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. A Religião Védica
A Religião Védica
Generalidades
O vedismo ou religião do Veda constitui o aspecto mais antigo sob o qual nos são
apresentadas as formas religiosas na Índia. Os textos védicos, que são os primeiros
monumentos literários da Índia (e dos mais antigos da humanidade), proporcionam
simultaneamente o testemunho mais arcaico da religião a que se chama ora
bramanismo, ora hinduísmo. Se houvesse que limitar as duas palavras, bramanismo
deveria designar a religião das épocas antigas e confundir-se depois, em parte ou na
totalidade, com o vedismo, enquanto o hinduísmo visaria mais a evolução religiosa no
seu conjunto, quer a partir do Veda, quer após o período védico. A religião védica é a
que os invasores arianos levaram consigo quando irromperam no Noroeste da Índia (o
Panjâb, bacia do alto Indo), entre 2100 e 1500 antes da nossa era. O fundo remonta a
dados que se deixam caracterizar como «indo-iranianos».
Voltamos a encontrá-los quando observamos o que, no Irão, é anterior à reforma de
Zoroastro e, ao mesmo tempo, homólogo aos fatos conhecidos na Índia «védica»: é a
crença em certas noções fundamentais, numa dupla hierarquia divina -os daivas e os
asuras; por outro lado, o culto do Fogo, os sacrifícios animais, os sacrifícios de soma.
Mas, para além desta religião indo-iraniana, que não passou de uma etapa, existe um
plano Indo-europeu.
A religião Indo-europeia consistia numa rede de crenças já complexas, ao mesmo tempo
naturalistas, rituais e «sociais». Sob um deterrminado ângulo, estavam repartidas em
funções: uma propriamente religiosa, sacerdotal e jurídica, outra representativa do poder
temporal e uma terceira de tipo econômico.
Mas a religião védica só se explica numa medida muito reduzida por essa dupla herança
indo-iraniana ou indo-europeia. Em contacto com elementos autóctones ou pelo efeito
de uma rápida evolução interna, as formas antigas foram enriquecidas ou alteradas.
Absorveram uma parte daquilo a que se pode chamar o hinduísmo «primitivo» -de que
nada conhecemos, à parte precisamente os vestígios que se encontram na religião védica
e esclarecem quando comparados com fatos atestados na Índia ulterior.
Os Textos
Os únicos monumentos da religião védica são textos, de data e inspiração variadas.
Esses textos formam um conjunto excepcionalmente amplo e importante, embora o que
se conservou até n6s represente apenas, segundo a tradição, urna pequena parte do que
existia na origem. Com efeito, essa literatura foi-nos transmitida repartida por escolas, a
que a tradição chama «ramos», as quais começaram por ser em número de quatro, em
virtude da função quádrupla dos celebrantes, e depois cindiram-se noutros «ramos»
devido aos ensinamentos particulares a que deu origem o desenvolvimento progressivo
da prática religiosa e sua extensão através de toda a Índia. Ora, nem todas as escolas
primitivas, nem todos os ramos secundários (nem a totalidade ou a integridade dos
textos num mesmo ramo) chegaram até nós, muito longe disso.
Os textos mais importantes e, de resto, os mais antigos são as quatro «compilações»
(Samhita) que formam aquilo a que se chama “os quatro Vedas”. O termo veda, que
significa «saber», também se emprega, num sentido amplo, para designar toda ou uma
parte da literatura ulterior, fundada numa ou noutra das quatro Samhitâs.
São: 1) O Rig-Veda ou «Veda das Estrofes», o documento das literaturas indianas mais
antigo: reunião de cerca de mil hinos às divindades, que prefigura uma espécie de
antologia obtida compilando as peças conservadas por velhas famílias sacerdotais; a
maior parte desses hinos refere-se mais ou menos diretamente ao sacrifício de soma; no
entanto, alguns têm urna relação muito reduzida ou mesmo nula com o culto;
2) O Yajur-Veda ou «Veda das Fórmulas», que nos é transmitido em várias recensões:
urnas combinam-se com as «fórmulas» que acompanham a liturgia dos elementos de
um comentário em prosa -é aquilo a que se chama o Yajur Veda Negro-, enquanto
outras apenas dão as fòrmulas e trata-se então do Yajur-Veda Branco;
3) o Sâma-Veda ou «veda das Melodias» é urna coletânea de estrofes como o Rig-Veda,
no qual, alias, essas estrofes se inspiram na quase totalidade, mas estão dispostas com
vista à execução do cântico sagrado e comportam notações musicais;
4) Finalmente, o Atharva-Veda é também uma compilação análoga ao Rig-Veda, mas
de caráter em parte mágico e em parte especulativo. A tradição fala com freqüência de
«três Vedas» ou da «tripla ciência», porque considera implicitamente o Atharva
estranho à alta dignidade própria dos «três Vedas». Seguem-se, na ordem cronológica,
os Brahmanas ou «Interpretações sobre o brama», comentários em prosa que explicam
quer os ritos, quer as fórmulas que os acompanham. Há os ligados aos diferentes Vedas
e até dois ou mais de dois para todos os Vedas, exceto para o Atharva. Estes dois
primeiros ramos da literatura védica formam aquilo a que se chama a çruti ou
«revelação»; por outras palavras, passam por ser de origem divina, resultar de uma
comunicação por «vidência» feita a determinados seres humanos privilegiados. A çruti
comporta ainda textos mais breves, completamente naturais dos Brâhmanas, os
Âranyakas ou «Tratados Florestais», próprios para serem recitados longe das
aglomerações, e os Upanishads ou «Concepções», que se envolvem no vivo das
especulações.
Os outros documentos do vedismo pertencem à smriti ou «tradição memorizada»: trata-
se, em primeiro lugar, dos Sutras ou «Aforismos», isto é, textos redigidos num estilo
muito hermético, destinados a ser aprendidos de cor pelos noviços liturgistas. Foi
compilado um número elevado deles, para os diferentes «ramos», quer na ordem das
cerimônias solenes, quer na ordem do ritual «doméstico»; outros ainda resumem
ensinamentos mais gerais, traçando o esboço de um direito civil e penal que sai
gradualmente da matriz das prescrições sacerdotais.
A literatura termina com séries de textos, escritos ora em estilo de aforismo, ora em
prosa corrente, eventualmente em versículos: completam o que se deve saber para ser
um ritualista completo - tratados de métrica, de fonética, de astronomia, listas diversas e
tabelas das matérias metódicas, etc.
O conjunto está redigido em sânscrito*, mas num sânscrito arcaico que contém
numerosas particularidades mais tarde perdidas. Os Hinos e as «fórmulas» em geral (o
que se engloba sob a designação de mantra) são de um arcaísmo muito mais
pronunciado que a prosa subseqüente. Mas, no conjunto, a cronologia interna não é fácil
de estabelecer.
*[Pronúncia das palavras sânscritas: u pronuncia-se como na nossa língua; c e j
pronunciam-se respectivamente tch e dj; g tem sempre o som guê; P equivale ao som do
ich. Nesta tradução, utilizamos o Ç para representar o som X ou Sh.]
Quanto à cronologia absoluta, também não é muito segura. A redação do Rig-Veda
pode situar-se, por hipótese, nos séculos X ou XII antes da nossa era. Os últimos textos
védicos, ou seja, os «anexos» do Veda e os grandes Upanishads devem ser do século VI
ou V. Não obstante, a sua preparação remonta a muito mais atrás, e os tratados védicos
isolados foram compilados mais tarde. A transmissão e mesmo a confecção foram orais
ou, pelo menos, só comportaram a escrita a titulo de auxiliar. Ainda hoje os recitadores
que subsistem através da Índia conservam oralmente vastas porções do Veda, em
condições de uma exatidão surpreendente.
As Crenças e a Mitologia
A religião védica consiste, antes de mais, numa mitologia muito elaborada. Os deuses
do Veda, como os descreve principalmente o Rig-veda, são seres ativos que intervêm
com naturalidade nos assuntos humanos. Convenientemente invocados, gratificados
com belas oferendas, são prestáveis, de contrário perigosos, e vários deles naturalmente
ambivalentes. Enumeram-se em geral trinta e três, divididos, desde a Antiguidade, em
deuses terrestres, do «espaço intermédio» (atmosfera) e celestes. Uma divisão mais
pertinente seria por funções-deuses soberanos, guerreiros e patronos da função
«econômica» (agricultura, criação de gado e artesanato), mas isto apenas abarca urna
pequena parte dos fatos. Na realidade, as atribuições são múltiplas, e o próprio
formulário e exigências do panegírico contribuíram para as diversificar. Dotou-se a
divindade que se celebrava num momento determinado de todas ou parte das funções
aferentes aos outros deuses, pelo que a mitologia védica se tomou uma coisa confusa,
mal decifrável à primeira vista.
No fundo do panteão reside Dyaush Pitar, o Céu Pai, equivalente ao Júpiter romano,
mas trata-se de uma figura muito pálida, como a deusa Terra ou o casal Céu-Terra,
invocados com freqüência apesar disso. Mais perto, mas ainda recolhida, encontra-se a
figura impressionante de Varuna, deus soberano, conservador das leis cósmicas e
morais, espiador dos culpados, que amarra com os seus lacetes, possuidor de uma faceta
perigosa, quase sinistra. Associam-lhe com freqüência outro soberano, Mitra, deus dos
contratos e da majestade jurídica. Varuna e Mitra são os primeiros de entre os Âdityas,
seqüência de sete ou oito entidades que passam por descendentes de Aditi, esboço vago
de uma Deusa-Mãe.
O papel proeminente está reservado a Indra, cujas proezas maravilhosas nos são
descritas incessantemente: venceu multidões de inimigos humanos ou demoníacos,
auxiliado por príncipes aliados. Num plano mais naturalista, matou, com o seu raio, o
dragão que bloqueava as águas, conquistou o Sol, libertou as auroras prisioneiras, etc. A
origem de Indra, em que alguns viram o típico deus «ariano», mantém-se duvidosa.
Entre os seus aliados figuram os Marutes, grupo de homens jovens que cavalgam nas
nuvens e provocam a tempestade e a chuva, aos quais também chamam Rudras, ou seja,
filhos de Rudra. Este dado conduz-nos a uma das figuras mais estranhas do vedismo:
Rudra, deus essencialmente temível, mesmo (e, sobretudo) quando lhe chamam Çiva «o
benfeitor». É certo que, por outro lado, se revela milagreiro, e as invocações que lhe
dirigem emprestam a essa dupla qualidade uma natureza muito especial. Outras
personalidades, em geral também aliadas de Indra, são o casal dos Açvins ou Nâsatyas,
que percorrem o céu no seu carro, marcando pela sua passagem a aurora e o crepúsculo.
São equivalentes aos Dióscuros da mitologia grega.
Não se sabe ao certo se a Lua é objeto de uma veneração direta, mas as representações
solares ocupam um lugar imenso, com as figuras de Surya, o Sol, e Savitar, o Incitador.
Vishnu, que atravessa o universo em três passadas, representa um mito solar, além de
outros, e a Aurora é divinizada de forma transparente sob a designação da graciosa
deusa Ushas. Há o Vento com Vâyu e a Tormenta com Parjanya.
Outro grupo de seres, sem se distinguir radicalmente dos anteriores, tem o seu ponto de
partida em objetos concretos, visíveis aos seres humanos e próximos deles: trata-se de
Soma, que personifica o licor do mesmo nome, e também de Agni, que é, em primeiro
lugar, o «fogo» ateado pelos homens e depois o fogo do Sol, o das nuvens, que se
esconde nas plantas e nas águas. Soma e Agni tomaram-se personagens desmesuradas,
às quais se ligam noções múltiplas.
A um nível secundário, Pûshan, o deus que guia homens e animais, Brihaspati, o
«mestre da fórmula», e Tvashtar e os três Ribhus, deuses artesãos. As funções são, de
resto, pouco especializadas. E os indivíduos apresentam-se mal separáveis, por vezes
sob a forma de nomes de objetos ou plantas, que se encontram, temporariamente ou não,
promovidos à categoria divina. Em compensação, não há figuras femininas; a noção de
esposa divina não se acha acreditada. Os demônios abundam, mesclados com
recordações de inimigos humanos, mas não existe noção demoníaca central. O mais
importante, Vritra, inimigo de Indra, personifica a «resistência». Os casais e grupos
anônimos são freqüentes. Os Asuras, em primeiro lugar deuses soberanos, orientam-se a
pouco e pouco, desde o Rig-veda tardio até à demonialidade, à medida que o culto dos
devas se consolida. Antigos sacrificadores, Pais, são elevados, aqui e ali, ao grau divino.
Acima dos deuses, ou à parte, grandes forças abstratas animam o mundo, sendo a
principal o rita, «ordem» cósmica e «ordem» ritual ou moral simultaneamente.
A cosmologia
A cosmologia é representada por noções assaz vagas, o mesmo se passando com a
cosmogonia, que descreve por meio de diversas metáforas e mitos abortados a obra da
criação do mundo. Há algumas idéias, por vezes precisas, sobre um princípio espiritual
equivalente àquilo a que chamamos alma. Se não existe qualquer imagem estável dos
infernos, o paraíso acha-se definido muito nitidamente como o mundo de «obra pia», ao
qual se tem acesso pela «via dos deuses», situado no terceiro céu e constituído por
felicidades exclusivamente materiais. Alias, o homem «védico» nada pede para além da
vida presente, da vida de cem anos que deseja: não tem uma visão clara de
renascimentos eventuais, mesmo que algumas alusões ambíguas se possam interpretar
nesse sentido. Yama, o primeiro dos humanos, por conseguinte o primeiro daqueles que
morreram, tornou-se (em seguida?) o rei dos mortos, senhor do mundo subterrâneo ou
ainda, segundo outra evolução, o soberano do paraíso.
Nos Brâhmanas , foi a personalidade de Prajâpati, «o amo das criaturas», que absorveu
quase toda a cosmogonia. Além do Criador, é o Sacrifício personificado, aquele que
reúne as estruturas dispersas para realizar o rita. Mas, paralelamente, a imaginação
mítica, já muito desgastada no Atharva-Veda, rarefez-se, cedendo o lugar, no plano dos
textos pelo menos, à especulação de tendência filosófica.
Os Ritos
Se conhecemos a mitologia pelo Rig-Veda, e sobretudo a especulação pelos
Upanishads, todos esses textos pouco têm para nos ensinar sobre o culto. Há que
consultar aqui os Brahmanas e, ainda mais, os Sûtras, que o descrevem com uma
minúcia exemplar. Não se deve depreender daí que certas formas, assaz elaboradas, de
prática religiosa não existiram desde os primórdios do período védico e, de resto, não
seria impossível restituir-lhes as linhas gerais.
O culto védico repousa sobre o sacrifício. Homenagem solene à divindade, o sacrifício
executa-se sob a forma de uma cerimônia mais ou menos longa, que tem por ponto
culminante as oferendas feitas ao Fogo. O objetivo consiste em entrar em comunicação
com o mundo divino, assegurar o seu concurso para obter determinadas vantagens,
gerais ou especiais. É certo que existem sacrifícios «fixos», correspondentes a datas do
calendário, que não comportam, em principio, menções votivas, mas esses sacrifícios
(ou uma ou outra porção deles) podem carregar-se facilmente de uma afecção votiva. A
oração está inserida no sacrifício, no sentido de que se exprime pelas «fórmulas» que
acompanham os atos e manobras, não tendo expressão independente.
A oferenda, que consiste ora (na maioria dos casos) em produtos da cultura ou criação
de gado - bagos de arroz ou outros, leite, ghrita ou «manteiga derretida»-, ora em
pedaços de uma vítima animal (em regra, o bode), é em parte lançada ao fogo e em
parte consumida pelos celebrantes e pelo «sacrificador» laico, que se assegurou o seu
concurso e manda executar o ato em seu proveito. Outra oblação que domina nas
cerimônias mais importantes é a do soma, planta de propriedades excitantes, de caráter
assaz misterioso, cuja espremedura é objeto de uma seqüência complexa de operações.
O veículo da oferenda é o fogo, cuja «instituição» forma em si uma cerimônia
autônoma. Os sacrifícios costumam realizar-se recorrendo a três fogueiras, dispostas em
torno de uma pequena escavação que exerce as funções de um «altar».
O laico assiste ao sacrifício com a esposa, pronunciando mesmo algumas fórmulas, mas
o seu papel essencial consiste em repartir os honorários (que podem atingir dimensões
fabulosas) atribuídos aos diversos celebrantes. Estes últimos são dirigidos pelo
brahman, que assiste em silêncio e adverte se se produz um erro ou acidente. O hotar
entrega as oblações e recita as seqüências extraídas do Rig-Veda, o udgâtar entoa as
estrofes inspiradas no Sâma-Veda e, finalmente, o adhvaryu procede aos inúmeros
gestos e recitações, que, de acordo com o Yajur -Veda, compõem a própria textura do
sacrifício. No total, incluindo os auxiliares, há até dezesseis ou dezessete celebrantes.
O terreno sacrifical é uma área aberta, sacralizada para cada nova cerimônia, sem
templo nem imagem. Entre os instrumentos do culto, colheres e vasos de funções bem
determinados, devem salientar-se os «cacos» de tijolo colocados no fogo, nos quais se
estende a massa.
O rito solene mais breve é o Agnihotra ou «Oblação ao fogo»: uma oferenda simples de
leite a Agni, executada pelo sacerdote manual e o laico, de manhã e à noite. É mais
complexo o sacrifício das luas cheia e nova, típico das oblações vegetais que servem de
norma a todas as outras e exigem dois celebrantes. Os ritos quadrimestrais acompanham
as mudanças das estações e dividem-se em três séries (com uma quarta em anexo),
sulcadas de traços populares. Há um rito das primícias e a massa dos ritos votivos ou
expiatórios que repousam sobre o esquema do sacrifício das quinzenas lunares.
O Sacrifício animal, a imolação (por asfixia) de um bode, inspira-se igualmente no
anterior e figura quer no estado independente, quer como parte integrante dos sacrifícios
de soma. Estes são os mais solenes de todos: o tipo de base ou Agnishtoma é uma
seqüência de três espremeduras -manhã, tarde e noite-, precedida de longos preliminares
(consagração do laico e da esposa, aquisição do soma, instalação dos lares e altares),
enquanto a cerimônia propriamente dita consiste em oblações entrecortadas de
recitações e cânticos, em que todos os celebrantes participam. Uma parte singular do
Agnishtoma é o Pravargya, oferenda aos Açvins de leite aquecido num vaso
consagrado. Há liturgias mais desenvolvidas, durante dez a doze dias, e até «sessões»
que se prolongam por um ano inteiro, teoricamente por doze. A «grande observância» é
uma festa de solstício de Inverno, durante a sessão anual dita «marcha das vacas».
Surgem finalmente as feiras, que, sem se diferenciarem muito a fundo das anteriores
-trata-se igualmente de sacrifícios de soma-, correspondem a acontecimentos da vida do
rei: o Râjasûya ou «Consagração do Rei», aspersão do novo eleito pelo celebrante e
pelos representantes do povo; o Vâjapeya ou «Beberagem de Força», festividade
religiosa do príncipe vitorioso, que comporta uma corrida de cavalos atrelados a
dezessete carros; e, por último, o Açvamedha ou «Sacrifício do Cavalo», o mais
grandioso de todos, cujos preliminares se estendem por um ano e mesmo dois.
A par do soma, bebida nobre, havia a surâ, álcool grosseiro que serviu de oferenda num
rito particular. Finalmente, algumas cerimônias são precedidas da construção de um
monumento de tijolos, com força de oblações e desenvolvimento de uma simbólica
extensão.
. O Hinduísmo
O Hinduísmo
Que é o hinduísmo? Não se trata de uma religião do tipo das nossas que se poderia
definir negativamente isolando delas o conjunto das formas não-religiosas da existência.
Em alguns aspectos, é inseparável da especulação filosófica; noutros, da vida social. A
vida social concebe-se no âmbito das classes e das castas, assim como dos modos de
vida ou âçramas: é em função dessas repartições que se estabelece o dever, o imperativo
moral, por seu turno de essência religiosa. O termo considerável de dharma,
propriamente o «suporte» dos seres e das coisas, designa simultaneamente a lei na sua
maior extensão, a ordem que preside aos fatos nas disciplinas normativas, mas mais
especialmente a lei moral, o mérito religioso: é o único termo que traduz o nosso
vocábulo «religião» e, ao mesmo tempo, o excede e permanece aquém. Nasce-se mais
no hinduismo do que se toma um adepto dele, porquanto a condição está subordinada
aos quadros gerais da vida indiana. No entanto, evidentemente que se não deve
contestar que, em data antiga, o dharma se propagasse por meio de conquista ou de
assimilação pacífica entre muitas populações que o não tinham herdado. De contrário,
como se explicaria o império que assumiu na maior parte da Índia?
O hinduísmo compõe-se de diversas contribuições: uma contribuição propriamente
védica, que resulta da transmissão direta das crenças e especulações do Veda. Mas tudo
o que existe no Veda e se encontra na Índia clássica não é necessariamente herdado.
Deve admitir-se que o hinduísmo, atestado relativamente tarde nos textos, existia sob
alguma forma «primitiva», desde a época védica e porventura antes. Julgou-se encontrar
na civilização estrangeira da bacia do Indo (Mohanjo Daro e Harappa), civilização que
remonta a 2500-2000 antes da nossa era, traços de um culto hinduísta: protótipo do deus
Çiva, representações do linga ou «falo», alusão figurada a exercícios de Ioga - nada de
tudo isto é seguro. Em compensação, parece que numerosas práticas védicas inseridas
no alto culto e a maior parte, se não a totalidade, do ritual privado e mágico não passam
do hinduismo pré-clássico.
Influências recebidas
Desde a origem, e mais à medida que se estendia através do continente indiano, o
hinduismo impregnou-se de contribuições autóctones, devidas ao contacto entre a
cultura védica e a população anariana, eventualmente dravidiana, ou de qualquer outra
maneira que se lhe queira chamar. Com efeito, muitas características pseudo-hinduistas
são do folclore religioso, mais ou menos primitivo, como se encontra, de resto, na Índia.
Observam-se em todos os cultos locais: divindades de aldeia, emblemas de uma
simbólica ingênua, sobrevivências animistas, etc. Muitas dessas características passaram
para o culto normal, de modo que, levando as coisas um pouco longe, seriamos tentados
a ver no hinduísmo apenas um formigueiro de cultos elementares que nada teriam de
comum com o vedismo. Mas há que reagir e recordar que o que conta numa religião são
muito menos os materiais de que se compõe que o sistema novo que estabelece, a
criação que representa. A despeito de todas as analogias com formas atestadas no Irão
ou na Próxima Ásia, ou no Sueste Asiático, apesar da existência latente de um
shamanismo difuso, temos de admitir que o hinduismo é um fato altamente original.
A essas influências nativas foi possível juntar outras por contatos de civilização. Na
Antiguidade é pouco provável que a Grécia fornecesse o que quer que fosse à Índia em
matéria de crenças: supôs-se, sem provas, que o culto das imagens, desconhecido no
Veda, pudera ter sido solicitado pelo exemplo grego. As afinidades, assaz superficiais
de resto, existentes entre a teoria do samsâra e o pitagorismo representam mais uma
resultante de substrato que de inspiração. O Irão talvez contribuísse para fixar no Norte
da Índia, durante alguns séculos, uma adoração ao Sol (cujas tendências estão, aliás,
presentes no Veda) e propagar algumas influências masdeístas, mas convém notar que o
culto de Mitra (que, no Veda, nada deve ao Irão, além da origem pré-histórica comum)
apenas beneficiou de uma extensão reduzida na Índia pós-védica. Foram soberanos
estrangeiros como os Kushânas (sécs. I e II) quem, a avaliar pela cunhagem de moeda,
teria introduzido crenças iranianas (com o sacerdócio dos Magos), porventura
babilônias.
Há em seguida que descer até ao século XII para decidir se o pensamento indiano sofreu
uma marca durável do Islão, com a qual teve de permanecer muito tempo em contacto.
Ora, notam-se perfeitamente a partir dessa data movimentos sectários de origem
nitidamente hindu que parecem inspirar-se em palavras de ordem islâmicas: abolição
das imagens, reivindicação de aspectos purificados da religião, de algumas práticas
místicas. Os autores modernos que falam de uma aproximação entre o hinduísmo e o
Islão, que comparam (como é legítimo) o pietismo hindu e a mística sûfî, dão a entender
sem reservas que as coisas do lado hindu não se desenvolveriam de outro modo se não
existisse a vizinhança muçulmana. Este argumento é difícil de refutar. No entanto, salvo
porventura no Kabîr e, através dele, nas seitas mais modernas, algumas de resto
híbridas, não há absolutamente nada na evolução indiana que se possa e deva explicar
senão pela lógica interna e a força própria do movimento. São muito raros e, no seu
conjunto, desprezáveis os textos hindus que exprimem nitidamente uma inspiração no
Islão: o que, para todos os efeitos, demonstraria melhor essa influência é a reação que se
manifesta nesta ou naquela seita, no sentido de um reforço das castas e das regras
hindus.
Quanto à influência cristã, é muito moderna e apenas afeta grupos muito limitados.
Outrora, as relações que se julgara descortinar entre a Natividade e a infância do deus
Khrishna eram ilusórias, assim como a suposta proveniência cristã do mito do
Çvetadvîpa, a ilha remota habitada por homens brancos que adoravam Naraiana
(episódio do Mahâ-Bhârata). O cristianismo teria atingido a orla do mundo indiano na
época do rei cito-parta Gondofares (séc. I), que, segundo a lenda, o apóstolo São Tomás
visitou quando decidiu evangelizar a Índia. Na verdade, existiu uma comunidade
nestoriana no Malabar, mas nada se sabia dela antes do século IV e a chegada dos
Jesuítas, em 1600, pôs termo à sua atividade.
. Divindades
Divindades
A missão de dar ao mundo a noção do Absoluto, tal como foi revelada no Veda, livre da
ciência tradicional da Índia nas idades mais antigas, estava reservada à poesia pura,
aquela que celebra as forças cósmicas do céu e da terra.
Esse Absoluto é o Brama, que não pode ser definido. O Brama, a brilhante luz das
luzes, "envolvido em sua capa de ouro", por quem o espírito pensa, mas que não cabe
no pensamento de ninguém, permanece incomunicável.
"Perguntas o que é o Brama? É o teu próprio átman, que é interior a tudo." [Brihad
Aranyaka, up. III, 4].
O Brama, neutro, impesoal, é incondicionado, inqualificado, superior a qualquer
distinção. Ele é a origem, a causa, a essência do universo, porque tudo o que é, é Brama.
Ele é pura existência: sal, pura inteligência: chie, pura beatitude: ananda.
Na impossibilidade de O conceberem em sua Totalidade e em sua Verdade, os hindus
tentam encontrá-lo em suas manifestações Divinas. Adorar o Brama em seus atributos é
fazê-lo descer ao nível humano, pô-lo ao alcance do homem. O Brama toma-se então
um deus pessoal, em aparência. E pode ser então encarado sob qualquer de suas
Funções ou de suas Potências.
Nos hinos védicos, os deuses implorados, apenas antropomorfizados, pertencem aos
astros, à atmosfera, ao solo. Têm nomes e aspectos inumeráveis, sendo como são
expressões de Brama, indefinido em suas formas, embora UNO em sua essência. Essas
manifestações divinas correspondem às afinidades dos crentes. Sua multiplicidade pode
surpreender tanto mais o espírito ocidental quanto cada deus personificado traz às vezes
vários nomes, segundo a qualidade ou atividade sob a qual é invocado. O deus
escolhido por seu adorador chama-se "seu ichta". É a ele que o fiel dirigirá suas preces,
seus rosários, e é por seu ichta que ele se aproximará de Brama. O Brama, Divindade
Suprema, junto de quem os demais deuses não passam de simples intermediários,
contém em si todos os ichtas. É sempre Brama, pois que tudo é Brama.
Os deuses podem personificar a Alegria, a Misericórdia ou a Morte. Para mostrar que
essas individualizações não passam de uma concepção de Brama por um "fervoroso",
Vichnu diz a Xiva, no Vichnu-Purana:
"Os ignorantes consideram-se como distinto de Ti."
O crente pode encontrar o Brama em si-mesmo, em seu coração, porque todo o ser
possui uma faísca de Brama, chamada átman. Este átman representa o Eu-mesmo de
cada um, princípio transcendente que jamais se particulariza.
"O Brama reside no coração. Ele está ali e em nenhuma outra parte. Os sábios que o
contemplam dentro de sua própria alma, estes, e não outros, possuem o descanso
eterno."
(Brihad aran, up. III, 1).
Da mitologia do Veda, tão bem elaborada quão complicada, é preciso citar entre os
deuses mais invocados: Indra, com um papel preeminente. Ele encarna a força
conquistadora. Suas proezas e suas vitórias são objetos de muitas narrativas. Ele matou
com o seu raio (vajra) o dragão que obstruía as águas, e, depois de ter conquistado o sol,
libertou as auroras prisioneiras.
A montaria (vahana) de Indra é um elefante branco: Airavata. O deus é geralmente
representado coberto de jóias, coroado de um turbante real ou de uma tiara cilíndrica,
com o raio, o disco, o dente de elefante. Sua esposa é lndrani ou Caci, que ele roubou ao
pai, Puloman, inimigo de Indra.
Rudra, o "poderoso" dos hinos védicos, tornar-se-á Xiva, o benéfico e curador. Os
Rudras, filhos de Rudra, aliados de Indra, formam um grupo de jovens que cavalgam as
nuvens e são portadores da tempestade e da chuva.
Agni, o deus do fogo e do sacrifício, tem um lugar primordial. Ele faz a unidade do
mundo em suas três partes: terra, céu e atmosfera intercalar. Ele é ao mesmo tempo:
vontade divina, visão perfeita e operação ritual:
"ó Agni, tu és a matéria dos jovens rebentos; as águas são tua semente. Inato em todas
as coisas e crescendo sempre com elas, tu as conduzes à maturidade. O tudo subsiste em
ti. Revestido das formas do sol, tu tomas com os teus raios a água da terra, para espalhá-
la ao depois em chuvas nas estações próprias, dando assim a vida a todos os seres. Tudo
renasce então de ti: as lianas, a verde folhagem, os lagos, o leito afortunado das águas,
todo o úmido palácio submetido a Váruna." [Rig-Veda].
Varuna, mantenedor da ordem cósmica, senhor das águas, é um dos deuses maiores do
Vedismo. A esse deus, envolto num manto de ouro, associa-se Mitra, cercado de
majestade jurídica, com um séquito de sete ou oito entidades: os Adityas, descendentes
de Aditi, deusa-mãe. Surya, o sol, especifica-se em Vivasvante; Candara é a lua, e Vayu
o vento. Prajápati, pai dos deuses (devas) e dos demônios (asuras), senhor das criaturas,
é figura importante entre os deuses. Numerosos hinos lhe são dirigidos.
Em plano secundário, temos ainda Pyauch Pitar, o Céu-Pai; e Prthivi, a Terra-Mãe; os
Marutes, deuses das tempestades; Ucha, a Aurora, e os Açvins, que simbolizam as
estrelas da manhã e da tarde; Yama, o primeiro humano, tornou-se o deus da Morte,
senhor do mundo subterrâneo. Em seguida, menos definido, temos Puchan, o deus que
guia os homens e os animais. Brihaspati, sacerdote dos deuses, é uma segunda forma de
Agni. É impossível citar todos os deuses védicos; eles são inumeráveis. Afora os
deuses, existem as forças que agem sobre o universo, dentre as quais "o rita" é a
principal - ao mesmo tempo ordem cósmica e ordem ritual e moral.
Enfim, o soma, planta sacrifical, licor fermentado tornado bebida divina que confere a
imortalidade, foi elevado à dignidade de um deus no livro XI do Rig-Veda.
“A origem terrestre de Soma prende-se ao Monte Mujavante. Mas sua verdadeira pátria
é o céu: filho do céu, sua forma celeste corresponde às do nascimento e da espremedura.
Ele foi trazido a terra por uma grande ave (águia ou falcão), que o roubara do castelo de
bronze onde era guardado pelos Gandharva, ou pelo arqueiro Krçanu, o qual, atirando
sobre a ave arrancou-lhe uma unha ou uma pena. Algumas vezes a águia é Indra; nos
Bramanas o soma é roubado por Gayarti, nome mítico de Agni."
[L. Renou, op. cit.. pág. 329].
Uma Trindade divina ou "Trimurti" domina as múltiplas formas divinas. Esta Trindade
compõe-se de três deuses que repartem entre si as atividades fundamentais de Ichvara,
nome genérico do deus único e supremo e a Vontade de Poder, símbolo do Brama, que
está acima da Trindade e permanece neutro e inacessível.
O poder de criar, que parece ser a manifestação mais elevada, pertence à Brama, que
não deve ser confundido com o Brama impessoal. Esse Brama, ao contrário, é
personalizado por sua função de criador.
Em seguida vem o poder de conservar, que está nas mãos de Vichnu. O poder de
destruir, finalmente, é atribuído a Xiva. Esses deuses, que representam os três aspectos
de Ichvara, formam a grande Trindade da Índia, ou Trimurti, cuja atividade corresponde
ao ritmo da criação do mundo: o começo de um ciclo, sua manifestação total e seu
acabamento ou reabsorção em Brama, o Pralaya período que precede a era seguinte.
As relações dos deuses entre si são tão vagas e instáveis como as variantes de uma
legenda. Entretanto, certos mitos fixos persistem e aureolam este deus ou aquela deusa.
O deus não muda, mas o coração do homem cresce, e crescendo, faz crescer também a
imagem do deus que ele traz em si.
Entre os deuses importantes que se substituíram ou se ajuntaram aos do Veda na
tradição hindu, Brahma permanece bastante abstrato, apesar de seu papel criador. É ele
quem faz nascer a diversidade na Unidade. Ele não tem um culto especial. Seus
santuários são raros. O maior encontra-se em puchkar, perto de Ajmer, no Rajputana.
Sarasvati é a Xakti de Brama. Xakti é o nome que se dá à Energia que emana do deus e
o completa sob a forma feminina de uma deusa. Associada aos grandes deuses,
identificada à Palavra (vac) nos Bramanas, deusa dos rios divinos nos tempos védicos,
Sarasvati simboliza as artes, a eloqüência, o saber e “a onda da Verdade".
Brahma é muitas vezes representado com quatro rostos (atarmukha) voltados para os
quatro pontos cardeais, e quatro braços (tendo nas mãos os quatro Vedas); traz nas
cabeças ora coroas, ora tranças (donde o seu nome de Cikhin), e apresentam-se
barbudos os seus rostos. Seus atributos são o jarro, o rosário e as duas colheres rituais
(Manasara), às vezes o disco. A cor é rosa. Ora se apresenta montado num cisne
(hansa), ora de pé, às mais das vezes sentado num lótus que sai do ventre de Vichnu,
donde seu nome: "aquele que nasce do lótus" ou ainda "do umbigo", mas também
(desde a epopéia) "aquele que nasceu de si mesmo" (svayambhu), isto é, inato [L.
Renou, op. cit., pág. 500].
Vichnu, na Trimurti, tem o papel benéfico de conservador do Cosmos. Ele preside aos
destinos humanos. É um deus de origem solar definido por quatro atributos: a concha
(sankha), o disco (sakra); clava (gada) e a flor de lótus (Padma). Representam-no sob os
traços de um homem jovem, de cor azul-escuro, com quatro braços.
"Os 24 nistha ou "atitudes" que compõem a figuração total da divindade comportam
cada uma um valor esotérico dirigente de uma encarnação particular. Têm igualmente
uma significação simbólica a jóia kaustubha que Vichnu traz ao pescoço, e o anel de
pêlos estilizado em iconografia (o çrivitsa) que lhe orna o peito. Traz geralmente um
diadema na cabeça (kirita)" (id.).
Em geral, Vichnu apresenta-se deitado, em suas representações, e mesmo adormecido
sobre o oceano caótico, a serpente infinita de mil cabeças. Vemo-lo igualmente
tronando no céu, Vaikhunta, rodeado de sua corte. Garuda é a cavalgadura (vahana) de
Vichnu, também ela objeto de um culto. Esta Garuda é a águia celeste, filha de Kackapa
e de Vinata. Foi ela quem roubou o soma, o licor de vida, em benefício dos deuses.
O culto de Vichnu é muito popular e tem formas múltiplas e numerosos santuários. É
venerado num elevadíssimo plano abstrato, porque ele representa o amor divino. Vichnu
é muitas vêzes acompanhado de sua Xakti, Lakchmi ou a "Beleza e a Fortuna",
emblema da esposa modelo e serviçal, assim como da glória e da prosperidade. Ela é
figurada por uma jovem sedutora, sentada numa flor de lótus e segurando uma
cornucópia, enquanto dois elefantes brancos, munidos de jarros em suas trombas, regam
os lótus que ela tem nas mãos. Ela é invocada para os bens temporais e espirituais, a fé e
a saúde.
Na tradição hindu os deuses podem reencarnar-se a seu bel-prazer ou em obediência a
uma ordem, para cumprir uma missão, particularmente a de socorrer a humanidade
sofredora. As encarnações dos deuses denominam-se "avatares" ou "descidas". Vichnu é
o que se encarna mais vezes. Pode haver um número ilimitado de avatares.
Ramakrichna dizia: "Os avatares são para o Brama o que as vagas são para o oceano".
Quando um deus importante vem à terra, divindades secundárias o acompanham para
fazer parte de sua côrte. Numerosas encarnações de Vichnu são descritas no Bhagavad-
Purana, mas existem dez que são clássicas. A primeira representa Vichnu vindo como
peixe para salvar o rei Manu Vaivasvata, tema indiano do Dilúvio. Depois, Vichnu
aparece como javali. Ele soergue a Terra, que o demônio Hiranyakcha tinha mergulhado
no fundo do oceano. .. E ainda Vichnu, tornado Rama, o herói do Ramayana, que triunfa
sobre o demônio Rávana. Servindo enfim de pedestal que se apóia no fundo dos mares,
Vichnu, em forma de tartaruga, suporta o monte Meru, em volta do qual se colocou a
serpente Cecha. Ele assiste ao encapelamento do oceano. Nesse combate entre os deuses
e os Asuras, está em jôgo a conquista de tesouros maravilhosos, principalmente do
anrita (licor divino). Graças a Vichnu os deuses conseguem a vitória.
O mais célebre dos avatares de Vichnu - e todos eles têm um sentido esotérico - é o de
Krichna, considerado como uma encarnação total, sendo os demais considerados como
simples encarnações parciais. A história de Krichna comporta uma série de aventuras
extraordinárias. Chefe do clã dos Yadavas, Krichna, cujos poderes são surpreendentes
(ele já cumprira missões prodigiosas em sua infância) , prossegue sua carreira de ser
sôbre-humano. Adolescente, ele é o "boieiro" divino que toca a flauta para as pastoras
que dançam em torno dele, contemplando-o com fervor amoroso. A cena passa-se no
bosque sagrado de Brindavã.
Ao depois, no Bhagavad-Gita, ele figurará ao lado dos Pandavas, seus primos, em sua
guerra contra os Bháratas. Ele se torna ilustre nessa ocasião, mostrando por seu exemplo
e por seu ensinamento .como o homem deve desenvolver-se espiritualmente para atingir
a libertação. Mas é sobretudo em Ramá, em que ele simboliza a energia moral, e em
Krichna, a inspiração divina, que Vichnu traz um socorro considerável aos humanos e
desempenha um papel imenso na religião hindu. Vichnu representa um "Salvador",
porque "em cada um de seus avatares ele recupera as coisas que pareciam
irremediavelmente perdidas, tragadas pelo oceano, isto é, pelo indiferenciado, ou a
ponto de o ser" [Herbert, ib. 362].
Quer se trate de Si ta, mulher de Ramá no Ramayana, quer se trate de Radha, a pastora
preferida de Krichna, uma das figuras mais populares entre as divindades femininas e ao
mesmo tempo sua mais perfeita adoradora, é sempre Lakchmi, sua xakti, deusa da
harmonia, que se encarna habitualmente com Vichnu.
Xiva é um deus complexo, valente, ao mesmo tempo benéfico e temível. É preciso
distinguir aqui o duplo aspecto da atividade divina. Xiva na Trindade hindu desempenha
o papel de destruidor do Universo, mas ele aniquila para reconstruir. Ele destrói a
multiplicidade que mundo criado, para recriar a Unidade. Por isso assimilam-no a Kala,
o Tempo. Como este, ele constrói e destrói sem cessar. Não é ele aquele que depõe no
seio das águas o "Germe de Ouro que encerra Brama"? Isto, sem deixar de ser "aquele
que vence" - em sua forma mais intensa - Bhairava, o Temor, e suas sessenta e quatro
variedades.
D’outro lado, ele possui o aspecto reparador. Ele é igualmente um protetor. Recorre-se a
ele em caso de perigo. No episódio do encapelamento do mar de leite (aparição do
universo multiforme), quando a serpente Vasuki lança um veneno que devia destruir o
mundo, Xiva bebe o veneno. Sua garganta tornou-se azul-escuro e chamaram-no:
Nüakantha... É ainda Xiva que, para evitar uma catástrofe quando da descida das águas
do Ganges sobre a terra, ergueu os cabelos e formou com eles uma barragem protetora
(ímã), contra as ondas impetuosas, e estas escoaram sem causar dano algum.
Xiva é um deus poderoso entre todos os deuses (o Rudra dos hinos), porque ele é o deus
da vida, da procriação. Mas Xiva é sobretudo o Mahadeva, o grande deus asceta, o deus
dos rogues, para os quais ele é um guia e um modelo, pois condu-Ios à consciência da
Unidade. É o Mahayogue ou Mestre dos yogues. "Representam-no então com o rosto
sujo de cinza, seminu, cingido de crânios e ostentando uma coleira de serpentes (Rudra
era já no Vedismo o senhor das serpentes). Sentado em postura meditativa, ele tem um
terceiro olho frontal. A origem deste olho, segundo se afirma, provém de uma
brincadeira de Parvati, que lhe tapara os dois olhos com as mãos" [L. Renou, lb. 514].
É figurado às mais das vezes com muitos braços em Nataraja, dançando o Tandava, a
dança cósmica, cercado do tiruvaçi ou aureola de chamas. Diz-se que ele espezinha um
demônio rebelde ou que ele destrói o cosmos para o recriar. Na realidade, essa dança
evoca numerosos símbolos de sentido esotérico.
A cavalgadura habitual de Xiva é o touro branco: Nandin; e sua veste, uma pele de
tigre. Vem coroado do crescente lunar, e seus atributos são o arco (ajagava), o tamborim
(dhaka) , a clava (Khatvanga), o laço (paça) e o mais habitual, o tridente (triçula
Pinaka). Xiva tem quatro, oito ou dezesseis braços, simbolizando os dois braços
inferiores o gesto da benevolência (varada) e da salvaguarda (abhaya). Foi identificado
um número incalculável de santuários consagrados a Xiva. Os de Buvaneswar e de
Madura são célebres no mundo inteiro.
Xiva delega seus poderes a numerosas Xaktis: Parvati, a Filha da Montanha; Sáti, a
Espôsa Fiel; Uma, a Benéfica, ou Cândi, a Violenta, etc. A mais importante de tôdas, a
sua espôsa Durga ou Káli, a Terrível, é figurada sob traços medonhos. Negra e nua,
cabeleira ao vento, ela traz um colar de cabeças humanas e pisa aos pés o corpo do
esposo, brandindo um cutelo ensangüentado e ostentando uma cabeça recentemente
decepada. Sem embargo, essa Káli é um aspecto da Mãe divina, a Suprema; ela encarna
uma esplêndida energia, uma vontade implacável, e, como o seu esposo, parece que ela
só destrói para libertar a espiritualidade que existe em todo o ser. Quando é aniquilada a
ignorância, o coração torna-se puro. A energia de Káli cria a paz, após haver destruído a
ignorância. A energia de Káli é terrível enquanto ela se exerce, mas quando ela atinge o
"coração" de Xiva, isto é, quando é desfeita a ilusão, Káli detém-se repentinamente e
arrepende-se do ato praticado. E ela recua. "Que fiz eu sob o ímpeto desta loucura?” Ela
atingiu a Realidade, e torna-se equilibrada, calma e mansa. Durga congrega em si
atributos de Káli, Lakchmi e Sarasvati, - três gunas que representam a destruição, a
evolução e a criação. As "cabeças decepadas" simbolizam os demônios da ignorância na
humanidade. Káli toma como ornamento pessoal essas almas assim libertadas, pois foi
ela quem os libertou da ignorância e do medo. Durga-Káli era para Ramakrichna a
divindade de eleição.
Os hindus dão um aspecto humano às imagens, pinturas e estátuas de seus deuses,
ajuntando-lhes os emblemas que os diferenciam entre si. O sinal do poder sobre-
humano exprime-se pela adjunção de braços suplementares: dois, quatro, ou mesmo
mais. Para indicar a visão divina, um terceiro olho é por vezes colocado no meio da
fronte, como no caso de Xiva, enquanto que Brahma é representado com quatro
cabeças. As representações animais são a marca de qualidades particulares. Assim, é
dada a Ganeça uma cabeça de elefante, e aos Kimnasas uma cabeça de cavalo.
Ganeça, chefe dos "Ganas" (tropas divinas), objeto de um culto intenso, é o filho de
Xiva e de Parvati. Solicita-se o seu apoio antes de toda a empresa; ele é o guia
(Vinayala), que destrói os obstáculos. Ganeça simboliza o apelo à força espiritual. Seu
papel na epopéia do Ramanaya ilustra o seu espírito de sacrifício, de perseverança e de
devoção.
Representam-no com uma cabeça de elefante e uma só presa. Sua cor, geralmente
vermelha, pode ser branca ou amarela; tem um ventre proeminente e serve-se para
cavalgadura de um rato ou de um leão. Traz uma presa de elefante e um rosário. Goza
de muita popularidade, sobretudo no sul. Sua imagem é vista nas encruzilhadas dos
caminhos, nas árvores e nos templos.
O macaco Hanumã, emblema da destreza e da inteligência, filho do deus do vento,
Pavana, é considerado entre as divindades religiosas da Índia como o "perfeito servo" de
Brahma, pelo seu exemplo de força e de domínio de si. Ele é um aliado de Ramá, chefe
do exército dos macacos; numerosos templos lhe são elevados.
. O Budismo
O budismo foi fundado por Gautama Buda, nascido de uma família abastada
e nobre por volta de 560 a. C., e morto por volta de 480 a. C. Apesar de sua
riqueza e dos empenhos de que foi alvo para não abandonar a casa paterna,
ele partiu depois do nascimento de seu filho, e viveu durante seis anos na
penitência, buscando a Verdade, a libertação das reencarnações. A
experiência lhe mostrou que vãs eram as penitências humanas para
alcançar esse fim. E, uma noite, em Boudgaya, ele conheceu a iluminação
ao mesmo tempo que os princípios que deveria, pouco depois, anunciar ao
mundo. Buda reuniu seus primeiros discípulos em associações monásticas,
sujeitas a regras que, naturalmente, aumentaram no curso dos séculos. Os
leigos foram, posteriormente, admitidos a seguir (de longe) a via traçada
pelo Mestre, na esperança de renascer um dia, entrar como noviços na
ordem, e chegar ao Nirvana.
É difícil precisar se o fundador do budismo teve, desde o começo, a visão
nítida do rompimento que ele ia operar no hinduísmo ou se apenas se achou
no direito de expor suas teorias como uma das vias para a salvação. A
mensagem de Buda são, primeiro, as quatro grandes verdades: o fato do
sofrimento, a causa do sofrimento, o fim do sofrimento, os meios de escapar
ao sofrimento. Estes últimos são o fundamento da verdade: a compreensão
verdadeira, o conhecimento verdadeiro, a veracidade, a ação e a vida
verdadeiras. Por esses meios, o homem consegue libertar-se da ignorância,
causa última do renascimento. Porque a ignorância nasce do desejo, do
desejo vem a ação, e da ação, o renascimento.
A ética do budismo
A doutrina de Buda dá ênfase a um moralismo que não deixa de apresentar
dificuldades - e são muitas. Acresce que em todas as questões metafísicas o
silêncio de Buda nos constrange. Não há dúvida que em face da substância
imutável que é Brahman, ele afirmou que tudo é transitório e que nada de
substancial existe. Donde, logicamente, nenhuma alma, na realidade,
transmigra. A transmigração não é senão a continuidade dos valores: uma
boa ação vê sua influência perdurar. O mesmo acontece com uma ação má.
Como o budismo em sua pureza rejeita Deus, é só por seus próprios
esforços que o homem se liberta e alcança o Nirvana.
Mas qual é o sentido profundo desse termo, tantas vezes usado, com e sem
propósito? Não se sabe se ele esconde uma aniquilação total; um estado de
bem-aventurança que rejeita só os fenômenos mutáveis, inconstantes; ou
se não indicará que é mais sensato para o homem deixar-se ficar, pelo
menos neste mundo, em um cômodo agnosticismo. A solução desses
problemas pode deleitar nossa curiosidade, mas não é útil. Quando a casa
está em chamas, a gente sai dela o mais depressa possível. Quando alguém
está doente, não quer saber qual a natureza última do remédio, e, sim,
tomá-lo.
Abreviações:
A. - Angutara – Nikaya; AA. - Comentário do Angutara; BG. – Baghavadgita;
BU. - Brhadaranyaka – Upanishad; Com. – Comentário; D. - Digha – Nikaya;
DA. - Comentário do Digha; Dh. – Dhammapada; E.R.E. - Enciclopédia da
Religião e da Ética; G.S. - Gradual Sayings; HJAS. - Harvard journal of Asiatic
Studies; It. – Itivuttaka; ItA. - Comentário do Itivuttaka; J. – Jataka; K.S. -
Kindred Sayings; M. - Mojjhima – Nikaya; MA. - Comentário do Mojjhima; Mil.
– Milindapanha; Min. Anth. - Minor Anthologics of the Pali Canon; S. -
Samyutta Nikaya; SA. - Comentário do Samyutta; Sn. – Suttanipata; Ud. –
Udana; Uda. - Comentário do Udana; Up. – Upanishad; Vin. - Vinaya – Pitaka;
Vism. - Visuddhimagga
As referências às obras em Páli dizem respeito às edições da Pali Text
Society, exceto no caso da Vinaya e da Jataka. [introdução omitida]
Querer dar uma idéia adequada do conteúdo da doutrina budista nos seus
primórdios é uma tarefa que apresenta dificuldades quase insuperáveis.
Esta Lei Eterna (dhamma ,sanatana, akãlika), que não era de modo algum
uma criação intelectual de Buda por raciocínio, mas à qual êle se
identificava, uma Lei ensinada por seus predecessores num passado remoto
e que seria ainda ensinada por seus sucessores no futuro, o próprio Buda a
declara profunda e difícil de compreender por ouvintes que tenham outra
mentalidade e uma outra formação de espírito; é uma doutrina para aquêles
que tenham poucas necessidades, não para aquêles que tenham muitas.
Durante a sua vida e reiteradas vêzes, Buda teve necessidade de corrigir as
falsas interpretações de seu ensinamento; de explicar, por exemplo, em que
sentido preciso era ou não era uma doutrina de "extirpação"; ela o era no
sentido que era preciso "suprimir" o egoísmo, o mal e a dor; e não o era no
sentido do aniquilamento de uma realidade. Aliás, o que êle ensinava era o
aniquilamento de si mesmo: aquêle que quiser a liberdade deve-se ter
literalmente renunciado; para o resíduo, os têrmos da lógica do dilema "ou
isto ou aquilo", não são adequados; mas seria totalmente impróprio dizer-se
do Arahant que "expirou" libertado pela sua hipergnose, que "êle não sabe
nem vê" (D. II, 68).
Se os erros já eram possíveis em vida de Buda, quando, como êle o disse,
acabava de reabrir um Caminho antigo há muito desprezado e obliterado
por uma falsa doutrina, quanto mais inevitáveis não serão as interpretações
errôneas em nosso século de progresso, de expressão individualista, de
busca incessante de um nível mais elevado de vida material? Quase todos
nós, salvo alguns teólogos de profissão, esquecemos que uma realidade
suprema não poderia ser convenientemente definida a não ser por uma
série de negações, dizendo-se somente o que ela não é. De qualquer
maneira, como o fazia notar ainda Miss Horner em 1938, o estudo do
budismo primitivo está ainda começando a balbuciar (Livro da Disciplina, I,
VI). Se o leitor encara o budismo como um caminho de evasão (no que não
estará cometendo um êrro) pode ainda se perguntar a que êle se aplica, de
onde parte e aonde vai êste caminho de evasão de que se nos afirma que
"existe neste mundo" (S. I, 128).
O que agrava as dificuldades, são os erros de interpretação que se
encontram ainda, mesmo nas obras dos eruditos. Um dos mais autorizados,
por exemplo, não compreendeu que é preciso distinguir o "porvir" cuja
cessação coincide com a obtenção da imortalidade, do "porvir provocado"
na parte imortal de nosso ser. De fato, o "porvir" não é outra coisa que
aquilo que hoje chamamos o progresso sem levar em conta o fato de que a
transformação pode ser para melhor ou para pior; e não devemos esquecer
que hoje, como então, "há deuses e homens que se comprazem com o
porvir, e quando se lhes fala em fazer cessar o porvir, seus espíritos não são
atraídos" (Vis. 594). Outro grande erudito afirma que o budismo primitivo
"negava um Deus, negava uma Alma, negava a Eternidade" e se pretende,
quase em tôda parte que, segundo Buda, não existe o Eu. Não se observa,
portanto, que o que Buda negou foi a realidade do Ego sempre variável, da
"individualidade" psicofísica; o que êle disse do Eu, do Descobridor da
Verdade ou do "Assim vindo", do Homem Perfeito, depois da morte, é que
nenhuma das expressões "vir a ser", "não vir a ser", "vem a ser e não vem a
ser", "nem vem a ser nem não vem a ser", pode se aplicar a ele ou a êste
qualquer coisa (A. IV, 384 sego, 400-401; Ud. 67, etc.) Ou então ouvimos
freqüentemente afirmar que o budismo é uma doutrina "pessimista", a
despeito do fato que o fim que êle nos propõe - a libertação de todos os
sofrimentos mentais aos quais o homem está sujeito - é um fim que se pode
atingir neste mundo e desde agora. É pelo menos não querer reconhecer
que uma doutrina só se julga pelo fato de ela ser verdadeira ou falsa, não
por ela nos agradar ou não. A primeira preocupação de Buda, é o problema
do mal no que se refere ao sofrimento ou dor (dukkha); em outras. palavras,
aquilo que é corruptível de tudo o que é nascido, composto, mutável; sua
sujeição ao sofrimento, à doença, ao- envelhecimento e à morte. Que esta
sujeição é um fato (3), que ela tenha uma causa, que esta causa por ser
suprimida; que exista um Caminho, um Trilhar, uma Viagem que- permita
suprimi-Ia, eis as "Quatro Verdades Arianas" que são o comêço da
sabedoria. "Tanto no presente como até agora eu só ensino isto, a origem e
o fim do mal" (M. I. 140). Resulta daí, que o budismo pode ser reduzido (e o
é freqüentemente) a simples fórmulas de "origem causal (pattica
samuppãda) : "Isto sendo assim, aquilo vem a ser; isto não sendo assim,
aquilo não vem a ser". Devido à operação sem início das causas mediatas, é
impossível evitar qualquer de seus efeitos complexos; a evasão não é
possível a não ser no- domínio onde opera a eficiência causal das ações
passadas (kamma) e somente a respeito do que jamais fêz parte integrante
dêste domínio.
[3.Toda a raça humana é tão miserável e acima de tudo tão cega, que não
tem consciência de suas próprias misérias. (Comenius, Labirinto do mundo e
Paraíso do Coração, c. XXVlll). É precisamente devido a esta cegueira que
Buda hesitou em pregar o Dhamma a homens cujos olhos estão cobertos de
pó].
Buda afirma que êle "nada dissimula", que êle não estabelece uma distinção
entre o interior e o exterior, que "sua mão não está fechada" (D. II, 100).
Mas a Lei Eterna e o Nirvâna são "não-compostos" e por êste valor
transcedente (paramattha) não existem palavras adequadas: “all' alta
fantasia qui manco posro” (Dante, Paraíso XXXIII, 742); isto será objeto da
fé (saddhã) do discípulo até que disto êle tenha experiência, até que o
conhecimento venha substituir a Fé. "Aquêle cujo espírito está abrasado
com o desejo do Indizível (anakkhãtã), êsse está liberto de todos os amôres,
nada contra a corrente (Dh. 218). Os Budas só fazem proclamar "a Via" (Dh.
276). Se pode ter uma salvação pela fé (Sn. 1146), é porque “é a fé que
conduz o melhor ao conhecimento" (S. IV, 298): crede ut inteligas. Quem diz
fé diz autoridade; a autoridade de Buda (mahãpadesa) que repousa sôbre
sua experiência imediata e àquela de suas palavras tais como êle as
pronunciou, ou tais como foram narradas pelos monges-mendicantes
competentes; neste último caso, elas não somente foram corretamente
compreendidas, mas ainda verificadas, quanto à sua conformidade com os
textos canônicos e a regra. Esta dependência da etapa inicial sôbre o que
ainda não foi "visto" não é exclusivamente budista e não exige uma
particular credulidade. A matéria do ensinamento de Buda é sempre o que
êle afirma ter visto e verificado pessoalmente: e isso, êle assegura a seus
discípulos que êles também poderão ver e verificar se êles o seguirem na
sua viagem com Brahma. "Os Budas apenas indicam o Caminho; cabe a vós
fatigar-se com a tarefa" (Dh. 276); o Fim permanece indizível (Dh. 218); êle
não possui sinal (S. I, 188, Sn. 342); é uma gnose que não é comunicável (A.
III, 444); aquêles que só confiam no que pode ser dito estão ainda sob êste
jugo da morte (S. I, 11).
Quando se discute a questão da Fé, esquece-se demasiadamente que nosso
conhecimento das "coisas", mesmo as que regem nossos atos mundanos,
está na maior parte baseado na autoridade. Pode-se dizer que a maioria de
nossas atividades diárias cessaria se deixássemos de acreditar nas palavras
daqueles que viram o que ainda não vimos, mas que poderíamos ver
fazendo o que êles fizeram, indo onde êles foram: do mesmo modo as
atividades do neófito budista terminariam se êle não "acreditasse" nesta
finalidade que êle ainda não atingiu. De fato, êle acredita que Buda lhe
disse o que é verdadeiro, e age em conseqüência (D. ll, 93). Somente o
Homem Perfeito é "sem fé" pois nêle o conhecimento do Não-feito substituiu
a Fé (Dh. 97) e esta não mais lhe é útil. Para o budista, o Dhamma, a Lex
Aeterna, sinônimo da Verdade (22) (5. I, 169) é a autoridade suprema, o
-Rei dos reis" (A. I, 109; m, 149). É com esta última autoridade, fora do
tempo e temporal ao mesmo tempo, transcendente e imanente, que Buda
se identifica, identifica a Ipseidade na qual êle se refugiou: “Aquêle que vê o
Dhamma me vê, aquêle que me vê, vê o Dhamma" (S. III. 120; it. qi; Mil.
73). Entre as escrituras budistas, uma das mais grandiosas é intitulada o
Dhammapadas "as Marcas da Lei"; um itinerário, um guia para aquêles que
"marcham na Via da Lei" (dhammacariyam caranti), a qual é também a (Via
de Brahma", "a viagem com Brahma" (brahmacariyam), -a antiga estrada
que seguiram os Todo-Despertos de outrora". Os termos budistas para dizer
a "vereda" (magga) e a "busca" (gavesana) (23) da qual Ipseidade é o
objeto (Vin. I, 23; Vis. 393), indicam implicitamente que é necessário seguir
uma pista, nas marcas. (24) Mas estas pistas terminam quando a margem
do Grande Mar é atingida. O monge-mendicante que era até então um
discípulo (sekho) é daí por diante um perito (asekho); não está mais sob a
direção de um preceptor (Gal. III, 25). A Via prescrita é a do aniquilamento
do eu, da virtude, da contemplação; é necessário caminhar sozinho com
Brahma; mas uma vez atingido o fim desta longa estrada quer seja neste
mundo quer no outro, nada mais resta que o mergulho" no Imortal, no
Nirvâna ( mat' ogadham, nibbãn'ogadham), neste oceano insondável que é
ao mesmo tempo a imagem do Nirvâna, do Dhama e do próprio Buda (M. I,
488,494; S. IV, 179, 180; v, 47; Mil. 319, 346). É uma velha comparação,
comum aos Upanishads e ao budismo: quando os rios atingem o mar,
perdem nome e forma só se fala do "mar". A vocação monástica é já uma
prefiguração dêste fim; semelhantes aos rios que atingem o mar, os homens
de tôda a casta que se tomaram monges-mendicantes não mais são
designados pelo seu antigo nome ou sua antiga linhagem: pertencem
somente à linhagem daqueles que procuram a Verdade e a encontraram
(Dh. 239).
[22. “Uma lei superior a nossos espíritos, chamada Verdade", Santo
Agostinho, De Vera Relig. XXX, Cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Theol. 1-
11, 91-2].
[23. Cf. a história de Gavesin, adiante].
[24. Como em Platão, zkueuv, passim, ou em Mestre Eckart, alma seguindo
a pista de sua prêsa, o Criton].
Mestre Eckhart diz: "Convém aprender o que são Deus e a Divindade, Deus
trabalha, a Divindade não faz trabalho algum. Deus torna-se e não se torna
(wirt und entwirt); êle é a imagem de todo o porvir (werdende); mas a
natureza do Pai não "vem a ser" (unwerdentlich ist) e o Filho é um com ele
neste não porvir (entwerdende). O porvir temporal termina no eterno não-
porvir (Pfeiffer, 497 e 516). Pois-é mais essencial que a alma perca Deus, do
que ela perca as criaturas" (Evans I, 274) se ela deve atingir êsse estado em
que seremos "tão livres como quando não éramos, livres como a Divindade
em sua não-existência", Por que não se fala da Divindade? Porque tudo o
que ela é em si é apenas uma só e mesma coisa, e que nada há a dizer.
Quando retomar ao solo, às profundezas, à fonte da Divindade, ninguém me
perguntará de onde vim ou o que fui" (Pfeiffer 180-181). “Nossa essência
não é aniquilada, embora não devêssemos ter nem conhecimento, nem
amor, nem beatitude: isso se toma como um deserto onde somente reina
"Deus", (27) É por isso que o autor desconhecido do Livro de Conselho
Privado e da Nuvem da Ignorância faz uma distinção entre aquêles que são
chamados à salvação e aquêles que são chamados à perfeição: citando a
escolha de Maria "que tornou a melhor parte, aquela que não lhe será
arrebatada (Livro do Conselho Privado, f. 150 a) êle diz a propósito da vida
contemplativa que "se ela começa neste mundo, ela durará eternamente" e
acrescenta que nessa outra vida "não mais será necessário praticar obras
de caridade nem chorar pela nossa miséria" (Livro do Conselho Privado, cap,
XXI).
[27. A "não-existência" a "fonte" o "deserto" de Mestre Eckhart são análogos
ao Mar dos budistas de que falamos, onde desaparece a diferenciação (cf. a
definição da theosis em Nicolas de Cuse: ablatio omnis alteritatis et
diversitatis) e ao Mar do Amor, a Não-existência de Rümi, onde o Amante se
torna o Amado (Mathnawi, I, 504, 1109; H. 688-690; 1103; III, 4723; VI, 2771
e passim, os comentários de Nicholson)].
Qual é pois a tarefa que resta a cumprir aos religiosos e àqueles que
atingiram uma vida (susceptível de durar idades) nos céus do Empíreo, sem
pertencer ainda ao número de Arahants cuja "tarefa foi cumprida"? Não se
trata de obter um estado superior pelas boas obras; o fruto das obras já foi
adquirido: trata-se daí por diante unicamente da vida e contemplação
(jhuna) O jhãna (sansc. dhyana, chin, tch' an, jap. zen) corresponde quase
exatamente ao segundo têrmo da série: "Consideração, Contemplação e
Êxtase" na ascese ocidental; a sahudhi, literalmente "composição" ou
"síntese", como a dos raios no centro do círculo (28), corresponde ao Êxtase
e pressupõe a consumação do jhãna em tôdas as etapas, O jhãna, é a
realização ativa e desejada de estados de ser diversos daquele no qual o
contemplativo se encontra normalmente; a fôrça do têrmo é totalmente
desconhecida pelos sábios que a denominam uma "meditação" ou, o que é
ainda mais falso, um "devaneio". A contemplação é uma disciplina metal
das mais árduas, que exige uma longa prática: não é uma variedade de
sonho no estado de vigília; "nada aí lembra o transe, mas muito mais uma
vitalidade exaltada" (P. T, S. Pãli Dictionary, s. v. jhãna) , O adepto pode
passar na hierarquia dos estados de um a outro, a sua vontade, e a nela
tomar a descer (D. II, 71, 156); êste domínio absoluto dos estados
contemplativos distingue claramente o yoga hindu de tôda a experiência
mística que é apenas passiva e adventícia. Os estados contemplativos
constituem uma espécie de escala que se pode ascender de estado de ser
ou "níveis" inferiores, aos superiores; mas a finalidade última da libertação
se encontra ainda além.
[28. No simbolismo arquitetural, ao qual se refere freqüentemente, a
concentração dos poderes psíquicos em sua origem, empresta,
freqüentemente, a imagem dos arqueiros que se reúnem no acabamento do
zimbório, e êste acabamento (arrendado) é a "porta do sol" pela qual se
escapa de um mundo condicionado qualquer, que representa o espaço
interior (a "gruta" de Platão) do edifício].
Os jhãnas são em número de quatro, acessíveis tanto aos leigos quanto aos
monges; com os quatro arupa-jhãnas (estados "sem forma", completamente
imateriais), é uma série de oito etapas da libertação (vimokkha, D. II 69-71,
112, 156. e passim). No primeiro jhãna, é preciso dar ao espírito "uma única
direção" e voltar a atenção sôbre qualquer suporte da contemplação que
seja de uma natureza apropriada ao temperamento e à constituição do
discípulo; é geralmente seu mestre que o escolhe. No segundo, o praticante
vê ainda a forma exterior a êle, mas não mais tem consciência da sua
própria; é uma experiência extática. No terceiro, o êxtase se desvanece, e
só resta uma consciência da infinidade do poder de discriminação (vinnãna).
No sexto domina a sensação que "nada existe" (n'atthi kimaci). No sétimo,
não há mais discriminação, e é um estado onde não há nem consciência
nem inconsciência (sannã). No oitavo, há a interrupção de tôda a
consciência ou sensação (D. II, 68-71, 112, 156). Quando um religioso se
tornou mestre dêstes oito graus da libertação em sua ordem ascendente,
em sua ordem descendente, e numa e outra ordem consecutivamente, de
tal sorte que se pode submergir em qualquer um dêstes estados, ou dêles
sair à vontade e durante o tempo que desejar; quando pela extirpação dos
fluxos êle penetra nesta liberdade da vontade (cetto vimutti) e nesta
liberdade intelectual (pannã - vimutti) da qual êle tem agora um
conhecimento direto e uma prática efetiva desde agora, então se diz dêste
religioso que êle é "livre nos dois sentidos", e não existe liberdade, nos dois
sentidos, diversa nem mais alta que aquela (D. II, 71; cf. Sn. 734-753).
. O Jainismo
O jainismo teria sido revelado ao gênero humano por uma sucessão de
Mestres, os Tirtakharas, ou santos, que conseguiram passar, como que a
vau, o rio das reencarnações. Mahavira é o vigésimo quarto e último da
lista. A ele se atribui a fundação da seita na sua forma atual. Segundo a
tradição, Mahavira viveu de 599 a 527 a. C. Tendo renunciado ao mundo
com a idade de 18 anos, começou uma carreira de penitência. Vinte anos
depois, recebeu a "iluminação". Assumiu, então, a qualidade de profeta e o
título de Jaina ou "conquistador espiritual". Ensinou durante trinta anos e
organizou os quadros da seita. Seus monges e suas religiosas são, antes de
tudo, ascetas, as quais, através das penitências as mais diversas,
encaminham-se para a penitência suprema: a morte, ou, mais exatamente,
o suicídio por inanição, que os põe de posse da libertação. Ateus, não oram
nem oferecem sacrifícios; anapsiquistas, vêem almas até na matéria;
atomistas, afirmam a impermanência das substâncias compostas de átomos
qualitativamente semelhantes. Discute-se ainda se eles admitiram a
impermanência absoluta de tudo em face da afirmação hindu da
imutabilidade do Brahman.
Desobrigados de interpretar os livros sagrados dos hindus, eles trabalharam
em outros setores. A dialética, em primeiro lugar, na qual se esforçam para
demonstrar a incapacidade de toda definição para alcançar a realidade de
maneira adequada. A psicologia, em seguida e principalmente, em que
algumas de suas análises das faltas e dos meios de romper os grilhões do
pecado não deixam de ter profundeza. A prática monástica de uma espécie
de exame de consciência diário (comum aos leigos, se bem que mais
espaçada) abriu aos jains, reconhecidamente, vastos horizontes sobre as
molas da alma humana. Dentre as virtudes que eles sempre encareceram, a
Ahimsa, ou não-violência, vem em primeiro lugar. Ela vai ser levada por eles
ao excesso. Exemplo: o véu que levam no rosto para filtrar um eventual
mosquito ou, melhor, para não causar dano aos seres microscópicos e vivos
que se encontram no ar. Os jains conheceram dias de triunfo e levaram seus
monumentos até o sul do subcontinente. Mas quando o hinduísmo se
reorganizou para reconquistar o terreno perdido, as discussões teológicas
muita vez terminaram pelo extermínio dos jains: o paredão oriental do
grande templo de Madura conservou para nós a lembrança desses horrores.
Os jains são aí representados como vítimas de torturas desumanas,
empalados, cortados em pedaços. Oito mil deles morreram nos arredores da
cidade. Mas o hinduísmo se encontrava também diante de um outro
adversário de peso, nascido desde o começo da reforma de Mahavira: o
budismo.
http://indologia.blogspot.com/2008/04/o-jainismo.html