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Conteúdo
Apresentação – A oficina.................................................5
Tema 1 - Livre.................................................................11
Não existe mulher inteligente....................................13
Não confie nos jornais................................................27
Cotó descobre a liberdade.........................................29
Missão de extermínio.................................................31
Tema 2- O dia em que morri..........................................37
Meu sepulcro.............................................................39
O dilema do morto-vivo.............................................45
O quarto.....................................................................49
Tema 3 – O homem de branco.......................................51
Seda branca................................................................53
A fenda.......................................................................57
A roupa branca...........................................................63
Todas as cores............................................................67
Tema 4 – A contista........................................................75
Poeira.........................................................................77
O trouxa.....................................................................81
Imperfeição................................................................91
O duelo.......................................................................99
De repente...............................................................103
3
Tema 5 – o velho guitarrista de Picasso/O prisioneiro. 105
O velho guitarrista....................................................107
O preso.....................................................................113
Destino.....................................................................131
No tempo das maçãs................................................137
Das armas e das artes..............................................143
Tema 6 – O beijo..........................................................151
O beijo......................................................................153
O corruptor..............................................................159
Beijo fatal.................................................................175
Tema 7 – Ano 2099......................................................183
Ilusões......................................................................185
Anno 2099................................................................195
Quem guarda os guardiões......................................205
Terra de ninguém.....................................................215
Tema 8 – O toque.........................................................219
O sino.......................................................................221
A mão.......................................................................223
Duas caras................................................................231
O toque....................................................................245
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Apresentação – A oficina
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Lembro-me dos rumores, quando a internet começou a se
popularizar, de que a era digital afastaria as pessoas.
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escrevinhador de fim-de-semana. E, ao contrário das
expectativas, uma legião de autores sem leitores passou a
mendigar atenção na internet, nos fóruns, nos sites de
relacionamentos, em blogs.
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maior nota da quinzena, propunha o tema seguinte. O nível de
qualidade foi muito superior ao que poderíamos esperar, dado
ao curto prazo estipulado.
Toda vez que publico uma obra minha, seja na internet, seja
impressa, vem a minha mente um trecho do primeiro parágrafo
de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”:
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Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.
Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.
Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?
(...)
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Tema 1 - Livre
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Não existe mulher inteligente
Denis Clebson da Cruz
Dedicava pelo menos uma hora e meia por dia pra atualizar
o blog e responder aos insultos das feministas e demais
mulheres ofendidas e, acredite, não era nada difícil uma mulher
se ofender com o teor de seu sítio. Elas odiavam, especialmente,
os artigos onde ele surrava a falta de inteligência das mulheres.
Aliás, eis a parte que ele mais adorava: espancar o que ele
chamava de falta de cérebro feminino.
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Na manhã fresca de uma segunda-feira, Patrício vestiu uma
camiseta branca e um jeans surrado. Era seu dia de folga e
pretendia estrear um “gol bolinha” que havia comprado no
sábado. Uma verdadeira bagatela. Mal acreditava que havia
economizado cerca de uns cinco mil reais na compra daquele
carro.
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Patrício atendeu sorridente. Mesmo tudo regular ficou
nervoso olhando a expressão impassível do Policial que foi até a
traseira do golzinho e conferiu os dados com a placa.
- Pode seguir.
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Quero só verificar um detalhe, se o senhor não se importar –
disse ela educadamente.
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- Agora não. Sempre foi – disse ela. – O senhor está preso
por receptação culposa. Esse veículo está com o chassis
adulterado e documentos frios. É um carro clonado.
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“Sem problema”, pensou, já sacolejando atrás do camburão
que partia em retirada. “Na delegacia eu explico pro delegado o
que essa anta não consegue entender.”
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- E onde estão os tais documentos que o vendedor
apresentou para o senhor demonstrando que o veículo era
legal?
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- Sim, tanto que pedi os documentos pra provar que o
veículo era quente.
20
- Sim – levantou-se algemado.
21
- E cadê os documentos? – Perguntou a Dra. Liana,
sapateando o salto bico fino no chão.
- Menor o que?
- Eu saio agora?
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- Sim. Vou tentar – fechou o código em seu colo. – Vou
conversar com a delegada. Se eu não conseguir convencê-la ai
vou ter que pedir liberdade provisória ou relaxamento da prisão
pra Juíza. Aí a Promotora dá o parecer e você está na rua.
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Meia hora depois, voltou para a sala do pobre diabo que
recitava em sua mente frases de desdém à raça “mulherana”.
Ela disse:
O alivio de Patrício foi tão grande que ele quase se borrou ali
mesmo.
24
Escreveu o título para seu novo artigo: “Não existem
mulheres inteligentes, porém elas são muito bem relacionadas,
apadrinhadas e conseguem se comunicar entre si. Se não
cuidarmos, elas vão dominar o mundo.” Desceu a lenha na
mulherada, sem contar os detalhes de sua aventura naquele dia.
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Não confie nos jornais
Rafael de Leon
Para que você se compadeça do seu João, não que isso seja
necessário, saiba que ele é cego. Não era cego de nascença, pois
enxergou muito bem mais da metade de sua vida. Entretanto,
certo dia, quando foi ao posto de saúde fazer uma consulta para
reclamar de um vermelhão que apareceu no canto dos seus
olhos, uma enfermeira, que não julgou necessário o
atendimento de um médico, forneceu a ele, distraidamente
enquanto pintava as unhas, um colírio vencido que provocou o
trágico desfecho de uma cegueira total e um processo na justiça
que tramita há anos.
Voltando a tal fria manhã, seu João saiu cedo de sua casa,
armado de sua bengalinha para cego, em direção ao centro da
cidade. Muito bem, nosso protagonista estava próximo a um
cruzamento perigosíssimo – a única rua que tinha medo de
atravessar sozinho. O barulho da manhã era grande. Pessoas
iam, em seus carros, para o trabalho com muita pressa e,
conseqüentemente, incapazes de prestar atenção no trânsito.
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O pobre cego ao alcançar a perigosa rua procurou usar uma
de suas táticas preferidas: esperar até que outro pedestre tenha
que cruzá-la também e então pedir ajuda para que ganhe o
outro lado a salvo. Mas desta vez algo interessante aconteceu.
Seu João, que era com quem ele falava, e que não sabia
que quem lhe fez a pergunta também era um cego, pensou na
grande sorte que teve por achar uma pessoa de bom coração a
postos para lhe ajudar e respondeu que sim.
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Cotó descobre a liberdade
Henry Alfred Bugalho
Mas nós não chegávamos perto, e nem era por causa das
sarnas e carrapatos, ou da baba constante a escorrer, ou das
demais perebas que não víamos, era apenas para não sujar a
roupa limpinha, que Cotó insistia em macular com suas patas
avermelhadas de terra.
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Foi quando tive a brilhante idéia, apanhei um pedaço de pau
e mostrei a Cotó:
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Missão de extermínio
Ana Cristina Rodrigues
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Nelora guardou o equipamento. Antes de entrar no ramo de
finalização definitiva de conflitos fora uma brilhante cientista do
Exército. Passara três anos em alojamentos minúsculos,
comendo ração de soldado e ganhando um soldo ridículo. A vida
por conta própria valia muito mais a pena. Sabia que o marido
também concordava, mas ele sempre ficava muito sensível
depois do serviço feito.
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permitiria que formas de vida sobrevivessem à devastação
externa.
-Ursos?
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estranha maneira daquele planeta, com roupas amorfas e
acinzentadas, e coberto por um capa de tecido marrom
grosseiro. Ele começou a xingá-los na língua padrão.
O velho esperneou.
Nelora interveio.
-Como assim...
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Foi interrompido por sua esposa.
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-Esperem... o sensor disse que eram três.
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Tema 2- O dia em que morri
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Meu sepulcro
Denis Clebson da Cruz
39
Um cara normal, de quarenta e dois anos; um eterno
engravatado enfiado atrás de sua mesa empresarial de sucesso.
Dois filhos adolescentes, uma bela esposa e uma conta bancária
confortável.
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Deixei de lado aquela porcaria toda. Preferia ser um doido
produtivo a um maluco movido por antidepressivos.
Definitivamente, não era de remédios que eu precisava. Pode
até funcionar para algumas pessoas, mas para mim não surtiu
qualquer efeito.
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Impossível. Não podia ser tão simples. Não podia o tal Cristo
ser a solução, ser o preenchimento para minha existência.
- É verdade isso tudo que está escrito? Esse tal Jesus pode
preencher o que falta em minha vida? Como eu faço?
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- Deus, eu tenho um vazio em meu coração. Entrego minha
vida em Suas mãos, me faça um novo homem, molde-me à Sua
imagem, preenche meu coração. Mate o velho homem eu quero
receber Jesus em minha vida.
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O dilema do morto-vivo
Henry Alfred Bugalho
45
No entanto, Jorge não respondeu, absorto em pensamentos.
Passou o dia calado, não quis assistir à novela, foi dormir cedo.
Mas o sono não veio, Jorge rolava na cama, atormentando com
a idéia de que eles estivessem certo.
— 15 de Setembro de 1980.
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contramão, um motorista de ônibus bêbado perdeu a direção e
atingiu o caminhão onde Jorge e sua família estavam.
Todos morreram.
47
— Dona Maria, não podemos liberar a pensão do seu marido
— disse a funcionária do INSS. Nossos bancos de dados indicam
que seu marido está vivo.
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O quarto
Rafael de Leon
49
Eu seria o próximo ali? Tudo indicava que sim. O medo da
morte impregnou na minha pele e tudo o que pensei era que
precisava me esconder. Foi então que vi uma mesa, no canto do
quarto. Corri até lá e me joguei em baixo dela. Mas não. Bati em
algo, ou melhor, alguém. Alguém que teve a mesma idéia que
eu. A mesma idéia e um pouco menos de sorte, pois quem
estava lá, já estava morto. Seu rosto era irreconhecível. A cabeça
foi estourada. Um tiro era o que parecia a mim. Com a mesma
velocidade que fui me esconder, fugi do esconderijo. Voltei ao
meio do quarto, rezando agora para não encontrar outro
cadáver. Neste momento me lembrei da tesoura de jardinagem.
Era uma arma. Peguei-a. Por algum tempo consegui controlar
meu medo. Todo mundo fica corajoso quando armado. Com a
mente um pouco menos agitada, olhei ao redor com mais calma.
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Tema 3 – O homem de branco
51
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Seda branca
Henry Alfred Bugalho
Neguei.
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todas as batalhas na quais pelejou. Porém, numa noite, quando
o Imperador adentrou o alojamento da concubina favorita,
encontrou Hong-nu adormecido nos braços dela.
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Assim, no início da primavera, Wán e um exército de cem mil
combatentes se dirigiram ao Sul, com a missão de matar e
destronar o Imperador Qinzong. Wán era um dissimulado,
durante todo este período, ele apenas buscava uma
oportunidade para se vingar do Imperador que o degradou e lhe
retirou a mulher amada, à qual, diziam, Qinzong havia mandado
decapitar.
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E você estava entre os soldados do imperador, para saber
tudo isto? perguntei.
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A fenda
Denis Clebson da Cruz
57
onde Rujanm tinha plena certeza de que estava escondida a
Armadura Negra.
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O último golpe atingiu a cabeça de Rujanm, jogando-o para
fora da estreita Fenda.
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- Eu não quero te machucar de verdade – disse Rujanm. Sua
condição não dava qualquer credibilidade às palavras.
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golpe que o atingia, seu corpo sofria espasmos de violenta dor,
como se uma onda de choque intenso contraísse seus músculos.
61
- Não será hoje, meu amigo Tabuloon, que você encontrará
seu novo Mestre. Apenas aquele que derrotar o único que te
venceu em batalha conseguirá suportar o que virá depois da
Fenda.
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A roupa branca
Rafael de Leon
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vestiu outra que achou adequada para seus padrões, pegou sua
maletinha e foi para o trabalho.
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O ar em torno do corpo estava carregado de perguntas e
hipóteses. Era impossível ser ouvido no meio daquela confusão
toda, mas mesmo assim João arriscou:
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66
Todas as cores
José Espírito Santo
VERDE (ESPERANÇA)
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levantou o olhar o homem tinha desaparecido. Olhou para um e
outro lado, fechou a porta e ficou alguns segundos parado,
observando o objecto, sem saber bem o que fazer. Após aquele
momento de indecisão a curiosidade foi mais forte. E dá por si
sentado na cama abrindo o invólucro para encontrar lá dentro
um pequeno livro e aquela carta estranha. Começou a ler.
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banho que se impõe. Depois sair, fazer uns quilómetros e entrar
na confusão cosmopolita do bairro mais visitado da cidade – o
Bairro Alto.
VERMELHO (PAIXÃO)
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com vestuário requintado, de marca e que suporta a ocupação
que adora. Em que não tem horário fixo ou relógio de ponto mas
onde sempre se impõe o satisfazer dos desejos mais exigentes.
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- Senor Adelino... rsrsrs, não me diga que vai recusar uma
rosa a uma senhora...
AZUL (REFLEXÃO)
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Tens cinco minutos para descobrir a combinação do
cadeado. Senão já eras.
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comunidades de escritores que se apoiam uns aos outros em
tentativas de melhorar a escrita.
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Tema 4 – A contista
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76
Poeira
Denis Clebson da Cruz
77
cavaleiro, descrevendo sua cavalgava por entre os imensos
carvalhos da Floresta Proibida. Chamou-o de Heidan.
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O som de um trovão estrondeou a porta. Ellen levantou-se e,
à sua frente, estava o guerreiro de armadura negra. De dentro
do elmo, a escuridão lhe fitava.
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80
O trouxa
Henry Alfred Bugalho
Trocamos fotos por e-mail, ela não era linda, mas, como eu
já estava apaixonado, fiquei radiante. Mal podia agüentar
minhas férias chegarem para eu embarcar num ônibus e
conhecer pessoalmente Elisa.
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nosso primeiro encontro um local público, para segurança de
ambos.
— As coisas não andam fáceis, Robson, vim para cá, mas não
estou conseguindo emprego. Na pensãozinha onde estou, a
semana vence amanhã, e não tenho dinheiro nem para onde ir.
82
Como um casalzinho novo, todo dia eu voltava com um
presente para Elisa, ou um buquê de flores, beijávamo-nos
ardentemente e acabávamos sob os lençóis.
— Ah, Robie, a nossa vida não está boa deste jeito? Tenho
medo de que, se eu começar a trabalhar, nosso relacionamento
mude. Sabe como é: vou chegar cansada, sem pique. Sempre
sonhei em ser dona-de-casa. Poderíamos até nos casar...
83
sou rico, mas uns cem ou duzentos reais por mês posso separar
para você.
— Não passou por sua cabeça que ela possa ser uma
vigarista, uma contista? — um amigo me advertiu — Já ouvi
histórias semelhantes. Daqui a pouco, você volta pra casa e esta
mulher levou tudo.
Que boca maldita! Foi nesta mesma tarde que descobri que
limparam minha conta no banco, e, ao chegar em casa, só o
vazio, nem um único móvel, nem uma única peça de roupa havia
restado. A desgraçada me deixou com a roupa do corpo e um
apartamento onde até meu choro ecoava pelos cômodos nus.
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Elisa Sampaio não deixou rastros, na polícia, informaram-me
que mesmo o nome dela deveria ser falso, que caí num bem
articulado conto-do-vigário e que não deveria me penitenciar
por causa disto, muita gente bem mais inteligente do que eu
(esta sentença feriu meus brios) também já havia dado uma de
pato.
85
— Elisa?
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estapear-lhe a cara, arranhando-me a costas, como se fôssemos
animais.
Mas eu me continha.
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Aterrorizado, afastei-me e acendi a luz. Foi quando descobri que
Pablo estava morto, havia levado um tiro nos miolos.
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Fui julgado por júri popular, condenado a quarenta anos de
prisão por homicídio doloso, estupro, lesão corporal, roubo, e
outras acusações menores. Fui enviado a uma penitenciária
estadual, feito de mulherzinha, contraí HIV e quase fui morto na
última rebelião.
Por incrível que pareça, Elisa (se este for realmente o nome
dela) é, e sempre será, meu grande amor.
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Imperfeição
José Espírito Santo
I. Na livraria
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sempre para mais um pouco. Até que quebra de forma mais ou
menos inesperada. Naquele dia, chegado ao apartamento deu
com o nada, o vazio. Mais tarde um SMS informou lacónico da
“ida para casa dos meus pais”. Não te preocupes, levei a
Margarida, depois o meu advogado contactar-te-á – disseram de
forma aparentemente despreocupada as letras pequeninas,
redondas, do aparelho.
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“Sim, sou eu” atirou, ao que o outro som retorquiu “Olhe,
não nos conhecemos mas existe algo que lhe quero propor. Vale
bem quinhentos euros. Ah... pode chamar-me Ana.”
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que tinha marcado os sentimentos da sua vida mais recente. E
quando atingiu este ponto, subitamente, olhos húmidos, a voz
perdeu a força, calou-se. Tinha passado uma hora cheia, ele ali a
falar, falar, falar. À sua frente a mulher escutava atenta. De vez
em quando parava e baixava o olhar para tirar anotações no
caderno.
“Ouve lá, cota. Aqui é tudo gente boa, do melhor. Por isso
vamos fazer um trato contigo.”
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O magricelas de óculos saiu do meio do grupo. Encarou-o,
mirando-o de baixo a cima e disse.
“Hei, assim não vale. O gajo está em tão boa forma que os
animais não terão a menor hipótese. Vamos ter de desgasta-lo
um pouco.”
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quase ao seu alcance quando algo agarra e puxa a perna
esquerda. Decorre uma fracção de segundo após a qual sente o
osso a partir como se fosse mero bambu de um qualquer
canavial. Mas não se preocupa com isso nem com o sangue que
jorra livre e desgovernado dos vasos sanguíneos dilacerados.
Preocupa-se sim com o segundo primo, o qual o alcança
também, atacando num ápice. Ainda coloca as mãos,
protegendo a face de investidas sucessivas das mandíbulas que
abrem e fecham e puxam e rasgam. Mas a dor aumenta e é
impotente para resistir mais tempo aquela vaga violenta que
avança e não recua, que encontra finalmente o ponto vital,
partindo o pescoço, separando-o em duas metades, finando-o
nesse divórcio físico. Antes de se ir ainda consegue ouvir ao
longe a voz da loira a dizer – Muito bem, rapaziada, aqui está a
vossa parte. Agora é comigo. Isto nunca aconteceu. Nem um pio.
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tempo não são, que ainda recordam a vida que foi mas já nada
podem fazer.
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por detrás da colina e tenta imaginar como serão os próximos
textos. Sabe que não serão contos de amor.
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O duelo
Rafael de Leon
Mas não.
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Iria acontecer um duelo entre os contistas.
100
A mãe tem hoje Y anos
= X + 21
Daqui a 6 anos: (Y + 6) e (X + 6)
filho, tem-se: Y + 6 = 5 (X + 6)
Y + 6 = 5 X + 30
Y = 5X + 24
X + 21
Logo: - 4X = 3
X = -3/4
101
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De repente
Victor Berigo
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rostinho que parecia transfigurar com o apetite insaciável do
tempo, e nasciam sombras que um vento forte soprou por lá.
Brotava uma ligeira sombra sob teus pés, ela não entendia, a
sombra crescia, e estendeu-se pela amplitude do dia, até o pôr
do sol, e sumia.
104
Tema 5 – o velho guitarrista de
Picasso/O prisioneiro
105
106
O velho guitarrista
José Espírito Santo
107
“Duas canecas, por favor” Pedimos, cheios de sede.
“Encontrou? A quem?”
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“Claro! Mas não era assim tão velho. Deixa-me continuar...”
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A tigela voou para o espaço onde o homem já não estava.
Então algo lhe bateu por detrás violentamente. Uma dor sem
nome entrou de fininho e instalou-se autoritária.
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cancion” está igualmente mal contada. Ela diz que Barrios se
inspirou no som efectuado por um mendigo a bater à porta. O
que não diz é que o mendigo entrou mesmo e trazia com ele
uma guitarra. Ah! Já se está mesmo a ver quem era esse
mendigo não é...
111
112
O preso
Jurandir Menezes
113
Maurício, o guitarrista, dormia com a cara prensada contra o
vidro da porta do carro. Empurrei seu corpo para o centro do
banco e me ajeitei como pude. Era hora de voltarmos para a
nossa cidade. Havíamos todos dormido naquela casa onde, além
da garota que me fez companhia, moravam ainda outras duas da
mesma espécie. Isso me fez rir um tanto e, num sentimento
pueril de alívio, pensar que seria terrível acordar com os meus
companheiros de banda e mais uma garota da qual o nome eu
nem sabia, todos nus numa mesma cama.
-Preciso de café...
114
abertos, falava com clareza, mas não me engano em afirmar que
estava tão lesado quanto eu, ou pior. No entanto, era ele que
nos guiava e esse tipo de pensamento negativo não era boa
coisa naquela rodovia tão movimentada.
115
painel do carro, peguei um único cigarro, um isqueiro, pus nos
pés um par de chinelos de dedo e saí do veículo.
116
numa segunda reflexão, achei bem pouco possível que
compreendessem o alcance desse termo e, então, para lhes
mostrar alguma amistosidade, disse:
117
com o pedaço de estopa, assistindo a cena com o mesmo olhar
parvo. Ensaiei em direção a eles um grito de socorro, mas de
minha garganta comprimida o que brotou foi um som abafado e
quase inaudível. Sem me soltarem, me depositaram sobre o
banco traseiro de uma Brasília. Dois entraram comigo, sem em
um único instante afrouxarem os braços que me prendiam;
outros dois ocuparam os bancos da frente do carro, que logo se
pôs em movimento.
118
Quando eu já estava prestes a desfalecer sob tantos golpes,
uma voz autoritária se sobressaiu entre todas as outras e fez
cessar a tortura, ao que me ergueram e me acomodaram com
violência numa cadeira, diante de uma mesa, da qual, atrás, um
velho, também em uniforme de polícia, brincava fazendo girar
entre os dedos uma esferográfica. Compreendi ser esse o
delegado do distrito. O oficial ouvia o que diziam seus
subordinados sem deixar de me fitar. Logo, de uma gaveta de
arquivos, tirou uma grossa resma de papéis e a deitou diante de
si, sobre a mesa. Folheou-a por algum tempo, parava em uma
página ou outra, retesava as sobrancelhas e torcia o canto da
boca. Balançava a cabeça em movimentos lentos e, por vezes,
emitia um “é...”, como quem muito filosoficamente se conforma
com uma inevitável fatalidade. Alisou uma página com a palma
da mão, num gesto manso, e, por fim, falou:
Raimundo? Raimundo!
Erraram o alvo!
119
quando um dos policiais prostrados ao meu lado, me agraciou
com um violentíssimo golpe de cacetete nos dedos. Ao invés de
coerente esclarecimento dos fatos, o que emiti foi um uivo que
meus ouvidos se negaram a reconhecer como meu. Apertei
minhas mãos contra o colo, senti meus ossos esmigalhados; a
dor era lancinante. No mesmo momento, lágrimas brotaram de
meus olhos. Do outro lado da mesa, o delegado mantinha-se
imóvel e me olhava de sobrecenho vazio. Voltou a se deter nos
papéis.
120
trôpego discurso alguns choramingas “por favor” e “pelo amor
de Deus”. Eu me afogava em soluços. Estava apavorado.
121
o rosto de Minnie, e apalpei o absurdo do fato de eu estar ali,
trancafiado numa cela de delegacia de uma cidade rural por
crimes que eu nunca me imaginei capaz de cometer e que, com
efeito, nunca havia cometido. Nem sabia dizer se me sentia
desesperado naquele momento. Queria me reconhecer apenas
uma vítima de uma piada sem graça e de mau gosto, mas o fio
de minhas idéias se perdia, pensamentos se abortavam em
minha mente e eu era incapaz de dar a esse quadro qualquer cor
de racionalidade e coerência.
122
Ria o outro também e os ruídos e as palavras que saíam de suas
bocas pareciam preencher toda a cela.
123
preso...” , e que estava detido numa delegacia, precisava que ela
contatasse Carlos, o advogado.
124
Devia ser mais ou menos onze da manhã. Uma fome
descarada me judiava o estômago. Pensei em pedir almoço aos
policiais, contudo declinei desse desejo. Fazer refeição ali não
seria como me conformar com a minha condição de presidiário?
Eu podia muito bem resistir mais um pouco à fome e esperar
com paciência meus amigos que não deviam se tardar em
aparecer e me tirar dali. Não havia dúvida de que viriam,
obviamente. Não iriam embora daquela maldita cidade situada
em lugar algum sem mim. Esse pensamento me deixou mais
calmo e me tornei mais senhor de mim mesmo. Já nem me senti
muito incomodado com os cochichos sibilantes dos meus
companheiros de cela. Sabia que no futuro eu riria de tudo isso
e acariciaria contente o pensamento de que esses malditos
certamente ainda estariam apodrecendo nessa cela, fumando os
seus cigarros fedorentos e, sem a companhia de um injustiçado
pela Justiça para que os divertisse, tendo só um ao outro, suas
trocas cúmplices de olhares e sua estúpida língua sem pátria.
125
Não me agastei por isso. Ou, antes, só um bocadinho. Minha
mente era tomada por outras coisas. Confortava-me o
pensamento de eu não ser Raimundo, o fora-da-lei. Uma
bobagem, admito. Mas a certeza de não ser tal sujeito fazia-me
pleno de regozijo moral. Às vezes. Na maior parte do tempo fui
acometido de um saber-me incontestavelmente réprobo; uma
culpa kafkiana que fugia de toda e qualquer razão. Devaneios
como esses desenhavam estonteantes parábolas diante de meu
espírito, por demais impressionável e de natureza tão sensível.
Logo, peguei-me afagando lembranças de dias de liberdade:
companhia prazerosa de amigos, mimado aconchego familiar,
noites de festa regadas a rock n’ roll, sorriso de namorada...
Despertava de súbito e dava com as paredes de tom ocre de
meu féretro e meus surreais companheiros de reclusão, que não
deixavam um segundo sequer de me fitar. O contraste entre
esses dois mundos era aterrador e triste; trazia-me uma
melancolia exagerada em suas razões de não-ser e me tocar e eu
me encolhia indefeso em meu interior sentindo doloridas
ferroadas de um inexplicável remorso do qual me via incapaz de
medir a extensão, delinear margens e saber onde começava e
findava.
126
mim praticados; ungi-me dos mais nobres desígnios e tomei
para mim a firme decisão de me tornar, assim que descobrisse
por quais vias, uma pessoa melhor.
Eu estava salvo!
127
Pelo corredor, vinha Marcelo com um policial e o delegado.
Mas não tinham pressa. Não captei em nenhum de seus
movimentos qualquer sinal que denotasse urgência. Pelo
contrário: apalpavam-se ombros, uns dos outros, riam
expansivos e palestravam animadamente sobre pertinências do
trabalho que os três tinham em comum.
128
-Se apavorou à-toa, filho. – dizia o delegado à guisa de
consolo, e me apontava para o deleite dos demais - Olha esse
garoto! Treme feito filhote de anu.
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130
Destino
Denis Clebson da Cruz
131
Entrou em transe e o destino se descortinou diante dele.
Viu-se um pouco mais velho, gritando enquanto um monstro
rasgava-lhe ventre. Pôde sentir as garras da imensa criatura
albina abrindo-lhe uma ferida mortal. Acordou suado, segurando
o próprio ventre.
Despertou arfando.
132
- O Machado de Shin. Ele pode me salvar do meu destino.
Com ele matarei o Urroah albino.
Saiu da tenda com uma missão que iria tomar dez anos de
sua vida adulta. Uma década de guerra e de destruição em busca
do objeto que salvaria sua vida.
133
Expandiu os limites da tribo de Gri, sempre buscando e
interrogando shaitans e descendentes do Rei Hakrum. Chacinas
e torturas tornaram-no o príncipe bárbaro mais temido de todas
as tribos do país.
134
Quantos já estiveram ali antes dele? Quantos buscaram
alcançar o Machado de Shin e morreram no vale? Nada disto
importava. Tinha plena convicção de que não morreria no vale;
sabia que seu destino era possuir aquela arma e com ela
derrotar o urroah albino, livrando-se do seu destino.
135
pensava estar fugindo, mas, na verdade, caminhava em busca
dele.
136
No tempo das maçãs
Danilo Reis
Inverno 2007
137
Primavera 1953
138
Foi ali, na poeira da rua, que conheci muitos personagens do
meu carnaval infantil. A vendedora de trufas, meu primeiro
amor; o jornaleiro, sempre sisudo e balofo; o negrinho, que nos
seguia e foi um dos meus melhores amigos até sua morte
prematura, aos 13 anos; as senhoras que conversavam nas
calçadas, inteirando-se das últimas novidades do bairro; os cães
e gatos que levei para casa, sob o olhar cúmplice de Fermina.
139
lhe entreguei, ele respondeu com um sorriso e uma melodia.
Esta, mais bonita que a outra.
Inverno 2007
140
O tempo nos rouba o verão. Cedo, não somos mais que
árvores sem folhas, indiferentes aos encantos dos que outrora,
vinham cortejar nossos frutos.
141
142
Das armas e das artes
Henry Alfred Bugalho
143
Mas o violeiro me encantava, e comumente eu negligenciava
minhas tarefas domésticas para ficar ao pé do músico,
apreciando suas histórias.
Isto não diminuiu meu fascínio por aquela figura, tanto que
tomei a resolução de seguir, se possível, uma das duas carreiras
no futuro: cavaleiro, e cruzar o mundo como Alatiel, matando
dragões e assediando bastiões; ou violeiro, vagamundeando a
contar histórias.
144
Papai jamais permitiria que me tornasse músico, por isto, no
intuito de me libertar de tais estapafúrdias elucubrações, ele me
enviou para ser treinado por um aristocrata. Como pajem,
alimentei as montarias do cavaleiro, carregava suas armas, polia
sua armadura, acompanhando-o em torneios.
145
após tanta desdita. O violeiro dividiu comigo um pão endurecido
e me levou até o celeiro onde lhe permitiram dormir.
146
Por fim, abrigamo-nos num burgo e fomos assediados por
meses. Os que não morriam nas batalhas, pereciam de fome e
peste. Nossos comandantes tombaram em combate e, para
minha surpresa, designaram-me como o capitão dos nossos
soldados.
147
— Não há mensagem. Sou apenas um cantador, meu
capitão, vou de vila em vila a trovar.
148
— Condenaram-me à morte alegando ser eu um espião, que
trazia informações dos reinos inimigos ao nosso senhor, e que
indiquei o modo como ele poderia fugir ao cerco.
149
150
Tema 6 – O beijo
151
152
O beijo
Denis Clebson da Cruz
- Mas...
153
- Você sabe que sou prometida, Tom – finalmente levantou o
semblante. Seus olhos azuis mostravam certa súplica – Não
posso contrariar meus pais neste momento difícil. Dê-me mais
um tempo.
154
razões para medo. Abri e me deparei com Joe; suas roupas
encharcadas de sangue.
155
- Tom? – disse o homem sorrindo ainda mais. – Ela me
contou sobre você. O garoto que quer um beijo – gargalhou.
156
- Patético. Mas vou te presentear com algo pior que a morte.
Viva, garoto, para sempre, sentindo a perda da sua querida
Allice.
157
Dimitre foi um grande mestre, porém não colaborou em
nada na minha busca por vingança. Dizia que isto não devia ser a
motivação nem para a mais vil das criaturas. Mas ainda hei de
encontrar aquele monstro e cobrar a dívida de morte que tem
comigo.
158
O corruptor
Henry Alfred Bugalho
159
As coisas não eram tão simples de serem explicadas.
Cagadas nunca possuem lógica, sempre ocorrem numa sucessão
sem explanação racional, e foi deste modo que me enredei
nisto.
160
situação, ela compreendeu que era isto ou a bola de neve das
dívidas que se acumulariam.
161
Não me lembro exatamente quando passei a reparar em
Talita. Ela era aluna do terceiro ano, Ensino Médio, não se
destacava pela inteligência, mas também não compunha o
grupo dos bagunceiros. Meu único problema com ela era a
incapacidade da menina em ficar quieta e, por isto, logo
memorizei seu nome:
162
poucos centímetros, e ela passou abrir e fechar os joelhos,
revelando e escondendo o que atraía minha atenção.
— Hum — resmunguei.
163
apesar de doloroso para as expectativas por mim alimentadas,
era a melhor atitude possível por parte dela.
164
— Acho que estou apaixonada por você, professor — e, ao
terminar esta sentença, os lábios delas quase tocavam o meu.
Ela fechou os olhos e aguardou um beijo meu como resposta.
Esquivei-me lateralmente, apanhei minha pasta e retruquei:
165
mulheres: elas lançam a isca, mas, na hora da fisgada, puxam o
anzol pra fora d’água, deixando-nos boquiabertos, chupando
dedo. Elas querem se sentir desejadas, e fim de papo.
— Se esta for sua primeira vez, pode deixar que eu vou com
calma... — comentei, querendo parecer gentil.
166
de tudo em todos os lugares, era rejuvenescedor, fazia-me sentir
mais homem.
167
Bastou uma foto para pôr tudo a perder. Primeiro, a cena da
Júlia, quando ela esfregou o jornal nas minhas fuças. Depois,
uma ligação do diretor da escola, manifestando a insólita
declaração:
168
Mesmo estando proibido de entrar no colégio, aguardei na
saída, à espera de Talita, mas não a vi. Dirigi, então, até a casa
dela, mas jornalistas a cercavam, todos querendo uma nesga da
manchete.
169
Isto foi uma tremenda duma contradição, ela não se casaria
com um velho, mas transava com um. Expus-lhe este meu
pensamento.
170
— Cale sua boca, sua vadia! — eu segurei Talita pelo braço.
Não posso, nem devo, esconder que senti prazer neste ato,
acaso mais do que quando transava com ela. Uma impressão de
superioridade, de poder, de força me consumia, quase uma
identificação com o divino. A Deus era reputado o poder de criar
e destruir; naquele momento, eu me igualava a Ele, destruindo o
Universo em menor escala, privando da vida uma de suas
criações (talvez a mais imperfeita delas) pelo mero capricho de
conservar a supremacia. Manifestou-se a verdade que
Raskolnikov entreviu: alguns nascem ordinários e, para eles, as
171
regras valem; outros são extraordinários, e estão para além do
bem e do mal.
172
Se eu tivesse de ser acusado de algo, a única acusação plausível
seria esta: ter encontrado as pernas dela aberta, convidando-
me.
173
174
Beijo fatal
José Espírito Santo
175
“Por favor, ajude-me” diz a voz de mulher.
176
Ao ouvir a palavra dou um salto atrás, colocando-me alerta.
Praticantes exímios da arte marcial, esses filhos de meretriz
mercenários actuam em grupo e são adversários temíveis.
Aparecem e desaparecem num ápice semeando a morte e o
terror.
177
apartamento com um colega de faculdade, formávamos um
casal jovem e cheio de ideais. Depois... veio a desilusão! Um dia
descobri que ele me traía e, contragosto, fiz o que era
necessário para salvaguardar a dignidade e amor-próprio, pu-lo
a andar. Aceitei todo o tipo de biscates para sobreviver,
sujeitava-me ao que ia aparecendo. Não podia apelar para a
ajuda paterna – entre mim e meu pai estendia-se a barreira do
orgulho mútuo. Finalmente chegou o tempo bom em que
alguém reparou em mim e me propôs projectos mais
ambiciosos. Então num desses trabalhos...”
“Fique aqui. Use-a sem hesitação caso veja gajos mais feios
que eu” dou por mim num piscar de olho inevitável, sem obter
qualquer resultado. A tipa não deve ter sentido de humor.
178
Como sei que desarmado serei presa fácil, rolo e tento
chegar à pistola. Um raio antecipa-se cortando-me caminho e
acerta-lhe em cheio transformando-a em pó. As coisas não
estão nada boas, sei que não restam muitas possibilidades. Olho
para o meu oponente e em acção desesperada de instinto de
sobrevivência levanto-me, apoiando o corpo na perna sã. Tento
fugir. Outro raio. Dor! Lá se foi a segunda perna. Caio
novamente e fico a olhar atónito para a ferida profunda.
179
os olhos e recebo o beijo com suavidade, sentindo o sabor de
lábios húmidos se colando nos meus. Depois... depois não me
contenho, avanço com tudo e minha mente recua subitamente
no tempo. Recordo minha infância, o tempo de escola, como me
fiz homem e cheguei a esta profissão. Mergulho em mar de ser
onde vejo espalhadas à volta todas as memórias. Que vêm e
vão, que fogem quando chamo. Pouco a pouco perco a noção e
o sentido de tudo e o tempo e espaço dão as mãos rodopiando
sobre mim em ciranda alegre. De repente vejo o meu ser, ao
longe, situação estranha, impossível - eu fora de mim. Sou
simultaneamente o que faz e o que observa, o leitor crítico e o
escritor.
180
Emerjo da realidade virtual. À minha frente, o programa de
computador “mensageiro do vento” parece doente tão cheio
que está de ícones alarmistas, pintados a vermelho. Por todo o
lado a frase “Alerta. Intrusão. Segurança comprometida”. Mais
um pouco e entendo tudo. Aquela vaca da indiana! Fora
apanhado e deixaria de ser útil para passar a ser incómodo. Na
melhor das hipóteses terei cinco minutos até à chegada da
equipa de limpeza que vem para me erradicar!
O tempo passa e eu passo por ele, não dou por nada. Trinta
e poucos minutos depois...
181
nossas noites de comunidade e quem sabe, talvez até o pintor
espanhol, o Pablo, goste tanto que um dia resolva imortalizar-te
em óleo de tela. Aqui todos ganham nova identidade e acho que
iremos chamar-te ‘o guitarrista’. Que pensas disso?”
182
Tema 7 – Ano 2099
183
184
Ilusões
Denis Clebson da Cruz
- Isto custará mais que os créditos que você tem. Mas é algo
que podemos resolver, se é que você se dispõe a fazer outro
serviço.
185
- A memória de um ID. Você faria isto? – seu tom é de
desafio.
186
tempo; Jaila não me responderia. Sei exatamente o que fazer:
caçar, esterilizar a mente do alvo e trazer as informações para a
Corporação. O Med500 seria um simples obstáculo a ser
vaporizado pelo meu potente braço direito.
187
Três dias depois, Messias ressurgiu na matriz da corporação
que a gerou. Foi impossível não traçar um paralelo com o
cristianismo, mas, para a grande maioria, tudo não passava de
mera coincidência, já que a religião havia caído na descrença
desde o início da Corrida.
Depois disto, iniciou uma nova era. Novas IAs surgiram, mas
todas muito inferiores à Messias e sempre tentando roubar
alguma tecnologia que a ela pertencia. Um novo tipo de guerra,
quase invisível, onde a Corporação Satan se põe apenas como
mais uma das simples detentoras de Inteligência Artificial,
alimentando-se de qualquer migalha de tecnologia.
Meu transporte começa a voar mais baixo, ali pelo nível três;
para numa das entradas do edifício onde meu sensor acusa estar
o alvo. Olho para o pequeno espelho e confiro se meus cabelos
negros estão bem espetados; gosto deles assim, sem qualquer
camada de proto-ilusão, verdadeiro vício entre as pessoas
atualmente. Algumas delas só sabem o que é a imagem real de
um humano quando desativam sua fachada de mentira e
conferem a própria imagem no espelho.
188
Entro em um salão, tentando não deixar muito evidente que
estou caçando alguém entre as vinte e duas pessoas que meus
olhos escaneiam instantaneamente. Ao fundo, uma autêntica
jukebox, onde toca uma música antiga, com o refrão que diz
“love me tender”. É um dos inúmeros bares que ambientam
antigos cenários. Este retrata os anos 70 do século XX.
189
bonita, magra e com roupa rosa que lhe agarra o corpo inteiro.
Sua imagem jamais denunciaria ser ele um andróide.
190
Rente ao solo, disparo alguns raios de meu veículo,
explodindo em espeluncas do nível zero. Somente IDs da pior
categoria vivem por aqui. Finalmente acerto um disparo,
destruindo a turbina do alvo. O veículo raspa no chão até colidir
numa parede, base de um dos inúmeros prédios lá em cima.
191
- A Corporação só quer apagar o que eu sei.
192
- Não posso deixar você fazer isto.
193
194
Anno 2099
José Espírito Santo
195
petrificado, sem saber bem o que fazer!.. já não foi a lugar
algum.
196
Tudo corria bem. Todos viviam mais ou menos felizes e
ocupados com os seus afazeres, regras e preocupações até à
chegada do dia fatídico.
197
“Daniel, por aqui a esta hora? Que se passa?”
198
da árvore, chorando. Lembrou-se então do manuscrito. Abriu a
caixinha que ainda guardava consigo e começou a ler
“Minha querida
Sei que o que te vou contar vai ser uma surpresa. Esta
história não morrerá certamente entre nós duas e é necessário
que assim seja, pois o mundo tem de seguir o seu rumo,
encontrar os seus caminhos. Durante anos a fio comunicámos
através deste meio e fui-te instruindo nas maravilhosas
aquisições de nossa ciência e tecnologia. Mas nunca te falei
sobre o meu estado actual e estado actual de nossa civilização.
199
tecnológicos foram usados para em vez de aumentar o tempo de
vida, nos permitir produzir mais durante um pique que durava
entre quinze e vinte anos. Pique esse que era exigido. Após esse
tempo, completamente esgotados, nossos órgãos pouco mais
resistiam. A esperança de vida diminuiu e, enquanto no final do
século XX, em países avançados ela se situava acima dos setenta
anos, hoje ela não ultrapassará os cinquenta. Para os nossos
senhores, donos de feudos imensos e da tecnologia as coisas
eram bem diferentes. Podiam esperar viver facilmente duzentos
a trezentos anos de uma vida de vício e luxúria, praticando com
impunidade todas as asneiras possíveis e imaginárias.
200
EuroRussia, Nova África, Eixo Sul-Americano, Eixo Norte-
Americano, Nova Índia, Nova China e por aí em diante. Cada
bloco tinha o seu próprio governo, reportando todos ao poder
central em Nova Pequim.
201
encontre no futuro, restabelecer as bases do conhecimento.
Num nível inicial, com recurso a uma linguagem universal – a
matemática e a explicações pictóricas, ensinam-se as
linguagens. Após essa fase, uma vez detentor da linguagem,
bastará ao interlocutor estudar os conteúdos para efectuar a
aquisição de conhecimentos. Vamos colocar sete réplicas em
sítios previamente escolhidos. A primeira será em Paris, bem
próximo das ruínas do Louvre, a segunda será em…
202
Ao terminar, Daniel - o primeiro grão-mestre da ordem,
inutilizou a mensagem de forma a que ninguém mais pudesse ler
o que tinha lido. Jurou ali mesmo cumprir - escolher sete e
iniciar um grupo que chegaria até ao futuro para resgatar o
conhecimento. Tinha nascido nesse instante um grupo secreto e
iniciático – a organização “Anno 2099”.
203
Lembrou-se por fim, que acabara de escrever e enviar a
mensagem através do portal. E isso era o que mais importava.
204
Quem guarda os guardiões
Pedro faria
Por anos eu lutei para entender o que ele queria dizer com
isso.
205
Hoje eu entendo.
206
- Bem, por que não estamos nos movendo? – perguntou ele,
no mesmo tom agressivo.
- Ora, como você não sabe? Já peguei esse táxi três vezes
semana passada, indo para o mesmo lugar!
207
lhe pedi incessantes desculpas. Humilhei-me perante tal figura
proeminente de nosso rápido e importante mundo de negócios.
208
- Quer dizer então que o senhor é contra os colonos?
209
Não posso dizer que fiquei com raiva do sujeito naquele
momento. Fiquei apenas curioso. Curioso em ver a reação dele
depois que eu dissesse o que tinha de dizer.
210
- Nunca ouvi tamanha besteira! -, disse ele. – Não sei de que
latrina saíram essas idéias absurdas de que nosso governo
poderia fazer tamanho mal a pessoas antes leais a esse planeta.
Suas ideias são incoerentes, sem fundamentos e perturbadoras.
Deveria alertar as autoridades quanto ao senhor. E acho que o
farei.
211
lembrava, diferentemente do terno. Ela me falava de seu
cafetão, como ele era violento, como ele batia nela, como ele
não a pagava direito. Porém, da última vez que a peguei, hoje
bem mais cedo, ela me disse que estava de bem com ele.
212
mais pacífico, os povos eram mais unidos, o dinheiro não trazia
tantos problemas e tantas disputas quanto hoje.
Sei que não era assim, e é por isso que eu choro. Talvez em
2199 seja diferente.
213
214
Terra de ninguém
Henry Alfred Bugalho
215
chacoalhões. Por fim, tudo se acalma, as luzes da cabine se
apagam, a porta se abre.
“Eles chegaram!”
216
Sua viagem parece ter sido em vão; sua missão fracassara.
Mas você não desiste, perambula pela cidade, numa outra
tentativa para encontrar vida e obter informações sobre esta
civilização.
217
oito disparos são para os inimigos, o nono será para você”. Mas
ninguém esperava esta situação.
218
Tema 8 – O toque
219
220
O sino
Ana Cristina Rodrigues
221
O sol esquenta. O meio-dia aproxima-se, hora em que o sino
irá badalar com toda a sua força. O ruído do povo ao meu redor
cessa para que uma única voz comece a ressoar. Voz conhecida
de muitos anos. Por muitas vezes, ouvira-a conversando com
meu pai, discutindo os problemas daquela pequena paróquia.
Algo a dizer?
222
A mão
Henry Alfred Bugalho
Nada havia.
223
a uma mão, ou a algum dono de mão querendo me dar um
susto. A hipótese de ser meu irmão estava descartada.
224
dormir. Mas eu estava muito nervosa, coração batendo forte,
pés gelados (temia que alguém viesse puxá-los), trêmula.
Encolhi-me como um feto, a chuva havia engrossado, repicando
na vidraça. Tive a impressão de ouvir sons debaixo de mim,
alguém se arrastando, movendo a bagunça lá em baixo.
225
Uma expressão de condescendência e compaixão surgiu no
rosto de minha mãe, mas a ordem de papai era lei.
Mas como?!
Ele riu.
— Mulheres mesmo!
226
dormir, mas não consegui entrar no meu quarto, a simples
memória de ontem à noite bastava para me impedir.
227
borda do colchão, agarrando o edredom, dando suporte ao
resto do corpo que haveria de aparecer, me fez mudar de idéia.
228
contratado, das investigações policiais, nada foi descoberto. A
moça havia simplesmente desaparecido sem deixar vestígios.
229
230
Duas caras
Denis Clebson da Cruz
Abriu o papel e viu uma cifra. Era o exato valor que havia
desviado da Firma. Eles descobriram. Não tinha como escapar da
morte.
231
Enxugando novamente a testa, sorriu. “Metade do dinheiro
foi pras putas”, pensou e limpou a bunda mais uma vez.
232
na camisa de Tobias. Olhou para os curiosos e, passando por
eles, disse:
- Daniel.
233
Daniel meneou a cabeça. Ela – seja lá quem fosse – sempre
fazia isto.
234
- Quero saber se o contador lhe disse algo antes de morrer –
disse Maila sem rodeios.
235
Maila desligou e Fred escreveu algo no papel que havia
pegado, enfiando o no bolso da camisa. Deixou o celular sobre a
mesa e sentou-se ao lado do paciente.
236
Daniel despertou olhando o visor do celular, mas sem soar o
jingle que havia escolhido há poucos segundos – sequer
percebeu ter decorrido quase uma hora completa. Soava o
toque daquela estranha mulher que às vezes ligava para dizer
que era engano.
- Quem é você?
237
- Eu sou você. Ou melhor, sou outro de você. Ou outro que
vive em você.
238
ordens hipnóticas e acho que estou pronto para enfrentar os
comandos deles. Daniel, temos que nos livrar destes malditos.”
- Isto é loucura.
239
Teve acesso a um corredor com quatro elevadores. Entrou em
um deles e acionou o 38° andar.
240
notas de mil. Seu sorriso sumiu quando viu pelo vão da porta
que a secretária havia despertado e estava pendurada no
telefone.
241
Os presentes alvoroçaram no recinto entupido de gente e os
guardas não encontravam o alvo. O som do giro do motor da
moto não sobrepujava os gritos.
242
Naquela manhã, carregara a bateria e o deixara ligado ali ao
lado. Daniel queria ouvir a voz de Maila; Fred queria apenas
xingá-la.
- Maila?
- Sim querido.
243
244
O toque
José Espírito Santo
245
“Como é? E foi importante esse encontro?” disse a cara
morena, espantada.
246
Estava pensando no que iria fazer em seguida - ainda não
tinha esboçado reacção, quando ela voltou à carga
247
pronunciava. Por fim, encostou-se a mim e senti a mão entrar
pelo bolso do casaco colocando lá algo. Disse:
248
“Escolha? Quer dizer que ela ainda teve o desplante de lhe
propor um jogo?” disse a mulher, que até essa altura se tinha
limitado a escutar.
249
“Olá Marta. Pelos vistos não conseguiste ver-te livre aqui do
Português. Quero o que é meu”
250
bom. Um toque inesperado, subversor na minha vida. E
recuperei a carteira.
251
inesperado. Encostou suavemente a sua mão na dele, puxando-a
um pouco para si. E ouviu-se dizer (não sem alguma surpresa)
252
253
254