muito maroto, traquina, mas muito atento e curioso. Era também muito inteligente. E claro, muito bonito! Tinha uns grandes olhos castanhos que sobressaíam na sua carinha morena e miúda. Quando saía da escolinha, o João costumava, às vezes, passear com o Avô Nando. Iam de autocarro e exploravam o mundo… Com quatro anos apenas o João sonhava que, quando fosse grande, seria polícia como o pai, mas, ultimamente, por causa das viagens com o avô pensava que talvez fosse melhor ser explorador. Era muito mais interessante e descobria-se sempre coisas novas! Ora, uma tarde quente de Verão, o Avô Nando propôs ao João darem um saltinho até Valongo. Apanhavam o 94 e lá iam até à estação. E assim foi. - Anda, avô! Despacha-te! – dizia o João – Eu quero ir sentadinho atrás. - Está bem! Tem calma! – respondia o avô – A esta hora, há muitos lugares vazios! O menino queria ir atrás junto à janela, porque assim podia observar tudo o que se passava lá fora e dentro do autocarro. Às vezes, as pessoas tinham um comportamento muito estranho e diziam coisas engraçadas, muitas das quais o João não percebia, mas pelas suas caras não devia ser lá boa coisa! Subiram para o 94 que dizia Estação. Não era o autocarro de que o João mais gostava, pois tinha um cheiro esquisito, diferente dos outros autocarros. Aliás, o próprio autocarro era diferente: branco, com listas azuis e vermelho em cima e as cadeiras eram de um tecido muito quente, algumas estavam sujas e cheiravam mal. O avô dizia-lhe que o autocarro era diferente porque não era dos STCP, mas de uma empresa privada. Coisas de adultos que o petiz não entendia, mas também não queria entender! O motorista já era conhecido. Tinha mais ou menos a idade do avô, só que tinha um grande bigode que fazia uns caracóis nas pontas. O João lembrava-se sempre do Bóris, o seu gato. Só que o bigode dele era muito mais bonito! Não tinha tantos pelos. Encostaram o cartão à maquininha que fazia um barulhito engraçado e sentaram-se ao fundo, do lado em que dava menos sol. O João ia junto à janela. E lá foram! Ainda era um bom bocado até chegarem à estação de Valongo. De vez em quando o autocarro parava para que outras pessoas pudessem entrar e outras pudessem sair. Chamavam-se passageiros. Foi o que o avô lhe disse na primeira viagem. Na Venda Nova, que era um local muito animado, entrou mais gente: passageiros e passageiras. Uma delas era uma senhora muito engraçada que vestia uma blusa branca às pintinhas amarelas e uma saia aos quadrados – ao xadrez, como dizia a mãe – roxos e amarelos e trazia um lenço roxo amarrado na cabeça. Vinha com muitas sacas do minipreço que o João tão bem conhecia. A senhora falava muito alto e queixou-se logo que estava muito calor e que vinha muito pesada. O motorista do bigode grande aos caracóis arrancou aos solavancos – o João tinha aprendido esta palavra num dos episódios do Noddy e achou-lhe piada - e a tal senhora engraçada virou um dos sacos que estava cheiinho de laranjas e foi então que começou uma grande confusão. Os passageiros que estavam de pé tentavam não pisar as laranjas e alguns, mais amiguinhos, baixaram-se para ajudar a apanhá-las. Mas, a senhora ficou muito zangada e disse que lhe estavam a roubar as laranjas, que eles eram uns ladrões e disse três daquelas palavras que a mãe não deixa dizer. Disse também que o motorista devia pensar que estava a transportar batatas, que eles eram gente e que deveria ter mais cuidado! E disse muitas outras coisas durante o caminho, até que o João se cansou de a ouvir e voltou a olhar para fora.
O autocarro começou a cheirar a laranja...
Estavam já no alto de Valongo, onde havia uma
rotunda grande com um monumento moderno no meio. Tinha-lhe dito o avô na primeira viagem. Para a esquerda, lado da mão que segura o garfo, ia-se para a Santa Rita, onde a avó e a tia Zezé costumavam ir visitar a tal senhora Santa. Mas, não lhe levavam nenhuma caixinha de bombons, nem de doces, o que era um pouco estranho, pois o João imaginava que, se elas iam visitar a senhora Santa, também iriam lanchar. E não ficava muito bem não levar uns docinhos! Às vezes, levavam flores, o que o João também não entendia, porque lá, na tal senhora, havia à frente uma espécie de quintal com árvores, onde se podia plantar muitas flores e relva e até, talvez, fazer uma piscina! Aquilo era tão grande!... Coisas de adultos. Em frente da rotunda havia uma rua larga que descia muito e parecia ser boa para fazer algumas explorações. Um dia, o João havia de pedir ao avô para irem por ali. O autocarro virou então para direita, o lado que segura a faca, que segura a caneta, que segura o pente, que segura a escova dos dentes, que segura o rato... ou seja, que segura tudo. Depois de virar, andou mais um bocadinho e parou na primeira paragem. A tal senhora do lenço roxo amarrado na cabeça e das laranjas saiu ainda a falar e a dizer que a vida era uma daquelas palavras que a mãe não o deixa dizer! Adultos! O autocarro continuou, passou pela rotunda do stand automóvel que tinha em frente um pequeno parque com escorrega e baloiço e, se a rua não se desviasse, o 94 ia contra a igreja, que era a casa do Jesus em Valongo. O João nunca lá entrou, mas, se fosse como nas Antas, lá estaria numa cruz o Jesus, em cuecas! O que não tem jeito nenhum! Onde já se viu?! Numa casa tão grande e fria!... Não deve ser lá muito confortável no Inverno! E tanta gente lá ia e ninguém lhe levava, ao menos, um fatito de treino, umas meias e umas sapatilhas! Não era preciso irem à Sport Zone, podiam ir à feira de Rio Tinto! Nem precisava de ser Adidas! Aquilo não tinha jeito!... E, depois, podiam, ao menos, pô-lo cá em baixo sentado, confortável, numa cadeira, à beira daquela mesa, com aquela toalha sempre branca, onde costumava estar o padre. Ele, o João, até podia lanchar com ele, enquanto o padre rezava a missa. Comiam os dois um Danoninho e pão com fiambre. Se bem que aquele Jesus até era muito grande. Tinham de fazer outro mais pequeno para ele. Mas, vestido! Ninguém vai para a mesa em cuecas, dizia a mãe! E estava o João nestes pensamentos, quando chegaram ao centro de Valongo que era uma rua muito movimentada e tinha muitas lojas. Tinha também a Caixa Geral de Depósitos, numa esquina e, em frente, o café Vale. Foi o avô que lhe disse numa viagem anterior. O 94 parou na fila por causa dos semáforos. E foi então que tudo aconteceu! De repente, ficou muito escuro, mas mesmo muito escuro! As pessoas, ou melhor, os passageiros tentavam espreitar pelos vidros do autocarro para ver o que se passava. O João fez o mesmo. Olhou para o céu que antes estava tão azulinho e viu que sobre eles estava uma nuvem muito escura, quase preta. Aquilo tinha mau aspecto! Não! Aquilo não era bom! Começou então a chover. Umas gotas muito grossas que batiam com força nos vidros e assustavam um bocadinho. O João encostou-se ao avô que lhe pôs o braço por cima dos ombros e o apertou, dizendo: - Tem calma! É só uma chuvada. Porém, a cara do avô estava muito séria e, ao mesmo tempo, parecia muito espantado, enquanto olhava também ele para o céu. Como se não bastasse, começaram a cair umas pedrinhas transparentes que faziam ainda mais barulho nos vidros e por cima do 94. O avô disse que era granizo, o que era muito estranho, pois era Verão. As pedrinhas continuavam a aumentar: eram cada vez mais e maiores; algumas pareciam ovos e outras os cubos de gelo que o pai punha no whisky. Estavam todos muito assustados, porque aquilo fazia mesmo muito barulho e as pessoas que estavam na rua e que levavam com aquelas pedras na cabeça começaram a gritar. Os toldos dos cafés e das outras lojas já estavam carregadinhos e as ruas estavam cobertinhas de cubos de gelo, de ovos transparentes e de água. Dentro do 94, o caso estava feio: uma senhora muito gorda que ocupava dois lugares gritava que não conseguia respirar e uma velhinha dizia que era o fim do mundo e que iam todos para o Inferno. Apesar de assustado, o João achou que a velhinha estava enganada. Ele já tinha ouvido falar no tal Inferno e tinham-lhe dito que, lá, havia muito fogo e, ali, só se via água, ovos transparentes e cubos de gelo. Pouco a pouco o granizo deixou de cair, ficando apenas aquela chuva grossa, até que passou. No autocarro, estava muito quente e abafado, porque as janelas tinham sido todas fechadas e, como não se conseguia avançar, o motorista de bigode grande aos caracóis abriu as duas portas e os passageiros que fossem à sua vidinha! O João saiu com o avô que lhe parecia mais sossegado e, por isso, o menino sossegou também. Ainda o ouviu dizer que aquilo era uma cala-qualquer-coisa, digna de aparecer no Canal Odisseia. Lá fora, o sol brilhava de novo e o gelo começava a derreter, o que era muito engraçado, pois como as valetas estavam entupidas, a água não tinha por onde sair e a rua principal de Valongo parecia uma piscina para crianças. - Isto só mesmo em Portugal! – exclamou o avô. A água não era lá muito limpa, pois havia a boiar sacos, papeis, pontas de cigarros e outras coisas mais... O avô do João disse então: - É melhor irmos para trás, até à igreja. É sempre a subir. Daqui a pouco estamos a seco! Queres vir ao colo? - perguntou. - Não, quero ir a pé! - respondeu o João. - Está bem! - concordou o avô. Era por isto que o João gostava do Avô Nando: respeitava sempre as suas decisões. - Avô? - perguntou - E vamos a pé até casa? - Não! Telefonamos à tua mãe que nos virá buscar. - respondeu. - E se ela estiver na escola? - voltou a perguntar o menino. - Telefonamos ao teu pai! Não te preocupes, um deles virá buscar-nos! E lá foram subindo a rua com o João feliz, pois lá se ia consolando naquela água suja, mas fresquinha! Quando a mãe chegou à frente da igreja, estava o João sentado com o avô num dos degraus de pedra, ambos descalços. O avô de calças arregaçadas, mas o João não, porque tinha levado calções. O João acenou à mãe com uma sapatilha na mão que segura tudo e, quando entrou no carro, disse: - Hoje, vamos aparecer no canal Odisseia! A mãe perguntou-lhe se ele estava bem e deu-lhe um beijo, enquanto apertava o cinto de segurança. O menino disse-lhe que agora estava tudo bem. Depois, a mãe arrancou um pouco nervosa. Nessa noite, o Fenómeno de Valongo apareceu na RTP, na SIC e na TVI, mas não no canal Odisseia. O pai acabou por lhe explicar mais tarde que Portugal era um país muito pequenino e Valongo nem aparecia no Mapa- Mundo. Coisas de adultos! Por isso, na vez seguinte em que o João foi a Valongo, levou galochas e máquina fotográfica digital. Se o Fenómeno de Valongo voltasse, o petiz mandaria, com a ajuda do pai, as fotografias que tirasse pela NET para o site do Canal Panda, ou para o do Noddy, ou, talvez, ainda para o National Geographic, outro canal de que o avô tanto falava. E assim treinaria para ser um grande explorador, ou caçador de fenómenos!