Bescherelle), é uma invenção do século XIX.13
mais editada depois de 1540. Mas Rosweyde continua e em 1613 As questões que se colocavam os eruditos do século XIX diziam
publica, buscando restituir no seu estilo próprio os Atos dos respeito à natureza dessa « ciência dos santos » : o inventário crítico
Mártires, e em 1615 as Vitae Patrum, cuja edição, que contou de objetos literários, arqueológicos, onomásticos e iconográficos sobre
com a comparação de 23 manuscritos, ainda não foi substituída.10 santos constituiria uma ciência, uma vez que os “hagiógrafos” praticam
Rosweyde previa estabelecer os textos na sua forma original, fazer várias disciplinas para descobrir, classificar, datar e interpretar os
comentários eruditos e glossários sobre o conteúdo dos textos (tipos diversos documentos ? E ainda, estes “objetos literários” poderiam,
de suplício dos mártires, rituais eclesiásticos e profanos, virtudes), por sua vez se tornar objeto de uma ciência ? Para Guy Philippart, a
sobre os autores, a iconografia, a cronologia, a geografia. Dessa longa ausência do conceito de hagiografia é reflexo desse paradoxo,
forma ele abre caminho para a obra monumental dos Bollandistas, pois « trata-se de uma ciência ou de uma rede de práticas heurísticas
os Acta Sanctorum. Após a sua morte, em 1629, os jesuítas e críticas relativas aos santos? »14 Dessa forma, apesar da evolução
encarregam Jean Bolland (1596-1665) de continuar o da crítica e do estabelecimento de textos, o relato hagiográfico era
empreendimento de Rosweyde. Bolland exigiu a biblioteca de seu considerado como um gênero devoto, fabuloso, sem grande utilidade
predecessor e a liberdade de seguir suas próprias idéias11 . Vendo para a pesquisa e a verdade históricas.
a imensidão da tarefa pede um colaborador, e um de seus antigos No século XX, com a evolução da História e com a relação
alunos, Godefroid Henschenius (+1680), é escolhido. As vidas de interdisciplinar crescente com a Antropologia e a Sociologia, as
santos passam a ser estudadas e os dois enormes volumes in-folio vidas de santos se tornaram um documento de excepcional riqueza
são editados em 1643. Em 1659, mais um colaborador se junta, para o conhecimento, principalmente da Idade Média, período de
Daniel Paperbroch (+1715). Os Acta Sanctorum, com seus 67 apogeu do gênero, e o valor historiográfico do texto hagiográfico
volumes na edição original, são a grande coleção erudita hagiográfica, não é mais discutido.
164 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 165
Há alguns anos vemos uma relativa quantidade de estudos do religioso. Podemos, através das vidas de santos e dos repertórios
utilizando as fontes hagiográficas como principal material de análise, críticos que estão sendo estabelecidos, criar tipologias seguindo
documentos passíveis de responder à problemáticas de ordens essas forças sociais e essas percepções. O desenvolvimento da
distintas. Um campo enorme de trabalho para os medievalistas pesquisa sobre a questão da santidade leva a conclusões válidas
modernos foi aberto. Vimos primeiramente surgirem pesquisas sobre aspectos sociais e sobre as transformações das formas de
sobre a história da santidade, como um dos elementos mais devoção. O santo emerge como o tipo que reflete as mudanças de
vigorosos do cristianismo, como testemunho da história geral ou valores da sociedade européia. 18
clássica, que busca informações sobre os acontecimentos, No que concerne à influência da doutrina oficial da Igreja
personagens, instituições15 . Mas, nos últimos trinta anos, mais nos modelos de santidade e da vida santa e as formas populares
precisamente, os novos estudos se direcionam para abordagens de crença, por exemplo, vemos que os laicos são formados pelas
sociológicas e antropológicas. O santo é um modelo de comportamento compilações de exempla (pequenas histórias de conteúdo moral e
para os fiéis, o laicado, e, por outro lado, seu culto e sua eficácia edificante) e pelos atos dos mártires, que oferecem os paradigmas
aparecem como um meio de expressar as « estruturas mentais de do comportamento santo, guardam formas específicas de piedade
base » Nessa nova perspectiva as vidas de santos aparecem como e têm sua interpretação de modelos canônicos ou clericais
a “cristalização literária das percepções coletivas”.16 A vida de manifestados nos cultos de santos locais e populares. Podemos
santo se inscreve na vida de um grupo e representa a consciência compreender como o culto dos santos floresceu como a maior
que ele tem de si e da relação entre os grupos17 . expressão da doutrina católica e da mentalidade religiosa popular.
Os historiadores analisam os textos hagiográficos, vistos em A piedade popular e laica age por sua vez sobre as doutrinas dando
quantidade, e se interrogam sobre as sobrevivências pagãs, sobre um material para elaborar as mudanças, controlá-las e ordená-las,
a relação entre cultura popular e cultura clerical, sobre o fenômeno colocar em discurso os novos paradigmas, discurso esse que
de laicização da espiritualidade, sobre a urbanização, etc. Ao lado pertence aos homens da Igreja. Os santos populares são criados,
dos estudos que utilizam uma vasta documentação, aparecem a Igreja os consagra ou não (35 canonizações de 1198 até 1434,
estudos temáticos, com corpus mais restritos, com uma maior dos 71 processos abertos). Por outro lado, o estatuto de religioso
coerência interna e que mostram especificidades e quadros de não isola o personagem de suas raízes laicas, das suas experiências
exceção. Questões importantes sobre os meios culturais e sociais, pessoais, família e meio social. Novos tipos emergem representando
as classes, a família, a educação, as comunidades, os hábitos sociais o ideal de cada grupo ou ordem, colocando em evidência a diversidade
que acompanham estas instituições, sobre as formas específicas das necessidades sociais e culturais medievais.
da santidade feminina, sobre as práticas devocionais, sobre os níveis Entretanto, se os estudos feitos sobre a tipologia da santidade
de crença, foram colocadas. Os temas da infância, da adolescência, mostram que os exemplos de santidade oferecidos aos fiéis
da conversão, da castidade, do casamento, dos alimentos, do sangue, acompanham as mudanças sócio-culturais e operam uma
das lágrimas, da amizade estão sendo abordados. transformação nas sensibilidades religiosas dos indivíduos, no que
Uma série de trabalhos repousa sobre a construção de tipos se refere à expectativa e ao entendimento da santidade devemos
de santos em um tempo e um espaço determinados : tipologias de levar em consideração que o ato intelectual e afetivo da escrita,
santidade são assim estabelecidas. Os estudos onde a idéia de da colocação em discurso, se acha aí implicado.
construção social da santidade condicionam a análise, mostram a A literatura hagiográfica forma um corpus documental
transformação do ideal de santidade como conseqüência das escrito cuja produção não se interrompe durante quase mil anos,
relações de forças sociais e do conflito de ideologias e de percepções da Antiguidade Tardia ao Renascimento; é polimórfico e
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multilinguístico. Para os santos anteriores a 1.500 temos 3.300 vicções, seja para inaugurar um culto, seja para estabelecer atos para
dossiês latinos repertoriados na Biblioteca Hagiográfica Latina. processos de canonização, seja para cumprir promessas afetivas : o
Os Bollandistas distinguem 13.300 unidades, sendo que pesquisas motivo da colocação em discurso é diverso. Dentro da perspectiva
e repertórios de manuscritos estão em curso para o corpus em da história cultural vemos uma preocupação com o hagiógrafo, teste-
vernacular, os países da esfera bizantina e da Península Ibérica. Esse munha de seu meio, da sua comunidade, do seu público, testemunha
corpus não é homogêneo, as formas narrativas próprias, a estrutura e relator de representações mentais de um determinado momento.
dos textos, os topoi se transformam ao longo dos séculos, refletindo Guy Phillipart propõe a distinção, na documentação
justamente transformações históricas, sociais e antropológicas. Os hagiográfica, de um corpus propriamente literário, uma vez que a
Atos dos Mártires são forçosamente diferentes das Biografias documentação hagiográfica, composta de litanias, calendários,
Espirituais do século XIII ou de uma compilação como a Legenda relíquias, dizeres populares etc., é mais abrangente do que a
Áurea ; as questões que podem surgir de sua análise são diversas. « literatura hagiográfica », Assim, a literatura hagiográfica seria
Assim, recentemente os historiadores passam a se preocupar um discurso definido pelo herói, o santo, e pela aparência
com o “discurso”. Na evolução das ciências sociais, o relato historiográfica do texto, pois pretende expressar uma verdade.21
hagiográfico passa a ser um objeto em si : o estudo do texto, da sua Dessa forma, paralelamente à pesquisa histórica propriamente dita,
estrutura e a evolução de suas narrativas. A literatura hagiográfica é também é possível fazer, como propõe Guy Phillipart, uma história
agora vista como « objeto literário » e como « objeto cultural »19 da literatura hagiográfica, inventariar suas formas, seus topoi, as
específico. Por sua vez, o reconhecimento da literatura hagiográfica retóricas, as crenças, o público, etc. “A partir daí a literatura
como objeto histórico coloca outras questões sobre os problemas hagiográfica pode ser tratada de diversas formas, pelos literatos e
relativos à pesquisa hagiográfica e à evolução dos seus métodos. pelos historiadores, como objeto documentário, literário, cultural.
Apesar de não haver uma ars hagiographi, manuais Objeto específico da história, é necessário que ela se emancipe da
medievais de escrita hagiográfica, o relato hagiográfico obedece história dos santos, do seu culto, que se articule aos métodos de
a regras precisas, estabelecidas e legadas pelos Pais da Igreja, análise literária e à história das literaturas e que se nutra de
que instituíram a história do povo cristão na sua marcha para a trabalhos de sociologia e de antropologia históricas”22 . Finalmente,
salvação. O discurso hagiográfico serve, nesse sentido, para a hagiografia ganha o estatuto de literatura e, como tal, é um objeto
expressar a presença do divino em um homem ou uma mulher, os passível de ser analisado em sua especificidade.
quais os fiéis devem imitar para garantir a salvação eterna. Ele
transmite também a certeza da atualização dos gestos e dos NOTAS:
milagres dos tempos evangélicos. Segundo Michel de Certeau, os
1
documentos hagiográficos se caracterizam por uma organização PHILIPPART, Guy, « L’hagiographie comme littérature : concept
textual, implicada no título, acta, res gestae, e são um léxico, récent et nouveaux programmes ? », in L’hagiographie. Textes réunis
manifestando virtudes e milagres20 . par Elisabeth Gaucher et Jean Dufournet. Revue des Sciences Humaines,
n.251 (Juillet-Septembre 1998).
Estudos sobre os tipos de relato hagiográfico mostram a evolu- 2
Thomas de Chobham (1233/1236), PHILIPPART, Guy,
ção dos textos hagiográficos, que acompanham e anunciam as mudan-
« L’hagiographie », op.cit., p.13.
ças na percepção e na prática da santidade. Dos Atos dos Mártires 3
Uguccione de Pisa (+ 1210), idem.
às Biografias Espirituais do século XIII, vemos uma transformação 4
Segundo Honorius de Autun, “Historia est quae praeterita narrat,
dos sistemas narrativos. Os hagiógrafos, como homens e crentes, uti- Prophetia quae futura narrat, Hagiographa quae aeternae vitae gaudia
lizam formas e regras literárias para expressar suas próprias con- jubilat.” In Psal. PL. 172, col. 273b, citado por Felice Lifshitz, “Beyond
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Positivism and Genre : “Hagiographical” Texts as Historical Narrative”, dans PANORAMA DO PENSAMENTO URBANÍSTICO NA
Viator, 25 (1994), pp. 95-115. CIDADE DO RIO DE JANEIRO AO LONGO DO SÉCULO XIX
5
Summa Theologica., II, II, qu. 17, 4, 2 et 6.
6
PHILIPART, Guy, « L’hagiographie », op.cit. Lúcia Silva*
7
H.Rosenfeld, Légende, 2ed., Stuttgard, 1964. François De Vriendt, in
Dictionnaire encyclopédique du moyen âge dir. André Vauchez, t. I, 1997, p.
880-881.
Resumo:
8
Luigi Lippomani (Lipomanus) (+1559), Legado de Júlio III no Concílio de O presente trabalho propõe ser um exercício de
Trento. Sanctorum priscorum patrum vitae..., 8 vol., 1551-1560. análise dos principais projetos urbanísticos que
9
Laurentius Sauer (Surius) (+1578 ?) De probatis sanctorum historiis..., 1e levaram à construção do pensamento urbanístico
ed. 3 vol., 1570, retoma a obra de Lipomanus, classifica as vidas por na cidade do Rio de Janeiro ao longo do século XIX
meses, acrescenta novos textos, corta detalhes julgados ridículos, retoca a Palavras chaves: Cidade projeto urbanismo
língua dos textos. Serviu de base para as traduções populares e as compilações
do século XIX. DUBOIS, D.J. LEMAITRE, J-L., Sources et Méthodes de
l’hagiographie médiévale, Ed. Du Cerf, Paris, 1993, p.43. Abstract
10
idem. This article proposes to analyses the of the main
11
DELEHAYE, H. L’oeuvre des Bollandistes à travers trois siècles, urban projects that had led to the construction of
1615-1915, 2ed., Bruxelles, 1959 (Subs. Hag., 13A2).
12
the urban thought in the city of Rio De Janeiro
DUBOIS, D.J. LEMAITRE, J-L., Sources et Méthodes de
throughout century XIX.
l’hagiographie médiévale, Ed. du Cerf, Paris, 1993, p.43. Daniel
Papebroch, « le bollandiste par excellence », segundo H. Delehaye (A Key words: City project urbanism
travers trois siècles), recebe o adjetivo de hagiógrafo na notícia
necrológica que lhe é consagrada por Conrad Janning no início do
tomo VI dos Acta Sanctorum de junho, 1715. PHILIPART, Guy,
O Urbanismo 1 , enquanto campo de conhecimento e
« L’hagiographie », op.cit. profissional2 , emergiu na cidade do Rio de Janeiro na década de
13
Idem. 20 do século XX. A ambiência social que potencializou seu
14
Idem. surgimento se conformou, em grande medida, em função da
15
Idem. existência inquestionável dos problemas urbanos. Foi um longo
16
Jacques Fontaine, introduction à Sulpice Sévère, Vie de saint Martin, caminho para que a idéia de problemas urbanos se tornasse
Paris, 1967. consenso entre os profissionais que intervinham na materialidade
17
Michel de Certeau, L’écriture de l’histoire da cidade e principalmente fosse da alçada do Estado a
18
cf. John Mecklin, The Passing of the saint : A Study of a Culture competência de resolvê-los. Quando estas idéias tornaram-se
type, Chicago, 1941.
19
indiscutíveis, “surgiu como um colossal cogumelo depois das
Bernard Guenée, Histoire et culture historique dans l’Occident
médiéval, Paris, 1980 (Aubier, Collection Historique), p.11-12
chuvas”(SEVCENKO, 1992, 31) uma especialidade especialíssima.
20
CERTEAU, Michel de, L’écriture de l’histoire, 1975, p.274-88 *
Lucia Silva é Doutora em História pela PUC/SP. Professora do PPGIS/
21
Propõe o conceito de hagiografia historiográfica, para distinguí-la de outros USS e autora dos livros Luzes e Sombras na Cidade: no rastro do castelo
textos narrativos que não pretendiam ser históricos ou expressar uma e da praça onze (2006) e Historia do Urbanismo no Rio de Janeiro:
verdade. PHILIPART, Guy, « L’hagiographie », op.cit. adminstração municipal, engenharia e arquitetura dos anos 20 a
22
Idem. ditadura Vargas (2003).

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Entender o processo histórico de construção dos problemas da Guanabara e seu limite ultrapassara “às duras penas” a Rua da
urbanos envolve várias leituras. Aqui foi escolhida aquela que Vala (Uruguaiana). As lagoas já haviam sido aterradas e o mangual
articula os projetos urbanísticos para a cidade e a discussão de São Diogo parcialmente drenado. A malha urbana carioca
construída em torno deles. Resgatar os diversos momentos em concentrava-se na várzea existente entre os morros do Castelo,
que ocorreram essas discussões urbanísticas torna–se necessário Santo Antonio, Conceição e São Bento4 .
na medida em que o urbano construído se deu, em grande medida, Como toda cidade colonial portuguesa no Novo Mundo,
pela subsunção e/ou desaparecimento de territórios da cidade. serviços e equipamentos urbanos se assentavam no braço escravo.
Recuperar esta discussão é resgatar as várias cidades que existiram Os assuntos e problemas da cidade apesar de serem discutidos
sob o solo da muito leal e heróica cidade de São Sebastião. pela Câmara, eram resolvidos pela iniciativa privada, ainda que
É importante ressaltar que a proposta deste texto não é comunitariamente. Somente as grandes obras foram realizadas
construir uma linearidade entre os projetos e o pensamento pela Coroa. Desde a transferência da cidade para o Castelo, a
urbanístico construído por eles, ou mesmo entre os diversos momentos opção da população foi a de ocupar as áreas alagadas da várzea.
em que se desenrolaram as discussões. O que se propõe aqui é acima A empreitada de aterrar as áreas alagadiças, segundo
de tudo mostrar uma filiação possível entre os vários momentos, Cavalcanti “ressaltou a luta hercúlea de seus moradores e
desvelando o contexto social que permitiu o surgimento de cada relembrou que somente as experiências da Cidade do México, na
proposta. Não se deve esquecer que para além das discussões América espanhola, e Amsterdã, na Europa, poderiam assemelhar–
urbanísticas e seus projetos, existem os territórios com suas popu- se ao caso do Rio de Janeiro” (2004, p.27). A população conforme
lações, estes últimos, mais especificamente os da Praça Onze na ocupava o baixio entre os morros ia aterrando o que podia. A
Freguesia de SANTANA, objeto privilegiado de minhas investigações. drenagem das lagoas exigia aporte financeiro e técnico que os
Por ora deixemos a Praça Onze e adentremos no urbano moradores, grosso modo, não tinham, cabendo então a Coroa a
em conformação, com sujeitos sociais localizáveis, mas difíceis de execução das obras de maiores vultos. A última lagoa aterrada foi
serem alcançados principalmente porque parte de seus projetos a do Boqueirão em 1783.
se assentavam em modelos de urbano e “urbanismo” que não Além dos aterros das lagoas, coube à Coroa resolver o
foram vencedores, e por conta disto se perderam no tempo. Assim, problema da falta d’água. Água potável na cidade, somente do rio
é sempre bom lembrar que dois movimentos distintos, que Carioca, os poços da várzea tinham água salobra e os do morro do
interagiram e interagem estão presentes nesta discussão, ainda Castelo eram muito profundos. Em função desta situação a
que de forma secundária: o processo de construção da tragédia economia urbana voltada para distribuição da água se organizou
urbana brasileira3 e a constituição do Urbanismo (modernista) em torno dos aguadeiros. Apesar de muito caro, os aguadeiros
Excludente (ROLNIK, 1997). traziam o precioso líquido do Carioca às casas mais abastadas. A
A trajetória escolhida para a recuperação dos projetos é situação de penúria em relação ao uso de água potável só começou
feita articulando-o à estrutura urbana existente e aos sujeitos a mudar com a construção do aqueduto da Lapa e das bicas do
envolvidos na discussão, assim uma breve apresentação da cidade chafariz do campo de Santo Antonio no atual Largo da Carioca,
no início do XIX deve ser feita para que se possa dimensionar destino final da canalização das águas do rio.
socialmente as primeiras discussões urbanísticas. A obra levou 18 anos para ser concluída (CAVALCANTI,
A cidade do Rio, às vésperas da chegada da família real, 2004, 35) e com construção da extensão da rede de canos até o
contava com uma população de aproximadamente 43 mil habitantes chafariz do Carmo, no Paço, a população passou a ter água em
(1799), ainda era uma cidade economicamente ligada ao recôncavo abundância. Esta nova realidade ampliou o serviço dos aguadeiros,
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na medida em que seu preço tornou-se acessível ao maior número A cidade contava então com os “homens bons” (grandes
de habitantes, afinal era mais rápido e barato apanhar água nos proprietários e comerciantes) para realizarem as melhorias
chafarizes que ir ao Carioca. As vésperas da chegada da família relacionadas aos serviços e equipamentos urbanos, por meio da
Real a cidade contava com 10 chafarizes5 câmara. Mesmo sendo a Coroa a fazer as grandes obras, em
Entre 1750 e 1808 a cidade passou por profundas mudanças, função da penúria financeira da cidade, cabia a câmara a tarefa
aterro de todas as lagoas no core central e água potável em vários de discutir e definir as prioridades. Espaço privilegiado de discussão
pontos da cidade consolidaram a estrutura urbana. Ainda em sobre os problemas que assolavam a cidade, em 1798 os vereadores
relação aos serviços urbanos, o transporte era precário, e embora e alguns médicos convidados reuniram-se para discutir as principais
a mobilidade da população fosse pequena, no final do século XVIII questões que envolviam a organização da cidade.
era freqüente “as viaturas de tração animal (traquitanas), O diagnóstico produzido pela câmara tornou-se base para
substituindo as cadeirinhas, liteiras, serpentinas, levadas por as ações nos anos seguintes, transformando-se em referência na
escravos” (COELHO, 1993,22). discussão sobre os problemas da cidade. Por ocasião da chegada
Administrativamente, a cidade estava dividida em freguesias da família real ainda era o principal dispositivo utilizado para ler a
rurais e urbanas. Na zona rural ficavam as freguesias de Irajá cidade, foi publicado na íntegra em 1813 no jornal “O Patriota”,
criada em 1644, a de Jacarepaguá criada em 1661, fruto do como síntese do pensamento urbanístico da época.
desmembramento da de Irajá, e a de Campo Grande, também Composto de perguntas e respostas, o texto abarca os
criada a partir do desmembramento de Irajá em 1673. Ainda na principais problemas que assolavam a cidade e suas possíveis
zona rural ficavam as freguesias da Ilha do Governador (1710), soluções. Nem sempre as opiniões dos vereadores coincidiam com
Inhaúma (1749) Guaratiba (1755), Engenho Velho (1762). As urbanas as dos três médicos convidados, mas os problemas apontados
evoluíram da seguinte forma: primeira freguesia foi a de São Sebastião tornaram-se consenso. As águas estagnadas, em função da falta
(Sé, que depois passou a se chamar de Sacramento) criada quatro de escoamento, aliadas ao acumulo de lixo nas praias e ruas e os
anos depois da fundação da cidade. O primeiro desmembramento cemitérios colocados ao lado das igrejas foram apontados como
deu-se e 1634 com a criação da freguesia da Candelária e depois os maiores problemas da cidade. Esses vetores segundo os
com a de São José e Santa Rita em 1753, frutos do vereadores eram os responsáveis pela insalubridade, endemias e
desmembramento da Candelária (NORONHA SANTOS, 1965,7). epidemias que grassavam o solo da urbe.
No final do século XVIII em torno do Paço dos vice-reis, O leque de soluções sugerido pelos vereadores ia desde o
as ruas estavam pavimentadas com pedras, as praças delimitadas desmonte dos morros do Castelo e do Senado, passando pela
e a iluminação pública feita com óleo de baleia. Existiam na cidade construção de valas e drenagem dos baixios, até retificação dos
mais de 300 edificações de dois andares, 1900 de um andar, 190 traçados das ruas para melhorar a aeração e normatização dos
tabernas, 180 barracas de quitandas, 140 armazéns de aguardente usos de alguns espaços como os dos cemitérios e do matadouro.
e vinho, 190 lojas, 2 hospitais e 9 escolas6 . A ocupação avançava Além destas propostas estritamente relacionadas à estrutura
para o Campo de Santana. Os problemas giravam então em torno urbana, havia sugestões que extrapolava a materialidade da cidade
do escoamento das águas, pois na várzea quanto mais longe do e se articulava ao cotidiano da população, tais como mudança nos
litoral pior era o esgotamento das águas para o mar. A maioria das hábitos de alimentação e exercício físico. É importante ressaltar que
ruas não tinha calçamento, e por conta disto, no período de estiagem o diagnóstico construído pelos médicos e vereadores era endereçado
a poeira deixava o ar irrespirável, no período das chuvas, os a uma determinada população, já que 35% dela eram compostos de
alagamentos e a lama eram os problemas. escravos, assim não era para todos os habitantes a sugestão dos
174 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 175
exercícios físicos regulares e a substituição do feijão e inhame por além da segurança. O cargo era o de administrador da cidade. A
frutas e legumes7 . Em nome da salubridade começava-se a articular partir daí a cidade seria organizada a partir da ação do chefe de
o pensar sobre o espaço da cidade com o modo de vida da população polícia, das demandas do poder central (família real, depois estado
Apesar de todas as limitações da câmara dos vereadores, imperal) e o senado da câmara.
pois ao longo do período colonial o senado foi um campo de tensão Outra importante contribuição para organização da cidade
política, já que paulatinamente suas atribuições eram transferidas foi a introdução da décima urbana, imposto predial criado para
à atuação dos funcionários da Coroa, principalmente depois da suprir as despesas com as obras da cidade. A instituição da décima
cidade se transformar em principal posto administrativo da colônia. levou também a sua isenção de 10 ou 20 anos para quem construísse
Mesmo com toda dificuldade, as principais questões relativas à novas edificações de um ou dois andares (MELLO JUNIOR, 1988,
cidade eram discutidas na câmara. O embate entre o poder local 112). Outra importante medida do príncipe regente foi a confecção
e o metropolitano representado pelos funcionários da Coroa de uma planta da cidade, finalizada em 1812.
Portuguesa ficaria mais difuso no que se refere ao controle sobre O período joanino foi caracterizado pela expansão da malha
a cidade e sua população, principalmente depois da transferência urbana, consolidando-a até o campo de Santana e expandindo-a
da sede da colônia para o Rio. até São Cristóvão no sentido norte e para Botafogo, no sentido
Se por um lado, a partir de 1808 essa tensão ganharia novos sul; a introdução de vários órgãos administrativos pela corte
contornos, na medida em que o próprio poder metropolitano estaria portuguesa exigiu novas edificações na cidade para acomodar as
na cidade se apropriando de seus espaços; por outro a proximidade repartições, aumentando o conjunto edificado. A cidade sofreria
permitiria que algumas questões locais fossem tratadas como de algumas mudanças quanto a sua configuração com a expansão
interesse geral. Grosso modo, a mistura no solo carioca das urbana, mas em termos de pensamento urbanístico não, pois os
demandas locais e aquelas construídas pelo poder central seria valores acionados para ler a cidade ainda eram aqueles contidos
uma das características políticas da cidade que perduraria até 1960, no documento publicado n’ “O Patriota”.
a configuração urbana seria fruto desta tensão. A missão francesa, principalmente Grandjean de Montigny
Se em 1799 a população livre representava 65% da ainda que tenha proposto e feito várias intervenções na
população total, e destes 20% eram compostos de libertos (pretos materialidade da cidade não fugiu dos argumentos construídos pelos
e pardos); é importante ressaltar que esse número se refere apenas vereadores e médicos do final do século XVIII. A emancipação
às 4 freguesias urbanas e não contou com o contingente militar política em 1822 não significou alteração na forma de pensar a
estacionado na praça do Rio na ocasião; em 1821, as vésperas da cidade, até porque não houve mudança na estrutura administrativa,
emancipação política, o ouvidor da comarca contabilizava pois pela constituição de 1824 a cidade mesmo com câmara, ficava
aproximadamente 80 mil habitantes em todas as freguesias, destes juntamente com o estado do Rio sob a jurisdição do poder central;
55% eram livres e 45% escravos. somente o ato adicional de 1834 transformou a cidade em Corte
Parte deste aumento deveu-se à chegada da família real, a (município neutro) com câmara municipal, mas sob a tutela do
grande novidade para a cidade, além das transformações pelas Ministério dos Negócios do Império.
quais passou nos primeiros dez anos, afinal foram construídas 600 A Inspetoria Geral das Obras Públicas, ou simplesmente
edificações e mais de 100 chácaras proliferaram no entorno do obras públicas, era uma repartição do ministério que cuidava da
core urbano, foi a instituição da Intendência Geral da Polícia da cidade juntamente com a câmara. Em 1843 o chefe de polícia era
Corte e do Estado do Brasil. A intendência era responsável pelas Euzébio de Queiroz. A cidade continuava sendo produto da
obras públicas, pelo abastecimento de água e iluminação pública, articulação entre as três instituições. Na década de 40, a chefia de
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polícia se preocupava mais com a saúde e segurança, deixando os O relatório foi apresentado por ocasião de sua saída, em 20
problemas ligados à estrutura urbana para a câmara e a inspetoria. de setembro de 1843, como balanço das condições das obras do
A câmara, composta de vereadores, tinha em seus quadros município. Diferente do relatório da comissão do ministério, o de
um engenheiro, arruadores e fiscais de freguesia8 , estes últimos Beaurepaire Rohan não se restringiu aos problemas emergenciais,
agiam como administradores regionais. A câmara dividia com a ele fez avaliação dos problemas da cidade e sugeriu algumas
Inspetoria de Obras Públicas a intervenção na cidade, cabendo a medidas para resolvê-los. Dividido em duas partes, “salubridade
repartição do ministério as maiores ações. pública” e “aformoseamento do município e cômodo de seus
A cidade contava com cerca de 130 mil habitantes, ocupando habitantes”, o relatório inovou em vários aspectos. Um deles ligado
mais de 13 mil edificações. A iluminação pública passou a ficar, à gestão da cidade, na medida em que apontava a necessidade de
naquele ano, sob a responsabilidade da polícia da corte. As barcas uma planta cadastral, a ampliação dos recursos para obras com a
funcionavam regularmente, saindo de hora em hora para Niterói. sugestão de novos impostos, e a criação de uma repartição
Os ônibus de tração animal tinham várias linhas funcionando em específica para cuidar das vias públicas da cidade.
diversos horários, tanto para Botafogo, Jardim Botânico e Em torno da salubridade foram discutidos os problemas da
Laranjeiras na zona sul, quanto para Tijuca São Cristóvão e Andaraí drenagem dos baixios, da coleta do lixo, do esgotamento sanitário
na zona norte. Todas as linhas tinham o hotel Itália na Praça da e da poluição da baia. As condições de higiene da cidade eram
Constituição como ponto final9 . A segurança, tal como se concebe precárias e como toda a tecnologia era calcada na mão-de-obra
hoje, ficava a cargo do Corpo Municipal Permanente. A captação escrava, que realizava os serviços relativos à infra-estrutura
e distribuição de água e o esgotamento sanitário mantiveram-se urbana, Beaurepaire Rohan apontava algumas soluções, mas não
da mesma forma, ou seja, bicas e tigres. indicava como efetivamente colocá-las em prática, isto porque as
Em 1843 o ministério do império instituiu uma comissão para tecnologias conhecidas não permitiam concretizá-las. Um bom
resolver o problema da falta d água que assolava a cidade nos exemplo disto foi a condenação do despejo do lixo nas praias, ele
momentos de seca. Esta comissão era chefiada pelo conselheiro sugere que o destino final seja no meio da baia, tal como o emissário
de estado Francisco Cordeiro da Silva Gomes. A partir do relatório hoje, mas não detalha, apenas comenta a idéia de um empresário
anual do ministro10 foi possível recuperar o trabalho da comissão, que utilizaria uma barca para fazer o despejo na maré baixa.
principalmente no que se refere ao pensamento do que deveria O relatório projeta uma cidade onde predomina os princípios
ser a rede de água e sua gestão. As dúvidas giravam em torno de da Higiene, os urbanísticos e os estéticos, todos articulados a noção
como seriam feitas as concessões desse serviço e de como o de eficiência. O engenheiro se ateve a malha consolidada cuja
chefe de polícia impediria o desmatamento das nascentes dos ordenação podia ser melhorada, daí sua cidade ideal ser a própria
mananciais. Neste mesmo ano, o engenheiro militar Henrique Pedro cidade com maior conforto, não há preocupação em disciplinar a
Carlos de Beaurepaire Rohan apresentava à câmara um relatório expansão. Os princípios da higiene foram utilizados para pensar a
que se transformaria em uma nova síntese do pensamento urbanístico. salubridade da cidade vista em seus diversos aspectos. A
Henrique de Beaurepaire Rohan fazia parte do Imperial arborização é pensada como forma de aformosear ao mesmo
Corpo de Engenheiros, alocado na Inspetoria Geral das Obras tempo em que era vista como meio de purificação do ar. Ainda
Públicas do ministério. Posto à disposição da câmara municipal da pensando na salubridade sugeriu o desmonte do Castelo apoiando-
Corte pela inspetoria em 1842/43, enquanto se tratava de uma se no parecer do médico Emilio Maia.
doença que adquirira em Passo do Jacui/RS, confeccionou um Sugeriu a construção do canal do mangue como forma de
relatório que se tornaria referência para pensar a cidade. diminuir os focos de miasma que, segundo o engenheiro, grassavam
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a região o mangual de São Diogo, ainda não totalmente drenado. texto produzido por uma comissão de especialistas, especialmente
Tratando da salubridade da cidade ele recomendou a transferência criada para isso.
do matadouro de Santa Luzia para São Cristóvão. Manteve a O processo de construção dos problemas da cidade pode
disposição de retirar os sepultamentos das igrejas, transferindo-os ser visto a partir da produção dos documentos que se tornaram
para os cemitérios que seriam alocados nas áreas menos densas referência/ instrumento para lê-los: o documento de 1798 era a
da cidade. Quanto ao esgoto e a água, o engenheiro recomendava ata de discussão dos vereadores sobre o que fazer com os
uma rede de água que servisse individualmente as casas e que o alagamentos das várzeas do core central, o interessante foi a
despejo final deveria ser feito no meio da baia e não nas praias. participação dos médicos permitindo a ampliação da discussão
Quanto aos aspectos urbanísticos, a estreiteza da maioria que não se restringiu as questões objetivas das formas de
das ruas foi condenada, sugeriu a ampliação da largura de várias intervenção no lócus urbano. Para além das obras buscou-se
vias e o prolongamento de outras no sentido melhorar o sistema associar a atuação no espaço ao modo de vida de uma determinada
viário da cidade, desapropriando as casas, se necessário. Propunha camada da população. A malha urbana era relativamente pequena
o uso da lei de desapropriação por utilidade pública de 9 de e sua configuração era construída a partir da ação coletiva dos
setembro de 1826. Sugeriu também que a pavimentação das ruas moradores já que administração municipal voltada para os
e praças fosse feita de macadame11 . problemas urbanos era incipiente.
O engenheiro inovou nos aspectos urbanísticos, Em 1843, a cidade já possuía uma organização específica
principalmente por ter eleito a região do mangual de São Diogo para cuidar de alguns problemas urbanos, ainda que de forma
como a área que necessitava de maior intervenção. A novidade rudimentar, pois a câmara, que deveria ser o órgão responsável
consistiu em, por meio de sugestões, criar parâmetros para a largura por isso se via tolhida em função da falta de recurso. A décima
das ruas, definir a testada dos terrenos, a extensão dos quarteirões; urbana e os outros impostos não supriam as necessidades da cidade,
solicitava ainda que a Câmara Municipal impedisse, através de cabendo então o Ministério dos Negócios do Império, por meio da
posturas, a construção de novas edificações em locais onde seriam Inspetoria das Obras Públicas, realizar as principais obras. Assim
abertas as novas vias. como a Coroa fazia no tempo da colônia, a repartição do ministério
Várias sugestões apresentadas por Beaurepaire Rohan acabava ficando com as principais demandas da cidade.
foram colocadas em prática ao longo das décadas seguintes. Mas, O relatório de Beaurepaire Rohan foi feito para a câmara,
curiosamente as obras que foram imediatamente iniciadas foram o que no primeiro momento não significou alteração da atuação
aquelas indicadas pela Comissão de Obras Públicas, já que o da inspetoria na materialidade da cidade, mas o fato do autor
problema da água era emergencial na cidade. Somente com o pertencer a própria repartição iria permitir que o documento
tempo o relatório passou a ser diretriz no pensar sobre a cidade e ganhasse visibilidade e se tornasse referência entre os que
se tornou referência para a leitura dos problemas relativos à urbe. trabalhavam com os problemas da urbe. Estruturado em duas
No início da década de 70 o relatório ainda servia de partes, a primeira totalmente voltada para as questões de
orientação a um conjunto de intervenções urbanísticas no Rio, tanto saneamento, o autor buscou na Higiene os argumentos utilizados
na esfera da “salubridade pública” quanto do “aformoseamento para legitimar suas proposições, a novidade estaria contida na
do município”. Como referência, o relatório se antecipou às várias segunda parte, mais estritamente voltada para as questões
reformas, embora não deixasse de ser apenas a sugestão de um urbanísticas, onde perpassa em todas suas sugestões a idéia de
profissional que, entre outras coisas, conhecia os problemas da conforto,da noção de organização e planejamento na atuação sobre
cidade. A urbe teria que esperar até a década de 70 para ter um o espaço da cidade.
180 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 181
Assim como os vereadores e médicos do final do século Em 1870 a Companhia Ferry dividia com as Barcas
XVIII estavam antenados com as discussões que aconteciam na Fluminenses o monopólio do transporte de passageiros na baía de
Europa, o engenheiro militar em meados do século XIX também. Guanabara. A Ferry depois de encampar a Niterói Inhomirin passou
Da mesma forma que os vereadores foram à Medicina Social a dominar a linha de Niterói, Caxias e porto da Estrela enquanto a
buscar os elementos para ler a cidade, as soluções preconizadas Fluminense dominava as linhas de São Cristóvão, Inhaúma e
por Beaurepaire Rohan utilizavam o conhecimento da engenharia Botafogo. Tanto as companhias de carris quanto as de navegação
da época, por isso faltam soluções técnicas para algumas questões eram concessões do estado imperial.
que ele mesmo levantou. A cidade teria que esperar mais algumas Assim, tanto os moradores da freguesia da Lagoa quanto
décadas para ter um discurso assentando na Engenharia, ainda da freguesia de São Cristóvão tinham dificuldades de
que apoiado na Higiene, para ler os problemas da urbe. deslocamento. Essas duas distâncias significavam o percurso de
Até a década de 70, as principais obras realizadas na cidade mais de uma hora de bonde, na medida em que estes atingiam a
tiveram como referência o relatório do Beaurepaire Rohan. Na velocidade de 11 km por hora. Em 1870 uma nova estruturação
década de 70 a malha urbana tinha atingido a zona norte (São urbana estava em processo, esta em total sintonia com os
Cristóvão e adjacências) e zona sul (Botafogo e adjacências). transportes. A cidade expandia-se em função da capacidade da
Segundo o almanaque Laemmert de 1872, a cidade contava com rede de transporte em garantir a locomoção da população. O preço
235.381 habitantes, destes 185.289 eram livres e 50.092 eram e a logística das empresas garantiam efetivamente a ocupação
escravos. Ainda, segundo o Almanaque a maioria da população determinadas regiões.
era formada pelo sexo masculino perfazendo 57% da população. Para a zona sul, os bondes partiam do centro em intervalo
A cidade contava então com mais 21 mil edificações12 . de máximo de 10 minutos para Botafogo ou o Largo do Machado
A cidade estava divida em 11 freguesias urbanas e 8 rurais13 , durante o dia. Para Laranjeiras esse intervalo era de 22 minutos.
estas últimas ocupando cerca de 85% do território do município. De Em Botafogo fazia-se a baldeação para o Jardim Botânico, cujos
uma maneira geral, as freguesias urbanas, mesmo ocupando 15% do carros trafegavam em intervalos maiores. Os primeiros carros
município concentravam a maioria da população, sendo a freguesia começavam a circular às 5 da manhã e os últimos por volta da
de Santana a que comportava o maior número de habitantes, pois meia noite. Para a zona norte ocorria a mesma coisa, os intervalos
segundo o censo de 1872, 38. 903 habitantes residiam nesta freguesia. eram também de 10 minutos e saiam para a Tijuca, São Cristóvão,
Em 1870 a urbe contava com uma incipiente rede de Rio Comprido, Catumbi e Ponta do Caju16
transporte coletivo. Segundo Silva14 , a cidade andava sobre os A disponibilidade de condução potencializou a ocupação da
trilhos e sobre as águas. Grosso modo, a Botanical Garden Rail área contígua ao centro e o adensamento pode ser contabilizado
Road, antiga Companhia de Carris Jardim Botânico do empresário por meio do balanço das companhias no ano seguinte. Tanto a
Mauá, companhia de bonde sobre trilho puxada por animais, Botanical quanto a Rio de Janeiro transportaram mais de três
garantia a locomoção da população para a zona sul, enquanto a milhões de passageiros17 no ano de 1871.
Rio de Janeiro Street Railway Company, a antiga Companhia de Ao lado da rede de transporte a rede de esgoto sanitário se
São Cristóvão, assegurava o ir e vir dos habitantes para a zona incorporava à cidade, ou melhor, se escondia, na paisagem carioca,
norte. Outro meio de transporte utilizado pela população, por meio de uma nova estrutura urbana. A rede de esgoto era da
principalmente a suburbana, eram os trens da ferrovia Central do alçada da Rio de Janeiro City Improvements Company Limited.
Brasil, que mesmo privilegiando o transporte de café já carregavam De capital estrangeiro tinha suas tarifas controladas pelo governo
263.306 passageiros anualmente15 . imperial. A região do centro foi a maior beneficiada com o
182 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 183
esgotamento sanitário. Segundo Benchimol, de 1866 a 1875 foram da cidade do Rio de Janeiro produziu dois relatórios que
instalados o sistema de esgoto domiciliar em mais de 14 mil explicitariam a leitura que Engenharia tinha da cidade. A novidade
residências, representando 50% dos domicílios da Corte18 . estava em sua composição, formada por engenheiros e em função
Aparentemente a cidade se tornara mais asseada, mas na disto as soluções apresentadas apesar de utilizar os argumentos
opinião de Rebouças, ela “se tornara uma cloaca (...) O subsolo da Medicina Social eram da alçada da Engenharia 23 .
desta capital é úmido, podre e saturado de matérias excrementícias A nova Comissão composta de engenheiros voltou-se desde
pela nefanda rede de rudes canos de esgoto”19 . A precariedade o inicio para a zona norte da cidade, não só porque São Cristóvão
da rede era confirmada pelas queixas populares e pela organização se localizava na região, mas porque os projetos propostos seriam
da própria City em atender as reclamações dos consumidores20 . utilizados como os primeiros laboratórios onde se experimentariam
A rede de esgoto, juntamente com a rede de transporte articular as atuações do Estado com os capitais imobiliários e de
transformara-se em importante vetor de expansão urbana. transporte. Espaço valorizado, pois era a sede do poder e região
A água continuava sendo um grande problema, mesmo tendo do palácio do imperador, ainda não era densamente povoado. O
uma precária rede instalada o manancial não dava conta do uso vetor de crescimento proposto no plano era Vila Isabel, ratificando
da população. A Inspetoria de Obras em 1870 afirmava que a em parte as indicações preconizadas no Relatório Beaurepaire.
cidade contava com mais de 2.302 km de canos. O serviço de O primeiro relatório, aquele apresentado em 12 de janeiro
distribuição se fazia com 508 bicas públicas, 41 chafarizes com de 1875, se referia às reformas da área compreendida entre “o
181 bicas e 4 139 penas d águas espalhadas pela na cidade21 . A Campo da Aclamação até a Raiz da Serra”. Grosso modo, seriam
distribuição era tão precária quanto os mananciais de captação. atingidos pelos projetos os bairros da Cidade Nova, Engenho Velho,
Os cemitérios públicos do Caju e de Botafogo, inaugurados Andaraí e São Cristóvão. A idéia central era retificar e ampliar
em 1852, já recebiam boa parte da população, a cidade ainda ruas e avenidas para melhorar a aeração e o acesso aos bairros,
contava com um necrotério, o que não impedia a população deixar além de criar novos espaços, ganhos das áreas alagadiças.
seus cadáveres nas praias e vias públicas; o lixo doméstico era O Canal do Mangue foi eleito o principal eixo da ação dos
recolhido por uma empresa e a limpeza das vias públicas era melhoramentos. As idéias de Haussmann seriam expostas nos
competência da municipalidade, ambas fiscalizadas pelo ministério projetos do plano de melhoramentos a partir do Mangue no sentido
do império. O imposto predial atingia a maioria das edificações, da zona Norte, deixando de lado as áreas que mais precisavam.
pois somente 622 edificações estavam isentas desse imposto Diferente de Paris onde quarteirões inteiros foram removidos em
enquanto a taxa do lixo era isenta aos mais pobres. áreas densamente povoadas, aqui as ruas largas e bulevares foram
Para fechar este cenário, não poderia faltar a iluminação pensados para Tijuca e Vila Isabel, ainda espaços vazios.
pública feita por postes de lampiões á gás com potência de nove Visto como foco de miasma, o canal seria desobstruído e
velas. Inaugurada em 1854 esta rede cobria em 1870 189 km de alargado, sendo prolongado até o mar, ele receberia também as
ruas, toneladas de carvão fabricavam os milhões de “litros”22 de águas dos diversos rios da baixada do Maracanã que na ocasião
gás necessários para produzir a iluminação para as residências e ruas. era um grande charco. As novas áreas secas teriam ruas largas
O Plano de melhoramento de 1874/76 pode ser pensado como o bulevar 28 de setembro, já inaugurado.
enquanto resposta para essa nova urbe, emergiu em um momento Na atual Praça da Bandeira, no espaço antes ocupado pelo
de crise, as epidemias de febre amarela assolavam a cidade e matadouro (estava sendo transferido para Santa Cruz) seria construído
exigiam das autoridades soluções para uma cidade mais salubre. um pavilhão de exposição, onde ficariam expostos permanentemente
Sob a égide do discurso da Higiene, a Comissão de Melhoramentos produtos e maquinarias, principalmente àquelas de uso agrícola.
184 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 185
As ruas largas sairiam do Campo da Aclamação indo à em que levantaram os trabalhos anteriores contidos na inspetoria.
direção da Tijuca. Foram alargadas e retificadas as atuais Haddock Assim, os relatórios são sínteses do pensamento urbanístico da
Lobo (ruas Conde D Eu e Engenho Velho), Conde de Bonfim inspetoria, que ao longo do XIX dividia com a câmara, a atuação
(Rua do Andaraí Pequeno) e Barão de Mesquita (Rua Andaraí sobre os principais problemas da cidade.
Grande). Foi neste período que se canalizou e retificou os principais Juntamente com os dois relatórios, o segundo foi entregue
rios da região, tornando-a apta aos novos loteamentos. A região em 29 de fevereiro de 1876, os engenheiros entregaram também
sofreu um boom de ocupação, tal como apontou o relatório da Rio uma planta geral da cidade na escala de 1:5000. Além do relatório da
de Janeiro Railway Company em 187124 . comissão, a Junta de Higiene também elaborou em 1876 um conjunto
Os projetos ainda que secundariamente valorizassem os de medida que se tornaria o plano de melhoramento de 1878 da junta.
empreendimentos que estavam ocorrendo na baixada da Aldeia Esta nova comissão era formada por médicos. No primeiro item do
Campista, aparentemente não tinham a preocupação com a texto, os médicos revelavam a necessidade de fazer uma comissão
inversão dos capitais imobiliários ali postos. Acredito que seja conjunta com os arquitetos para resolver os problemas que
necessária uma investigação sobre a articulação dos projetos com tornavam a cidade insalubre. As medidas preconizadas por esta
o capital imobiliário e dos transportes, pois as reformas patrocinadas comissão eram parecidas com aquela dos engenheiros.
pelo Estado Imperial só beneficiaram aquela região e os capitais Os três relatórios retratam o ambiente intelectual dos
do café ali investidos. profissionais que pensavam a cidade, além de explicitar a forma
Todas as sugestões contidas no plano tinham como referência como o estado agia sobre a materialidade da cidade. Todos os
uma cidade a ser alcançada, mais salubre e mais disciplinada. relatórios foram produzidos a partir dos pedidos do ministro dos
Diferentemente do relatório Beaurepaire que se concentrava em negócios do império, os dois primeiros para os engenheiros da
questões práticas como a drenagem dos pântanos e das áreas inspetoria de obras públicas, naquele momento alocada no ministério
alagadiças, o plano de 1874 além das intervenções práticas para o da agricultura, o terceiro à Junta de Higiene que estava em sua
espaço urbano como a arborização de ruas e praças, o alargamento pasta. No texto do terceiro relatório é possível confirmar que
das vias e sua retificação e a reconstrução das edificações em lotes produzido na mesma época que os outros relatórios, isto é, 1876.
maiores; preconizava também normas reguladoras para questões como As epidemias e o eterno problema da falta d’ água
a limpeza pública e domiciliar e um tipo de zoneamento, já que mobilizaram o Estado, na figura do ministro dos negócios para
previa determinados usos para os espaços como cemitérios, discutir os problemas da cidade, ele convocou e organizou a
hospitais, albergarias, cocheiras e atividades industriais que discussão em torno destas comissões. O estado também estava
utilizassem substâncias prejudiciais à saúde da população. passando por profundas transformações e a necessidade de
O relatório foi pedido pelo Ministério dos Negócios do determinar os papéis das repartições atravessava as os debates
Império, o chefe da comissão era o diretor da Inspetoria Geral de sobre os problemas da urbe. Pela primeira vez um documento
Obras Públicas, o major Jerônimo Rodrigues de Morais Jardim, sobre os problemas da cidade era produzido em função de uma
repartição esta alocada desde 1860 no Ministério da Agricultura25 . demanda do Estado. Ainda que de forma rudimentar, os
Pela primeira vez um texto conjugava as questões higiênicas aos profissionais alocados no estado colocavam em xeque a
problemas viários, ao conforto e beleza. Os autores deixavam claro desorganização da máquina administrativa, apoiando a existência
que foram chamados pelo governo imperial porque os problemas das empresas particulares atuando nos setores de equipamentos e
de salubridade da cidade eram da alçada da engenharia e que o serviços da cidade e pressionando a constituição de uma nova
relatório apresentado era fruto de uma extensa pesquisa, na medida máquina burocrática.
186 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 187
Parte das proposições do plano seria colocada em prática no solo carioca nos anos seguintes; avaliar os planos e projetos no
na gestão do prefeito que fez parte da comissão, Francisco Pereira contexto em que eles foram produzidos auxilia a desvelar como
Passos. Até o início do século XX o texto seria utilizado como um esta configuração foi construída, ao apontar um momento em que
potente instrumento de leitura sobre os problemas da urbe, mas essa nova materialidade era estranha à população, a prática
seria um longo processo para que o estado assumisse urbanística construiu e promoveu um determinado urbano,
completamente o controle dos problemas urbanos, determinando tornando-o natural26 na paisagem. O urbanismo floresceu no solo
e elegendo o que e como fazer para solucioná-los; assim o Bota fértil dos problemas urbanos!
Abaixo da gestão de Pereira Passos na Primeira República se
assentou grandemente no Plano de Melhoramentos de 1874. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Os discursos urbanísticos não foram os únicos textos produzidos
sobre a cidade, da mesma forma que o Estado (câmara, inspetoria e BENCHIMOL, Jaime L. Pereira Passos um Haussman tropical,
polícia) não foi o único agente a intervir na materialidade da urbe. Isto transformações urbanas na cidade do Rio de Janeiro no século XX.
significa dizer que, privilegiar um segmento social possibilita apenas Rio de Janeiro: SMCTE, 1992
descortinar um aspecto da constituição da cidade e do urbano. BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas, 2o ed, São
Ainda que faltem pesquisas sobre a atuação de todos os agentes Paulo: Perspectiva, 1993.
no lócus urbano ao longo do século XIX, pode-se afirmar que os ________. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 1989 ( memória e
espaços e territórios da cidade foram historicamente construídos sociedade)
na interface das relações sociais constituídas pelos homens em BOURDIEU, Pierre. La Noblesse d Etat: grandes ecoles et esprit de
suas múltiplas experiências vivendo a/na cidade. corps. Les editions de minuit, 1989
CAVALCANTI, Nireu. O Rio Setecentista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Os discursos urbanísticos materializaram as várias visões
editor, 2004
de cidade existentes entre os diversos profissionais que intervinham
CHOAY, Françoise. O Urbanismo. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva,
na urbe, além de explicitar os limites do próprio pensamento 1998
urbanístico sobre o que deveria ser a cidade ideal e de como poderia COELHO, Lucinda C de Mello. Aspectos da evolução urbanísticas
ser sua intervenção. A cidade chegaria ao final do XIX com seus do Rio de Janeiro. RJ: Editora do livro, 1993
serviços e equipamentos tão precários como do início do século. A FLEUISS, Max. História da Cidade do Rio de Janeiro. SP: Cia Editora
república transformaria os problemas da capital em problemas da melhoramentos, 1928
nação, potencializando então a modernização de sua estrutura LOBO, E M L. História do Rio de janeiro: do capital comercial ao
urbana e a emergência do Urbanismo. capital industrial e financeiro, RJ: IBEMEC, 1978
Para o Urbanismo a articulação com estado foi de LATOUR. Bruno. Jamais fomos modernos. RJ: Ed 34. 1994
fundamental importância para a concretização de um ideário que MARICATO, Ermínia. Urbanismo no mundo globalizado: metrópoles
se assentava na normatização das construções e disciplinarização brasileiras IN. São Paulo em Perspectiva, 2000, n 14 (4)
da população. Para além dos planos e da atuação do Estado, os MELLO JUNIOR, Donato. Rio de Janeiro: planos, plantas e
habitantes vivenciaram estas transformações, principalmente aparência.Rio de Janeiro: João Fortes engenharia/DGPC, 1988
aquelas ocorridas após as décadas de 1870, onde a estrutura REBOUÇAS, André. Diário e anotações autobiográficas. RJ: Jose
colonial desapareceria sob o manto das reformas urbanas. Olimpio, 1938
Conhecer como os habitantes experimentaram socialmente ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei. Legislação, política urbana e terri-
essas transformações ajuda a dimensionar a atuação dos urbanistas tórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel/FAPESP, 1997

188 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 189
12
SANTOS, Francisco Agenor Noronha. As freguesias do Rio Antigo. Almanak Laemmert, RJ: Typ. E&H Laemmert, 1872. Os dados
Rio de Janeiro: edições O Cruzeiro, 1965 publicados referem-se aos conhecidos em abril de 1872
13
SEVCENKO. Nicolau. Orfeu Extático na metrópole. SP: Cia das São elas: Campo grande, Jacarepaguá, ilhas do governador, Paquetá,
letras, 1992 Guaratiba, Inhaúma, Irajá e Santa Cruz
14
SILVA, Maria Lais Pereira da. Os transportes coletivos na cidade
NOTAS do Rio de Janeiro. RJ: SMCTE, 1992
15
Esse dado corresponde ao ano de 1866, encontra-se em SILVA,
1 Urbanismo tal como definido em CHOAY, F. Urbanismo. 5ª ed. M. L P. Op cit, p.53
SP: Perspectiva, 1998 16
Almanak Laemmert, RJ: Typ. E&H Laemmert, 1870., p. 422
2 Campo de conhecimento e Professional como definiu Bourdieu 17
Almanak Laemmert, RJ: Typ. E&H Laemmert, 1872., suplemento,
em A Economia das Trocas Simbólicas, 2o ed, São Paulo: Perspectiva, p. 72 e 73. As principais linhas foram inauguradas em 1870
1993 18
BENCHIMOL, Pereira Passos: um Haussman tropical, RJ: SMCTE,
3 A tragédia urbana brasileira atual, segundo Maricato não foi produto 1992, p.73
das décadas perdidas (1980/90) como denunciam alguns pensadores 19
REBOUÇAS, André. Diário e anotações autobiográficas. RJ: Jose
sociais. As últimas décadas aprofundaram a desigualdade existente Olimpio1938, p.202
nesta sociedade historicamente e tradicionalmente desigual. A partir 20
Almanak Laemmert, RJ: Typ. E&H Laemmert, 1872., suplemento,
da privatização da terra (1850) e da emergência do trabalho livre p. 72 e 73.
(1888) percebe-se com mais clareza que é na cidade que se realiza a 21
Almanak Laemmert, RJ: Typ. E&H Laemmert, 1872., suplemento,
reprodução da força de trabalho, e nas cidades brasileiras, de uma p. 73 e 74
maneira geral, esta reprodução não se deu totalmente pelas vias 22
Almanak Laemmert, RJ: Typ. E&H Laemmert, 1872., suplemento,
formais e sim pelos expedientes de subsistência. Essa característica p. 75. termo utilizado no suplemento
acompanharia e atravessaria o século XX, marcando decisivamente a 23
Sobre o plano e as novidades introduzidas pela engenharia ver
produção das cidades e a vida nas cidades brasileiras. Sobre isto ver SILVA, L. IN MOURA, A e SENA FILHO, N (orgs). Cidades: relações
MARICATO, Ermínia. Urbanismo no mundo globalizado: metrópoles e poder e cultura urbana. Goiânia: ed Vieira, 2005, p 171-192
brasileiras IN. São Paulo em Perspectiva, 2000, n 14 (4), 24
Almanak Laemmert. RJ: Typ E&H Laemmert, 1872, suplemento
4
Dados retirados de FLEUISS, M 1928, 144 p. 72-73.
5
CAVALCANTI, Nireu.O Rio setecentista. RJ: Jorge Zahar editor, 25
Relatório do Ministério dos Negócios do Império do Brazil, ano
2004, p.36 1860, Rio de janeiro: tipografia nacional, 1861,p.5 e segs
6
LOBO, E M L. História do Rio de Janeiro, RJ: IBEMEC, 1978, 26
Segunda natureza, tal como definiu Latour. B. Jamais fomos
p.122 moderno. RJ:Ed 34. 1994
7 Resumo total de população ....IN revista o IHGB 1858
8
Informações extraídas do Almanaque Laemmert ano 1844 RJ: Typ
E&H Laemmert
9
Informações extraídas do Almanaque Laemmert ano 1844, RJ:
Typ E&H Laemmert, p 178
10
Relatório do Ministério dos Negócios do Império do Brazil, ano
1843, Rio de janeiro: tipografia nacional, 1844 p.36 e segs
11
Sistema de pavimentação de estradas e ruas com pedra britada e
saibro que se recalca com um cilindro
190 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 191
HISTÓRIA SOCIAL: CAMINHOS DE UM CAMPO
HISTÓRICO

José D’Assunção Barros*

RESUMO

Este artigo busca esclarecer e discutir alguns


aspectos relacionados à História Social, examinando
inicialmente, de um ponto de vista crítico, os diversos
usos e significados da expressão como modalidade
do saber historiográfico. São discutidos aspectos
diversos, incluindo os objetos, fontes e abordagens
mais comuns a este campo.

Palavras-chave: História Social, Campos da História, escrita da história.

ABSTRACT

This article attempts to clarify and discuss some


aspects related to the Social History, discussing the
various uses and significances of this expression
as a modality of historical knowledge. The aspects
to be discussed are diverse, and include the objects,
sources and approaches more common in this field.

Key Words: Social History, Fields of History, historical writing.

* Doutor em História Social pela UFF. Professor nos Cursos de


Graduação e Mestrado em História da Universidade Severino
Sombra (Vassouras) e nos Cursos de Graduação e Mestrado na
Universidade Federal de Juiz de Fora. Autor dos livros O Campo
da História (2004) e O Projeto de Pesquisa em História (2005).

192 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 193
1. Breve Introdução aos Campos Históricos obrigado a proceder a recortes e a operações simplificadoras, e é
neste sentido que devem ser considerados os compartimentos que
Entre as inúmeras modalidades e especialidades nas quais foram criados pelos próprios historiadores para enquadrar os seus
se reparte a disciplina e a prática da História nos dias de hoje, vários tipos de estudos históricos.
talvez a dimensão historiográfica mais sujeita a oscilações de Preocupados com uma “religação dos saberes” – depois
significado seja a da História Social. Modalidade historiográfica deste conturbado século que de certa maneira foi o ‘século das
rica de interdisciplinaridades com todas as Ciências Sociais, e especializações’ – não faltam os autores que alertam para os
igualmente rica na sua possibilidade de objetos de estudo, a História perigos e empobrecimentos do isolamento e da compartimentação:
Social abre-se de fato a variadas possibilidades de definição e
delimitação que certamente interferem nos vários trabalhos “Sabe-se que o historiador tem o costume de arrumar os
produzidos pelos historiadores que atuam neste campo fatos em envelopes que se transformaram em entidades
intradisciplinar. Veremos, neste artigo, que há razões várias para trans-históricas, em categorias temporais e universais: o
essa oferta de uma diversidade de sentidos que vem à tona quando social, o econômico, o político, o religioso, o cultural ...
falamos em História Social. Por outro lado, antes de aprofundar Depois de proceder a esta distribuição e a esta etiquetagem,
a temática em questão, uma reflexão inicial sobre os critérios que por razões de competência pessoal ou por escolha
presidem a partição da História nas suas diversas modalidades disciplinar, o historiador atém-se comumente a uma única
ordem de fatos”2
mostrar-se-á bastante oportuna, e para tal nos basearemos em
uma obra específica recentemente publicada sobre o assunto com A saída, naturalmente, é não utilizar as classificações como
o título O Campo da História – especialidades e abordagens limites ou pretexto para o isolamento. Não se justifica o recuo diante
(BARROS, 2004). de uma curva demográfica, quando o objeto de estudo o exige, sob o
Antes de mais nada, será útil compreender que existem pretexto de que a sua é apenas uma História Cultural. Da mesma
basicamente duas grandes ordens de dificuldades que costumam forma, um historiador econômico não pode recuar diante dos fatos da
tornar confusos os esforços de classificar e organizar internamente cultura (ou dos aspectos culturais de um “fato econômico”). Peter
a História em sub-áreas especializadas. Uma corresponde a uma Burke registra em seu livro sobre a Escola dos Annales um exemplo
intrincada confusão de critérios que costuma presidir estes esforços extraído do grande historiador econômico Witold Kula:
classificatórios, questão que deixaremos para discutir mais adiante.
A outra ordem de dificuldades, da qual gostaríamos de falar em “[...] Kula faz uma análise econômica dos latifúndios
primeiro lugar, corresponde ao fato de que uma abordagem ou poloneses nos séculos XVII e XVIII. Mostrou que o
uma prática historiográfica não pode ser rigorosamente enquadrada comportamento econômico dos proprietários de terras
dentro de um único campo. poloneses era o oposto do que previa a economia
Apesar de falarmos freqüentemente em uma “História clássica. Quando o preço do centeio, seu produto
Econômica”, em uma “História Política”, em uma “História principal, aumentava, produziam menos, e quando o
Cultural”, e assim por diante, a verdade é que não existem fatos preço abaixava, produziam mais. A explicação deste
que sejam exclusivamente econômicos, políticos ou culturais. Todas paradoxo deveria ser encontrada, diz Kula [...] no reino
as dimensões da realidade social interagem, ou rigorosamente da cultura, ou das mentalidades. Tais aristocratas não
sequer existem como dimensões separadas. Mas o ser humano, estavam interessados em lucros, mas em manter um
em sua ânsia de melhor compreender o mundo, acaba sendo estilo de vida, da maneira a que estavam acostumados.

194 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 195
As variações na produção eram tentativas de manter historiador (a micro-realidade, o número); fala-se em uma História
uma renda padrão. Seria interessante imaginar as reações das Mulheres ou em uma História dos Marginais, que são
de Karl Marx a essas idéias”3 classificações relacionadas aos ‘sujeitos’ que fazem a História (a
Mulher, o Marginal); fala-se em uma História Rural ou em uma
O fundador do Materialismo Histórico teria possivelmente História Urbana, que são subdivisões relativas aos ‘ambientes
reagido bem à flexibilidade de Kula, poderíamos acrescentar. sociais’ examinados pelo historiador (o Campo, a Cidade); fala-se
Afinal, em sua análise política e econômica do 18 Brumário de de uma História da Arte ou de uma História da Sexualidade,
Luís Bonaparte (1952), Marx não recua diante dos fatos do que são âmbitos associados aos ‘objetos’ considerados na pesquisa
“imaginário” (palavra que ainda estava longe de ser cunhada). histórica (a Criação Artística, o Sexo). Poder-se-ia falar ainda em
Sua explicação para a ascensão de Luís Bonaparte ao governo uma História Vista de Baixo, para simbolizar uma inversão de
francês na segunda metade do século XIX, com base nos votos perspectiva em relação à tradicional historiografia que partia do
dos camponeses, está ancorada precisamente em uma análise do poder dominante, e até em uma História Imediata, modalidade
imaginário, do peso que a imagem de Napoleão Bonaparte (tio de historiográfica em que o autor é ao mesmo tempo historiador e
Luís Bonaparte) ainda exercia sobre a população4 . personagem dos acontecimentos que descreve ou analisa.
Em vista destes e de tantos outros exemplos que poderiam Todos estes exemplos constituem legítimas especialidades
ser extraídos de obras historiográficas magistrais, tem-se a lição da História. Mas as dificuldades começam a se mostrar quando
nem sempre bem compreendida de que o esclarecimento do campo estas várias classificações, oriundas de critérios bem diferentes e
ou da combinação de campos em que se insere um estudo não estranhos entre si, são misturadas indiscriminadamente para
deve ter efeito paralisante, nem servir como pretexto para justificar organizar os vários “lotes” da História.
omissões. Definir o ambiente intradisciplinar em que florescerá a De algum modo, pode-se postular três ordens de critérios
pesquisa ou no qual se consolidará uma atuação historiográfica correspondentes a divisões da História respectivamente
deve ser encarado como um esforço de autoconhecimento, de relacionadas a “enfoques”, “métodos” e “temas”. Uma dimensão
definir os pontos de partida mais significativos – e não como uma implica em um tipo de enfoque ou em um ‘modo de ver’ (ou em
profissão de fé no isolamento intradisciplinar. algo que se pretende ver em primeiro plano na observação de
Uma segunda ordem de dificuldades que costuma confundir uma sociedade historicamente localizada); uma abordagem implica
as tentativas de subdividir internamente o Campo Histórico refere- em um ‘modo de fazer a história’ a partir dos materiais com os
se a uma inadvertida mistura dos critérios que são habitualmente quais deve trabalhar o historiador (determinadas fontes,
utilizados para a classificação das várias “histórias”. Fala-se por determinados métodos, e determinados campos de observação);
exemplo em uma História Demográfica ou em uma História um domínio corresponde a uma escolha mais específica, orientada
Política, noções que se referem a ‘dimensões’ ou a fatores que em relação a determinados sujeitos ou objetos para os quais será
ajudam a definir a realidade social (a população, o poder); fala-se dirigida a atenção do historiador (campos temáticos como o da
de uma História Oral ou de uma História Serial, que são ‘história das mulheres’ ou da ‘história do Direito’).
classificações da História que remetem ao tipo de fontes com as Desnecessário dizer que os historiadores podem unir em
quais elas lidam ou às ‘abordagens’ que os historiadores utilizam uma única perspectiva historiográfica uma dimensão (por exemplo,
para tratar estas fontes (a entrevista, a serialização de dados); a História Econômica), uma determinada abordagem (a História
fala-se da Micro-História ou da História Quantitativa, que são Serial), e um certo domínio (a História dos Camponeses). Na
classificações relativas aos campos de observação abordados pelo verdade, muitos outros tipos de combinações serão possíveis, até
196 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 197
mesmo no interior de um grupo de critérios, mas por ora avancemos por estas novas sub-especialidades (por longo tempo,
mais nesta clarificação. desapareceriam da prática historiográfica profissional do século
A primeira ordem de classificações a que podemos nos XX a biografia de personalidades políticas importantes e a história
referir é aquela gerada pelas várias dimensões da vida humana das grandes batalhas, temas que depois retornaram nas últimas
que podem constituir enfoques historiográficos, embora na décadas do século XX). Em suma: o caleidoscópio historiográfico
realidade social efetiva estas dimensões nunca apareçam sofre os seus rearranjos. E estes rearranjos são eles mesmos produtos
desligadas entre si. Teremos então uma História Demográfica, históricos, derivados das tendências de pensamento de cada época e
uma História da Cultura Material, uma História Econômica, uma das suas motivações políticas e sociais. Os paradigmas acabam
História Política, uma História Cultural, e assim por diante. sendo substituídos uns por outros, por mais que tenham perdurado,
É preciso ter em vista, antes de mais nada, que estas e trazem a seu reboque novas tábuas de classificação.
dimensões a serem definidas como ‘instâncias da realidade social’ Posto isto, será possível dividir a História conforme ela é
são em todos os casos construções do historiador, contendo a sua hoje compreendida pelos historiadores profissionais em dimensões
parcela de arbitrariedade e a sua possibilidade de flutuações ao relativas a certos enfoques que são priorizados na apreensão da
longo do desenvolvimento da história do pensamento historiográfico. vida e da organização de uma sociedade. Uma vez que o objetivo
A cada novo período da historiografia, uma dimensão pode como mais específico deste artigo é delimitar e discutir a História Social,
que se desprender da outra, ou então duas dimensões que antes não teremos espaço para discutir cada um dos demais campos
andavam separadas podem voltar a se juntar. gerados por este grupo de critérios – e que vão da História Social
A História das Mentalidades, a História do Imaginário e a Histó- a outras modalidades como a História Política, a História
ria Antropológica, por exemplo, foram enfoques que de certo modo Econômica, a História Demográfica, a Geo-História ou a História
se desprenderam há algumas décadas da História da Cultura; e a das Mentalidades. Contudo reenviamos, para uma continuidade
História da Cultura Material organizou-se a partir de um certo setor no aprofundamento deste assunto, a uma obra recente que foi
da História Econômica que estava diretamente voltado para o consu- desenvolvida neste sentido5 .
mo e que passou a se conectar com certos aspectos enfatizados pela Do âmbito das dimensões, passaremos agora ao âmbito das
História Cultural, ao mesmo tempo em que se beneficiava das preocu- abordagens. Existem subdivisões possíveis da História que se
pações crescentes com a vida cotidiana que surgiram no decurso do referem ao ‘campo de observação’ com que os historiadores
século XX. Há também as dimensões que são constituídas pelo contato trabalham. E existem outras que se referem ao tipo de fontes ou
da História com outras disciplinas, como a Geo-História, que surgiu ao ‘modo de tratamento das fontes’ empregado pelo historiador.
de uma interface do trabalho historiográfico com a Geografia. Em cada um destes casos, estas divisões da História referem-se
É também digno de nota o fato de que algumas dimensões mais aos ‘modos de fazer’ a pesquisa do que às dimensões sociais
podem começar por ser construídas por contraste com outras, por que enfocadas pelo historiador (‘modos de ver’). Deste modo, os
vezes gerando certas oposições mais marcantes, até que em seu critérios envolvidos por estas subdivisões são divisões que estão
desenvolvimento posterior certas interfaces possam ser mais relacionadas com Metodologia do que com Teoria.
estabelecidas ou retomadas. De certo modo, tal como já foi É o caso, por exemplo, da História Oral. Esta subdivisão
ressaltado no início deste ensaio, a História Social e a História historiográfica refere-se a um tipo de fontes com o qual o historiador
Econômica do século XX começaram a ser edificadas a partir de trabalha, a saber, os testemunhos orais. Aqui, entramos em um
um contraste com a velha História Política que se fazia no século outro tipo de critério que não interfere com os do primeiro grupo.
XIX – e isto resultou aliás no provisório abandono de alguns objetos Um historiador pode estabelecer como enfoque a História Política
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ou a História Cultural, e selecionar como abordagem a História historiográfico – uma vida, um circuito de sociabilidade, uma prática
Oral. Isto significa que ele irá produzir o essencial dos seus social – e a partir desta gota d’água cuidadosamente escolhida
materiais de investigação e reflexão a partir da coleta de busca enxergar algo do oceano inteiro. Já a História Regional é a
depoimentos, que depois deverá analisar com os métodos modalidade historiográfica que estuda uma região por ela mesma,
adequados. Suas preocupações neste âmbito estarão relacionadas examinando-a como sistema com seu próprio funcionamento ou
ao tipo de entrevista que será utilizado na coleta de depoimentos, como sub-sistema que se insere em um sistema mais vasto –
aos cuidados na decodificação e análise destes depoimentos, ao notando-se que é o próprio historiador quem define o critério a
uso ou não de questionários pré-direcionados, e assim por diante. partir do qual está definindo este ou aquele campo de observação
Todos estes aspectos mais se referem a ‘métodos e técnicas’ do como uma “região”. Esta não coincide, necessariamente, com a
que a ‘aspectos teóricos’. A História Oral, enfim, remete a um região administrativa ou geográfica, pode ser uma região definida
dos caminhos metodológicos oferecidos pela História, e não a um antropologicamente, culturalmente, ou de qualquer outra maneira.
enfoque, a um caminho teórico ou a um caminho temático. Mas não nos deteremos mais no âmbito das abordagens, já
Outro exemplo de modalidade da História definida por um que é preciso examinar o último âmbito de critérios que pode presidir
critério estabelecido por uma ‘abordagem’ é a História Serial – uma divisão da História em modalidades mais específicas.
modalidade da História que desempenhou um papel primordial na Examinaremos em seguida aquilo que denominaremos de domínios
historiografia do século XX e que,.quando surgiu, foi vista como da História.
uma revolução nas relações do historiador com as suas fontes. Ao Os domínios da História são na verdade de número
invés das fontes habituais que eram tomadas sempre para uma indefinido. Alguns domínios podem se referir aos ‘agentes
abordagem qualitativa, a chamada História Serial introduziu nas históricos’ que eventualmente são examinados (a mulher, o
proximidades dos meados do século XX uma perspectiva marginal, o jovem, o trabalhador, as massas anônimas), outros aos
inteiramente nova: tratava-se de constituir “séries” de fontes e de ‘ambientes sociais’ (rural, urbano, vida privada), outros aos
abordá-las de acordo com técnicas igualmente inéditas. Neste caso, ‘âmbitos de estudo’ (arte, direito, religiosidade, sexualidade), e a
teremos também aqui um campo a ser definido em relação à outras tantas possibilidades. Os exemplos sugeridos são apenas
abordagem ou ao modo de fazer a História que a perpassa, já que indicativos de uma quantidade de campos que não teria fim, e
consideramos que o que define uma modalidade historiográfica qualquer um poderá começar a pensar por conta própria as inúmeras
como História Serial é precisamente a presença de fontes que são possibilidades.
constituídas em série e uma determinada maneira de tratar Tal como se disse, os critérios de classificação que
historiograficamente esta série – ou seja: um tipo de fonte a ser estabelecem domínios da História referem-se primordialmente às
utilizado e uma forma específica de tratamento destas fontes, uma temáticas (ou campos temáticos) escolhidas pelos historiadores.
fazer histórico, enfim. São já áreas de estudo mais específicas, dentro das quais se
Poderíamos seguir adiante na descrição de outros campos inscreverá o objeto de investigação e a problemática constituídos
da História que se referem a ‘abordagens’, seja a ‘modos de fazer pelo historiador.
a história’ (escolha ou constituição de determinados tipos de fontes, A maioria dos domínios históricos presta-se a historiadores
ou formas de tratamento destas fontes), seja ao ‘campo de que trabalham com diferentes dimensões históricas, e certamente
observação’ no qual se detém o historiador. A Micro-História, por às várias abordagens. Mas existem domínios que têm muito mais
exemplo, é uma abordagem historiográfica deste último tipo: ela afinidade com uma determinada dimensão, dada a natureza dos
escolhe como campo de observação um recorte micro- temas por eles abarcados. Assim, a História da Arte ou a História
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da Literatura são praticamente sub-especialidades da História diária, e é talvez isto o que lhe dá um status de domínio. Mas
Cultural (embora se deva chamar atenção para uma História Social seguramente esta poderia ser vista como uma dimensão tão
da Arte, ou uma História Social da Literatura, que não deixam de fundamental como a Economia, a Política ou as Mentalidades. O
ser possibilidades dentro da História Social). que ocorre é que estas não apenas são dimensões significativas
De modo análogo, um domínio como o da História das que definem a vida humana, elas constituem na verdade ‘macro-
Imagens (entendida como história das imagens visuais obtidas a campos’, ou tornaram-se ‘macro-campos’ devido à atenção que
partir de fontes iconográficas, fotográficas, etc) é quase que um lhes prestaram os historiadores e outros pensadores.
anexo da História do Imaginário. Mas, bem entendido, uma série As dimensões, deve-se ter percebido, são sempre macro-
de imagens visuais tomadas como fontes históricas sempre poderá campos capazes de se desdobrar em ambientes internos, de produzir
dar a perceber qualquer das dimensões que discutimos atrás, como interfaces mais diversificadas, e de darem margem a um número
a História Econômica, a História Política, a Geo-História ou a significativo de obras historiográficas. Já os domínios correspondem
História da Cultura Material. Pense-se em uma iluminura de Livro a caminhos ou campos temáticos definidos pelas preocupações
de Oras, da qual o historiador lança mão para perceber aspectos dos historiadores com relação a determinados âmbitos humanos,
da economia rural no ocidente medieval, as suas representações ambientes sociais ou agentes históricos específicos. Assim, se de
políticas, as relações do homem medieval com o seu meio natural um lado podemos falar de domínios históricos que se referem a
ou traços de sua cultura material; ou pense-se em uma pintura âmbitos (Arte, Religiosidade, Representações), de outro lado
impressionista utilizada para captar aspectos da História Social na existem outras categorias definidoras de domínios historiográficos
Belle Époque; ou ainda nas cerâmicas gregas utilizadas para que se referem a agentes históricos específicos (História da
levantar aspectos da História Política da Atenas da Antigüidade Mulher, História dos Excluídos), ou a determinados ambientes
Clássica.. Mas de uma maneira ou de outra, em todos estes casos sociais (História Rural, História Urbana). Naturalmente que, em
sempre estará ocorrendo um diálogo evidente da História do um caso ou outro, teremos domínios que se prestam a todos os
Imaginário com uma destas outras dimensões. De maneira análoga, enfoques (dimensões) possíveis – da História da Cultura Material
já a História do Cotidiano, ou a História da Vida Privada, abrem- à História das Mentalidades. Os ‘excluídos’ podem ser historiados
se a inúmeros campos de enfoques para além da História das com a atenção voltada para as Mentalidades, como fez Bronislaw
Mentalidades, como a História da Cultura Material, a História Social Geremek, com a atenção voltada para a Economia, como fez Kula,
a História Econômica ou a História Política (neste último caso, ou com a atenção voltada para a Cultura, como fez Thompson, ou
focando a questão dos micropoderes). Raciocínios similares podem com a atenção voltada para o Social, como fez Michel Mollat. A
ser encaminhados para outros domínios igualmente abertos, como História Urbana ou a História Rural podem ser avaliadas a partir
a História das Religiões ou a História da Sexualidade. de enfoques direcionados para cada uma das dimensões que já
Conforme estamos vendo, os domínios tendem a ser mencionamos antes, da Economia à Cultura e às Mentalidades –
englobados por uma dimensão (são poucos os casos) ou então afinal, estes domínios são rigorosamente ambientes menores dentro
partilhados preferencialmente por duas ou mais dimensões. Mas do mundo humano que não deixam de ser unidades totalizantes
é possível ainda que algum campo que hoje esteja sendo tratado (são mundos humanos específicos, que podem ser examinados na
como ‘domínio’, mas que possua uma abrangência em potencial, totalidade de seus aspectos).
possa vir a transformar-se futuramente em uma ‘dimensão’. A Vale lembrar também que existem os domínios que são
História da Sexualidade tem sido pouco estudada em relação à aparentemente sub-campos de um domínio maior. A História
importância da sexualidade para a vida humana na concretude das Doenças poderia ser inscrita em uma História do Corpo. A
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História da Prostituição poderia ser inserida na História dos do Grupo dos Annales, e que naquele momento principia a se
Excluídos (embora em alguns aspectos também possa ser mostrar claramente construída – ao lado da História Econômica
incluída na História da Sexualidade). A História da Criança, da – por oposição à História Política tradicional. Nesta esteira inicial,
maneira como têm funcionado até hoje as nossas instituições houve quem direcionasse a expressão “História Social” para uma
familiares, poderá ser inscrita sem maiores dificuldades em uma história das grandes massas ou para uma história dos grupos sociais
História da Família. Tudo isto, por outro lado, ficará bem se de várias espécies (em contraste com a biografia dos grandes
englobado por uma História da Vida Privada. homens e com a História das Instituições a que tinha sido tão
Para além disto, são inúmeros os domínios que se enquadram afeita a historiografia do século anterior).
opcionalmente como sub-campos em mais de um domínio mais Também é evidente que a historiografia marxista da mesma
abrangente, ou que se localizam nos interstícios situados entre dois época – seguindo os princípios norteadores que já no século XIX
ou mais outros domínios. A História da Medicina, enquadrar-se-á haviam sido indicados por Marx e Engels com vistas a uma nova
na História das Ciências, na História dos Sistemas de Pensamento filosofia da história – direcionava-se na mesma época para a
ou dos sistemas repressivos (como propôs Michel Foucault) ... elaboração de uma história preocupada com a conjunção dos
estará em afinidade com os já mencionados domínios da História aspectos econômicos e dos aspectos sociais. O que haveria de
das Doenças ou da História do Corpo? Incluirá como subconjunto relevante a ser estudado não era certamente a história dos grandes
a História da Clínica? Temos nestes e em tantos outros casos um homens, ou mesmo a história política dos grandes estados e das
entrelaçado de domínios históricos, abrindo espaços por dentro do instituições, mas sim a historia dos ‘modos de produção’ – isto é,
labirinto do saber historiográfico. das bases econômicas e sociais que determinariam toda a vida
Para retornar, em seguida, a nossas reflexões mais social – e também a história das ‘lutas de classes’, isto é, das
específicas sobre a História Social, deixaremos estabelecidos estes relações entre os diversos grupos sociais presentes em uma
três grupos de critérios capazes de presidir a divisão da História sociedade particularmente nas suas situações de conflito.
em espaços interdisciplinares: dimensões, abordagens e A delimitação de um novo campo a ser chamado de “história
domínios. Diante destas três grandes ordens de critérios, tal como social” surge portanto sob a forte influência destes dois campos
já se disse, a História Social deverá ser mais adequadamente de motivação que passaram a exercer profunda influência no seio
classificada como uma dimensão historiográfica. Neste ponto, da historiografia da primeira metade do século XX. De um lado
retomaremos a reflexão sobre os diversos sentidos que têm sido vinham os ataques desfechados pelo grupo dos Annales contra
atribuídos à História Social, e sobre a seu enquadramento como aquilo que consideravam uma “velha história política”, de outro
campo histórico específico a partir dos critérios atrás arrolados lado começavam a surgir as primeiras grandes obras da
historiografia marxista, que cumpriam fielmente um programa de
. filosofia da história voltado para o econômico e para o social tal
2. A História Social como campo histórico relacionado a uma como havia sido proposto pelos fundadores do materialismo
dimensão da vida social histórico a partir de meados do século XIX.
A História Social, enfim, surgia no cenário historiográfico
Antes de mais nada, para retornar aos primeiros usos da como campo relevante e definitivo a se estabelecer no âmbito das
expressão “história social” na historiografia moderna, podemos modalidades historiográficas que devem ser definidas pelas
fixar a História Social como modalidade que começa a aparecer dimensões que são trazidas à tona quando o historiador se põe a
de maneira auto-referenciada por ocasião do surgimento na França examinar um processo histórico qualquer. Considerando aquilo que
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é colocado em evidência em uma determinada análise 3. Os diversos âmbitos da História Social
historiográfica – a Política, a Cultura, a Economia, as relações
sociais – poderíamos ter respectivamente uma História Política, Se investirmos na idéia de que a História Social é uma sub-
uma História Cultural, uma História Econômica, uma História especialidade entre as outras (o que parece ter sido a proposta da
Social, entre outras possibilidades. Escola dos Annales nos seus primórdios ao introduzir esta categoria
Tal como foi explicitado atrás, esta clara tendência da no título de sua revista), veremos que começam a se destacar
historiografia contemporânea a constituir e perceber a história social certos objetos mais evidentes: os modos e mecanismos de organização
como campo relacionado a uma dimensão social específica liga- social, as classes sociais e outros tipos de agrupamentos, as relações
se ao fato de que, na primeira metade do século XX, os novos sociais (entre estes grupos e entre os indivíduos no seu interior), e
historiadores passam a opor um novo campo de interesses e por fim os processos de transformação da sociedade.
enfoques à História Política do século XIX, o que de certo modo O Quadro abaixo busca reunir alguns dos objetos e âmbitos
produzia uma aliança entre a História Social e a História Econômica que poderiam ser pretensamente visados por uma sub-especialidade
na luta pelo estabelecimento de uma historiografia inteiramente chamada História Social. Este esquema complexo foi construído
nova no que se refere aos fazeres historiográficos do século rastreando os objetos mais específicos que têm sido trabalhados
anterior. À História Social e à História Econômica – como campos por alguns dos mais conhecidos historiadores que se autodefinem
inauguradores de um novo fazer historiográfico – logo se juntariam como inscritos na categoria História Social. Pode-se perceber que
a História Demográfica, a História Cultural, a História das a maioria dos campos de interesse que ali foram assinalados
Mentalidades, a História do Imaginário, e também uma nova correspondem a ‘recortes humanos’ (as classes e grupos sociais,
História Política, não mais preocupada apenas com o poder as células familiares), ou a ‘recortes de relações humanas’ (os
institucional mas sim com todas as formas de poder que circulam modos de organização da sociedade, os sistemas que estruturam
em qualquer sociedade, inclusive os micropoderes que afetam a as diferenças e desigualdades, as formas de sociabilidade). Em
vida cotidiana e as relações familiares. O quadro das dimensões um caso, estudam-se fatias da sociedade (ou os subconjuntos
historiográficas, portanto, multidiversificava-se – e é neste contexto internos à sociedade); em outro caso, estudam-se elementos
que pode ser definido um primeiro sentido para a História Social específicos e transversais que parecem atravessar a sociedade
como uma instância historiográfica específica, no mesmo nível por inteiro (os mecanismos de organização social e os sistemas de
da História Política e da História da Cultura, apenas para dar exclusão, por exemplo, atravessam a sociedade como um todo)6 .
dois exemplos. Para além dos subcampos citados no parágrafo anterior,
Por outro lado, outra indagação que surge nos dias de hoje, indicamos ainda uma categoria que é obviamente uma das mais
quando a expressão “história social” já multiplicou os seus sentidos importantes para a História Social: a dos ‘processos’
e as suas aberturas de significados, é se a História Social deve ser (industrialização, modernização, colonização, ou quaisquer outros,
considerada uma especialidade, com objetos próprios e definidos, inclusive as revoluções, que aparecem incluídas na rubrica
ou se o “social” que ao seu nome se agrega como adjetivo acaba ‘movimentos sociais’). É muito importante indicar que a História
de um modo ou de outro por fazer coincidir o seu circuito de Social também estuda estes ‘processos’, e não apenas modos de
interesses com a sociedade – o que faria da História Social uma organização ou estruturas, pois caso contrário a História Social
espécie de categoria transcendente que acaba perpassando ou poderia ser vista como uma História estática, e não dinâmica.
mesmo englobando todas as outras especialidades da História. Voltemos por ora aos objetos da História Social que
coincidem com subconjuntos da sociedade (grupos e classes
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sociais, categorias de excluídos, células familiares). Quando o específico da sociedade. Em contraste com este tipo de enfoque,
historiador volta-se para o exame destes grupos humanos existem duas das divisões ou subconjuntos possíveis que perdem
específicos no interior de uma sociedade, ou então para as relações o seu caráter mais específico por se autoconstituírem de certo
conflituosas e interativas entre alguns destes grupos, seu interesse modo em totalidades : o estudo das ‘comunidades’ (rurais e urbanas)
poderá se voltar tanto para a elaboração de um retrato sintetizado e o estudo das ‘populações’ como um todo. Ou seja, em um caso
destes grupos sociais e de suas relações, como para a incidência dois subconjuntos que se complementam e que dividem a sociedade
de questões transversais nestes grupos. Como uma certa classe na dicotomia ‘rural / urbano’, e no outro caso um subconjunto que
ou grupo se comporta diante de determinada conjuntura política coincide com o conjunto universo da sociedade, e que chamamos
ou econômica? Como reage a uma determinada crise política, ou de ‘população’. Estes dois campos são os únicos que estão
a uma determinada crise econômica? Como reage um grupo, por especificamente ligados a uma outra acepção da História Social
exemplo, às flutuações de preços? Como repercutem certas que discutiremos a seguir.
mudanças políticas na vida social de um grupo?
Embora as questões acima colocadas refiram-se
alternadamente aos âmbitos político ou econômico, elas podem 4. História Social como “história totalizante”
ser trabalhadas socialmente pelos historiadores. Dito de outra
forma, existe um modo específico como a História Social encara Se a História Social foi se constituindo desde o princípio
os fatos políticos e econômicos. As repercussões sociais dos fatos como uma sub-especialidade da História, direcionada para objetos
políticos e econômicos, seja nos grupos específicos ou em um bem específicos e que se distinguiam dos objetos das outras
conjunto mais amplo, devem ser também objetos privilegiados modalidades da história, por outro lado a noção de “História Social”
para os historia-dores sociais. Isto nos leva àquela questão também começou a ser vinculada por alguns pensadores e
inicial, à qual ainda voltaremos outras vezes: não existem fatos historiadores a uma “história total”, encarregada de realizar uma
políticos, econômicos ou sociais isolados. Não é o tipo de fato – grande síntese da diversidade de dimensões e enfoques pertinentes
político, econômico, social ou cultural por definição – o que define ao estudo de uma determinada comunidade ou formação social.
uma sub-especialidade da História, mas sim o enfoque que o Portanto, estaria a cargo da História Social criar as devidas
historiador dá a cada um destes tipos de fatos. Um historiador conexões entre os campos político, econômico, mental e outros –
econômico pode dar um destino a determinados fatos econômicos o que implica que nesta acepção a História Social deixa de ser
(ao elaborar, por exemplo, um estudo dos ciclos econômicos no uma modalidade mais específica, como qualquer outra, para se
decurso de algumas décadas), e um historiador social um outro – tornar o campo histórico mais abrangente que se abriria à
pois este último estará mais preocupado em perceber como estas possibilidade da mediação ou da síntese ... História Social como
variações conjunturais afetam diferentemente os vários grupos História da Sociedade ...
sociais, que alterações elas provocam nas relações entre estes Na verdade, esta última acepção foi adotada ainda pela
grupos, e assim por diante. Escola dos Annales, mas a partir da década de 1940, de modo que
Ainda com relação à possibilidade de examinar no interior acaba se contrapondo àquela primeira acepção que procurava fixar
de uma sociedade certos recortes humanos, uma outra observação a História Social como especialidade. Em uma conferência de
deve ser feita. Vimos que a História Social pode dirigir sua atenção 1941, mais tarde publicada em Combates pela História [1942],
para uma classe social, para uma minoria, para um grupo Lucien Febvre chega a afirmar que “não há história econômica e
profissional, para a célula familiar – ou seja, para um subconjunto social; há somente história, em sua unidade” (Febvre, 1992: p.45).
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Trata-se portanto de um programa que assume a perspectiva da um lugar específico como sub-especialidade ao lado da História
História Total, ou da “História-Síntese”, que tão bem caracteriza Econômica, da História Política, da História Cultural e de todas as
a segunda fase dos Annales – sobretudo com as monumentais outras. Rigorosamente, depois da crise da História Total (esperança
obras de Fernando Braudel sobre O Mediterrâneo e sobre a de abarcar todos os aspectos de uma sociedade em uma grande
Civilização Material do Capitalismo (Braudel, 1997 e 1984). síntese coerente) esta designação mais específica ganhou até mais
Muitos historiadores passaram a entender História Social, a partir força, sobretudo a partir da década de 1960. De qualquer modo, a
de então, com este sentido mais abrangente (se existem fatos noção de História Social continuou sempre aberta a muitas
econômicos ou fatos políticos propriamente ditos, não existiriam possibilidades de sentidos.
rigorosamente os fatos sociais, ou melhor, todos os fatos seriam Os meios acadêmicos na Europa e nas Américas vieram
sociais, uma vez que estariam ocorrendo no interior da sociedade trazer a partir da institucionalização de seus programas de pós-
a partir dos relacionamentos dos homens e dos grupos de homens graduação uma contribuição para os usos amplificados da
uns com os outros). expressão “História Social”. Nestes meios ligados à Pesquisa que
A idéia de uma História Social que tem a seu cargo a tarefa vem sendo desenvolvida nas Universidades, esta designação tem
de promover uma síntese de aspectos relacionados a várias sido muito utilizada no seu sentido mais abrangente, conseguindo
dimensões ou domínios historiográficos é também expressa por assim enquadrar em um mesmo plano de coerência uma quantidade
Georges Duby em um texto de 1971 (1971: p.1-13): multidiversificada de pesquisas. Em certo sentido, argumenta-se
Que ela [a História Social] deixe de se considerar que toda a História que hoje se escreve é de algum modo uma
entretanto a seguidora de uma história da civilização História Social – mesmo que direcionada para as dimensões
material, de uma história do poder, ou de uma história política, econômica ou cultural.
das mentalidades. Sua vocação própria é a da síntese. De fato, é possível incorporar uma preocupação social a
Cumpre-lhe recolher todos os resultados das pesquisas cada uma das demais dimensões antes citadas como sub-
efetuadas, simultaneamente, em todos estes domínios especialidades da História, e também às várias abordagens e domínios
 e reuni-los na unidade de uma visão global que veremos a seguir. Assim, vimos que a Demografia Histórica pode
reduzir-se a um mero censo retrospectivo por historiadores
Aqui, uma nova noção da História Social fazia a sua entrada descritivos e não-problematizadores, ou que ela pode se transformar
na história do pensamento historiográfico. Esta nova noção de em uma verdadeira Demografia Social quando superamos a mera
História Social, voltada para a idéia de uma totalidade de aspectos, enunciação do número em favor do tratamento problematizado
podia ser aplicada tanto ao estudo de uma sociedade inteira, como dos índices populacionais. Vimos que a História da Cultura Material
para o estudo de comunidades tomadas como centros de referência, pode ser reduzida à mera descrição de objetos, o que seria
como as comunidades rurais e urbanas que começaram a ser questionável, ou que ela pode enveredar por uma recolocação destes
examinadas pelos historiadores associados à História Regional. objetos nos usos sociais que eles teriam na época e na sociedade em
Em um caso ou outro, a História Social não apresenta mais objetos que foram produzidos (neste caso, poder-se-ia dizer que
específicos dentro da História: seu interesse é a sociedade como empreendemos uma espécie de História Social da Cultura Material).
um todo (esteja ela estudando um país, uma grande região como o Qualquer informação historicizada pode ser tratada
Mediterrâneo, uma cidade ou uma aldeia). socialmente, é correto dizer. Mas é também verdade que nem
Mas a verdade é que a designação anterior continuou toda História é necessariamente social. Se é possível elaborar
existindo paralelamente, de modo que a História Social assumiu uma História Social das Idéias ou uma História Social da Arte,
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é possível também elaborar uma História das Idéias ou uma processos – e não apenas como descrições de estruturas perfeitas
História da Arte que se restrinjam a discutir obras do pensamento como se fossem relógios, mas abstraídas de realidade humana.
ou da criação artística sem reestruturá-las dentro do seu ambiente Afirma-se também, mais do que nunca, uma História Social
social mais amplo. Basta percorrer os olhos por uma prateleira que estabelece interfaces com os outros campos da própria história,
livresca de História da Arte ou de História da Literatura para ou também com outros circuitos interdisciplinares. Se voltarmos
encontrarmos pilhas destas obras em que são descritos os estilos ao Quadro atrás exposto, que pretende ser apenas um esboço de
artísticos, ou até mesmo que oferecem uma sucessão cronológica possibilidades, e não mais que isto, veremos ali que os vários objetos
de descrições das vidas dos principais artistas e literatos, de modo possíveis a uma História Social (definida como sub-especialidade
que estas histórias da arte e histórias da literatura acabam se que traz as suas próprias idiossincrasias) localizam-se habitualmente
tornando um somatório de pequenas biografias de artistas na fronteira com outros campos.
importantes mais ou menos encadeadas segundo critérios Posso trabalhar um grupo étnico segregado em uma dada
cronológicos ou agrupadas conforme os seus pertencimentos realidade urbana do ponto de vista de uma História Social ou do
estilísticos. Por isto, encontra-se quem fale em uma História da ponto de vista de uma Etno-História. Ou posso trabalhá-lo do ponto
Cultura, preocupada em descrever produções culturais de vários de vista de uma interconexão de História Social e Etno-História.
tipos, mas contrastando-a com a História Cultural propriamente Os movimentos sociais, por exemplo, dificilmente podem ser
dita, que tem incorporado tradicionalmente uma preocupação social trabalhados fora de uma conexão entre o Social e o Político (e
muito definida (neste caso, uma História Social da Cultura) 7 . que, possivelmente, incluirá ainda o Econômico). Já um processo
Com base em alguns exemplos conhecidos de obras como o da ‘industrialização’ pode receber um enfoque social, ou
produzidas com pretensas preocupações historiográficas (mas um enfoque mais propriamente econômico (ou o duplo enfoque,
certamente alicerçadas em uma outra noção de historiografia), que é sempre uma boa alternativa). De igual modo, a célula familiar
pode ser questionada aquela idéia de que “toda história é social”. pode ser examinada por um viés social ou por um viés de antropolo-
É social, poderemos corrigir, se o historiador tiver efetivamente gia histórica. O Cotidiano de certa comunidade ou grupo social
preocupações sociais na sua maneira de examinar o passado. pode ser avaliado do ponto de vista de uma História da Cultura
Com relação aos já mencionados objetos da História Social Material, pronta a recuperar os seus bens materiais e os seus usos
(seja enquanto especialidade particular, seja no sentido totalizador), (sociais), ou pode ser avaliado mais propriamente de uma perspec-
convém lembrar que tem se apresentado nas últimas décadas uma tiva da História Social, manifestando-se a preocupação em recupe-
tendência cada vez maior para o exame da sociedade em toda a rar as formas de sociabilidade, os conflitos entre os indivíduos
sua complexidade, superando o manejo de categorias sociais pertencentes aos vários grupos sociais, os entrechoques ideológicos,
estereotipadas e de dicotomias generalizadoras. e toda uma rede de aspectos que constitui inegavelmente um
Nunca é demais nos referimos às conhecidas preocupações território mais definido da sub-especialidade História Social.
de Edward Thompson – historiador inglês que trabalha na
interconexão de uma História Social com uma História Cultural – em
denunciar aquelas abstrações desencarnadas relacionadas ao 5. As fontes e abordagens relacionadas à História Social
conceito de “classe social” (Thompson, 1987). Thompson é um
dos autores que melhor representam esta tendência da História Social Com relação às conexões da História Social com as
que gradualmente se afirma em direção à complexidade e ao ‘abordagens’ – isto é, com os sub-campos da historiografia que se
tratamento das sociedades como realidades dinâmicas e vivas – como referem a métodos e fazeres históricos – elas podem se estabelecer
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tanto no nível dos tratamentos qualitativos, como no nível dos registrar rigorosamente os dados de sua vida cotidiana com o fito
tratamentos quantitativos. Da mesma forma, a História Social pode de perceber qualquer indício de comportamento anormal ou
ser elaborada tanto do ponto de vista de uma Macro-História, que mentalidade herética.
examina de um lugar mais distanciado aspectos como os É bastante irônico. Os indivíduos pertencentes às classes
movimentos sociais ou como a estratificação social de uma sociais privilegiadas dão-se a conhecer através dos mais
determinada realidade humana, como pode ser elaborada do ponto diversificados tipos de fontes à disposição dos historiadores – na
de vista de uma Micro-História, que se aproxima para enxergar documentação política, falam através dos deputados e governantes
de perto o cotidiano, as trajetórias individuais, as práticas que só que os representam; nas notícias de jornais, pode-se até mesmo
são percebidas quando é examinado um determinado tipo de percebê-los em flashes de sua vida privada nas colunas sociais;
documentação em detalhe (por exemplo os inquéritos policiais, os na arte letrada, iremos encontrá-los como sujeitos produtores de
documentos da Inquisição, mas também determinadas produções discurso ou como referentes dos discursos aí produzidos. Já ao
culturais do âmbito popular onde transpareçam elementos da vida pobre, e mais ainda ao excluído, só é dada uma voz quando ele
cotidiana, das relações familiares, e assim por diante). As diferenças comete um crime (ou quando é acusado de um). Os registros
entre Macro-História e Micro-História ficarão mais claras no item repressivos são paradoxalmente os espaços documentais mais
relativo a este último tipo de abordagem. “democráticos” – aqueles onde os historiadores poderão encontrar
Não há limitações com relação ao que pode ser tomado literalmente as vozes de todas as classes, mas sobretudo as dos
como ‘fonte’ para a História Social. É possível encontrá-las tanto indivíduos pertencentes aos grupos sociais menos privilegiados do
na documentação de origem privada como na documentação oficial, ponto de vista político e econômico. É só quando comete um crime
por assim dizer. O que estamos chamando de documentação que o homem pobre adquire uma identidade para a História!
privada são aquelas fontes produzidas ao nível das vidas individuais: Existem também, é certo, fontes oriundas da cultura popular.
os relatos de viagem, os diários pessoais, correspondências entre Mas este tipo de fonte é mais propriamente relacionado com a
particulares (sejam indivíduos ilustres, ou não). Documentação História Cultural, como já vimos anteriormente. Também não deve
oficial ou pública existe de todos os tipos: desde aquelas que ser desprezada a grande literatura. A leitura atenta da Comédia
oferecem dados massivos sobre uma sociedade – como os Humana de Balzac não é irrelevante para a compreensão da
inventários e registros fiscais, censitários, testamentários, cartoriais, transição para o Capitalismo moderno, e a mesma recomendação
e paroquiais – até aquelas mais pontuais, referentes a situações de atentar para a importância da literatura como fonte para este
específicas. Por exemplo, um material muito rico do tipo que período pode ser feita em relação às obras de Victor Hugo. A
estamos caracterizando como pontual encontra-se nos arquivos partir do momento em que a perspectiva realista abriu-se como
judiciais e policiais (ou seja, na documentação oriunda dos sistemas uma possibilidade para os produtores de obras associadas à cultura
repressivos). Os historiadores sociais da atualidade têm letrada (literatura, mas também artes visuais), o homem comum
precisamente prestado muita atenção a um vasto manancial de também começou a chegar aos historiadores através destas fontes,
fontes que por muito tempo foi esquecido: os registros de polícia, embora elas sempre requeiram o cuidado de serem trabalhadas com
os processos criminais – incluindo os depoimentos, as confissões a consciência de que, nestes casos, o homem pertencente aos
e as sentenças proferidas sobre determinado caso – ou ainda, extratos sociais menos privilegiados só recebe a sua voz ou a sua
para os primeiros séculos da Idade Moderna, os processos da transparência através de um filtro, que é a sensibilidade do escritor
Santa Inquisição, que costumavam rastrear obsessivamente a vida ou do pintor pertencente a outro grupo social (fora, é claro, quando
dos indivíduos investigados, anotar a sua fala nos mínimos detalhes, o próprio artista é oriundo do grupo social que pretende retratar).
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Voltemos às fontes de História Social que chegam aos ocupam uma fazenda, ou quando em protesto eles adentram um
historiadores através da violência. Além da violência individual, espaço que para eles não estaria previsto – como um shopping
que aparece através do crime, existe ainda a violência coletiva, center – neste momento eles se transformam em atores sociais
onde a massa anônima deixa suas marcas e conquista também a mais definidos e ganham espaço nas notícias de jornal e outras
sua voz através de explosões de revolta que podem ficar registradas mídias. Quando a massa excitada derruba uma bastilha, entra
nas notícias de jornais, ou então nas descrições dos cronistas para subitamente na História não como uma estatística, mas como sujeito
os períodos mais antigos. As revoluções e os processos de coletivo que realiza um ato, que produz ou se incorpora a um
transformação social, conforme já observou Thompson muito bem, movimento social. Os camponeses medievais, de modo similar,
são momentos privilegiados para a percepção das identidades de chegam aos historiadores como um número incorporado à terra
classe, inclusive as relativas aos grupos sociais menos privilegiados. através dos contratos celebrados entre um suserano e um vassalo,
São nestes momentos que as massas tornam-se visíveis, exprimindo- ou através de um testamento que os passa adiante para os herdeiros
se através dos gestos do “protesto” (sejam protestos espontâneos, de um feudo. Mas quando produzirem uma Jacquerie serão
sejam os movimentos organizados, como as greves) ou da violência registrados pela primeira vez por algo que fizeram, e não por algo
coletiva, que podem produzir desde badernas e motins até que fizeram a eles.
revoluções com repercussões sociais definitivas. São também São os grandes momentos de protesto ou de violência coletiva
nestes momentos que, eventualmente, emergem as lideranças que tornam visíveis as massas, e os pequenos momentos de crimes
populares – por vezes deixando suas vozes registradas em panfletos individuais que dão visibilidade ao homem comum. Por isto o
e em discursos que foram recolhidos pela imprensa ou pelos historiador acaba chegando às massas e aos indivíduos menos
cronistas de uma época. favorecidos através da violência. São as fontes que expressam os
No dia a dia, as massas populares são informes: executam vários tipos de violência (ou que registram a repressão a esta
como que emudecidas as tarefas que lhes permitirão assegurar a violência) aquelas que permitirão a este historiador examinar as
sua sobrevivência diária. A História conhece os camponeses do relações de classe, as suas expectativas, o seu cotidiano. É aliás
final da Idade Média, os operários urbanos das sociedades curioso observar que, quando o criminoso escapa à repressão, ele
industriais, os escravos do Brasil Colonial ... sempre através dos perde-se para a História.
registros massivos, que anotarão as datas de seus nascimentos, o Na verdade, as fontes de natureza repressiva – como os
número de filhos, a morte, a ocupação, e as modalidades de processos criminais ou os registros inquisitoriais – constituem
pertencimento (a um senhorio na Idade Média ou a uma indústria registros múltiplos, polifônicos por excelência. A própria diversidade
no mundo capitalista). Nestes momentos, as massas falam à social pode estar presente em um processo judicial ou inquiridor –
História através de números que registram a sua laboriosa e sofrida afinal, o modo como devem ser organizados os processos,
passividade. Mas quando ocorre um motim, uma insurreição, um entrecruzando indivíduos dos mais diversos tipos, acaba conferindo
protesto público, pela primeira vez a massa de despossuídos será a este tipo de fontes uma posição muito rica no repertório de
ouvida não através da passividade dos números silenciosos, e sim documentos à disposição de um historiador social. São fontes que
através dos gestos violentos e ruidosos. habitualmente envolvem um foco representando o sistema
Os sem-terra8 , por exemplo, são habitualmente encontrados repressivo (não raro expressando contradições internas que podem
pelos historiadores que examinam a História contemporânea do aparecer sob a forma de conflitos de autoridade) e um universo
Brasil nos documentos do censo, que os registram como multifocal que passa por um vasto número de depoentes e de
camponeses despossuídos e desempregados. Mas quando eles testemunhas, até chegar ao criminoso ou ao inquirido.
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5
É mais raro que a História Social, pelo menos no que se BARROS, José D’Assunção O Campo da História – Especialidades
refere a períodos mais recuados, vá encontrar fontes relativas aos e Abordagens, Petrópolis: Vozes, 2005.
grupos menos favorecidos na ‘documentação privada’ (diários, 6
Por exemplo, a ideologia das Três Ordens atravessava as sociedades
livros de memória, relatos de viagem, correspondência) porque medievais, e no mundo que era organizado por ela os três grupos
estes tipos de textos nem sempre são conservados depois que os típicos (camponeses, guerreiros e clérigos) encontravam cada qual
seus autores desaparecem. Mas, na medida em que avança para o seu papel social. Da mesma forma, o sistema de exclusões do
classes mais favorecidas, o historiador já começa a dispor deste Nazismo incidia transversalmente sobre a sociedade alemã das
tipo de documentação. décadas de 1930 e 1940, colocando de um lado os cidadãos e de
As fontes da História Social, enfim, são de inúmeras outro os excluídos (judeus, eslavos, estrangeiros, etc...).
modalidades. Sua escolha, naturalmente, será orientada pelo 7
Robert DARNTON distingue uma “história das idéias” voltada para
problema histórico a ser definido e investigado pelo historiador. o estudo do pensamento sistemático, geralmente em tratados
Conforme vimos – seja no que se refere a seus campos de filosóficos; uma “história intelectual” que se ocuparia do estudo do
interesse e objetos privilegiados, seja no que se refere a seus pensamento informal, dos climas de opinião e dos movimentos
métodos mais recorrentes e fontes historiográficas disponíveis – a literários; uma “história social das idéias”, que se voltaria para o
História Social mostra-se ao historiador contemporâneo como um estudo das ideologias e da difusão das idéias; e uma “história cultural”
campo aberto a inúmeras possibilidades. Um de seus traços que se ocuparia do estudo da cultura no sentido antropológico
centrais, certamente, continuará para o futuro a referir-se ao (DARNTON, Robert. “História Intelectual e Cultural” In O Beijo de
intenso diálogo com todas as Ciências Sociais, o que tem permitido Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.175-197).
8
precisamente essa maior amplitude de objetos e o tratamento de Movimento social de homens do campo não-proprietários de terra
uma maior variedade de tipos de fontes a partir de metodologias que fortaleceu-se no Brasil na última década, clamando por reformas
que a História pôde apreender de diversificados campos do saber sociais direcionadas para a Reforma Agrária.
como a Sociologia, a Antropologia, a Lingüística, a Semiótica.

NOTAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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220 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 221
CONSTRUINDO POLÍTICAS PÚBLICAS: CULTURA E
PATRIMONIO CULTURAL**

DÉA RIBEIRO FENELON*

Resumo

O tema central do texto é sobre as atuações do


Estado e da sociedade na construção das políticas
públicas de cultura.

Palavras chaves: Cultura, Políticas Públicas e Estado

Abstract

The central subject of the text is on the


performances of the State and the society in the
construction of the public politics of culture.

Key Words: Culture, Politics and State

*Dea Fenelon é Doutora em História pela Universidade Federal de


Minas Gerais. Professora do programa de pós-graduação da Unicamp
e PUC/São Paulo e ex-diretora do Departamento de Patrimônio
Histórico do Município de São Paulo, na gestão Luíza Erundina
(1988-1992). Entre livros publicados, contam-se Cidades - Coleção
Pesquisa em História. (São Paulo: Olho D Água, 1999) e 50 Textos
de Historia do Brasil (Sao Paulo: Hucitec, 1979).
**Conferencia Municipal de Cultura promovida pela Fundação de
Cultura, Esporte e Turismo (Funcet), realizada em Fortaleza/CE em
14 e 15 de outubro de 2005.

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Em primeiro lugar quero agradecer ao convite dos dirigentes, Comecemos por identificar e discutir concepções de cultura
profissionais e delegados que aqui se encontram, para participar com as quais se trabalha esclarecendo as nossas para podermos
desta Conferência Municipal de Cultura discutindo e elaborando estabelecer uma linguagem e um conteúdo comuns, em nossas
sobre tema que tanto me interessa. Sobre ele tive oportunidade de tentativas de construir políticas públicas nesta área.Considero muito
trabalhar por algum tempo, não apenas na dimensão acadêmica, importante esta discussão para que não avancemos sem o
mas como gestora de políticas públicas.Na verdade como muitos necessário esclarecimento sobre o significado que atribuímos e
sabem participei, durante os anos de l989/1992 do Governo com o qual trabalhamos quando falamos de cultura, políticas
Democrático Popular de Luiza Erundina, como prefeita da cidade culturais, memória, patrimônio.
de São Paulo, pelo Partido dos Trabalhadores. Trabalhei na Podemos iniciar reconhecendo que há algum tempo os
Secretaria Municipal de Cultura, que teve como titular a Professora cientistas sociais, dirigentes governamentais ou aqueles que
Marilena Chauí. Neste período dirigi o Departamento De Patrimônio participam da vida cultural têm se apropriado do conceito ou
Histórico (DPH), de SMC e nesta condição presidi o CONPRESP - categoria “cultura” das mais diversas formas, resultando em
Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural de São diferentes abordagens, conforme as definições com que se trabalha.
Paulo.Desde então não me afastei mais das preocupações com a Isto nos remete à necessidade de estar mais atento às diferentes
cultura e as políticas públicas sobre ela, mesmo que não falas ou posições, pois sempre se está expressando um ponto de
participando diretamente de qualquer ação governamental. vista. Quero destacar primeiro, que há inúmeras maneiras de se
Digo isto com bastante satisfação é certo, mas muito mais conceber o termo e em segundo lugar que se está pensando este
para assinalar que se a minha fala é a de historiadora, não se trata conhecimento como socialmente produzido, isto é, que ele exprime
de uma fala profissional, apenas acadêmica, como, aliás, também as posições sociais ou representa o lugar social de onde fala o
não é a de muitos que participam desta programação e têm autor e por isto torna-se necessário atentar para as diversas formas
experiências diversas em órgãos governamentais e no trabalho de compreendê-lo. É bem verdade que isto pode ocorrer com outras
cultural. Minhas reflexões, quero repetir, são de alguém que tentativas de abordagem do social, como acontece, por exemplo,
participou durante algum tempo, de elaboração de políticas publicas com os termos sociedade ou economia. Em se tratando da categoria
na área da cultura e teve que lidar especificamente com as questões “cultura” podemos mesmo chegar a falar de usos e abusos tal a
de Patrimônio Cultural e Histórico em uma cidade como São Paulo. variedade de utilizações empregadas e as disputas por tentar
Posso lhes garantir que esta experiência me foi muito valiosa em estabelecer como únicos pontos de vista polêmicos e discutíveis.
todas as dimensões nela envolvidas,principalmente pela Seria o que se entende e se fala tanto em construir a hegemonia.
oportunidade de enfrentar o desafio que sempre representou para Comecemos, pois, por afirmar que hoje não se admite mais
mim a prática do trabalho profissional, como historiadora, que na definições de cultura que se apresentem como “verdades”
realidade social se engaja politicamente como cidadã e tenta manter estabelecidas ou pensá-la como categoria cristalizada, estática e
sempre presente o compromisso com o seu tempo social. modelar. Devemos pensá-la sempre como elemento constitutivo
Estarei, então, todo o tempo, falando de questões de História, do social e por isto mesmo em constante movimento, em
de Cultura e de Memória, que em sua historicidade sempre estiveram transformação acompanhando os movimentos e as mudanças da
intimamente relacionadas não apenas ao ensino e à Pesquisa em História ou da sociedade em que ela está inserida. Daí não se
História, mas às questões da política cultural no tocante ao Patrimônio falar mais em cultura no singular, significando apenas um estado,
Cultural da Cidade e que acabam ganhando outras dimensões, um dado ou um fato, mas devermos considerá-la sempre como
quando pensadas em situações do exercício das políticas culturais. culturas no plural, pois hoje já se admite a diversidade, a pluralidade,
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a heterogeneidade, ou a multiplicidade cultural como características aceitar a idéia de aprendizagem, como característica humana, isto
do social, isto é, culturas como sendo atividades, realizações dos é, a capacidade de se tornar civilizado e dai abrindo-se espaço
homens em suas relações com a natureza, sempre reconhecidas para considerar a linguagem, a reflexão e a comunicação como
nestas diferenças e complexidades. partes deste processo. Havia também lugar para se falar em cultura
Originalmente cultura, como termo, designava o crescimento material compreendida como corpo de artefatos produzidos pelo
e o cuidado de colheitas ou animais, ou também o crescimento e o homem em suas relações com a natureza, ou seja, aquilo que o homem
cuidado das faculdades humanas. Até o século XVIII cultura ainda construiu ou transformou da natureza. Mas ainda assim como um
designava processos objetivos: a cultura de alguma coisa, plantas, processo externo à experiência histórica de assimilar a cultura.
animais, mentes. Por isto mesmo devemos nos lembrar de que as Na segunda metade do século XIX predominava a idéia
transformações dos chamados tempos modernos foram também de cultura como um processo íntimo que dizia respeito aos
moldando novas necessidades de compreensão da realidade e daí indivíduos e se relacionava às artes, à religião, à família, à vida
que sociedade, economia, política, cultura passaram a estar pessoal. Sociedade e civilização apareciam como dimensões
intimamente relacionadas a um novo conceito, o de civilização separadas. A partir desta separação começaram a surgir várias
que, significando ordem, cortesia, preparo e educação se tentativas de classificação geral da cultura em artes, religiões,
contrapunha à barbárie e designava um estado realizado, que práticas e instituições com diferentes significados e valores. A
pressupunha desenvolvimento, processo histórico e, sobretudo maneira de identificá-los era sempre a descrição e as diversas
progresso. Esta conceituação ou esta maneira de tratar cultura e tipologias criadas para ordenar e sistematizar a compreensão
civilização como sinônimos, muito própria dos começos da e a classificação das culturas, surgindo daí várias teorias
antropologia, a disciplina que mais se preocupava com estas antropológicas sobre a cultura.
questões, considerava a cultura como um conjunto complexo que Com esta compreensão de cultura foi possível o seu uso
incluía o saber, as crenças, a arte, a moral, o direito, o costume e como testemunho histórico capaz de estabelecer as diferenças
todos os demais hábitos adquiridos pelo homem enquanto vivendo entre o “nós” e o “eles”. Para estabelecer as distinções de uma
em sociedade, o que de qualquer maneira representava uma cultura para outra se estabeleceram procedimentos de
diferença essencial no modo de compreender e analisar o social. reconhecimento das diferenças, pela comparação, sendo necessário
Apesar das dificuldades criadas com a identificação estreita para isto os chamados inventários culturais, ou seja, a listagem
de civilização e cultura como resultado de processos aprendidos das obras, dos traços, das crenças, dos mitos que acabavam por
através de educação, preparo, estudo ou processo de considerar tais elementos como estáticos, decompondo-se grupos
desenvolvimento e de progresso, significou um avanço na medida e tribos pelos traços identificados e fazendo parecer que tais grupos
em que se separava a cultura de simples pressupostos religiosos e ganhavam existência própria e em si mesma. Na maioria das vezes
metafísicos, para reforçar a idéia de que os homens podiam ao tentar explicações para semelhanças dos traços encontrados
conduzir sua própria história. Dessa forma, apontava a necessidade enveredou-se pela idéia simplificada das migrações ou do tráfico
de incorporar diferentes experiências a serem examinadas, ainda comercial no que se conceituou como difusionismo cultural.
que houvesse aí uma grande carga de elitismo quando se tentava Por outra vertente também se usou o conceito de cultura
qualificar estas experiências, hierarquizando o que significava como elemento de integração social, como manifestação da
avanço e atraso nestas experiências adquiridas e vivenciadas. capacidade de organizar um sistema de costumes, hábitos e valores,
Considerando a cultura como atributo ou processo íntimo, desprezando-se a necessidade da reconstituição histórica e
interiorizado como resultado da educação, passa a ser então possível trabalhando apenas com suas funções específicas.
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Ao reconhecer no estudo da cultura traços como dados Inegável, então, que somente a partir de meados do século
objetivos, foram propostos mapas e guias etnográficos suficientes XX, expande-se o conceito de cultura, não sem contestações e
para catalogar e classificar a população mundial, procedimentos debates. No geral passa a ser entendida como produção da
que, já no século XX, ganharam força com o uso crescente dos linguagem, da religião, dos instrumentos de trabalho, das formas
computadores e de novas tecnologias no trato de informação. de lazer, da música, da dança, dos sistemas e relações sociais e de
Para a teoria marxista, por exemplo, ao considerar poder. Nesse caso, a cultura passa a ser também o campo no qual
“civilização” como uma forma histórica específica – a sociedade a sociedade inteira participa elaborando seus símbolos e signos,
burguesa criada pelo capitalismo – logo se estabeleceu uma crítica suas práticas e seus valores, o que ainda constitui debate importante
severa, apontando-se a contradição entre a produção da riqueza, entre os antropólogos, levantando questões conceituais na
da ordem e do refinamento, e a pobreza, a desordem e a degradação teorização sobre cultura.
como partes de um mesmo processo. O resultado disso foi se Mesmo assim, trabalhando tão próximo da antropologia,
acentuar o caráter de artificialidade em contraste a uma ordem aceitando a ampliação do conceito, os historiadores passaram, de
natural. Combatendo a historiografia idealista contida nas uma certa maneira a lidar com o suposto de que os aspectos
interpretações de civilização e cultura, o marxismo, para recuperar culturais podiam ser reunidos em duas modalidades: as práticas e
a relação entre sociedade e natureza trouxe à tona a história as representações culturais. Pensar as práticas como a cultura
material do trabalho, da indústria, dos homens, sem considerar objetivada, enquanto conjunto de obras, realizações, instituições –
suas obras como relação exterior. Contudo, este tipo de análise inclusive usos e costumes – e as representações culturais como
criou novos impasses na medida em que procurou atender ao resultado de alguma ação (seja mental, espiritual ou ideológica)
racionalismo das chamadas leis científicas do conhecimento. Ao sobre o grupo humano até mesmo no aspecto coletivo, permitia
insistir nesta ênfase, reduziu o campo das idéias, crenças e valores descrições, narrações e levantamentos.
como determinadas pelas condições objetivas, ou seja, à vida Era então necessário junto com a idéia de não exclusividade
material básica, colocando a cultura como parte de uma suposta do antropólogo ou do historiador admitir também que a cultura não
superestrutura, o que acabou por reproduzir a antiga fórmula de está localizada fora da sociedade como um todo, como um campo
cultura e vida social material como dimensões separadas. das sete artes ou da abstração.
A partir de reformulações e de novas discussões sobre o Considerando, pois a cultura como “modos de vida global”,
que o historiador inglês THOMPSON considerou como que na concepção de THOMPSON, representa sempre uma luta
experiência, “termo ausente” em todo este debate, inúmeros de classe, porque pessoas experimentam suas vivências, situações
historiadores começaram a produzir diferentes versões e trabalhos e relações produtivas como necessidades e interesses, mas também
utilizando a categoria cultura. Apresentada como capaz de como antagonismos, tratam esta experiência em sua consciência
possibilitar a investigação de um modo de vida global o conceito e sua cultura das mais complexas maneiras. Os seres humanos
de cultura passou a ser compreendido como elemento não externo estão constantemente engajados em refletir sobre sua própria
à ordem social, mas ao contrário, como elemento importante na experiência, bem como a dos outros e assim cresce sua compreensão
sua constituição. Dessa forma, as práticas culturais podem ser da vida social, sua cultura enfim ainda que não apenas dela.
investigadas como “sistemas de significações” de maneira Podemos então compreender e falar de cultura como a
ampla, de modo a permitir a inclusão de todas as práticas e maneira dos homens desenvolverem suas práticas sociais refletindo
assim definir-se como um processo social constitutivo que cria seus modos de viver, de trabalhar, de morar, de morrer, de se divertir,
diferentes e específicos modos de vida. isto é, a cultura significando todas as dimensões da vida, valores,
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sentimentos, emoções, hábitos, costumes, além da promoção e o ditadura militar) esteve sempre a tentar produzir a identidade nacional,
desenvolvimento de instituições e iniciativas do cotidiano com todas seja o verdeamarelismo, o Brasil Grande, o carnaval ou o futebol.
as formas de expressão e organização e de luta no social. Já a tradição populista (anos 50 e inicio dos 60) se vê com a
Falar de cultura dessa forma significa ultrapassar a maneira missão pedagógica de educar as massas populares. Por isto precisa
de pensá-la como instância em separado, ou a superestrutura, ou se apropriar da cultura popular para transformá-la e devolvê-la
um nível distinto do social. Devemos pensá-la como categoria em verdadeira e ascética ao “povo”, de forma a que todas as
construção, que nos ajuda a problematizar o real e que só tem reconheçam nestes conteúdos ainda que transformados.
sentido se for pensada como referência para a atuação, em aberto, A tradição neoliberal que começa a criar raízes na década
sem modelos ou definições feitas a priori. de 80, tende a minimizar o papel do Estado no plano da cultura,
No Brasil a política cultural do Estado, como a de outras sugerindo a fórmula mágica da parceria com a iniciativa privada,
áreas, tem sido conceituada como o conjunto de princípios que na verdade acaba por se concretizar na compra de serviços
filosóficos, políticos e doutrinários que orientam a ação dos órgãos culturais oferecidos por empresas que concebem e administram a
governamentais, marcando sua intervenção nas mais diversas cultura a partir de critérios do mercado. Caracteriza-se pela
manifestações sociais a partir destes critérios. Cheia de discursos produção de “eventos” seguindo a moda e o já consagrado. De
sofisticados ou simplistas, manifestos vanguardistas, declarações algum modo, no que tange às nossas preocupações com o
de princípios nem sempre muito claras, ou às vezes de coerência Patrimônio Cultural enfatizou apenas o encargo estatal com o
duvidosa, como o plano de governo em que estão envolvidas, estas Patrimônio edificado, ainda ai buscando a parceria privada,
políticas caracterizam-se muito mais pela empiria, do que sobretudo no que significa de revitalização como potencial a ser
propriamente por uma linha ou um plano de ação. Digo isto, não explorado pelo turismo (ex. o Pelourinho e o bairro Recife).
apenas pelo conteúdo que expressam, mas muito mais pelas Inventando e reinventando as chamadas Leis de Incentivo Cultural
propostas que revelam e as prioridades orçamentárias que terminaram por burocratizar o apoio à cultura. Resta chamar a
conseguem nos referidos governos. De qualquer maneira sempre atenção sobre os efeitos da globalização sobre as concepções de
considerada como área de menor importância, nas disputas por política cultural, sobre as concepções neoliberais globalizadas e
verbas oficiais, ou pela atenção de Executivos e Legislativos, a sobre as quais falarei mais adiante.
Cultura, enquanto organismo de governo tem história bastante Acompanhemos, inicialmente um pouco desta relação
irregular e descontinua ao longo dos anos deste século XX e XXI. Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural e Memória e Historia,
Dentro destes marcos e seguindo Marilena Chauí, (CHAUI, na vida e nas ações de política cultural, do Brasil.
1990) pode-se identificar três tradições principais ao longo dos A criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
últimos anos, que conforme as diferentes conjunturas políticas e Nacional - SPHAN, em 1937/1938, pelo esforço e ação de
eleitorais predominaram como linha dos organismos governamentais intelectuais modernistas, paulistas e mineiros dentre os quais Mário
envolvidos com a Cultura. A primeira, a da cultura oficial produzida de Andrade correspondeu à intenção de “abrasileirar os brasileiros”
pelo Estado, coloca o poder público na qualidade de sujeito cultural - como afirmou o mestre modernista, fiel aos princípios de trabalhar
e que, portanto, pode e deve se considerar produtor da cultura, e para o que pretendia fosse a descoberta do Brasil valorizando
que por isto mesmo será sempre capaz de determinar para a temas, objetos, sons, cores, construções brasileiras.
sociedade as formas e conteúdos culturais dos dominantes, para Ainda que teoricamente os modernistas não cansassem de
reforçar sua tentativa de legitimação sobre a sociedade como um chamar a atenção de todos para o “interior”, realizando expedições,
todo através da cultura. De tradição autoritária (Estado Novo e viagens e excursões destinadas a registrar a cultura do povo - e
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buscando sempre acentuar o valor criativo da cultura proclamada autonomia que seus dirigentes sempre buscaram
autenticamente “nacional” - no trabalho prático, pouco se conseguiu resguardar. Apesar de sempre se pretender técnica e neutra em sue
incorporar ou mesmo reconhecer da experiência social, dos valores atuação, a política de preservação deste órgão constitui talvez o exemplo
e do conhecimento dos diversos segmentos da população. Certo mais fecundo da intervenção governamental na área da cultura,
que descobriram e valorizaram o barroco brasileiro, muitas tradições empenhada em construir uma memória e uma identidade nacionais.
e festas religiosas e profanas do gosto popular, não havendo dúvidas Significativamente, a predominância do patrimônio edificado
quanto ao Registro que conseguiram de uma grande coleção de é avassaladora: igrejas, capelas, quartéis, fortes, cadeias, palácios,
músicas, que só recentemente têm sido equacionadas e casas da câmara, imponentes casarões, logo surgiram nas listagens
trabalhadas, arrancando-as da simples condição de folclore e de e foram paciente e valorosamente restaurados e postos à visitação
todos os problemas inerentes a este tratamento. pública como símbolos do passado da Nação. Estavam assim
Apesar das tentativas havidas, desde mesmo a Constituinte consagrados e definidos os elementos simbólicos dignos de
de 1891, para se definir e conceituar o “patrimônio histórico e preservação e de integrarem este patrimônio - as sedes do poder
artístico nacional” os critérios apresentados como justificativas político, religioso, militar, os casarões da classe dominante com
para o “significado histórico” não deixavam de ser a peculiar e notável seus feitos e modos de vida. A serviço do poder, a cultura se submete
beleza, a singularidade da obra de arte e o trabalho do artista. e consagra-se a “função anestésica” da noção tradicional de
Nascida nos meandros e contradições do autoritarismo do patrimônio histórico e cultural de tudo que ela procura preservar.
Estado Novo, esta concepção de patrimônio histórico, mesclada Por muito tempo venceu a perspectiva de consagrar como
de rebeldia modernista, acabou por cristalizar os elementos do obras da arte e da cultura os símbolos do poder constituído.
nacionalismo autoritário com as intenções modernistas, na tentativa Desprovida assim de memória coletiva que lhe permitisse a
e com o objetivo de recuperar o passado para alcançar uma consciência histórica - pelo efeito desagregador da impossibilidade
definição da identidade nacional. Em suas falas e em suas de acumular sues realizações como cultura - a maioria da população
memórias, os intelectuais que deram forma e conteúdo à política continuou sem se reconhecer nestes símbolos. Com isso, foi
de preservação do SPHAN, sempre se consideraram não apenas expropriada também de sua memória e de sua história.
como portadores de uma grande autonomia em relação ao Estado, Além desse caráter ideológico, é importante destacar que a
mas também como vanguardas de cunho liberal, que propugnavam orientação dada pelos órgãos oficiais como o SPHAN e outros que
a identificação, a defesa, a restauração e a conservação dos foram criados nos Estados e municípios, fez desenvolver uma política
grandes monumentos e obras de arte que dariam consistência à de preservação que valorizava aspectos formais de caracterização
chamada cultura brasileira. das obras de arte “puras”, ou os espécimes representativos de estilos
De maneira coerente com as concepções de cultura arquitetônicos, acentuando o lado técnico dessa identificação e o caráter
enunciadas, e certamente exprimindo mais uma vez a conciliação de coleção dos bens registrados enquanto patrimônio - registro quase
e o arranjo em torno do poder, o trabalho de preservação ganhou sempre desprovido das relações sociais que os tornaram possíveis.
fórum e status de conhecimento científico. Organizou-se uma Tal orientação terminou por corporificar uma concepção e uma
estrutura administrativa compatível com as propostas, e unidades forma de praticar a preservação como uma única possível, sempre
orçamentárias foram criadas - ainda que sempre deficientes, pois com o caráter institucional e oficial como elemento definidor. E
o lugar da cultura era secundário e as verbas sempre escassas... precisamente este caráter institucional da experiência brasileira
Enquadrado no aparelho burocrático, o SPHAN passou a no que diz respeito ao patrimônio cultural que julgamos importantes
ser considerado uma espécie de “refrigério da cultura oficial” pela colocar em discussão.
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Quando nos propomos,então, o debate e a reflexão sobre a que estamos falando, no sentido de construir uma noção ampla do
relação História, Patrimônio Cultura, Políticas de Preservação, que entendemos e praticamos como Patrimônio Cultural, uma
Centros de Documentação, Centros Culturais,Casas de Cultura, concepção que possa abarcar práticas, fazeres e memórias
queremos tratá-la não apenas no âmbito restrito das técnicas de individuais e coletivas e, ao mesmo tempo, voltamos a insistir,
intervenção ou dos critérios de identificação e preservação e seus possibilitar que esta discussão não se restrinja apenas ao corpo
conceitos operacionais. Para além desses aspectos, é preciso politizar técnico das várias instituições, mas se faça também através da
o tema, reconhecendo as condições históricas em que se forjaram participação de setores da sociedade diretamente envolvidos com
muitas das suas premissas - e articulando-as com as lutas pela o tema e da população em geral.
qualidade de vida, pela preservação do meio ambiente, e pelos direitos Assim o princípio da cidadania cultural - diretriz básica de
a pluralidade e, sobretudo pelo direito à cidadania cultural. Com isso uma política cultural – deve se desdobrar em diversas práticas
busca-se retomar um sentido de patrimônio cultural que nos permita que possibilitem garantir, em todos os níveis, o direito à cultura a
entendê-lo como prática social e cultural de diversos e múltiplos toda uma população diferenciada socialmente, diluindo as fronteiras
agentes, para que como sujeitos sociais possam se reconhecer na hierarquizadas das experiências culturais na sociedade. Este
História e nos bens culturais que queremos preservar. princípio leva necessariamente a concepção de que os
Tratando de nosso tema o antropólogo Nestor G. Canclini, equipamentos culturais constituem bens públicos e, enquanto tais,
em artigo, já dizia: devem ser colocados a serviço da população. Envolve também a
“Se é verdade que o patrimônio serve para unificar
democratização da produção cultural, seja do ponto de vista de
a nação, as desigualdades na sua formação e
guarnecer os trabalhadores da cidade em geral de instrumentos
apropriação exigem que o estude, também, como
capazes de possibilitar sua produção cultural autônoma, tanto
espaço de luta material e simbólica entre as classes,
quanto sua formação e informação culturais. Reconhecer que a
as etnias e os grupo.” (CANCLINI,1993,
cidadania cultural envolve as questões pertinentes à preservação
do Patrimônio Cultural e acrescentando a ela a reivindicação ao
No social, esta luta se concretiza entre diferentes sujeitos direito à memória. Nesta direção a participação popular nas
históricos, assumindo formas e resultando em diferentes memórias. discussões sobre as atividades e as opões de política cultural são
Destaca-se então, de acordo com a fala de Marilena Chauí em também parte integrante da cidadania cultural. Considera-se que
seu discurso de posse como Secretária Municipal de Cultura da os cidadãos têm o direito de produzir, fruir e ser informado de
Prefeitura de São Paulo, em1989, a idéia de que “cultura é mais todas as propostas e opções de políticas e como tal participar das
do que as belas artes”. É memória, é política, é trabalho, é história, decisões sobre a sua vida e não ser apenas espectador passivo de
é técnica, é cozinha, é vestuário, é religião, etc. Ali onde os seres eventos organizados a sua revelia.
humanos criam símbolos, valores, práticas, há cultura. Ali onde é Pensando na velha tradição que caracteriza a área do
criado o sentido do tempo, do visível e do invisível, do sagrado e do patrimônio histórico, por exemplo, esta diretriz se torna ainda mais
profano, do prazer e do desejo, da beleza e da feiúra, da bondade e da contundente. Neste campo, no Brasil os bens culturais foram sempre
maldade, da justiça e da injustiça, ali há cultura ( CHAUI, 1989) tratados como despojos no cortejo triunfal dos vencedores
Diante deste quadro, uma de nossas primeiras tarefas relembrar (Benjamim). Expropriados, isolados e
quando queremos discutir os conceitos de Patrimônio Cultural será descontextualizados os bens materiais, suportes de memória de
a de promover a crítica das concepções dominantes de patrimônio múltiplos sujeitos sociais, têm sido oferecidos aos cidadãos do Brasil
cultural unicamente associada ao Artístico, com as definições de como parte de um movimento que serve apenas para ostentar a
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glória e o poder dos vitoriosos. A pompa do cortejo e seu pesado de sujeitos sociais diversos, capazes de conhecer suas diferenças
arsenal simbó1ico, inscrito em monumentos e. documentos, e seus direitos e enfrentar a força criadora da multiplicidade. Trata-
produzem o esquecimento de significados originais, múltiplos e se de não mais espezinhar os mortos, mas deixar que a vida volte
diversos: afirmam a unicidade da história e constroem o vínculo, a animar sua presença na cena histórica. O direito a memória
tornado natural, entre saber e poder. constitui, para nós, uma dimensão fundamental do pleno exercício
Museus, arquivos, edifícios monumentais, marcos físicos e da cidadania: destituídos de suas lembranças e de seu passado,
símbólicos têm sido sempre tratados como templos. Lugares nada restará aos homens e mulheres do presente exceto
silenciosos e imponentes de reverencia a um determinado saber. contemplar, mudos e perplexos, a passagem do cortejo.
Lugares para aprender o quanto somos esclarecidos, civilizados e Importante é reconhecer que grande parte do conteúdo e
cultos espaços de reconhecimento e reafirmação de um certo passado, da discussão destes princípios foi finalmente incorporada à
uma certa história e uma memória “certa”. Desqualificados, prostrados Constituição de 1988, que em seu artigo 216 afirma: “Constituem
no chão, excluídos dos circuitos de produção da memória e do patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
conhecimento sobre o passado, resta aos homens e mulheres que imaterial, individualmente ou em conjunto, portadores de referência
fizeram e fazem a História, a condição de espectadores passivos, à identidade, à ação, à memória de diferentes grupos formadores
aprendizes de uma memória que não lhes pertence. da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I –as formas de
É exatamente contra este tipo de noção e prática que expressão;II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações
queremos orientar nossas reflexões sobre Patrimônio Cultural, científicas, artísticas e tecnológicas;IV- as obras,objetos,
chamando a atenção para o debate que antropólogos e historiadores documentos, edificações e demais espaços destinados às
vêm realizando e conduzindo em práticas de preservação. Ao manifestações artístico-cultural; V – os conjuntos urbanos e sítios
cortejo triunfal dos vencedores contrapomos o conceito sobre o de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, ecológico e
direito á memória. Há algum tempo que estes profissionais têm científico”. Em seus parágrafos reconhece-se a responsabilidade
insistido em considerá-la, a memória e sua preservação, como do poder público em promover e proteger o patrimônio, a punição,
Patrimônio Cultural, em sua diversidade e multiplicidade. Como na forma da lei, para quantos causarem danos aos bens tombados
qualquer experiência humana, a memória é também um campo e concretiza o tombamento de todos os sítios e documentos
minado pelos conflitos sociais: um campo de luta política, de detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.
verdades que se batem, no qual esforços de ocultação e Em Conferências e discussões da UNESCO, desde 1989,
clarificação estão presentes na luta entre sujeitos históricos diversos já se encontravam “Recomendações sobre a salvaguarda da
que produzem diferentes versões, interpretações, valores e práticas cultura tradicional e popular”. O reconhecimento de outras
culturais. Exatamente por isto, a memória histórica constitui uma dimensões e conceitos de patrimônio cultural, no nível da Lei Maior
das formas mais poderosas e sutis da dominação e da legitimação e nos documentos de entidades internacionais ligadas a cultura
do poder (ARANTES, 1984). fez surgir uma grande quantidade de iniciativas institucionais ou
Por isto mesmo, a diferença e a multiplicidade precisam oficiais de órgãos de Preservação de Patrimônio, legislação estadual
estar presentes no interior de uma política cultural que tenha como e municipal sobre identificação e preservação dos bens tombados.
eixo central à compreensão da memória como um direito. Os bens Por outro lado a partir dos anos 90 também os Movimentos Sociais,
culturais - marcos físicos ou registros documentais do passado - as Universidades, e outros Centros Culturais iniciaram processos
não devem ser entendidos ou tratados como despojos que de preservação da Memória, criando e organizando Centros de
testemunhem o longo triunfo de alguns. São patrimônios coletivos Memória Popular e dos Movimentos Sociais 1
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Ainda em 2001 a UNESCO aprovou a Declaração Universal e ainda mais perceber que tratada nesta perspectiva se constitui
Sobre Diversidade Cultural, por unanimidade, entendendo que a cultura como um “recurso disponível”
compreende uma série de características espirituais, materiais, in- Pode-se mesmo assinalar a maneira como, por exemplo, a
telectuais, emocionais de uma sociedade ou grupo social E mais adi- franquia do Museu GUGGENHEIM, de Bilbao, foi utilizada para o
ante, em 2002, reconhece e reforça a idéia de que a diversidade cul- desenvolvimento urbano de áreas degradadas. Nesta direção
tural constitui a força coletiva de um país e deve ser usada para asse- muitas são as iniciativas do mesmo gênero Porto Madero, em
gurar o desenvolvimento sustentado. Agora, em outubro de 2005 a Buenos Aires, Píer 17, em Nova York e no Brasill, outros como o
Conferência Geral, da UNESCO discutiu e votou uma “Convenção Pelourinho, o Bairro Recife,etc. De outra maneira rituais, práticas
sobre a Proteção e a Promoção das Expressões da Diversidade Cultural”, estéticas do cotidiano, tais como canções, lendas populares, culinária,
com apenas dois votos contrários, o dos Estados Unidos e o de Israel. costumes e principalmente o artesanato são mobilizados como recursos
No Brasil, a partir de todas estas discussões têm proliferado para o turismo e para a promoção de indústrias que exploram o
também os projetos destinados a incorporar e preservar a “cultura Patrimônio Cultural. Daí se dizer que a cultura se expandiu para outras
popular” sem que se aprofundasse o significado e a discussão de áreas como a econômica e a social, ao mesmo tempo em que as
tal categoria, como também a de patrimônio intangível. O que noções convencionais de cultura se esvaziaram. (YUDICE, 2004)
estou dizendo é que a cultura é bem precioso de todos os cidadãos Na trilha de Beatriz Sarlo, ao refletir sobre a relação da
e como tal deve ser pensada e elaborada por todos nós em história com o passado a partir do presente, e endossando suas
discussões coletivas e com a maior participação que conseguirmos, proposições, segundo as quais, é importante colocar as dissidências
antes de estabelecer regras ou regulamentos. no centro do foco, o traço oposicionista frente aos discursos
Apenas para referenciar, que nosso tempo não permite estabelecidos, aguçar a percepção das diferenças, entendendo-as
estender mais, gostaria de dizer que, no que diz respeito a como qualidades alternativas, as rupturas que podem indicar
concepções e pressupostos, questões de extrema importância têm mudanças e permitir o aprofundamento das investigações e dos
sido apresentadas nestas Conferências e Reuniões, da UNESCO, trabalhos, encontraremos nossas tarefas de cientistas sociais
sobre Cultura e o Poder da Cultura, em Seminários Acadêmicos, em comprometidos com o social e com a transformação. E ainda mais,
diversas reuniões de Fundações Culturais ONGs e outros fóruns o olhar político sobre nossos objetos não se dedica a organizar um
culturais, chegando mesmo a salientar que, em decorrência da paradigma, mas se mantém atento às tendências que questionam
circulação global,propõe-se uma nova divisão internacional de trabalho e subvertem a ordem estabelecida, pois está sempre pronto a
cultural, que leve em conta as diferenças locais, mas aceite a descobrir e relacionar, consciente de sua historicidade e das várias
administração, o gerenciamento e os investimentos transnacionais. possibilidades que há para explorar. Resta sublinhar, que, nesse
Em obra recente, George Yúdice (2004) A Conveniência Da caso, a autonomia não implica o afastamento da política e nem a
Cultura, discute e apresenta pesquisas, sobre as implicações de se sujeição a seu jogo. (SARLO, 1997)
considerar a cultura como “recurso”, significando muito mais que Se vivemos numa sociedade que exclui, domina, oprime e
considerá-la apenas como mercadoria, mas sim como o eixo de uma oculta os conflitos e as diferenças sob o valor das identidades e da
nova estrutura, na qual são absorvidas por uma racionalidade unidade do homogêneo e do único, então, o direito à memória se
econômica de tal forma que o gerenciamento, o acesso, a distribuição torna uma reivindicação da pauta da cidadania cultural, para fazer
e o investimento em cultura e seus resultados torne-se prioritário. surgir a diversidade, a diferença, o múltiplo, as muitas memórias
Neste sentido pode-se caracterizar a cultura de nosso tempo para fazermos outras histórias, e questionarmos tantas concepções
como uma cultura de globalização acelerada, como um “recurso” de Patrimônio Cultural.
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NOTAS

1
A Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional é
publicada desde os tampos da criação do SPHAN, em 1938,sendo
que sua publicação esteve interrompida por muitos anos, para ser
retomada no seu número 22/1987 e editada depois com alguma
periodicidade. A Revista tem contribuido com números especiais
como Cidade, Cidadania, Cultura E Arte Popular, Fotografia, O
Negro na História do Brasil,etc. O acesso a estas Revistas é bem
difícil, e alguns exemplares só são encontradados nos Museus do
próprio SPHAN.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

ARANTES, Antônio Augusto. (org.) Produzindo O Passado.


Estratégias de Construção do Patrimõnio Cultural. Brasiliense/
Condephat. São Paulo, 1984.
R E S E N HAS
CANCLINI, Nestor Garcia.”O Patrimônio Cultural e a construção
maginária do Nacional.”In.Revista do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, N.23.IPHAN.Rio de Janeiro, 1994.
CHAUI, Marilena.Jornal da USP,1990.
_______ Discurso de Posse na SMC/PMSP, 2/1/1989
FLORESCANO, Enrique.(ORG.) El Patrimõnio Cultural de
México. Cidade do México: FCE, 1993.
SARLO, Beatriz. Paisagens Imaginárias.São Paulo: Edus, 1997.
YUDICE, George. A Conveniência da Cultur -.usos da Cultura
na era global..Belo Horizonte: Ed.UFMG, , 2004.

240 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 Revista do Mestrado de História, Vol.9, n°10, 2007 241
FUTEBOL POR TODO O MUNDO
ALVITO, Marcos e MELO, Victor Andrade de (orgs)
Rio de Janeiro: FGV, 2006

Rosângela Dias*

O ano passado foi-se rapidamente, ano de Copa do Mundo


de Futebol, e não só no Brasil, mas no planeta inteiro, os corações
pulsaram pelos reis do futebol, pelos craques da pelota. Somente
trinta e dois países disputaram o torneio, mas todo o resto do mundo
elegeu um time para torcer e o Brasil, segundo a imprensa esportiva,
foi a segunda equipe de muitos. A seleção brasileira era a favorita
para conquistar a Copa, fato que, infelizmente, não ocorreu.
Compunham seu elenco dois jogadores que foram escolhidos como
melhores do mundo pela FIFA (Football International Association),
instituição responsável pela competição e que se orgulha por contar
com mais países associados do que a ONU. O Brasil, como sempre,
parou para acompanhar a Copa, fato que ocorre desde 1970 quando
os jogos passaram a ser transmitidos pela televisão ao vivo. Desde
então, sempre é elaborado todo um esquema para que trabalhadores
e estudantes sejam liberados de seus encargos na hora das partidas
do Brasil. De uma forma quase oficial neste momento nada possui
maior importância que o escrete canarinho.
Aproveitando este momento de comunhão e comoção
nacionais, editoras lançam livros sobre o famoso esporte bretão.
Crônicas sobre futebol, histórias de copas passadas, biografias de
jogadores famosos e afins saem do prelo passando a ocupar as
vitrines das livrarias em todo o país.
O livro Futebol por todo o mundo encaixa-se nesta
situação, entretanto a extrapola, pois seu propósito não é somente
falar sobre futebol, mas refletir sobre o mundo contemporâneo
através da união deste esporte com outra invenção não menos
popular: o cinema. A partir do casamento cinema/futebol Marcos

*Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (1996) .


Professora dos cursos de Graduação e Mestrado da Universidade
Severino Sombra.

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Alvito professor Doutor de História da UFF e Victor Andrade de Uma das epígrafes é de Pelé, o maior jogador de futebol de todos
Melo, graduado em Educação Física e professor Doutor do os tempos e que participou de alguns filmes, tendo sido dirigido
Mestrado em História Comparada da UFRJ organizaram esta por um dos maiores cineastas do mundo: Jonh Huston, em Fuga
coletânea abordando várias questões contemporâneas, sempre para a vitória de 1981. A outra é de Wladimir Carvalho, cineasta
utilizando filmes onde o futebol se apresenta como elemento brasileiro. Pelé compara futebol e cinema, enquanto atividade: “Em
propulsor da trama. cinema, se você erra dá para repetir a cena.” Wladimir se encanta
Os textos são simples, mas não superficiais, e conseguem com a poesia existente no futebol: “cometimento estritamente
extrair dos filmes abordagens pertinentes e esclarecedoras não só estético com os supremos ingredientes da arte: ritmo, harmonia
em relação ao esporte, mas e, principalmente, sobre diferentes inventiva, movimento, incursão no tempo e no espaço, equilíbrio e
questões do mundo contemporâneo. A grande qualidade dos plasticidade.” Se disséssemos que Wladimir fala de cinema, e não
mesmos é conseguir mostrar que a união de duas atividades de futebol, teria sido notada nossa falha? As epígrafes apontam
extremamente populares reflete com pertinência o mundo atual, para uma familiaridade possível entre os campos futebolísticos e
suas questões, enfrentamentos e crises. O olhar atento dos artigos, cinematográficos, ambos são responsáveis por produzirem fortes
escritos por cientistas sociais e humanos, mostra-se capaz de decifrá- sentimentos e paixões.
lo e explicitá-lo, usando e transformando os filmes em forte elemento Victor nos informa que este livro é fruto da reflexão de
didático, tornando possível a aprendizagem através de imagens. vários pesquisadores que pensam a relação cinema/esporte no
A Academia que, muitas vezes, torce o nariz para aquilo mundo contemporâneo. Os resultados são expostos já há 4 anos
que o chamado “povão” curte e admira, desta vez, se mostra mais no Ciclo de Cinema e Esporte realizado pelo SESC (Serviço Social
inteligente ao aproveitar esta paixão nacional que é o futebol para do Comércio) do Rio de Janeiro. Segundo Victor a relação entre
colocar, discutir, debater e, principalmente socializar o conhecimento ambos é pertinente: “são fenômenos típicos da modernidade (ainda
nela produzido, através destes textos. Textos que, principalmente, que possuam raízes anteriores), organizando-se a partir das
nos esclarecem sobre vários temas contemporâneos: gênero, mudanças culturais, sociais e econômicas observáveis desde o
identidade, multiculturalismo, preconceito racial e globalização, entre fim do século XVIII e no decorrer do século XIX. Ambos constituem
outros, trabalhados através de filmes cujo tema central é ou passa poderosas representações de valores e desejos que permeiam o
pelo futebol e a paixão que o mesmo desperta. Vamos ao livro. imaginário do século XX: a superação de limites, o extremo de
As primeiras linhas da apresentação do livro se apropria de determinadas situações, a valorização da tecnologia, a consolidação
frase de José Lins do Rêgo: “o conhecimento do Brasil passa pelo de identidades nacionais, a busca de uma emoção controlada, o
futebol”, acredito que depois de lerem o livro poderemos exaltar de um certo conceito de beleza. Ambos celebraram e foram
parafrasear José Lins do Rego e dizermos: “o conhecimento do celebrados pelas novas dimensões de vida e de sociedade
mundo contemporâneo passa pelo futebol.” Já na apresentação, é construídas no decorrer do século que passou.” (p.11)
colocada de forma clara e precisa o objetivo do livro: “explorar as Isto posto, Victor nos traça um panorama do futebol no
relações entre esporte e sociedade através do futebol. E fazê-lo cinema mundial. Começa falando das dificuldades da transposição
de forma prazerosa, dialogando com outra paixão: o cinema”. (p.7) para a tela de jogos de futebol. Segundo ele, os cineastas, “Todos,
O primeiro artigo é de autoria do professor Victor Andrade em maior ou menor grau, fracassaram na tentativa de simular a
de Melo “Futebol e cinema: duas paixões, um planeta” e funciona concretude do esporte.” (p13) Outro fator que ajuda a diminuir a
como aquecimento, introdução do que virá. As duas epígrafes do presença do futebol no cinema é o fato deste ser um esporte coletivo,
texto nos apontam o casamento fortuito entre cinema e futebol. dificultando a criação de tramas em que dramas particulares sejam
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realçados, caso, por exemplo, do boxe. Segundo Victor, dramas percurso nos permite vislumbrar uma possibilidade de compreender
particulares rendem melhores tramas cinematográficas. Além disso, os discursos acerca da sociedade, determinadas representações,
os Estados Unidos e a Índia, países que mais produzem filmes no certos mitos. Estar atentos a isso, como ferramenta de investigação,
mundo, não possuem como esportes prediletos o futebol, ainda como possibilidade pedagógica ou como maneira de ampliar nosso
que os EUA estejam loucos por participarem desta festa global: já prazer, é uma necessidade e um desafio para todos nós, pesquisadores,
realizou uma Copa do Mundo e sua seleção participou das três estudiosos, interessados ou fãs.” (p.25) Afirmação mais que pertinente
últimas Copas, tendo estado na Alemanha este ano. Ainda assim, e que traduz a importância desta coletânea de “comentários” a partir
o futebol esteve presente em inúmeras produções cinematográficas do futebol, pois assim os textos se denominam, exceto o texto de
e Victor cita algumas delas, tanto internacionais como nacionais. apresentação e o de número 6 sobre Garrincha.
É uma lista extensa, mas que omite algumas produções O primeiro “comentário”: “Cultura, globalização e futebol:
que consideramos memoráveis. Uma é Barbosa, curta metragem comentários a partir do filme A Copa”, mostra como a paixão
brasileiro dirigido por Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado. O filme pelo esporte vai longe, mais precisamente ao Butão, “discreta
trata de um dos maiores traumas esportivos e nacionais do país: a entidade política ensaduichada pelos gigantes China e Índia.” (p.28)
derrota para o Uruguai em pleno Maracanã, na final da Copa do O autor é Gilmar Mascarenhas de Jesus, professor do
Mundo de 1950. O Barbosa do título do filme foi o goleiro daquela Departamento de Geografia da UERJ. O filme é A copa,
fatídica final. É a história de um rapaz que volta a 16 de julho de “metadocumentário que registra a perturbadora chegada da paixão
1950 para tentar evitar a falha do goleiro e, consequentemente o futebolística pelas antenas de TV, captando imagens da Copa do
gol da vitória do Uruguai. Mundo de 1998 (França), rompendo o silêncio e o equilíbrio
Outro filme não citado por Victor é O casamento de Maria milenares de um remoto monastério budista.”(p.29). Utilizando
Braun, dirigido pelo alemão Rainer Werner Fassbinder em 1979. vários autores como Hobsbawn, Giddens e Habermas, Gilmar
A história se passa em pleno pós-guerra alemão e traça um paralelo pensa a modernidade que invade um mosteiro do Butão via futebol.
entre a história de Maria Braun, que tudo faz para sobreviver e Alguns monges desejam assistir aos principais jogos da Copa de
enriquecer numa Alemanha destruída, e a própria Alemanha que 98 e não poupam esforços para tal, esta é a trama do filme. A
busca se reerguer dos escombros e da vergonha da II Guerra partir desta história e do inusitado que é monges de um país mínimo
Mundial. O final do filme se dá em 1954, dia do final da Copa do estarem interessados em algo “profano”, Gilmar estabelece
Mundo em que Alemanha vence a competição ao derrotar a que interessantes relações entre futebol e fenômenos do mundo
era considerada a melhor e favorita equipe da competição: a contemporâneo: imperialismo, pedagogia fabril e religiosa,
Hungria. No mesmo momento em que a Alemanha conquista a globalização e meios de comunicação. Gilmar nos chama a atenção
Copa, e tendo a narrativa do jogo ao fundo, Maria Braun se suicida, para o fato de que o “futebol é o mais duradouro, disseminado e
rica, mas arrasada moralmente pelos atos que executou para bem sucedido produto de exportação da grande potência mundial
sobreviver e enriquecer. A terceira produção esquecida é o filme do século XIX, a Inglaterra. “ (p.28) Com função pedagógica foi
dirigido por Bruno Barreto O casamento de Romeu e Julieta, utilizado como forma de adestramento da classe operária para o
história de amor envolvendo um corintiano roxo e uma palmeirense trabalho fabril, fecundando “toda uma nascente cultura operária à
fanática. Devo ressaltar que, estas ausências em nada diminuíram qual serviu como eficiente ‘pedagogia da fábrica’: trabalho em
o poder de comunicação do livro. equipe, obediência às regras, especialização nas tarefas, submissão
Terminando esta introdução, Victor conclui que “cinema e ao cronômetro etc” (p,28). Mas não só, foi também instrumento
futebol se interfluenciaram e dialogaram constantemente. E esse de disciplina moral para religiosos que, através das missões que se
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espalharam pelo Império Britânico e países dele dependente, modos, por sua cultura, por sua diferença, enfim.” (p.45) O filme,
ajudaram a difundir o esporte. O interesse revelado pelos monges segundo Simoni, apresenta uma visão otimista sobre a posição da
do Butão nos remete, segundo Gilmar, a uma nova etapa de mulher e das minorias étnicas no mundo ocidental. “Trata-se
mundialização (em itálico no original) do futebol, transformado principalmente de um discurso sobre a coexistência de idéias e
de forma intensa e com sucesso de prática esportiva a espetáculo. valores distintos em um mesmo contexto social e sobre os
Gilmar termina seu texto questionando se esta mundialização do obstáculos que as minorias, nestes contextos, devem enfrentar.”
espetáculo futebolístico, chegando aos mais longínquos rincões, (p.45) O final feliz corrobora esta posição otimista da diretora; a
não seria a apregoada “linguagem universal, a aproximar os povos” protagonista consegue ser jogadora de futebol e, ao mesmo tempo
ou, simplesmente mais um novo grande negócio? (p.38) estudar, vai para uma Universidade norte-americana e, de quebra,
Os outros dois “comentários” tratam do mesmo filme ainda engata um romance com seu treinador. Ainda que a autora
Driblando o destino, filme inglês dirigido por uma mulher de não diga, o filme parece-nos um conto de fadas num mundo
origem indiana: Gurinder Chadha, O primeiro texto “Um dom globalizado onde as mulheres aspiram e conseguem tratamento
extraordinário ou ‘cozinhar é fácil, mas quem sabe driblar como igualitário em relação aos homens, principalmente no que se refere
Beckham?’: comentários a partir do filme Driblando o destino”, à questão das perspectivas profissionais, mesmo em uma profissão
é da professora da UFF Simoni Lahud Guedes, infelizmente não tradicionalmente destinada aos homens, o futebol.
sabemos que disciplina ministra, entretanto, podemos perceber que O outro artigo sobre o filme “Diálogos identitários – etnia,
a abordagem da autora nos remete à antropologia. A fita em questão gênero, sexualidade e futebol: comentários a partir do filme
foca sua trama em torno das “vicissitudes de uma jovem com Driblando o destino” é de autoria de Antonio Jorge Soares e,
habilidade incomum para o futebol, tendo em Beckham seu herói, como no artigo anterior, não há referência sobre a disciplina que
mas (que) pertence a uma família indiana, que vive em Londres e ministra ou estuda. Entretanto, podemos perceber que faz uma
não considera honrosa para sua filha a profissionalização esportiva.” abordagem onde a questão da cultura se apresenta com força.
(p.42) Este enredo, aparentemente simplório, abre espaço para Mais uma vez as questões identitárias são apontadas, destacando-
que várias questões sejam abordadas: “Reafirmações identitárias, se a questão de povos de culturas diferentes que vivem em países
conflitos e preconceitos étnicos, diferenças geracionais, concepções ocidentais. Mas, o autor destaca outras questões como, por
diferenciais de gênero e sexualidade” (p.41/42) Mas, segundo a exemplo, o humor existente no filme além de chamar a atenção
autora, é o entrelaçamento de duas destas questões – a étnica e a para a figura de Beckham na trama, jogador bem sucedido
de gênero/sexualidade – que a narrativa desenvolve seu argumento/ financeiramente, considerado um metrossexual, vaidoso,
tese. A película revela-nos uma certa visão “moderna” da autora preocupado com roupas, perfumes e moda, elementos pertencentes
em relação à família indiana, que “de uma forma cada vez mais ao universo feminino. A admiração da protagonista por Beckham
difundida na atualidade, não transforma as mulheres em simples reforça a idéia de como os papéis masculinos e femininos se
objetos de cama e mesa. Na verdade, realiza uma complexa confundem hoje. Outra questão que o autor destaca é o
alquimia entre um específico modelo feminino centrado na família comportamento das mulheres na trama. Segundo ele, a diretora
e na casa e um modelo que sustenta padrões igualitários de gênero.” teria sido “pouco generosa com as mulheres do filme”. São
(p.43) A principal objeção do pai quanto à vontade da filha em ser mostradas “como reguladoras da moral social”, “chatas”, “ansiosas,
jogadora de futebol é evitar a frustração. O pai de Jess (a lamentosas e autoritárias”. Já os homens seriam “generosos”, fato
protagonista) não pôde jogar críquete nos times ingleses devido ao que se comprova pela atitude do pai de Jess, ao permitir que vá
“seu turbante – fundamental signo identitário masculino - por seus estudar nos EUA, jogando futebol e com bolsa de estudos na
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Universidade. A explicação para tal atitude é que a mãe de Jess de ética e do controle total dos interesses econômicos sobre a
“pode ignorar o rosto de uma filha triste, mas ele não.” A visão atividade esportiva se corporifica na cena em que o atleta se recusa
otimista da diretora é confirmada pelo fato de exibir, segundo a dar autógrafo para a torcedora mirim. O motivo da negativa é o
Antonio, em seu filme, personagens masculinos que se mostram fato da menina não pedir o autógrafo no card da empresa que o
“fundamentais no processo de dobrar as regras sociais do machismo patrocina. Outro destaque do artigo é a observação do autor sobre
e do preconceito.” (p.68) a grande aproximação entre esporte e guerra. Alvito nos mostra
O quinto “comentário” é de autoria de Marcos Alvito e como várias expressões utilizadas pelos esportistas e narradores
trata de um filme e de futebol norte-americanos. É o único do futebol empregam termos bélicos: “acampamento”,
que foca um futebol diferente do inglês. Neste filme a questão “campanha”, “bombas” etc.
econômica, ou mais precisamente a questão “dinheiro”, Logo após o artigo sobre Jerry Maguire e, talvez, em
aparece de forma marcante, o que permite pensar a relação contraponto ao mesmo, o texto que se segue é “A morte da ‘alegria
esporte/lucratividade. Por ser um tipo de futebol menos do povo”, escrita pelo professor de Ciências Sociais do Museu
popular entre nós, o autor faz um histórico da modalidade, Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro José Sérgio Leite
disseca a importância econômica da mesma nos Estados Lopes. O ponto de partida para o artigo é o filme “Garrincha,
Unidos e destaca a importância da televisão na popularização alegria do povo”, de 1963 dirigido por Joaquim Pedro de Andrade
e, consequentemente, lucratividade do futebol norte- integrante do movimento do Cinema Novo. Movimento que
americano. Pena que, talvez devido à dificuldade propunha um cinema criativo que extrairia da precariedade de
(inexistência mesmo?) não há nenhum artigo no livro que recursos, imagens contundentes sobre a pobreza brasileira. O
trate o futebol inglês sob este prisma. A globalização do Cinema Novo inventou a chamada “estética da fome”, cujo objetivo
mundo esportivo é o destaque. Seria compatível, maior era denunciar a exploração sofrida pelos mais pobres: as
competição e lucro com ética esportiva? Esta é a questão camadas populares urbanas e rurais. O objetivo maior dos
do filme. O título da primeira parte do texto nos sugere a cineastas do Cinema Novo era produzir um cinema que levasse à
idéia de que o mundo do esporte é um universo a parte; “O transformação social. O personagem e a trajetória de Garrincha,
cenário: o planeta esporte”. Planeta onde yuppies, como o neste sentido, são emblemáticos, pobre, com pouca instrução,
protagonista do filme, Jerry Maguire, fazem dinheiro, objetivo descendente de indígenas, operário, alcoólatra e explorado pelos
único, não só de Jerry como de toda atividade esportiva. dirigentes de futebol que o obrigavam a entrar em campo com
Devemos destacar também que este texto apresenta dores e problemas nos joelhos. Jogador magistral que, apesar de
preocupações em relação à própria linguagem cinematográfica. possuir as pernas tortas, driblava como ninguém. Jogava futebol
O autor inicia sua análise descrevendo o uso de alguns recursos com um prazer quase infantil e morreu pobre e abandonado. O
fílmicos; como o som estridente e o tic tac do relógio marcando a artigo disseca a trajetória de Garrincha, busca explicar seu futebol
tensão da narrativa num universo, o do esporte profissional, onde brincadeira, as dificuldades que teve em administrar sua fama e a
“há quase seis bilhões de pessoas nele” e movimenta 220 bilhões profissão, descrevendo em tom de elegia seu enterro e a comoção
de dólares por ano nos EUA. popular causada por sua morte entre a população carioca. Escrito
A trama central do filme trata justamente da crise de quase sob a forma de uma epifania ao jogador e com um linguajar
consciência de um empresário esportivo que começa a questionar próximo ao literário, o autor nos traça a trajetória de Garrincha. O
o comportamento de sua empresa e propõe a adoção de sucesso nos gramados, a exploração que sofreu por parte dos
procedimentos éticos no trato com os atletas. O exemplo da falta dirigentes do futebol, o escândalo de seu casamento com a cantora
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Elza Soares, o final melancólico do craque; casa alugada em Bangu uma tradição operária de futebol amador, estimulada e praticada
pela CBF e internações por alcoolismo, até a última bebedeira que dentro de instituições esportivas geridas pelas fábricas ou
durou 5 dias o levando a um coma alcoólico e pondo fim a empresas.” (p. 96)
Garrinha. A descrição minuciosa que Sérgio faz do velório, do A outra idéia é a comparação que Sérgio estabelece entre
cortejo fúnebre e do enterro ressalta a origem operária de Pelé e Garrincha, mostrando como, apesar de ambos serem
Garrincha, seu pertencimento às camadas populares. Garrincha oriundos da classe operária, Pelé soube se movimentar com sucesso
foi enterrado em Pau Grande e não em cemitério sofisticado da no universo futebolístico, conseguindo fazer relativa fortuna e auferir
cidade do Rio de Janeiro. Os incidentes durante o velório e o enterro ganhos substanciais de sua atividade esportiva. Ambos foram
reafirmam sua extração popular: a família acusando a terceira campeões do mundo em 1958 e 1962 e ídolos da torcida, e também
mulher pela morte de Garrincha, a discussão sobre qual bandeira originários das classes populares. “Mas, ao contrário de Garrincha,
cobriria o caixão; se a do Botafogo, clube em que jogou, mas que sempre demonstrou sua ligação profunda com suas origens
também o explorou pagando salários miseráveis; ou as cores da sociais, Pelé fez aparecer em público apenas a sua ligação com
bandeira do Brasil, a cova que era menor do que o caixão, as um pequeno núcleo familiar, seu pai, sua mãe, seus irmãos e sua
condições em que ficou o cemitério após o enterro. “Todas as avó.” (p.105) A trajetória bastante diferenciada dos dois jogadores
vicissitudes dos enterros populares eram evidentes nessa cerimônia revela-se nos próprios filmes feitos sobre eles. Após o término do
improvisada, perturbada pela afluência desproporcional ao local: artigo Sérgio compara o filme sobre Garrincha de Joaquim Pedro
faltou terra para cobrir o caixão; além de flores já murchas, jogou- e o filme sobre Pelé, Isto é Pelé dirigido por Eduardo Escorel em
se na cova capim cortado nas proximidades do cemitério pela 1975. Sérgio mostra como o filme de Pelé trata primordialmente
população local.” “Eram 13h30min quando a multidão e a imprensa de suas atividades como jogador, reforçando a imagem de esportista
se retiraram, deixando o cemitério semidestruído.” (p.86/87) A do século. O que chama a atenção principalmente entre as duas
morte de Garrincha transformou-se em evento midiático, em trajetórias é como Pelé encarou sua atividade como carreira, que
contraponto ao próprio jeito de ser do jogador “... Garrincha era deveria ser administrada e levar ao sucesso financeiro.
um homem lacônico, que só falava, por assim dizer, com o seu Após texto sobre Garrincha, voltamos aos “comentários”.
corpo, com o seu jogo. Exatamente por caracterizar-se por um O de número 7, “Futebol e gênero no Brasil: comentários a partir
estilo particular, pelo amor ao jogo pelo jogo e por uma ausência do filme Onda Nova” dialoga com a literatura, sua autora, Leda
aparente de estratégia em sua carreira profissional – coisas que o Maria da Costa é Doutoranda no Programa de Pós-graduação
faziam parecer “puro” ou “ingênuo” -, ele não tinha um discurso em Literatura comparada da Universidade do Estado do Rio de
público sobre nada, nem mesmo sobre o futebol.” (p.88) Janeiro. O comentário se produz a partir do filme Onda Nova,
Duas idéias trabalhadas no artigo são instigantes: uma é a dirigido por Ícaro Martins e José Antonio Garcia que tem como
ligação ressaltada pelo autor entre o futebol de Garrincha e a cultura protagonistas jovens de uma equipe feminina de futebol, o Gaivotas
operária da qual ele fazia parte. Segundo o autor seria uma relativa Futebol Clube. A trama se desenrola em função das vicissitudes
permissividade existente entre os operários de Pau Grande nos que passam as jogadoras para fazerem o que mais gostam: jogar
anos 40 e 50 que propiciava aos trabalhadores fazerem outras futebol. Leda assinala os preconceitos que rondaram (e ainda
atividades para além do mundo fabril; caçar passarinhos, plantar, rondam) a atividade futebolística desenvolvida pelas mulheres: “O
produzir algum artesanato ou jogar futebol. Daí, Garrincha encarar medo da masculinização foi uma das principais motivações para
o futebol como “um jogo pelo jogo”, sem nunca se sentir á vontade que em 1941, através do Decreto-Lei número 3.199, a prática do
como jogador profissional. “Esse jogador, na verdade, é fruto de futebol feminino houvesse sido proibida.” p.118
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Mas, para além deste tipo de preconceito há também a clube que nele estivesse interessado, situação pertinente a
própria falta de interesse por parte dos empresários esportivos em quaisquer trabalhadores. Mas não somente esta luta e conquista
promover campeonatos de futebol feminino. O Brasil, apesar de marcaram o cidadão Afonsinho. Ele fugia ao padrão, geralmente
ser vice-campeão mundial da modalidade não possui campeonatos submisso, do jogador de futebol que, invariavelmente provinha de
de qualidade. As jogadoras brasileiras que se destacaram na classes subalternas e aceitava sem questionar os salários
seleção jogam fora do Brasil para poderem sobreviver do esporte. minguados, os contratos assinados em branco e a superexploração.
Leda ressalta que, apesar de tudo isso, ainda há moças que Afonsinho tinha barba crescida, o que, segundo os dirigentes o
corroboram a música do grupo SKANK “Quem nunca sonhou deixava com cara de hippie, formou-se médico, enveredou pela
em ser jogador de futebol?”. O que a autora destaca em seu texto política, coordena projetos sociais no sistema penitenciário e é amigo
é o fato deste sonho ser pensado como forma de afirmação da de artistas como do atual Ministro da Cultura Gilberto Gil. Como
mulher em relação ao direito sobre o próprio corpo. A liberalidade escreve Maurício, Afonsinho foi “um bom representante dos
sexual existente entre as jogadoras do Onda Nova, algumas são chamados ‘rebeldes’ do futebol brasileiro.” Maurício elogia o filme
lésbicas e transam em vários lugares não tradicionais, “demonstra não somente por tratar da conquista do “passe-livre”, mas também
que o corpo feminino é assunto que só diz respeito à própria mulher. por elaborar uma síntese sociológica de nosso ‘esporte-rei’, e traçar
A posse do corpo por suas donas também se faz presente na opção de forma bem cuidada uma reconstituição do Rio de Janeiro dos
pelo futebol, escolha desautorizada por muitos pais, mães e maridos anos 50 e 60. Segundo Maurício, Caldeira conseguiu produzir “um
ao longo dos anos.” (p.119) bom exemplo daquilo que pode ser um cinema de qualidade em
Comentário número 8: “Futebol e profissionalização no torno do futebol” reconhecendo “o valor do futebol para a
Brasil: comentários a partir do filme Passe Livre”, escrito por compreensão do nosso sistema simbólico...” (p.138)
Maurício Murad, professor de Ciências Sociais da UERJ. O filme O último comentário: “Futebol – nunca somente um jogo:
utilizado para discutir as relações de trabalho no meio futebolístico comentários a partir do filme Febre de bola” é escrito pelo
é Passe Livre, dirigido por Oswaldo Caldeira. Trata-se de um Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
documentário que, a partir da trajetória do jogador Afonsinho, Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de
discute a “situação do jogador de futebol em nosso país: como ele Janeiro, Antonio Holzmeister Oswaldo Cruz e tem como tema o
se encaminha para a profissão; sua atividade na categoria juvenil conflito entre as duas paixões de Paul: Sarah, sua namorada e seu
e a passagem para o profissionalismo”, mas não só, nos fala time de futebol, o Arsenal, estabelecendo um triângulo amoroso
também sobre “a magia do esporte, a beleza do espetáculo e a pouco comum (ou não?). A fixação de Paul pelo Arsenal é tão
atração que ele exerce sobre o espectador.” (p.129) Afonsinho intensa que toda a sua vida se relaciona com os sucessos ou
tornou-se símbolo da luta pela transformação das relações de fracassos do time, e contamina Sarah que começa a decorar o
trabalho existentes no futebol brasileiros nos anos 70, período nome dos jogadores do Arsenal e a acompanhar e discutir os jogos.
marcado pela conquista da Copa do Mundo, e pela ditadura militar. Os comentários de Antonio se baseiam na convicção de
Ainda que as relações trabalhistas de futebol até hoje sejam Paul de que o futebol não é apenas um jogo, idéia corroborada
problemáticas; envolvendo contratos feitos com adolescentes e pela dimensão que possui o futebol atualmente. As provas deste
muitos acordos “de boca”, não há mais as características feudais fato podem ser encontradas na quantidade de espectadores que
e escravistas existentes entre as décadas de 50 e 70. Afonsinho freqüentam os estádios e nas brigas (algumas vezes até com
tornou-se o primeiro jogador brasileiro a conquistar na justiça o mortes) entre os torcedores de equipes rivais. Tanta comoção e
“passe livre”, o que lhe conferia o direito de jogar em qualquer investimento não podem ser por algo que seja apenas um jogo. E
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Antonio nos mostra porque o futebol, como outros esportes, não é TEORIAS DA HISTÓRIA (UMA PROPOSTA DE ESTUDOS).
apenas um jogo. Utilizando-se da teoria do chamado processo
DIEHL, Astor Antônio. Passo Fundo: Ed. UPF, 2004, 134p.
civilizador, desenvolvido pelo sociólogo alemão Norbert Elias e
seguidores, o autor nos mostra que a importância do espetáculo Diogo da Silva Roiz*
esportivo, de torcer por um time, de acompanhar os jogos no estádio
teria “a função de ser uma válvula de escape catártica” à pressão
exercida pelo convívio social. “Torcedores compareceriam ao Era comum no Brasil dos anos de 1970 o aparecimento de
estádio justamente em busca da excitação para liberar suas pulsões questionamentos sobre a escassez de estudos sobre as teorias da
e assistir a uma guerra teatralizada.” (p.143) Por isso o futebol história em nossas universidades. Há pouco mais de quinze anos
não é apenas um jogo, “ele envolve muito mais do que o resultado esse quadro vêm mudando, porque além das pesquisas nesse
final estampado em um placar eletrônico...” “Serve também para campo serem mais numerosas, também tem ocorrido um aumento
fazer dinheiro ou inspirar obras-de-arte....”E, principalmente, algo nas traduções de obras estrangeiras, como ainda da publicação de
que é mostrado neste livro “para pensar a sociedade”. (p.147) obras elaboradas por pesquisadores brasileiros, a partir de suas
Por tudo que foi escrito acima recomendamos não só a dissertações e teses, ou por meio de pesquisas sem a pretensão
leitura atenta de Futebol por todo o mundo, como sua utilização originária de obtenção de títulos acadêmicos. E é justamente por
em sala de aula, para debates ou exposição dos alunos. Sua leitura intermédio de pesquisadores brasileiros, na maior parte reunidos
fácil e envolvente, aliada a um tema, por que não dizer vital para a em associações (como a Anpuh) e grupos de pesquisa (cadastrados
maioria de nós, brasileiros, permite a compreensão de assuntos no CNPq), que está ocorrendo progressivamente o desenvolvimento
que, discutidos de forma pomposa, dificultam o entendimento. Este deste campo de estudos no país.
pequeno grande livro é prova contundente de que o conhecimento O professor e pesquisador Astor Antônio Diehl é um desses
acadêmico pode e deve ser acessível a todos, e a forma melhor casos. Graduado em Estudos Sociais em 1980 e Licenciado em
disto ser realizado é produzindo textos atraentes, envolventes, o História em 1982 pela PUC/RS, onde também concluiu em 1986
que não significa concessão à superficialidade seu mestrado na área de História do Brasil. Fez seu doutoramento
na Alemanha em Teoria, Metodologia e Didática da História pela
Ruhr-Universität Bochum, sob a orientação do professor Jörn
Rüsen, concluindo-o em 1991. Dessa pesquisa resultaram quatro
livros sobre a origem e desenvolvimento de uma cultura
historiográfica no Brasil. Desde então, após ter retornado ao país,
vem se dedicando ao estudo das teorias da história na Universidade
de Passo Fundo, onde é professor e pesquisador. Resultado de
suas pesquisas nesse campo é seu último livro, cujo título (Teorias
da História) já indica seu interesse pelo tema. Conhecedor desse
campo de estudos seu objetivo nesse livro foi “elaborar uma
*
Mestre em História pela UNESP, Campus de Franca. Coordenador
do curso de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul (UEMS), Campus de Amambai.

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proposta de estudos para a disciplina Teorias da História” (2004: de interesse: o teor das experiências, o teor das normas e o teor
7), que além de não se pretender única, visa tirar algumas dúvidas dos sentidos” (2004: 21). Para o autor cada uma dessas
e facilitar o ingresso de iniciantes com uma primeira aproximação perspectivas teria um significado preciso: “com o teor das
ao tema. Essa proposta, segundo o autor, está vinculada com outros experiências queremos dizer que o passado terá sentido a partir das
quatro trabalhos “complementares já prontos e que serão publicados orientações, dos problemas do nosso presente e da prática social atual,
em seguida”. São eles: Metodologia da pesquisa histórica; com o teor das normas quer-se dizer sobre a função que o
Historiografia e cultura historiográfica; Tempo de conhecimento terá na atualidade e, finalmente, por teor dos sentidos
experiências contemporâneas e Fascinação histórica: sobre denominamos o espaço sociocultural no qual o conhecimento é
a estética e a função da história hoje. Todos esses trabalhos produzido” (2004: 22). E nesse caso, o autor não observa de forma
também se configuram como propostas de estudo. negativa a crise do pensamento histórico-historiográfico atual, mas
O livro foi dividido em quatro capítulos. Demonstra logo de como uma oportunidade para se avançar, e essa seria uma das
início que a problemática da ‘crise da razão histórica’ no Brasil, e justificativas para “o significado e a importância de uma proposta
a conseqüente fragmentação das análises sobre os processos, as de estudos na área de teorias da história” (2004: 23).
abordagens e as interpretações das sociedades passadas e Assim, não foi por acaso, que antes de discutir sua proposta,
presentes, fazem parte de sua discussão central no livro, e essa o autor demonstrou para os seus prováveis leitores a forma de se
foi também uma das razões de tê-lo escrito. Para ele: “Até a década aproximar dos textos teóricos, com algumas técnicas para melhor
de 1980, temos paradigmas teórico-metodológicos otimistas (...) aproveitar suas leituras. Para ele é preciso: a) estabelecer o objeto
Atualmente (...) em vez disso, [temos] um retorno ao passado, ao da leitura, quer dizer, definir o que se pretende questionar e responder;
indivíduo, ressaltando-se os aspectos etnoantropológicos de uma b) deve-se primar pela leitura integral do texto; c) e com isso analisar
visão cultural pessimista” (2004: 16). De modo que o autor elege o conteúdo, localizando a idéia central, as idéias que constituem a
alguns pontos a serem analisados: a) o “conhecimento histórico no argumentação do autor para sua idéia ou questão central e, também,
contexto dos séculos XVIII e XIX”; b) “mapear os questionamentos localizar as idéias secundárias, e como elas se articulam na análise
dos cientistas sociais – historiadores – em relação a sua própria e na argumentação do autor; d) para, enfim, interpretar o texto
disciplina”; c) e “considera o estudo dos deslocamentos de vendo suas propostas, suas ligações com outros textos, sua
paradigmas tradicional-modernos, em crise, para as recentes abordagem e informações, que juízos de valor comporta, que lacunas
tendências teórico-metodológicas” (2004: 17). Nesse sentido, o deixou e a quais conclusões atingiu. Em todas essas etapas de
autor considera que a “história como disciplina, quando pretende leitura, segundo o autor, o leitor deve fazer anotações, comentários
ter plausibilidade científica no quadro das ciências humanas, deve e questionamentos para nortearem suas interpretações dos textos.
contemplar uma matriz composta de, pelo menos, cinco elementos O ponto central do livro são as duas propostas para um
que a fundamentem como tal. Esses elementos da matriz [inspirados programa da disciplina teorias da história. Na primeira se estudaria
a partir da análise de Jörn Rüsen] são: os interesses pelo “o paradigma da ciência e os sistemas teóricos de fundamentação
conhecimento histórico; as perspectivas teóricas sobre o passado; e de constituição da possibilidade científica da história na análise
a metodologia e as técnicas de pesquisa; as formas de das especificidades da produção dos conhecimentos históricos”,
representação do conhecimento, ou seja, as formas narrativas observando “o debate do conhecimento histórico na chamada ‘crise
historiográficas e, finalmente, as funções didáticas da história. da modernidade’ e no ambiente pós-moderno”, e se estudaria “os
Nesse sentido, o pensar histórico terá plausibilidade científica se o limites e as possibilidades da história a partir das concepções
historiador conseguir argumentar com base em três perspectivas teóricas fundadoras da moderna ciência, tomando por base o
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iluminismo/romantismo, o idealismo, o positivismo, o marxismo e a clássicos’, “já não com as viseiras da ortodoxia do intransigente,
concepção weberiana de história” (2004: 34). A segunda proposta mas como possibilidade de contribuírem para o debate dos dilemas
foi precedida por um texto introdutório, no qual discutiu “aspectos contemporâneos” (2004: 120). Por isso o autor indica que nem
de desilusão da idéia de progresso na história e suas implicações”. tudo dos modernos está morto, assim como nem tudo dos pós-
Esse texto é uma versão ligeiramente reformulada de capítulo do modernos resistirá à prova do tempo. Para ele a “crise da razão
livro Cultura historiográfica: memória, identidade e histórica não deve ser entendida como o processo de volatização
representação publicado pela Edusc em 2002. Após esse texto e decadência da história como disciplina, mas sim, como uma
introdutório indica sua segunda proposta. Nesta se estudaria “os profunda mudança estrutural nos interesses sobre o passado, nas
limites do paradigma da ciência e os sistemas teóricos no formas de teorizar, de metodizar, narrar e didatizar a história” (2004:
movimento dos Annales e seus deslocamentos (...) as tendências 120). Por isso chega a seguinte conclusão com esse livro:
atuais do debate teórico a partir da história nova, da história social,
da história das mentalidades, da história do cotidiano, da nova
história cultural, da microistória e da psicanálise (...) a plausibilidade O sentido dessa reconstituição possibilitará
científica da história no contexto atual do debate em torno da pós- problematizarmos o passado a partir de duas
modernidade” (2004: 85). vertentes: a cultura da mudança e as idéias de futuro
que se tinha no passado. O conteúdo dessas
Em ambas as propostas o autor define a bibliografia a ser
vertentes são os fundamentos da cultura
trabalhada. No entanto, talvez aqui fique a maior lacuna do texto,
historiográfica, a qual propicia o sentido tríplice
que foi o autor não ter comentado a escolha dos livros (mesmo renovado para a história: o sentido da função
considerando que são básicos para o tema), nem a forma como emancipatória, o sentido da função utópica e o
deveriam ser lidos ou articulados (com exceção para os tópicos), sentido da função da alteridade. Nessa mesma
ou ainda, com textos introdutórios também fazer pequenas orientação, tal reconstituição possibilitará os
indicações sobre os livros selecionados para facilitar o ingresso do argumentos necessários para nos aproximarmos de
iniciante nesse tipo de leitura. Em todo caso, o autor foi bastante respostas para as questões formuladas em relação
didático ao colocar em prática sua sugestão de leitura dos textos, ao sentido da história no tempo presente (2004:
deixando espaços em branco no livro para serem preenchidos com 120).
as anotações e os comentários, provenientes das interpretações
de seus possíveis leitores.
Na sua conclusão o autor indica que o livro deve ser visto
como um roteiro básico que possibilite ao iniciante a constituição
do status da história como disciplina. Para ele toda “essa conjunção
de aspectos e motivações ao estudo da história deve ser vista
como positiva no desvelamento do passado. Mas tudo isso também,
gera uma fragilidade teórica da história como disciplina. Se a história
ganhou, por um lado, a possibilidade de se aproximar mais do
passado, por outro, ela está perdendo no que diz às teorizações
sobre a possibilidade da mudança social” (2004: 119). Foi com
esse objetivo que o autor demarcou um roteiro para se ‘reler os
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Revista do Mestrado em História (USS)
Normas para Publicação

I – Informações Gerais

A Revista do Mestrado em História, editada pelo Programa


de Mestrado em História Social da Universidade Severino Sombra
(USS), publica artigos na área de História e, eventualmente, para
o caso de ser aprovada a relevância do tema para os estudos
historiográficos, temas também relacionados às demais Ciências
Sociais e Humanas. Os articulistas devem ter como titulação
mínima a de Mestre. Os textos submetidos à avaliação devem
ser originais, inéditos, escritos em português.

II – Orientação Editorial

Os originais de artigos encaminhados para publicação serão


submetidos a uma avaliação cega pelos Pareceristas. Pequenas
modificações no texto poderão ocorrer; modificações substanciais
serão solicitadas aos autores. Os articulistas devem se
responsabilizar pela revisão ortográfica e gramatical de seus textos;
caso haja problemas relativamente a este aspecto, será solicitada
aos autores uma nova revisão. Os originais não serão devolvidos.

III – APresentação De Trabalhos

Os artigos devem ser encaminhados em duas vias


impressas, uma com identificação e outra sem identificação do
autor, e em uma via digital em Disquete ou CD-Rom.
Acompanhando os originais, os autores devem enviar também
uma folha de identificação contendo: nome, titulação e área/
universidade de titulação, universidade ou local de atuação
profissional, e-mail, endereço postal completo com CEP, telefone
para contato, bem como breve currículo de cinco a sete linhas
indicando publicações importantes, se houver. Estes dados também
devem ser enviados em arquivo à parte, no disquete ou CD-Rom.
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O material deve ser encaminhado aos editores da revista para os • As referências a autores e obras devem vir entre
seguintes endereços: parêntesis no corpo do próprio texto (sistema autor-dara),
conforme o modelo: (FERNANDES, 1975, p.42).
Revista do Mestrado em História da USS • As notas devem ser de fim de texto e com tamanho
Coordenadoria do Programa de Mestrado em História de letra Times New Roman 10, e poderão ser utilizadas
Rua Dr. Fernandes Júnior, 89 (Centro) para acrescentar explicações adicionais ou para remeter
Cep: 27.700-000. Vassouras, RJ. a outras discussões, mas não como meras referências,
já que estas deverão vir no corpo do texto entre
Fotos ou ilustrações só poderão ser publicadas em preto e parêntesis (SILVA, J. 1999, p. 42), conforme já foi
branco, e, caso existam, deverão vir localizadas dentro do artigo e explicado no item anterior
também em arquivo à parte, em formato JPEG.. • As Referências Bibliográficas (lista de obras citadas
ao fim do artigo), deverão estar situadas ao final do texto
Os demais aspectos gráficos devem seguir rigorosamente imediatamente antes das ‘notas de fim de texto’. Devem
as indicações abaixo: registrar apenas as obras que foram citadas no artigo,
sem nenhuma outra bibliografia adicional. As referências
• Texto em formato “Word for windows” 6.0/95 (doc). deverão ser apresentadas de acordo com as regras da
• Texto em papel tamanho A4, com margens 2,5 Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
• Tipo de letra: Times New Roman 12 Para livros, segue-se o modelo: BURKE, Peter. A Escrita
• Espaço 1,5. da História. São Paulo: UNESP, 1980. Atente-se para
• Extensão: 20 a 30 laudas o detalhe de que o título da obra deve vir em itálico.
• a primeira lauda do texto original deve conter, na Material coletado por meios eletrônicos deve apresentar
mesma ordem indicada: os elementos básicos que são: autor, denominação ou
título e subtítulo (se houver) do serviço ou produto,
- O título do trabalho em caixa alta, centarlizado indicações de responsabilidade, endereço eletrônico e
no topo da página data (mês e ano) de acesso.
- O nome completo do autor alinhado à direita,
com nota de pé de página indicando titulação ealocal A Revista de Mestrado em História da USS, além de artigos,
de atuação profissional também publica Resenhas, que deverão seguir as mesmas normas
- Resumo, com extensão de 8 a doze linhas, e indicações gráficas dos artigos, mas se limitar a um máximo de
acompanhado de três a cinco palavras chaves. cinco laudas.
- Abstract, com extensão de 8 a doze linhas,
acompanhado de três a cinco palavras chaves (três
a cinco key-words)

• no corpo do artigo não devem ser incluídos elementos


que possibilitem identificar o(s) autor(es) do texto (ex:
papel timbrado, rodapé com nome do autor).

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