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INTRODUÇÃO

Trata-se de análise de texto “Um aspecto da diversidade do caboclo amazônico:


a religião”, originalmente publicado na obra intitulada “Diversidade biológica da
Amazônia”, organizada pela professora Célia Guimarães e outros, numa publicação do
Museu Paraense Emílio Goeldi, no ano de 2001 (pp. 253-272).

Produzido pelo renomado autor paraense Raymundo Heraldo Maués, autor de


diversas obras (como “A ilha encantada: medicina e xamanismo numa comunidade de
pescadores”, publicada pela editora da Universidade Federal do Pará, em 1990), é uma
visão antropológica sobre o assunto religião, baseado na experiência de seu trabalho
de campo e em outras obras de pesquisadores.

O autor ao abordar o tema acerca dos aspectos religiosos da cultura cabocla, e


como corolário as crenças e práticas, inserido no contexto de uma área amazônica,
especificamente no município de Vigia, nordeste do estado do Pará, na região do
Salgado, afirma existir um substrato comum que permite certa generalização , não
obstante a grande riqueza de mitos, concepções, crenças e práticas. Para isso se
utilizou de informantes caboclos (pessoas do interior ou de origem rural).

O estudo tem foco no pequeno povoado da Vila Itapuá, localidade do município


de Vigia/Pa, quando o autor ali chegou em 1995, para realizar trabalho de campo e

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estudar os hábitos e as ideologias alimentares, bem como as concepções sobre
doenças e a forma como eram curadas.

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DESENVOLVIMENTO

Atento ao tema religião, como uma das abordagens do estudo que fez, de pronto
constatou no local uma forte aversão ao protestantismo, exemplificado também pelo
fato da mal-sucedida tentativa de instalação de uma sede da igreja Assembléia de Deus
na sede do município de Vigia.

Observou uma forte repressão às crenças e práticas ligadas à pajelança pela


Igreja Católica. Somente após um mês residindo no vilarejo foi ter notícia da existência
dos xamãs ou pajés. Os moradores do local declaravam-se católicos e omitiam suas
práticas xamãnicas, talvez pelo fato de que os inquisidores da igreja ali estiveram à
caça dos pajés.

Concorda, o autor com os populares do local em declaram-se católicos e


omitirem suas práticas xamãnicas, pois, afinal vai concluir que tais práticas e crenças
estão incorporadas ao catolicismo “local”.

O catolicismo popular dessas populações amazônicas, na região do Salgado, e


outras investigadas (não especificadas no texto) centra-se na crença e no culto de
santos. Na localidade de Itapuá, os principais santos que o povo cultua são Nossa
Senhora de Nazaré, São Benedito, o Menino Deus e São Pedro.

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A concepção a respeito dos santos é a de pessoas que viveram neste mundo, e
por processos diversos, se santificaram após a morte. Há também o que chama de
“santos populares”, nos cemitérios, para os quais se acendem velas e dos quais se
recebem “graças” ou “milagres”.

Há, pela população cabocla da Amazônia, a distinção entre o “santo do céu”,


que, como o nome refere é o que está no céu, e “suas semelhanças” ou imagens que
foram “deixadas por Deus na terra”. Essas imagens estão imbricadas com o poder do
santo do céu. Existindo imagens para um mesmo santo há as mais “poderosas” ou
“milagrosas” que outras.

Cita o São Benedito Achado, imagem cultuada na cidade de Curuça/PA, como a


mais milagrosa de todas. Compara as imagens de Nossa Senhora do Nazaré
depositadas na Basílica de Nazaré, em Belém, com a da igreja Madre de Deus, em
Vigia/PA, dizendo ser difícil precisar qual delas é a mais poderosa, porém que seriam
de incomparável grande poder em relação às numerosas réplicas.

O poder dos santos estaria relacionado com dois fatores: com suas imagens e
com os locais de culto onde são venerados.

O autor relata concepções mais particulares dos caboclos amazônicos que dizem
respeito à pajelança rural ou de origem rural (cabocla), que tem como crença
fundamental a concepção dos “encantados”.

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Ao contrário dos santos, os encantados são seres humanos que não morreram,
mas se “encantaram”. Como exemplos, citam dois “encantados”: Cobra Norato e o rei
Sebastião, com suas lendas.

Cobra Norato, narrada como uma cobra grande, teria sido uma criança de nome
Antônio Norato, que se transformou no animal pelo encantamento, e afinal matou a
própria irmã gêmea, também encantada como Maria Caninana e seu enamorado, pois
temia que com o namoro deles, não pudessem os gêmeos desencantarem-se, qual era
seu desejo.

Rei Sebastião remonta a estória de Dom Sebastião que morrera durante a


batalha de Alcácer-Quibir, no século XVI, na guerra que levou Portugal ao domínio
espanhol por sessenta anos, em 1580, segundo a qual acreditavam que não morrerá
realmente, mas se encantara, e deveria retornar para libertar seu povo do domínio
estrangeiro. Segundo à lenda da região do Salgado, o Rei Sebastião habita três
moradas: a ilha de Maianduea e a ilha de Fortaleza, no estado do Pará; e a ilha do
Lençois, no litoral do Maranhão.

Fora dos dois casos citados, relata que o encantamento não abarca o mérito
moral; sendo que as pessoas se encantariam porque são atraídas por outros
encantados para o “encante”, seu local de morada, encontrando-se “no fundo”,
normalmente, dos rios e lagos, em cidades subterrâneas ou subaquáticas.

Há também a idéia de que os grandes pajés são levados pelos encantados para
o fundo, onde aprendem a sua arte; mas neste caso, eles retornam à superfície como
xamãs, para poderem praticar a pajelança.

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Os encantados são normalmente “invisíveis” aos olhos dos simples mortais e
manifestam-se de formas diversas. São pensados em três contextos, recebendo assim
denominações diferentes: bichos de fundo, oiaras, e por fim, chamados de caruanas,
guias ou cavalheiros.

Os caruanas incorporam-se nas pessoas em três situações, seja naquelas que


tem o dom “de nascença” para serem xamãs, quer sejam as de quem “se agradam”,
quer sejam os próprios xamâs (pajés) já formados, vindo, neste caso, durante sessões
xamanísticas e para praticar o bem, sobretudo para curar doenças. Não é a alma ou
espírito do caruana que se incorpora nos pajés, mas é o encanto por completo
(“espírito” e “matéria”), nenhum informante dos quais o autor se utilizou sabia bem
explicar a lenda.

Por outro lado, relata que os encantados podem ser perigosos e cita o boto
encantando que, transformando-se num belo rapaz, seduzia as mulheres, mantendo
relações sexuais com elas. Na região do Salgado o autor não encontrou relatos de que
o boto possa engravidar a mulher com quem se relaciona, comum em outras lendas,
mas sim sugar o sangue dela levando-a à morte, caso o boto não seja impedido a
tempo.

Ao lado disso há uma homologia (homologia significa origem evolutiva comum) e


uma complementaridade entre santos e encantados, nas crenças e representações do
caboclo amazônico, sendo que tais entidades situam-se em pólos opostos no mapa
cognitivo dessas populações: os santos no alto e os encantados no fundo (em baixo).
Mas ambos também podem existir na superfície.

Outra crença muito forte na região do Salgado, que parece ser banstante
disseminada, pelo menos em parte, em outras regiões da Amazônia, é a que diz
respeito aos chamados “fadistas”, pessoas que tem o fado (destino ou sina) de se

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transformar em animais, que são: a matintapereira e o “labisônio” (lobisomem),
conforme sejam mulheres ou homens.

Os fadistas são vistos como pessoas que fizeram um pacto com Satanás em
troca de algum tipo de vantagem, dinheiro ou poderes excepcionais, que além de ter
entregado sua alma ainda são punidos com o destino de transformarem-se em animais
durante a noite.

A todas essas crenças correspondem práticas que se traduzem em formas de


culto, festas e rituais, sendo somente os santos objetos de culto, expressado
frequentemente por meio de festas. Já aos encantados não se prestam culto, não se
fazem festas – mas a eles estão associados importantes rituais xamanísticos, dos quais
os mais notáveis são as sessões de cura.

Aos santos se presta culto particular, nas residências, onde existe sempre uma
estampa de santo, ou uma ou várias imagens, ressaltando que há quem diga que é
mais importante orar diante das imagens de santos particulares do que ir à igreja
assistir a cerimônias. Nesse sentido “donos de santo” assumem importância especial
quando se trata de uma imagem considerada especialmente “milagrosa”. Cita o caso de
uma imagem de São Benedito, do “dono de santo” chamado Zizi, na Vila de Itapuá.

O exemplo mais notável na Amazônia é o do caboclo Plácido que “achou”, no


final do século XVII, a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, cultuada ainda hoje em
Belém, e em cuja homenagem se faz o Círio de Nazaré e a Festa de Nazaré.

Ao tratar dos rituais dos encantados é necessário compreender mais acerca dos
pajés. Para tornar-se pajé ou curador a pessoa precisa ter um dom, que pode ser “de
nascença” ou “de agrado”, ambos tendo uma carreira muito semelhante com os xamãs:

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A carreira começa com um período de crise de vida, sofrendo com incorporações
descontroladas, necessitando passar por um treinamento para controlar a situação de
quando, onde e qual espírito ou caruana deva incorporar.

Deve aprender com um pajé experiente, sobre o controle dos espíritos e


caruanas; também acerca dos remédios, orações, técnicas, etc, para afinal, ser
“encruzado”, ou seja, cerimoniosamente morrer para renascer como xamã e tratar de
seus próprios doentes e ter seus discípulos.

As concepções ligadas à pajelança cabocla podem ser comparadas a diversas


formas de xamanismo que tem sido descrito em várias partes do mundo, distanciando-
se do xamanismo siberiano, no aspecto em que a incorporação tem menor importância,
pois é o xamã que vai ao mundo dos espíritos para combater aqueles espíritos
culpados do mal que aflige à pessoa.

Na pajelança cabocla, com origem indígena nos Tupis, a incorporação tem total
importância pois não é o xamã que cura, mas sim os encantados ou caruanas que
agem.

Em depoimento ao autor, o principal pajé de Itapuá disse que a pajelança tinha


sido uma arte deixada na terra por Jesus Cristo, que também curava os doentes de seu
tempo com fazem os curadores caboclos.

Não obstante ao entendimento do depoente, a pajelança tem sido combatida


pela Igreja Católica na Amazônia desde o período colonial. Narra o autor que há casos
em que a pajelança para acontecer tinha que ser autorizada pelo delegado de polícia
local, sob pena de enquadrar o praticante em crime de curandeirismo ou exercício ilegal
da medicina.

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CONCLUSÃO

Conclui o renomado professor Raymundo Heraldo Maués, que apesar do


combate pela Igreja Católica, a pajelança cabocla continua muito viva no interior da
Amazônia, e integrada ao catolicismo, passando por transformações como todo o
processo social que tem grande influência na vida das populações rurais desta região.

De nosso ponto conclui-se que a religião, como um aspecto da diversidade


cultural do caboclo amazônico, pelos argumentos do autor do texto analisado, se
constitui numa espécie de catolicismo popular, que mantém relações com o
“xamanismo nativo” - a pajelança cabocla -, e que se originou de antigas práticas e
crenças dos índios Tupinambás, que habitaram parte da região amazônica no período
colonial, bem como de influências portuguesas e africanas.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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a religião. Belém, EDUFPA, 2005.

VIEIRA, Célia Guimarães et. al. (orgs.). Diversidade biológica da Amazônia. Belém,
Museu Paraense Emílio Goeldi, 2001, pp. 253-272.

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