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Religião

para Hanuman Das

. A Religião Védica

A Religião Védica

Generalidades
O vedismo ou religião do Veda constitui o aspecto mais antigo sob o qual nos são
apresentadas as formas religiosas na Índia. Os textos védicos, que são os primeiros
monumentos literários da Índia (e dos mais antigos da humanidade), proporcionam
simultaneamente o testemunho mais arcaico da religião a que se chama ora
bramanismo, ora hinduísmo. Se houvesse que limitar as duas palavras, bramanismo
deveria designar a religião das épocas antigas e confundir-se depois, em parte ou na
totalidade, com o vedismo, enquanto o hinduísmo visaria mais a evolução religiosa no
seu conjunto, quer a partir do Veda, quer após o período védico. A religião védica é a
que os invasores arianos levaram consigo quando irromperam no Noroeste da Índia (o
Panjâb, bacia do alto Indo), entre 2100 e 1500 antes da nossa era. O fundo remonta a
dados que se deixam caracterizar como «indo-iranianos».
Voltamos a encontrá-los quando observamos o que, no Irão, é anterior à reforma de
Zoroastro e, ao mesmo tempo, homólogo aos fatos conhecidos na Índia «védica»: é a
crença em certas noções fundamentais, numa dupla hierarquia divina -os daivas e os
asuras; por outro lado, o culto do Fogo, os sacrifícios animais, os sacrifícios de soma.
Mas, para além desta religião indo-iraniana, que não passou de uma etapa, existe um
plano Indo-europeu.
A religião Indo-europeia consistia numa rede de crenças já complexas, ao mesmo tempo
naturalistas, rituais e «sociais». Sob um deterrminado ângulo, estavam repartidas em
funções: uma propriamente religiosa, sacerdotal e jurídica, outra representativa do poder
temporal e uma terceira de tipo econômico.
Mas a religião védica só se explica numa medida muito reduzida por essa dupla herança
indo-iraniana ou indo-europeia. Em contacto com elementos autóctones ou pelo efeito
de uma rápida evolução interna, as formas antigas foram enriquecidas ou alteradas.
Absorveram uma parte daquilo a que se pode chamar o hinduísmo «primitivo» -de que
nada conhecemos, à parte precisamente os vestígios que se encontram na religião védica
e esclarecem quando comparados com fatos atestados na Índia ulterior.

Os Textos
Os únicos monumentos da religião védica são textos, de data e inspiração variadas.
Esses textos formam um conjunto excepcionalmente amplo e importante, embora o que
se conservou até n6s represente apenas, segundo a tradição, urna pequena parte do que
existia na origem. Com efeito, essa literatura foi-nos transmitida repartida por escolas, a
que a tradição chama «ramos», as quais começaram por ser em número de quatro, em
virtude da função quádrupla dos celebrantes, e depois cindiram-se noutros «ramos»
devido aos ensinamentos particulares a que deu origem o desenvolvimento progressivo
da prática religiosa e sua extensão através de toda a Índia. Ora, nem todas as escolas
primitivas, nem todos os ramos secundários (nem a totalidade ou a integridade dos
textos num mesmo ramo) chegaram até nós, muito longe disso.
Os textos mais importantes e, de resto, os mais antigos são as quatro «compilações»
(Samhita) que formam aquilo a que se chama “os quatro Vedas”. O termo veda, que
significa «saber», também se emprega, num sentido amplo, para designar toda ou uma
parte da literatura ulterior, fundada numa ou noutra das quatro Samhitâs.
São: 1) O Rig-Veda ou «Veda das Estrofes», o documento das literaturas indianas mais
antigo: reunião de cerca de mil hinos às divindades, que prefigura uma espécie de
antologia obtida compilando as peças conservadas por velhas famílias sacerdotais; a
maior parte desses hinos refere-se mais ou menos diretamente ao sacrifício de soma; no
entanto, alguns têm urna relação muito reduzida ou mesmo nula com o culto;
2) O Yajur-Veda ou «Veda das Fórmulas», que nos é transmitido em várias recensões:
urnas combinam-se com as «fórmulas» que acompanham a liturgia dos elementos de
um comentário em prosa -é aquilo a que se chama o Yajur Veda Negro-, enquanto
outras apenas dão as fòrmulas e trata-se então do Yajur-Veda Branco;
3) o Sâma-Veda ou «veda das Melodias» é urna coletânea de estrofes como o Rig-Veda,
no qual, alias, essas estrofes se inspiram na quase totalidade, mas estão dispostas com
vista à execução do cântico sagrado e comportam notações musicais;
4) Finalmente, o Atharva-Veda é também uma compilação análoga ao Rig-Veda, mas
de caráter em parte mágico e em parte especulativo. A tradição fala com freqüência de
«três Vedas» ou da «tripla ciência», porque considera implicitamente o Atharva
estranho à alta dignidade própria dos «três Vedas». Seguem-se, na ordem cronológica,
os Brahmanas ou «Interpretações sobre o brama», comentários em prosa que explicam
quer os ritos, quer as fórmulas que os acompanham. Há os ligados aos diferentes Vedas
e até dois ou mais de dois para todos os Vedas, exceto para o Atharva. Estes dois
primeiros ramos da literatura védica formam aquilo a que se chama a çruti ou
«revelação»; por outras palavras, passam por ser de origem divina, resultar de uma
comunicação por «vidência» feita a determinados seres humanos privilegiados. A çruti
comporta ainda textos mais breves, completamente naturais dos Brâhmanas, os
Âranyakas ou «Tratados Florestais», próprios para serem recitados longe das
aglomerações, e os Upanishads ou «Concepções», que se envolvem no vivo das
especulações.
Os outros documentos do vedismo pertencem à smriti ou «tradição memorizada»: trata-
se, em primeiro lugar, dos Sutras ou «Aforismos», isto é, textos redigidos num estilo
muito hermético, destinados a ser aprendidos de cor pelos noviços liturgistas. Foi
compilado um número elevado deles, para os diferentes «ramos», quer na ordem das
cerimônias solenes, quer na ordem do ritual «doméstico»; outros ainda resumem
ensinamentos mais gerais, traçando o esboço de um direito civil e penal que sai
gradualmente da matriz das prescrições sacerdotais.
A literatura termina com séries de textos, escritos ora em estilo de aforismo, ora em
prosa corrente, eventualmente em versículos: completam o que se deve saber para ser
um ritualista completo - tratados de métrica, de fonética, de astronomia, listas diversas e
tabelas das matérias metódicas, etc.
O conjunto está redigido em sânscrito*, mas num sânscrito arcaico que contém
numerosas particularidades mais tarde perdidas. Os Hinos e as «fórmulas» em geral (o
que se engloba sob a designação de mantra) são de um arcaísmo muito mais
pronunciado que a prosa subseqüente. Mas, no conjunto, a cronologia interna não é fácil
de estabelecer.
*[Pronúncia das palavras sânscritas: u pronuncia-se como na nossa língua; c e j
pronunciam-se respectivamente tch e dj; g tem sempre o som guê; P equivale ao som do
ich. Nesta tradução, utilizamos o Ç para representar o som X ou Sh.]
Quanto à cronologia absoluta, também não é muito segura. A redação do Rig-Veda
pode situar-se, por hipótese, nos séculos X ou XII antes da nossa era. Os últimos textos
védicos, ou seja, os «anexos» do Veda e os grandes Upanishads devem ser do século VI
ou V. Não obstante, a sua preparação remonta a muito mais atrás, e os tratados védicos
isolados foram compilados mais tarde. A transmissão e mesmo a confecção foram orais
ou, pelo menos, só comportaram a escrita a titulo de auxiliar. Ainda hoje os recitadores
que subsistem através da Índia conservam oralmente vastas porções do Veda, em
condições de uma exatidão surpreendente.

As Crenças e a Mitologia
A religião védica consiste, antes de mais, numa mitologia muito elaborada. Os deuses
do Veda, como os descreve principalmente o Rig-veda, são seres ativos que intervêm
com naturalidade nos assuntos humanos. Convenientemente invocados, gratificados
com belas oferendas, são prestáveis, de contrário perigosos, e vários deles naturalmente
ambivalentes. Enumeram-se em geral trinta e três, divididos, desde a Antiguidade, em
deuses terrestres, do «espaço intermédio» (atmosfera) e celestes. Uma divisão mais
pertinente seria por funções-deuses soberanos, guerreiros e patronos da função
«econômica» (agricultura, criação de gado e artesanato), mas isto apenas abarca urna
pequena parte dos fatos. Na realidade, as atribuições são múltiplas, e o próprio
formulário e exigências do panegírico contribuíram para as diversificar. Dotou-se a
divindade que se celebrava num momento determinado de todas ou parte das funções
aferentes aos outros deuses, pelo que a mitologia védica se tomou uma coisa confusa,
mal decifrável à primeira vista.
No fundo do panteão reside Dyaush Pitar, o Céu Pai, equivalente ao Júpiter romano,
mas trata-se de uma figura muito pálida, como a deusa Terra ou o casal Céu-Terra,
invocados com freqüência apesar disso. Mais perto, mas ainda recolhida, encontra-se a
figura impressionante de Varuna, deus soberano, conservador das leis cósmicas e
morais, espiador dos culpados, que amarra com os seus lacetes, possuidor de uma faceta
perigosa, quase sinistra. Associam-lhe com freqüência outro soberano, Mitra, deus dos
contratos e da majestade jurídica. Varuna e Mitra são os primeiros de entre os Âdityas,
seqüência de sete ou oito entidades que passam por descendentes de Aditi, esboço vago
de uma Deusa-Mãe.
O papel proeminente está reservado a Indra, cujas proezas maravilhosas nos são
descritas incessantemente: venceu multidões de inimigos humanos ou demoníacos,
auxiliado por príncipes aliados. Num plano mais naturalista, matou, com o seu raio, o
dragão que bloqueava as águas, conquistou o Sol, libertou as auroras prisioneiras, etc. A
origem de Indra, em que alguns viram o típico deus «ariano», mantém-se duvidosa.
Entre os seus aliados figuram os Marutes, grupo de homens jovens que cavalgam nas
nuvens e provocam a tempestade e a chuva, aos quais também chamam Rudras, ou seja,
filhos de Rudra. Este dado conduz-nos a uma das figuras mais estranhas do vedismo:
Rudra, deus essencialmente temível, mesmo (e, sobretudo) quando lhe chamam Çiva «o
benfeitor». É certo que, por outro lado, se revela milagreiro, e as invocações que lhe
dirigem emprestam a essa dupla qualidade uma natureza muito especial. Outras
personalidades, em geral também aliadas de Indra, são o casal dos Açvins ou Nâsatyas,
que percorrem o céu no seu carro, marcando pela sua passagem a aurora e o crepúsculo.
São equivalentes aos Dióscuros da mitologia grega.
Não se sabe ao certo se a Lua é objeto de uma veneração direta, mas as representações
solares ocupam um lugar imenso, com as figuras de Surya, o Sol, e Savitar, o Incitador.
Vishnu, que atravessa o universo em três passadas, representa um mito solar, além de
outros, e a Aurora é divinizada de forma transparente sob a designação da graciosa
deusa Ushas. Há o Vento com Vâyu e a Tormenta com Parjanya.
Outro grupo de seres, sem se distinguir radicalmente dos anteriores, tem o seu ponto de
partida em objetos concretos, visíveis aos seres humanos e próximos deles: trata-se de
Soma, que personifica o licor do mesmo nome, e também de Agni, que é, em primeiro
lugar, o «fogo» ateado pelos homens e depois o fogo do Sol, o das nuvens, que se
esconde nas plantas e nas águas. Soma e Agni tomaram-se personagens desmesuradas,
às quais se ligam noções múltiplas.
A um nível secundário, Pûshan, o deus que guia homens e animais, Brihaspati, o
«mestre da fórmula», e Tvashtar e os três Ribhus, deuses artesãos. As funções são, de
resto, pouco especializadas. E os indivíduos apresentam-se mal separáveis, por vezes
sob a forma de nomes de objetos ou plantas, que se encontram, temporariamente ou não,
promovidos à categoria divina. Em compensação, não há figuras femininas; a noção de
esposa divina não se acha acreditada. Os demônios abundam, mesclados com
recordações de inimigos humanos, mas não existe noção demoníaca central. O mais
importante, Vritra, inimigo de Indra, personifica a «resistência». Os casais e grupos
anônimos são freqüentes. Os Asuras, em primeiro lugar deuses soberanos, orientam-se a
pouco e pouco, desde o Rig-veda tardio até à demonialidade, à medida que o culto dos
devas se consolida. Antigos sacrificadores, Pais, são elevados, aqui e ali, ao grau divino.
Acima dos deuses, ou à parte, grandes forças abstratas animam o mundo, sendo a
principal o rita, «ordem» cósmica e «ordem» ritual ou moral simultaneamente.

A cosmologia
A cosmologia é representada por noções assaz vagas, o mesmo se passando com a
cosmogonia, que descreve por meio de diversas metáforas e mitos abortados a obra da
criação do mundo. Há algumas idéias, por vezes precisas, sobre um princípio espiritual
equivalente àquilo a que chamamos alma. Se não existe qualquer imagem estável dos
infernos, o paraíso acha-se definido muito nitidamente como o mundo de «obra pia», ao
qual se tem acesso pela «via dos deuses», situado no terceiro céu e constituído por
felicidades exclusivamente materiais. Alias, o homem «védico» nada pede para além da
vida presente, da vida de cem anos que deseja: não tem uma visão clara de
renascimentos eventuais, mesmo que algumas alusões ambíguas se possam interpretar
nesse sentido. Yama, o primeiro dos humanos, por conseguinte o primeiro daqueles que
morreram, tornou-se (em seguida?) o rei dos mortos, senhor do mundo subterrâneo ou
ainda, segundo outra evolução, o soberano do paraíso.
Nos Brâhmanas , foi a personalidade de Prajâpati, «o amo das criaturas», que absorveu
quase toda a cosmogonia. Além do Criador, é o Sacrifício personificado, aquele que
reúne as estruturas dispersas para realizar o rita. Mas, paralelamente, a imaginação
mítica, já muito desgastada no Atharva-Veda, rarefez-se, cedendo o lugar, no plano dos
textos pelo menos, à especulação de tendência filosófica.

Os Ritos
Se conhecemos a mitologia pelo Rig-Veda, e sobretudo a especulação pelos
Upanishads, todos esses textos pouco têm para nos ensinar sobre o culto. Há que
consultar aqui os Brahmanas e, ainda mais, os Sûtras, que o descrevem com uma
minúcia exemplar. Não se deve depreender daí que certas formas, assaz elaboradas, de
prática religiosa não existiram desde os primórdios do período védico e, de resto, não
seria impossível restituir-lhes as linhas gerais.
O culto védico repousa sobre o sacrifício. Homenagem solene à divindade, o sacrifício
executa-se sob a forma de uma cerimônia mais ou menos longa, que tem por ponto
culminante as oferendas feitas ao Fogo. O objetivo consiste em entrar em comunicação
com o mundo divino, assegurar o seu concurso para obter determinadas vantagens,
gerais ou especiais. É certo que existem sacrifícios «fixos», correspondentes a datas do
calendário, que não comportam, em principio, menções votivas, mas esses sacrifícios
(ou uma ou outra porção deles) podem carregar-se facilmente de uma afecção votiva. A
oração está inserida no sacrifício, no sentido de que se exprime pelas «fórmulas» que
acompanham os atos e manobras, não tendo expressão independente.
A oferenda, que consiste ora (na maioria dos casos) em produtos da cultura ou criação
de gado - bagos de arroz ou outros, leite, ghrita ou «manteiga derretida»-, ora em
pedaços de uma vítima animal (em regra, o bode), é em parte lançada ao fogo e em
parte consumida pelos celebrantes e pelo «sacrificador» laico, que se assegurou o seu
concurso e manda executar o ato em seu proveito. Outra oblação que domina nas
cerimônias mais importantes é a do soma, planta de propriedades excitantes, de caráter
assaz misterioso, cuja espremedura é objeto de uma seqüência complexa de operações.
O veículo da oferenda é o fogo, cuja «instituição» forma em si uma cerimônia
autônoma. Os sacrifícios costumam realizar-se recorrendo a três fogueiras, dispostas em
torno de uma pequena escavação que exerce as funções de um «altar».
O laico assiste ao sacrifício com a esposa, pronunciando mesmo algumas fórmulas, mas
o seu papel essencial consiste em repartir os honorários (que podem atingir dimensões
fabulosas) atribuídos aos diversos celebrantes. Estes últimos são dirigidos pelo
brahman, que assiste em silêncio e adverte se se produz um erro ou acidente. O hotar
entrega as oblações e recita as seqüências extraídas do Rig-Veda, o udgâtar entoa as
estrofes inspiradas no Sâma-Veda e, finalmente, o adhvaryu procede aos inúmeros
gestos e recitações, que, de acordo com o Yajur -Veda, compõem a própria textura do
sacrifício. No total, incluindo os auxiliares, há até dezesseis ou dezessete celebrantes.
O terreno sacrifical é uma área aberta, sacralizada para cada nova cerimônia, sem
templo nem imagem. Entre os instrumentos do culto, colheres e vasos de funções bem
determinados, devem salientar-se os «cacos» de tijolo colocados no fogo, nos quais se
estende a massa.
O rito solene mais breve é o Agnihotra ou «Oblação ao fogo»: uma oferenda simples de
leite a Agni, executada pelo sacerdote manual e o laico, de manhã e à noite. É mais
complexo o sacrifício das luas cheia e nova, típico das oblações vegetais que servem de
norma a todas as outras e exigem dois celebrantes. Os ritos quadrimestrais acompanham
as mudanças das estações e dividem-se em três séries (com uma quarta em anexo),
sulcadas de traços populares. Há um rito das primícias e a massa dos ritos votivos ou
expiatórios que repousam sobre o esquema do sacrifício das quinzenas lunares.
O Sacrifício animal, a imolação (por asfixia) de um bode, inspira-se igualmente no
anterior e figura quer no estado independente, quer como parte integrante dos sacrifícios
de soma. Estes são os mais solenes de todos: o tipo de base ou Agnishtoma é uma
seqüência de três espremeduras -manhã, tarde e noite-, precedida de longos preliminares
(consagração do laico e da esposa, aquisição do soma, instalação dos lares e altares),
enquanto a cerimônia propriamente dita consiste em oblações entrecortadas de
recitações e cânticos, em que todos os celebrantes participam. Uma parte singular do
Agnishtoma é o Pravargya, oferenda aos Açvins de leite aquecido num vaso
consagrado. Há liturgias mais desenvolvidas, durante dez a doze dias, e até «sessões»
que se prolongam por um ano inteiro, teoricamente por doze. A «grande observância» é
uma festa de solstício de Inverno, durante a sessão anual dita «marcha das vacas».
Surgem finalmente as feiras, que, sem se diferenciarem muito a fundo das anteriores
-trata-se igualmente de sacrifícios de soma-, correspondem a acontecimentos da vida do
rei: o Râjasûya ou «Consagração do Rei», aspersão do novo eleito pelo celebrante e
pelos representantes do povo; o Vâjapeya ou «Beberagem de Força», festividade
religiosa do príncipe vitorioso, que comporta uma corrida de cavalos atrelados a
dezessete carros; e, por último, o Açvamedha ou «Sacrifício do Cavalo», o mais
grandioso de todos, cujos preliminares se estendem por um ano e mesmo dois.
A par do soma, bebida nobre, havia a surâ, álcool grosseiro que serviu de oferenda num
rito particular. Finalmente, algumas cerimônias são precedidas da construção de um
monumento de tijolos, com força de oblações e desenvolvimento de uma simbólica
extensão.

in Renou, L. O Hinduísmo. Lisboa: Europa - América, 1969.

. O Hinduísmo

O Hinduísmo

Que é o hinduísmo? Não se trata de uma religião do tipo das nossas que se poderia
definir negativamente isolando delas o conjunto das formas não-religiosas da existência.
Em alguns aspectos, é inseparável da especulação filosófica; noutros, da vida social. A
vida social concebe-se no âmbito das classes e das castas, assim como dos modos de
vida ou âçramas: é em função dessas repartições que se estabelece o dever, o imperativo
moral, por seu turno de essência religiosa. O termo considerável de dharma,
propriamente o «suporte» dos seres e das coisas, designa simultaneamente a lei na sua
maior extensão, a ordem que preside aos fatos nas disciplinas normativas, mas mais
especialmente a lei moral, o mérito religioso: é o único termo que traduz o nosso
vocábulo «religião» e, ao mesmo tempo, o excede e permanece aquém. Nasce-se mais
no hinduismo do que se toma um adepto dele, porquanto a condição está subordinada
aos quadros gerais da vida indiana. No entanto, evidentemente que se não deve
contestar que, em data antiga, o dharma se propagasse por meio de conquista ou de
assimilação pacífica entre muitas populações que o não tinham herdado. De contrário,
como se explicaria o império que assumiu na maior parte da Índia?
O hinduísmo compõe-se de diversas contribuições: uma contribuição propriamente
védica, que resulta da transmissão direta das crenças e especulações do Veda. Mas tudo
o que existe no Veda e se encontra na Índia clássica não é necessariamente herdado.
Deve admitir-se que o hinduísmo, atestado relativamente tarde nos textos, existia sob
alguma forma «primitiva», desde a época védica e porventura antes. Julgou-se encontrar
na civilização estrangeira da bacia do Indo (Mohanjo Daro e Harappa), civilização que
remonta a 2500-2000 antes da nossa era, traços de um culto hinduísta: protótipo do deus
Çiva, representações do linga ou «falo», alusão figurada a exercícios de Ioga - nada de
tudo isto é seguro. Em compensação, parece que numerosas práticas védicas inseridas
no alto culto e a maior parte, se não a totalidade, do ritual privado e mágico não passam
do hinduismo pré-clássico.

Influências recebidas
Desde a origem, e mais à medida que se estendia através do continente indiano, o
hinduismo impregnou-se de contribuições autóctones, devidas ao contacto entre a
cultura védica e a população anariana, eventualmente dravidiana, ou de qualquer outra
maneira que se lhe queira chamar. Com efeito, muitas características pseudo-hinduistas
são do folclore religioso, mais ou menos primitivo, como se encontra, de resto, na Índia.
Observam-se em todos os cultos locais: divindades de aldeia, emblemas de uma
simbólica ingênua, sobrevivências animistas, etc. Muitas dessas características passaram
para o culto normal, de modo que, levando as coisas um pouco longe, seriamos tentados
a ver no hinduísmo apenas um formigueiro de cultos elementares que nada teriam de
comum com o vedismo. Mas há que reagir e recordar que o que conta numa religião são
muito menos os materiais de que se compõe que o sistema novo que estabelece, a
criação que representa. A despeito de todas as analogias com formas atestadas no Irão
ou na Próxima Ásia, ou no Sueste Asiático, apesar da existência latente de um
shamanismo difuso, temos de admitir que o hinduismo é um fato altamente original.
A essas influências nativas foi possível juntar outras por contatos de civilização. Na
Antiguidade é pouco provável que a Grécia fornecesse o que quer que fosse à Índia em
matéria de crenças: supôs-se, sem provas, que o culto das imagens, desconhecido no
Veda, pudera ter sido solicitado pelo exemplo grego. As afinidades, assaz superficiais
de resto, existentes entre a teoria do samsâra e o pitagorismo representam mais uma
resultante de substrato que de inspiração. O Irão talvez contribuísse para fixar no Norte
da Índia, durante alguns séculos, uma adoração ao Sol (cujas tendências estão, aliás,
presentes no Veda) e propagar algumas influências masdeístas, mas convém notar que o
culto de Mitra (que, no Veda, nada deve ao Irão, além da origem pré-histórica comum)
apenas beneficiou de uma extensão reduzida na Índia pós-védica. Foram soberanos
estrangeiros como os Kushânas (sécs. I e II) quem, a avaliar pela cunhagem de moeda,
teria introduzido crenças iranianas (com o sacerdócio dos Magos), porventura
babilônias.
Há em seguida que descer até ao século XII para decidir se o pensamento indiano sofreu
uma marca durável do Islão, com a qual teve de permanecer muito tempo em contacto.
Ora, notam-se perfeitamente a partir dessa data movimentos sectários de origem
nitidamente hindu que parecem inspirar-se em palavras de ordem islâmicas: abolição
das imagens, reivindicação de aspectos purificados da religião, de algumas práticas
místicas. Os autores modernos que falam de uma aproximação entre o hinduísmo e o
Islão, que comparam (como é legítimo) o pietismo hindu e a mística sûfî, dão a entender
sem reservas que as coisas do lado hindu não se desenvolveriam de outro modo se não
existisse a vizinhança muçulmana. Este argumento é difícil de refutar. No entanto, salvo
porventura no Kabîr e, através dele, nas seitas mais modernas, algumas de resto
híbridas, não há absolutamente nada na evolução indiana que se possa e deva explicar
senão pela lógica interna e a força própria do movimento. São muito raros e, no seu
conjunto, desprezáveis os textos hindus que exprimem nitidamente uma inspiração no
Islão: o que, para todos os efeitos, demonstraria melhor essa influência é a reação que se
manifesta nesta ou naquela seita, no sentido de um reforço das castas e das regras
hindus.
Quanto à influência cristã, é muito moderna e apenas afeta grupos muito limitados.
Outrora, as relações que se julgara descortinar entre a Natividade e a infância do deus
Khrishna eram ilusórias, assim como a suposta proveniência cristã do mito do
Çvetadvîpa, a ilha remota habitada por homens brancos que adoravam Naraiana
(episódio do Mahâ-Bhârata). O cristianismo teria atingido a orla do mundo indiano na
época do rei cito-parta Gondofares (séc. I), que, segundo a lenda, o apóstolo São Tomás
visitou quando decidiu evangelizar a Índia. Na verdade, existiu uma comunidade
nestoriana no Malabar, mas nada se sabia dela antes do século IV e a chegada dos
Jesuítas, em 1600, pôs termo à sua atividade.

in Renou, L. O Hinduísmo. Lisboa: Europa - América, 1969.

. Divindades

Divindades

A missão de dar ao mundo a noção do Absoluto, tal como foi revelada no Veda, livre da
ciência tradicional da Índia nas idades mais antigas, estava reservada à poesia pura,
aquela que celebra as forças cósmicas do céu e da terra.
Esse Absoluto é o Brama, que não pode ser definido. O Brama, a brilhante luz das
luzes, "envolvido em sua capa de ouro", por quem o espírito pensa, mas que não cabe
no pensamento de ninguém, permanece incomunicável.
"Perguntas o que é o Brama? É o teu próprio átman, que é interior a tudo." [Brihad
Aranyaka, up. III, 4].
O Brama, neutro, impesoal, é incondicionado, inqualificado, superior a qualquer
distinção. Ele é a origem, a causa, a essência do universo, porque tudo o que é, é Brama.
Ele é pura existência: sal, pura inteligência: chie, pura beatitude: ananda.
Na impossibilidade de O conceberem em sua Totalidade e em sua Verdade, os hindus
tentam encontrá-lo em suas manifestações Divinas. Adorar o Brama em seus atributos é
fazê-lo descer ao nível humano, pô-lo ao alcance do homem. O Brama toma-se então
um deus pessoal, em aparência. E pode ser então encarado sob qualquer de suas
Funções ou de suas Potências.
Nos hinos védicos, os deuses implorados, apenas antropomorfizados, pertencem aos
astros, à atmosfera, ao solo. Têm nomes e aspectos inumeráveis, sendo como são
expressões de Brama, indefinido em suas formas, embora UNO em sua essência. Essas
manifestações divinas correspondem às afinidades dos crentes. Sua multiplicidade pode
surpreender tanto mais o espírito ocidental quanto cada deus personificado traz às vezes
vários nomes, segundo a qualidade ou atividade sob a qual é invocado. O deus
escolhido por seu adorador chama-se "seu ichta". É a ele que o fiel dirigirá suas preces,
seus rosários, e é por seu ichta que ele se aproximará de Brama. O Brama, Divindade
Suprema, junto de quem os demais deuses não passam de simples intermediários,
contém em si todos os ichtas. É sempre Brama, pois que tudo é Brama.
Os deuses podem personificar a Alegria, a Misericórdia ou a Morte. Para mostrar que
essas individualizações não passam de uma concepção de Brama por um "fervoroso",
Vichnu diz a Xiva, no Vichnu-Purana:
"Os ignorantes consideram-se como distinto de Ti."
O crente pode encontrar o Brama em si-mesmo, em seu coração, porque todo o ser
possui uma faísca de Brama, chamada átman. Este átman representa o Eu-mesmo de
cada um, princípio transcendente que jamais se particulariza.
"O Brama reside no coração. Ele está ali e em nenhuma outra parte. Os sábios que o
contemplam dentro de sua própria alma, estes, e não outros, possuem o descanso
eterno."
(Brihad aran, up. III, 1).
Da mitologia do Veda, tão bem elaborada quão complicada, é preciso citar entre os
deuses mais invocados: Indra, com um papel preeminente. Ele encarna a força
conquistadora. Suas proezas e suas vitórias são objetos de muitas narrativas. Ele matou
com o seu raio (vajra) o dragão que obstruía as águas, e, depois de ter conquistado o sol,
libertou as auroras prisioneiras.
A montaria (vahana) de Indra é um elefante branco: Airavata. O deus é geralmente
representado coberto de jóias, coroado de um turbante real ou de uma tiara cilíndrica,
com o raio, o disco, o dente de elefante. Sua esposa é lndrani ou Caci, que ele roubou ao
pai, Puloman, inimigo de Indra.
Rudra, o "poderoso" dos hinos védicos, tornar-se-á Xiva, o benéfico e curador. Os
Rudras, filhos de Rudra, aliados de Indra, formam um grupo de jovens que cavalgam as
nuvens e são portadores da tempestade e da chuva.
Agni, o deus do fogo e do sacrifício, tem um lugar primordial. Ele faz a unidade do
mundo em suas três partes: terra, céu e atmosfera intercalar. Ele é ao mesmo tempo:
vontade divina, visão perfeita e operação ritual:
"ó Agni, tu és a matéria dos jovens rebentos; as águas são tua semente. Inato em todas
as coisas e crescendo sempre com elas, tu as conduzes à maturidade. O tudo subsiste em
ti. Revestido das formas do sol, tu tomas com os teus raios a água da terra, para espalhá-
la ao depois em chuvas nas estações próprias, dando assim a vida a todos os seres. Tudo
renasce então de ti: as lianas, a verde folhagem, os lagos, o leito afortunado das águas,
todo o úmido palácio submetido a Váruna." [Rig-Veda].
Varuna, mantenedor da ordem cósmica, senhor das águas, é um dos deuses maiores do
Vedismo. A esse deus, envolto num manto de ouro, associa-se Mitra, cercado de
majestade jurídica, com um séquito de sete ou oito entidades: os Adityas, descendentes
de Aditi, deusa-mãe. Surya, o sol, especifica-se em Vivasvante; Candara é a lua, e Vayu
o vento. Prajápati, pai dos deuses (devas) e dos demônios (asuras), senhor das criaturas,
é figura importante entre os deuses. Numerosos hinos lhe são dirigidos.
Em plano secundário, temos ainda Pyauch Pitar, o Céu-Pai; e Prthivi, a Terra-Mãe; os
Marutes, deuses das tempestades; Ucha, a Aurora, e os Açvins, que simbolizam as
estrelas da manhã e da tarde; Yama, o primeiro humano, tornou-se o deus da Morte,
senhor do mundo subterrâneo. Em seguida, menos definido, temos Puchan, o deus que
guia os homens e os animais. Brihaspati, sacerdote dos deuses, é uma segunda forma de
Agni. É impossível citar todos os deuses védicos; eles são inumeráveis. Afora os
deuses, existem as forças que agem sobre o universo, dentre as quais "o rita" é a
principal - ao mesmo tempo ordem cósmica e ordem ritual e moral.
Enfim, o soma, planta sacrifical, licor fermentado tornado bebida divina que confere a
imortalidade, foi elevado à dignidade de um deus no livro XI do Rig-Veda.
“A origem terrestre de Soma prende-se ao Monte Mujavante. Mas sua verdadeira pátria
é o céu: filho do céu, sua forma celeste corresponde às do nascimento e da espremedura.
Ele foi trazido a terra por uma grande ave (águia ou falcão), que o roubara do castelo de
bronze onde era guardado pelos Gandharva, ou pelo arqueiro Krçanu, o qual, atirando
sobre a ave arrancou-lhe uma unha ou uma pena. Algumas vezes a águia é Indra; nos
Bramanas o soma é roubado por Gayarti, nome mítico de Agni."
[L. Renou, op. cit.. pág. 329].
Uma Trindade divina ou "Trimurti" domina as múltiplas formas divinas. Esta Trindade
compõe-se de três deuses que repartem entre si as atividades fundamentais de Ichvara,
nome genérico do deus único e supremo e a Vontade de Poder, símbolo do Brama, que
está acima da Trindade e permanece neutro e inacessível.
O poder de criar, que parece ser a manifestação mais elevada, pertence à Brama, que
não deve ser confundido com o Brama impessoal. Esse Brama, ao contrário, é
personalizado por sua função de criador.
Em seguida vem o poder de conservar, que está nas mãos de Vichnu. O poder de
destruir, finalmente, é atribuído a Xiva. Esses deuses, que representam os três aspectos
de Ichvara, formam a grande Trindade da Índia, ou Trimurti, cuja atividade corresponde
ao ritmo da criação do mundo: o começo de um ciclo, sua manifestação total e seu
acabamento ou reabsorção em Brama, o Pralaya período que precede a era seguinte.
As relações dos deuses entre si são tão vagas e instáveis como as variantes de uma
legenda. Entretanto, certos mitos fixos persistem e aureolam este deus ou aquela deusa.
O deus não muda, mas o coração do homem cresce, e crescendo, faz crescer também a
imagem do deus que ele traz em si.
Entre os deuses importantes que se substituíram ou se ajuntaram aos do Veda na
tradição hindu, Brahma permanece bastante abstrato, apesar de seu papel criador. É ele
quem faz nascer a diversidade na Unidade. Ele não tem um culto especial. Seus
santuários são raros. O maior encontra-se em puchkar, perto de Ajmer, no Rajputana.
Sarasvati é a Xakti de Brama. Xakti é o nome que se dá à Energia que emana do deus e
o completa sob a forma feminina de uma deusa. Associada aos grandes deuses,
identificada à Palavra (vac) nos Bramanas, deusa dos rios divinos nos tempos védicos,
Sarasvati simboliza as artes, a eloqüência, o saber e “a onda da Verdade".
Brahma é muitas vezes representado com quatro rostos (atarmukha) voltados para os
quatro pontos cardeais, e quatro braços (tendo nas mãos os quatro Vedas); traz nas
cabeças ora coroas, ora tranças (donde o seu nome de Cikhin), e apresentam-se
barbudos os seus rostos. Seus atributos são o jarro, o rosário e as duas colheres rituais
(Manasara), às vezes o disco. A cor é rosa. Ora se apresenta montado num cisne
(hansa), ora de pé, às mais das vezes sentado num lótus que sai do ventre de Vichnu,
donde seu nome: "aquele que nasce do lótus" ou ainda "do umbigo", mas também
(desde a epopéia) "aquele que nasceu de si mesmo" (svayambhu), isto é, inato [L.
Renou, op. cit., pág. 500].
Vichnu, na Trimurti, tem o papel benéfico de conservador do Cosmos. Ele preside aos
destinos humanos. É um deus de origem solar definido por quatro atributos: a concha
(sankha), o disco (sakra); clava (gada) e a flor de lótus (Padma). Representam-no sob os
traços de um homem jovem, de cor azul-escuro, com quatro braços.
"Os 24 nistha ou "atitudes" que compõem a figuração total da divindade comportam
cada uma um valor esotérico dirigente de uma encarnação particular. Têm igualmente
uma significação simbólica a jóia kaustubha que Vichnu traz ao pescoço, e o anel de
pêlos estilizado em iconografia (o çrivitsa) que lhe orna o peito. Traz geralmente um
diadema na cabeça (kirita)" (id.).
Em geral, Vichnu apresenta-se deitado, em suas representações, e mesmo adormecido
sobre o oceano caótico, a serpente infinita de mil cabeças. Vemo-lo igualmente
tronando no céu, Vaikhunta, rodeado de sua corte. Garuda é a cavalgadura (vahana) de
Vichnu, também ela objeto de um culto. Esta Garuda é a águia celeste, filha de Kackapa
e de Vinata. Foi ela quem roubou o soma, o licor de vida, em benefício dos deuses.
O culto de Vichnu é muito popular e tem formas múltiplas e numerosos santuários. É
venerado num elevadíssimo plano abstrato, porque ele representa o amor divino. Vichnu
é muitas vêzes acompanhado de sua Xakti, Lakchmi ou a "Beleza e a Fortuna",
emblema da esposa modelo e serviçal, assim como da glória e da prosperidade. Ela é
figurada por uma jovem sedutora, sentada numa flor de lótus e segurando uma
cornucópia, enquanto dois elefantes brancos, munidos de jarros em suas trombas, regam
os lótus que ela tem nas mãos. Ela é invocada para os bens temporais e espirituais, a fé e
a saúde.
Na tradição hindu os deuses podem reencarnar-se a seu bel-prazer ou em obediência a
uma ordem, para cumprir uma missão, particularmente a de socorrer a humanidade
sofredora. As encarnações dos deuses denominam-se "avatares" ou "descidas". Vichnu é
o que se encarna mais vezes. Pode haver um número ilimitado de avatares.
Ramakrichna dizia: "Os avatares são para o Brama o que as vagas são para o oceano".
Quando um deus importante vem à terra, divindades secundárias o acompanham para
fazer parte de sua côrte. Numerosas encarnações de Vichnu são descritas no Bhagavad-
Purana, mas existem dez que são clássicas. A primeira representa Vichnu vindo como
peixe para salvar o rei Manu Vaivasvata, tema indiano do Dilúvio. Depois, Vichnu
aparece como javali. Ele soergue a Terra, que o demônio Hiranyakcha tinha mergulhado
no fundo do oceano. .. E ainda Vichnu, tornado Rama, o herói do Ramayana, que triunfa
sobre o demônio Rávana. Servindo enfim de pedestal que se apóia no fundo dos mares,
Vichnu, em forma de tartaruga, suporta o monte Meru, em volta do qual se colocou a
serpente Cecha. Ele assiste ao encapelamento do oceano. Nesse combate entre os deuses
e os Asuras, está em jôgo a conquista de tesouros maravilhosos, principalmente do
anrita (licor divino). Graças a Vichnu os deuses conseguem a vitória.
O mais célebre dos avatares de Vichnu - e todos eles têm um sentido esotérico - é o de
Krichna, considerado como uma encarnação total, sendo os demais considerados como
simples encarnações parciais. A história de Krichna comporta uma série de aventuras
extraordinárias. Chefe do clã dos Yadavas, Krichna, cujos poderes são surpreendentes
(ele já cumprira missões prodigiosas em sua infância) , prossegue sua carreira de ser
sôbre-humano. Adolescente, ele é o "boieiro" divino que toca a flauta para as pastoras
que dançam em torno dele, contemplando-o com fervor amoroso. A cena passa-se no
bosque sagrado de Brindavã.
Ao depois, no Bhagavad-Gita, ele figurará ao lado dos Pandavas, seus primos, em sua
guerra contra os Bháratas. Ele se torna ilustre nessa ocasião, mostrando por seu exemplo
e por seu ensinamento .como o homem deve desenvolver-se espiritualmente para atingir
a libertação. Mas é sobretudo em Ramá, em que ele simboliza a energia moral, e em
Krichna, a inspiração divina, que Vichnu traz um socorro considerável aos humanos e
desempenha um papel imenso na religião hindu. Vichnu representa um "Salvador",
porque "em cada um de seus avatares ele recupera as coisas que pareciam
irremediavelmente perdidas, tragadas pelo oceano, isto é, pelo indiferenciado, ou a
ponto de o ser" [Herbert, ib. 362].
Quer se trate de Si ta, mulher de Ramá no Ramayana, quer se trate de Radha, a pastora
preferida de Krichna, uma das figuras mais populares entre as divindades femininas e ao
mesmo tempo sua mais perfeita adoradora, é sempre Lakchmi, sua xakti, deusa da
harmonia, que se encarna habitualmente com Vichnu.
Xiva é um deus complexo, valente, ao mesmo tempo benéfico e temível. É preciso
distinguir aqui o duplo aspecto da atividade divina. Xiva na Trindade hindu desempenha
o papel de destruidor do Universo, mas ele aniquila para reconstruir. Ele destrói a
multiplicidade que mundo criado, para recriar a Unidade. Por isso assimilam-no a Kala,
o Tempo. Como este, ele constrói e destrói sem cessar. Não é ele aquele que depõe no
seio das águas o "Germe de Ouro que encerra Brama"? Isto, sem deixar de ser "aquele
que vence" - em sua forma mais intensa - Bhairava, o Temor, e suas sessenta e quatro
variedades.
D’outro lado, ele possui o aspecto reparador. Ele é igualmente um protetor. Recorre-se a
ele em caso de perigo. No episódio do encapelamento do mar de leite (aparição do
universo multiforme), quando a serpente Vasuki lança um veneno que devia destruir o
mundo, Xiva bebe o veneno. Sua garganta tornou-se azul-escuro e chamaram-no:
Nüakantha... É ainda Xiva que, para evitar uma catástrofe quando da descida das águas
do Ganges sobre a terra, ergueu os cabelos e formou com eles uma barragem protetora
(ímã), contra as ondas impetuosas, e estas escoaram sem causar dano algum.
Xiva é um deus poderoso entre todos os deuses (o Rudra dos hinos), porque ele é o deus
da vida, da procriação. Mas Xiva é sobretudo o Mahadeva, o grande deus asceta, o deus
dos rogues, para os quais ele é um guia e um modelo, pois condu-Ios à consciência da
Unidade. É o Mahayogue ou Mestre dos yogues. "Representam-no então com o rosto
sujo de cinza, seminu, cingido de crânios e ostentando uma coleira de serpentes (Rudra
era já no Vedismo o senhor das serpentes). Sentado em postura meditativa, ele tem um
terceiro olho frontal. A origem deste olho, segundo se afirma, provém de uma
brincadeira de Parvati, que lhe tapara os dois olhos com as mãos" [L. Renou, lb. 514].
É figurado às mais das vezes com muitos braços em Nataraja, dançando o Tandava, a
dança cósmica, cercado do tiruvaçi ou aureola de chamas. Diz-se que ele espezinha um
demônio rebelde ou que ele destrói o cosmos para o recriar. Na realidade, essa dança
evoca numerosos símbolos de sentido esotérico.
A cavalgadura habitual de Xiva é o touro branco: Nandin; e sua veste, uma pele de
tigre. Vem coroado do crescente lunar, e seus atributos são o arco (ajagava), o tamborim
(dhaka) , a clava (Khatvanga), o laço (paça) e o mais habitual, o tridente (triçula
Pinaka). Xiva tem quatro, oito ou dezesseis braços, simbolizando os dois braços
inferiores o gesto da benevolência (varada) e da salvaguarda (abhaya). Foi identificado
um número incalculável de santuários consagrados a Xiva. Os de Buvaneswar e de
Madura são célebres no mundo inteiro.
Xiva delega seus poderes a numerosas Xaktis: Parvati, a Filha da Montanha; Sáti, a
Espôsa Fiel; Uma, a Benéfica, ou Cândi, a Violenta, etc. A mais importante de tôdas, a
sua espôsa Durga ou Káli, a Terrível, é figurada sob traços medonhos. Negra e nua,
cabeleira ao vento, ela traz um colar de cabeças humanas e pisa aos pés o corpo do
esposo, brandindo um cutelo ensangüentado e ostentando uma cabeça recentemente
decepada. Sem embargo, essa Káli é um aspecto da Mãe divina, a Suprema; ela encarna
uma esplêndida energia, uma vontade implacável, e, como o seu esposo, parece que ela
só destrói para libertar a espiritualidade que existe em todo o ser. Quando é aniquilada a
ignorância, o coração torna-se puro. A energia de Káli cria a paz, após haver destruído a
ignorância. A energia de Káli é terrível enquanto ela se exerce, mas quando ela atinge o
"coração" de Xiva, isto é, quando é desfeita a ilusão, Káli detém-se repentinamente e
arrepende-se do ato praticado. E ela recua. "Que fiz eu sob o ímpeto desta loucura?” Ela
atingiu a Realidade, e torna-se equilibrada, calma e mansa. Durga congrega em si
atributos de Káli, Lakchmi e Sarasvati, - três gunas que representam a destruição, a
evolução e a criação. As "cabeças decepadas" simbolizam os demônios da ignorância na
humanidade. Káli toma como ornamento pessoal essas almas assim libertadas, pois foi
ela quem os libertou da ignorância e do medo. Durga-Káli era para Ramakrichna a
divindade de eleição.
Os hindus dão um aspecto humano às imagens, pinturas e estátuas de seus deuses,
ajuntando-lhes os emblemas que os diferenciam entre si. O sinal do poder sobre-
humano exprime-se pela adjunção de braços suplementares: dois, quatro, ou mesmo
mais. Para indicar a visão divina, um terceiro olho é por vezes colocado no meio da
fronte, como no caso de Xiva, enquanto que Brahma é representado com quatro
cabeças. As representações animais são a marca de qualidades particulares. Assim, é
dada a Ganeça uma cabeça de elefante, e aos Kimnasas uma cabeça de cavalo.
Ganeça, chefe dos "Ganas" (tropas divinas), objeto de um culto intenso, é o filho de
Xiva e de Parvati. Solicita-se o seu apoio antes de toda a empresa; ele é o guia
(Vinayala), que destrói os obstáculos. Ganeça simboliza o apelo à força espiritual. Seu
papel na epopéia do Ramanaya ilustra o seu espírito de sacrifício, de perseverança e de
devoção.
Representam-no com uma cabeça de elefante e uma só presa. Sua cor, geralmente
vermelha, pode ser branca ou amarela; tem um ventre proeminente e serve-se para
cavalgadura de um rato ou de um leão. Traz uma presa de elefante e um rosário. Goza
de muita popularidade, sobretudo no sul. Sua imagem é vista nas encruzilhadas dos
caminhos, nas árvores e nos templos.
O macaco Hanumã, emblema da destreza e da inteligência, filho do deus do vento,
Pavana, é considerado entre as divindades religiosas da Índia como o "perfeito servo" de
Brahma, pelo seu exemplo de força e de domínio de si. Ele é um aliado de Ramá, chefe
do exército dos macacos; numerosos templos lhe são elevados.

in Lemaitre, S. Sanatana - Dharma, o Hinduísmo. São Paulo: Flamboyant, 1958.

. Gênios, Demônios e Animais

Gênios, Demônios e Animais

A esse cortejo de deuses maiores e menores, e de divindades secundárias da religião


hindu, denominações múltiplas e uma só Divindade, seguem os gênios e os demônios,
que formam um mundo de sêres sobrenaturais. Munidos de poderes que lhes permitem
mudar de forma ao seu bel-prazer, eles se agrupam geralmente sob as ordens de um
chefe. Podem ser bons ou maus, e às vezes bons e maus ao mesmo tempo.
Os Asuras, os Daityas e outros demônios análogos, contam-se entre os mais perversos
desses seres intermediários entre os deuses e os homens. É contra eles que lutam os
heróis das epopéias. Os Nagas ou "serpentes" pertencem às trevas da terra; são gênios
subterrâneos representados com cabeça humana e cauda de serpente. Os Yakchas e os
Yakchinis são os "detentores das riquezas e das ilusões mágicas".
Os Gandarvas, músicos e dançarinos, um pouco faunianos, tem por aliados as Apsaras,
ninfas das águas, dançarinas e tocadoras, as vezes ligadas ao culto das árvores. A mais
célebre é Urvaçi, heroína de uma lenda com o rei Puruvaras. Rávana, o príncipe
demônio, é ao mesmo tempo o patrono de um ritual antidemoníaco. Na realidade, não se
encontra no Veda nenhuma figuração diabólica muito acentuada. O mal quase só existe
em aparência. É uma sombra, o aspecto negativo do valor de um gênio ou de um
homem ordinário.
Certos animais, para os hindus, podem ser revestidos de um caráter sagrado. Tal é o
caso da Vaca, por exemplo, o animal sagrado por excelência. Mesmo a serpente é objeto
de um culto, de forma atenuada, mas diversa. Cercada de respeito, a serpente sugeriu
numerosos símbolos: quando ela morde a própria cauda, é a eternidade; quando ela sai
da boca de um adormecido, é a alma que parte. O cisne ou hansa, cavalgadura habitual
de Brama, representa a alma identificada ao sol. O elefante é o emblema da força e da
sabedoria. É um dos mais importantes entre os animais sagrados. Sua origem passa por
ser miraculosa. É de sua espécie que saíram os quatro- e depois os oito – “guardiões dos
orientes" ou Lokapalas. Os quatro regentes do mundo que se acham sob o monte Meru
cavalgam quatro elefantes cósmicos, os dinaga.
Para os hindus, existem apenas diferenças de grau de evolução entre os homens e os
animais. Por isso eles cercam os animais de uma solicitude tocante para ajudá-los em
sua progressão. Mas a vaca é particularmente sagrada na Índia. Já no Veda a Vaca
representava um símbolo de maior importância - o da Luz: “a vaca védica, animal
essencialmente enigmático, não provém de nenhum rebanho terrestre. A palavra "go"
significa vaca e luz ao mesmo tempo. As Vacas são os raios da Aurora, os rebanhos do
sol e não do gado físico. As Vacas perdidas são os raios perdidos do sol; sua
recuperação é o prelúdio da recuperação do sol perdido [Sri Aurobindo, op. cit.].
O sentido do sagrado, que o povo hindu possui no mais alto grau, pode estender-se até
às árvores, às plantas, às pedras, porque para eles a natureza participa das formas
religiosas. As águas, porém, oferecem um caráter especialmente sagrado em vista de seu
poder purificador. O mais santo dos rios é o Ganges, que "atravessa o céu sob a forma
de rio celeste ou de via Láctea", em seguida a terra e finalmente os infernos. O sonho de
todo o hindu é morrer em Benares, à beira do Ganges.

in Lemaitre, S. Sanatana - Dharma, o Hinduísmo. São Paulo: Flamboyant, 1958.

. Ritos Privados no Hinduísmo


A Índia, como verificamos, foi conservadora no domínio dos ritos privados: e
ainda o ensinamento dos «Aforismos Domésticos» que se reveste de
autoridade. A samdhya ou rito da «junção» (do dia e da noite), que substitui
o antigo rito solene de Agnihotra, é constituído por uma ablução exterior
(com invocação às Águas) e outra interior (lavagem da boca, acamana),
seguida de uma aspersão na cabeça. Depois, ha uma recitação silenciosa da
gayatrl, a famosa fórmula extraída do Rig - Veda: «Oxalá possamos receber
esta luz eminente do deus Savitar, para que nos estimule os pensamentos!»
Mais tarde, quando o Sol surge no horizonte, adoram-no. Segue-se nova
recitação da gayatrl, nova lavagem, apalpadela de diversas partes do corpo,
esboço de um pranayama, pronunciação de diversas fórmulas e oferendas
sumárias. Realizam-se operações análogas a noite e, mais rapidamente, ao
meio-dia.
Os «cinco grandes sacrifícios» (maha-yajna) quotidianos são: a) o
vaiçvadeva, oferecido a «Todos -os -seres», oblação ao fogo (homa),
efetuada antes da refeição do meio-dia, de partes retiradas da alimentação;
b)o bali, oblação rápida, dedicada aos «seres»; c) o pitriyajna ou tarpana,
libação de água com gergelim, na intenção dos deuses; d) o atithi, rito
hospitaleiro aos visitantes, especialmente aos ascetas; e) o brahmayajna,
recitação de uma passagem do Veda. Estas pequenas cerimônias foram
simplificadas ou desapareceram mesmo parcialmente na pratica moderna.
Mas há outras em vigor, como o culto as cinco divindades protetoras
(pancayatana), Vishnu, Çiva, Surya, Parvati e Ganeça, representadas por
pequenas figuras ou pedras, que recebem oferendas quotidianas em casa.
Há ritos agrícolas e corporativos (que comportam oferendas ao instrumento
típico da profissão), variando o pormenor ate ao infinito em função do lugar
e tempos. Ritos outrora solenes são celebrados segundo um esquema
«privado», como a antiga feira das «luas cheia e nova». O centro da vida
religiosa, muito mais que o templo, e o lar doméstico, conservado
perpetuamente desde a cerimônia do casamento.
Quanto aos samskâras ou «sacramentos» , há doze principais. A
“impregnação” consagra a época presumida da concepção; para a primeira
concepção, realiza-se quatro dias após a boda. Três meses mais tarde, há a
«Geração do filho», que tem por finalidade obter a descendência masculina:
o dever essencial de todo o «dono de casa» consiste em assegurar a raça
através dos filhos, o que permite a conservação das tradições e,
nomeadamente, a execução do çrâddha:
Por meio de um filho [diz Manu] conquistam-se os mundos, por meio do filho
do filho obtém-se a imortalidade, por meio do neto do filho conquista-se o
mundo do Sol - o filho chama-se put(t)ra, porque liberta (trâ-) o pai do
inferno denominado put.
Menciona-se ainda, antes do nascimento, o rito que consiste em traçar a
risca nos cabelos da futura mãe. O próprio nascimento e naturalmente
objeto de uma cerimônia elaborada que comporta nomeadamente a
introdução de uma pequena bola de mel e manteiga clarificada (ghi) na
boca do recém-nascido, com o auxílio de uma colher de ouro e a dedicação
da criança a Shashthî, deusa protetora. A «Concessão do nome» realiza-se
no décimo dia e a escolha desse nome e motivo de urna serie de
precauções. Além do nome pessoal, há com freqüência outro secreta e ate
um nome astrológico.
Aos quatro meses, verifica-se a «Primeira saída», acompanhada de uma
homenagem ao Sol nascente; no sexto, há a absorção solene do primeiro
alimento sólido. O «Corte do cabelo» situa-se aos três anos e a «Tonsura»
(efetuada reservando uma madeixa) um ano mais tarde e, por fim, a
«Perfuração das orelhas». Mais importante e a «Iniciação» (upanayana) que
consagra a entrada da criança na comunidade bramânica e Ihe confere o
título de dvija «nascido duas vezes»: e como que um segundo nascimento.
Realiza-se entre os oito e doze anos, consoante as castas, e comporta a
investidura do cordão sagrado (constituído por três fios de algodão branco
atados), o qual substitui a vestimenta de pano usada primitivamente. Esta
cerimônia assinala ao mesmo tempo o início dos estudos. O pai procede a
escolha de um guru ou preceptor. E ele quem, depois de lavar o cordão e o
torcer e retorcer com recitações sagradas, o coloca em torno do braço
direito e da cabeça do jovem iniciado, de modo que o fio repouse no ombro
esquerdo. O período dos estudos religiosos é hoje consideravelmente
abreviado, pelo que o rito do «Regresso a casa», que se situava no
momento em que o estudante regressava de férias do guru para junto do
teto paterno, se reveste apenas de interesse teórico.
As solenidades do casamento, em compensação, mantém-se longas e
complexas, mas a parte propriamente religiosa, única que nos interessa
aqui, e alias a mais estável, compõe-se de um pequeno numero de praticas
distintas. A própria data e fixada em função de considerações astrológicas
minuciosas. O noivo é conduzido ao domicilio dos futuros sogros par
mensageiros e apresentado como um hóspede importante. Em seguida,
unge a rapariga e entrega-lhe uma peça de vestuário nova e um espelho,
apos o que ela lhe é dada solenemente pelo pai. Seguem-se oblações de
grãos torrados que ele lança ao lume, das palmas das mãos unidas. O
episodio dos «sete passos» consagra o caráter irrevogável da união. As
vestimentas dos cônjuges são atadas juntas ou então as mãos. Forma-se
um cortejo, que conduz a jovem a sua nova morada, transporta-se com ela
o fogo domestico e ela entra na casa sem focal na soleira, sentando-se
sabre uma pele de boi vermelha. O casal consome uma iguaria de oferenda
ou então registra-se uma união mútua. O casamento e seguido de uma
observância de castidade que dura três dias e se concretiza com a
colocação de um pau na cama. Muitos outros ritos, propiciatórios e
expiatórios, acompanham este conjunto que constitui um resumo de toda a
pratica hinduísta. Reconhece-se nela, encoberta num simbolismo mágico,
uma forma contratual do casamento em que sobrevivem traços do «rapto»
primitivo.
O modo normal dos funerais é a incineração, achando-se o enterramento
reservado as crianças, ascetas e membros de determinadas seitas. O
cortejo que conduz o defunto (previamente ungido, vestido de novo e
paramentado) ao forno crematório é precedido de fogueiras. Durante o
percurso proferem-se recitações e eventualmente ouvem-se os choras das
carpideiras contratadas para o efeito. Com o morto, na pira, são depostos os
instrumentos típicos relativos as suas ocupações. Segundo o antigo ritual, a
viúva estendia-se a seu lado, para ser convidada em seguida à levantar-se e
unir-se ao cunhado, substituto do marido acabado de falecer (costume do
niyoga ou levirat). Par vezes, era imolada uma vaca. Ritos purificatórios
sucedem-se a cerimônia. Transcorridos uns dias, realiza-se a recolha dos
ossos, reunidos numa urna de argila para serem enterrados, ou lançados ao
rio. Assinala-se igualmente, para os mortos importantes, a ereção de um
montículo ou çmaçâna. Um complemento necessário aos ofícios fúnebres é
o çrâddha, o rito «nascido da confiança», que reside em conseguir que o
defunto se tome um pitar, um «mane» benevolente. O çrâddha consiste em
pequenas bolas de arroz ou pindas, que se depositam no chão com a água,
na intenção do finado. A cerimônia tem por testemunhas três brâmanes,
que representam os antepassados diretos, honrados e obsequiados nessa
ocasião, entre outros visitantes. O çrâddha realiza-se de dez a trinta e um
dias após a Morte ou então na altura de certas solenidades ou ainda em
datas regulares, sob formas com freqüência simplificadas: em princípio,
todos os meses.

in Renou, L. O Hinduísmo. Lisboa: Europa - América, 1969.

. O Budismo

O budismo foi fundado por Gautama Buda, nascido de uma família abastada
e nobre por volta de 560 a. C., e morto por volta de 480 a. C. Apesar de sua
riqueza e dos empenhos de que foi alvo para não abandonar a casa paterna,
ele partiu depois do nascimento de seu filho, e viveu durante seis anos na
penitência, buscando a Verdade, a libertação das reencarnações. A
experiência lhe mostrou que vãs eram as penitências humanas para
alcançar esse fim. E, uma noite, em Boudgaya, ele conheceu a iluminação
ao mesmo tempo que os princípios que deveria, pouco depois, anunciar ao
mundo. Buda reuniu seus primeiros discípulos em associações monásticas,
sujeitas a regras que, naturalmente, aumentaram no curso dos séculos. Os
leigos foram, posteriormente, admitidos a seguir (de longe) a via traçada
pelo Mestre, na esperança de renascer um dia, entrar como noviços na
ordem, e chegar ao Nirvana.
É difícil precisar se o fundador do budismo teve, desde o começo, a visão
nítida do rompimento que ele ia operar no hinduísmo ou se apenas se achou
no direito de expor suas teorias como uma das vias para a salvação. A
mensagem de Buda são, primeiro, as quatro grandes verdades: o fato do
sofrimento, a causa do sofrimento, o fim do sofrimento, os meios de escapar
ao sofrimento. Estes últimos são o fundamento da verdade: a compreensão
verdadeira, o conhecimento verdadeiro, a veracidade, a ação e a vida
verdadeiras. Por esses meios, o homem consegue libertar-se da ignorância,
causa última do renascimento. Porque a ignorância nasce do desejo, do
desejo vem a ação, e da ação, o renascimento.

A ética do budismo
A doutrina de Buda dá ênfase a um moralismo que não deixa de apresentar
dificuldades - e são muitas. Acresce que em todas as questões metafísicas o
silêncio de Buda nos constrange. Não há dúvida que em face da substância
imutável que é Brahman, ele afirmou que tudo é transitório e que nada de
substancial existe. Donde, logicamente, nenhuma alma, na realidade,
transmigra. A transmigração não é senão a continuidade dos valores: uma
boa ação vê sua influência perdurar. O mesmo acontece com uma ação má.
Como o budismo em sua pureza rejeita Deus, é só por seus próprios
esforços que o homem se liberta e alcança o Nirvana.
Mas qual é o sentido profundo desse termo, tantas vezes usado, com e sem
propósito? Não se sabe se ele esconde uma aniquilação total; um estado de
bem-aventurança que rejeita só os fenômenos mutáveis, inconstantes; ou
se não indicará que é mais sensato para o homem deixar-se ficar, pelo
menos neste mundo, em um cômodo agnosticismo. A solução desses
problemas pode deleitar nossa curiosidade, mas não é útil. Quando a casa
está em chamas, a gente sai dela o mais depressa possível. Quando alguém
está doente, não quer saber qual a natureza última do remédio, e, sim,
tomá-lo.

Tendências diversas nascidas do budismo


A Índia é, sabidamente, um país de seitas. Duas grandes escolas de
pensamento nasceriam, logo, do budismo: o Hinayana, ou Pequeno Veículo,
apresenta co:mo ideal ascético o Arhat, o monge perfeito, o qual, retirando-
se do mundo, garante sua salvação pessoal, sem inquietação maior com o
resto da humanidade. O Mahayana, ao contrário, aparecido por volta do
primeiro século da era cristã, tem anseios de salvação universal: o
Bodhisattva, aquele cuja essência é a verdade, o conhecimento, é o tipo do
homem perfeito. Ele chega a renunciar ao Nirvana a fim de consagrar-se à
salvação do mundo. A rigor, para salvar-se, ninguém precisa envergar a
bata ama- rela do monge mendicante budista. É possível ganhar a salvação
também no estado leigo. Em vez de uma sabedoria austera, o budismo se
torna, então, uma religião em que penetram, com as multidões, todos os
deuses das aldeias, transformados em Bodhisattvas ou em Budas.
O budismo, que começara sua carreira no agnosticismo, assiste à
multiplicação das investigações filosóficas a fim de alcançar por elas uma
espécie de idealismo. N uma outra vertente, ele acaba caindo na magia dos
budistas ditos tântricos. Pareceu-nos, então, necessário, assinalar essas
heresias surgidas do hinduísmo. Elas permitem compreender melhor,
simultaneamente com sua formação, as reações que ele provocou.

in Gathier, E. O Pensamento Hindu. Paris: Seuil, 1960.


. O Pensamento vivo de Buda
Por Ananda Coomaraswamy (s/d) Martins: São Paulo

Abreviações:
A. - Angutara – Nikaya; AA. - Comentário do Angutara; BG. – Baghavadgita;
BU. - Brhadaranyaka – Upanishad; Com. – Comentário; D. - Digha – Nikaya;
DA. - Comentário do Digha; Dh. – Dhammapada; E.R.E. - Enciclopédia da
Religião e da Ética; G.S. - Gradual Sayings; HJAS. - Harvard journal of Asiatic
Studies; It. – Itivuttaka; ItA. - Comentário do Itivuttaka; J. – Jataka; K.S. -
Kindred Sayings; M. - Mojjhima – Nikaya; MA. - Comentário do Mojjhima; Mil.
– Milindapanha; Min. Anth. - Minor Anthologics of the Pali Canon; S. -
Samyutta Nikaya; SA. - Comentário do Samyutta; Sn. – Suttanipata; Ud. –
Udana; Uda. - Comentário do Udana; Up. – Upanishad; Vin. - Vinaya – Pitaka;
Vism. - Visuddhimagga
As referências às obras em Páli dizem respeito às edições da Pali Text
Society, exceto no caso da Vinaya e da Jataka. [introdução omitida]

Querer dar uma idéia adequada do conteúdo da doutrina budista nos seus
primórdios é uma tarefa que apresenta dificuldades quase insuperáveis.
Esta Lei Eterna (dhamma ,sanatana, akãlika), que não era de modo algum
uma criação intelectual de Buda por raciocínio, mas à qual êle se
identificava, uma Lei ensinada por seus predecessores num passado remoto
e que seria ainda ensinada por seus sucessores no futuro, o próprio Buda a
declara profunda e difícil de compreender por ouvintes que tenham outra
mentalidade e uma outra formação de espírito; é uma doutrina para aquêles
que tenham poucas necessidades, não para aquêles que tenham muitas.
Durante a sua vida e reiteradas vêzes, Buda teve necessidade de corrigir as
falsas interpretações de seu ensinamento; de explicar, por exemplo, em que
sentido preciso era ou não era uma doutrina de "extirpação"; ela o era no
sentido que era preciso "suprimir" o egoísmo, o mal e a dor; e não o era no
sentido do aniquilamento de uma realidade. Aliás, o que êle ensinava era o
aniquilamento de si mesmo: aquêle que quiser a liberdade deve-se ter
literalmente renunciado; para o resíduo, os têrmos da lógica do dilema "ou
isto ou aquilo", não são adequados; mas seria totalmente impróprio dizer-se
do Arahant que "expirou" libertado pela sua hipergnose, que "êle não sabe
nem vê" (D. II, 68).
Se os erros já eram possíveis em vida de Buda, quando, como êle o disse,
acabava de reabrir um Caminho antigo há muito desprezado e obliterado
por uma falsa doutrina, quanto mais inevitáveis não serão as interpretações
errôneas em nosso século de progresso, de expressão individualista, de
busca incessante de um nível mais elevado de vida material? Quase todos
nós, salvo alguns teólogos de profissão, esquecemos que uma realidade
suprema não poderia ser convenientemente definida a não ser por uma
série de negações, dizendo-se somente o que ela não é. De qualquer
maneira, como o fazia notar ainda Miss Horner em 1938, o estudo do
budismo primitivo está ainda começando a balbuciar (Livro da Disciplina, I,
VI). Se o leitor encara o budismo como um caminho de evasão (no que não
estará cometendo um êrro) pode ainda se perguntar a que êle se aplica, de
onde parte e aonde vai êste caminho de evasão de que se nos afirma que
"existe neste mundo" (S. I, 128).
O que agrava as dificuldades, são os erros de interpretação que se
encontram ainda, mesmo nas obras dos eruditos. Um dos mais autorizados,
por exemplo, não compreendeu que é preciso distinguir o "porvir" cuja
cessação coincide com a obtenção da imortalidade, do "porvir provocado"
na parte imortal de nosso ser. De fato, o "porvir" não é outra coisa que
aquilo que hoje chamamos o progresso sem levar em conta o fato de que a
transformação pode ser para melhor ou para pior; e não devemos esquecer
que hoje, como então, "há deuses e homens que se comprazem com o
porvir, e quando se lhes fala em fazer cessar o porvir, seus espíritos não são
atraídos" (Vis. 594). Outro grande erudito afirma que o budismo primitivo
"negava um Deus, negava uma Alma, negava a Eternidade" e se pretende,
quase em tôda parte que, segundo Buda, não existe o Eu. Não se observa,
portanto, que o que Buda negou foi a realidade do Ego sempre variável, da
"individualidade" psicofísica; o que êle disse do Eu, do Descobridor da
Verdade ou do "Assim vindo", do Homem Perfeito, depois da morte, é que
nenhuma das expressões "vir a ser", "não vir a ser", "vem a ser e não vem a
ser", "nem vem a ser nem não vem a ser", pode se aplicar a ele ou a êste
qualquer coisa (A. IV, 384 sego, 400-401; Ud. 67, etc.) Ou então ouvimos
freqüentemente afirmar que o budismo é uma doutrina "pessimista", a
despeito do fato que o fim que êle nos propõe - a libertação de todos os
sofrimentos mentais aos quais o homem está sujeito - é um fim que se pode
atingir neste mundo e desde agora. É pelo menos não querer reconhecer
que uma doutrina só se julga pelo fato de ela ser verdadeira ou falsa, não
por ela nos agradar ou não. A primeira preocupação de Buda, é o problema
do mal no que se refere ao sofrimento ou dor (dukkha); em outras. palavras,
aquilo que é corruptível de tudo o que é nascido, composto, mutável; sua
sujeição ao sofrimento, à doença, ao- envelhecimento e à morte. Que esta
sujeição é um fato (3), que ela tenha uma causa, que esta causa por ser
suprimida; que exista um Caminho, um Trilhar, uma Viagem que- permita
suprimi-Ia, eis as "Quatro Verdades Arianas" que são o comêço da
sabedoria. "Tanto no presente como até agora eu só ensino isto, a origem e
o fim do mal" (M. I. 140). Resulta daí, que o budismo pode ser reduzido (e o
é freqüentemente) a simples fórmulas de "origem causal (pattica
samuppãda) : "Isto sendo assim, aquilo vem a ser; isto não sendo assim,
aquilo não vem a ser". Devido à operação sem início das causas mediatas, é
impossível evitar qualquer de seus efeitos complexos; a evasão não é
possível a não ser no- domínio onde opera a eficiência causal das ações
passadas (kamma) e somente a respeito do que jamais fêz parte integrante
dêste domínio.
[3.Toda a raça humana é tão miserável e acima de tudo tão cega, que não
tem consciência de suas próprias misérias. (Comenius, Labirinto do mundo e
Paraíso do Coração, c. XXVlll). É precisamente devido a esta cegueira que
Buda hesitou em pregar o Dhamma a homens cujos olhos estão cobertos de
pó].

Se a doutrina budista pode-se reduzir ao enunciado da lei da causalidade, é


devido à incidência direta desta lei sôbre o problema da mutabilidade e da
corruptibilidade: se podemos suprimir a causa do sofrimento, não teremos
mais de- nos inquietar com seus sintomas. No ciclo ou no turbilhão do porvir
(bhava-cakka sansãra), são inevitáveis a instabilidade, o envelhecimento e a
morte de tudo o que teve um início é viver ou "vir a ser" é função da
sensação; sentir é função do desejo (tanhá, sêde); desejar é função da
ingorância (avijjã = moha, ilusão). A ignorância, origem última de todo o
sofrimento e de tôda a escravidão, de todos os estados patológicos de-
submissão ao prazer e à dor, (4) pertence à verdadeira natureza das coisas
"que ainda estão por vir" (yathã - bhütam) e participa em particular de sua
inconstância (annicam). Tudo o que vem a ser é mortal; quem conseguiu
pôr têrmo ao porvir, não mais está submetido ao movimento, será daí por
diante, imortal. Isto nos interessa profundamente; o mais perigoso aspecto
da ignorância - o verdadeiro pecado original - é aquêle que nos faz acreditar
que "nós mesmos" somos verdadeiramente isto ou aquilo, e que podemos
sobreviver numa espécie de identidade, de um instante ao instante
seguinte, de um dia a outro, de uma vida a outra.
[4."A ignorância é a submissão ao prazer e à dor...é ceder a si mesmo".
Platão, Protágoras, 356-357].
É por isso que o budismo não conhece a "reencarnação. no sentido vulgar e
animista do têrmo; mas muitos "se enganam ainda pensando que o
budismo ensina a Transmigração das almas" (SBE. XXXVI 142; Diálogos, II,
43). Do mesmo modo que um Platão, Santo Agostinho e Mestre Eckahrt,
também aqui tôda a mudança é um processo de morte e de renascimento
na continuidade, mas sem identidade. Não existe uma entidade permanente
(satto) que se possa imaginar passando de uma encarnação a outra (Mil.
72) à maneira de um homem que deixasse sua casa ou sua aldeia, para
entrar em outra (Pv. IV, 3). Pode-se mesmo dizer que a noção de uma
"entidade" como a noção do "eu", se se deseja aplicá-Ia a uma coisa
existente, é puramente convencional (S. I, 135) e que êste mundo nenhum
exemplo nos oferece (Mil 268). O que vemos parecer e surgir de nôvo "não
sem se ter tornado outra" é uma individualidade (nãma-rupa) (Mil. 98), uma
consciência discernente (vinnãna), herdeira das "obras" da outra (M. I, 390;
A. III, 73). Buda bem pode ter dito que existem certamente agentes
pessoais (A. III, 337 - 338); mas não se depreende, como o supunha a Sra.
Rhys Davids, que ""a doutrina da annatã seja reduzida ao nada" (GS. III,
XVIII). A posição do budismo é exatamente a do bramanismo: "Eu não sou o
agente do que quer que seja; são os sentidos que se movem entre os seus
objetos"; tal é a opinião do homem reprimido, daquele que conhece a
"Ipseidade" (BG. v, 89; XVIll, 16-17). Certamente, o indivíduo é responsável
por suas ações, herdará de suas conseqüências, tanto que se imaginará que
êle mesmo é o agente; e ninguém é mais repreensível do -que aquêle que
declara: "Não sou eu quem o fêz" enquanto êle ainda está enredado na
atividade (Ud. 45; Dh. 306; Sn. 601) ou aquêle que alega que o que êle fêz
tem pouca importância nem em bem nem em mal (D. I, 53). Mas acreditar
que eu sou o agente, ou que outrem é o agente, que eu ou outrem
colheremos o que semeamos, é passar ao lado da verdade (Ud. 70); não
existe um "eu" que age ou que herda (S. II, 252), ou para falar mais
corretamente, a questão da existência real de um agente pessoal não
poderia ser re- solvida por um simples sim ou um simples não, mas somente
cm têrmos de origem causal em conformidade com o Caminho do meio (S.
II, 19-20). Mas tôdas estas "entidades" compostas que têm uma origem
causal são precisamente coisas que se analisam inutilmente e que sempre
se verifica não serem o "meu Eu"; neste último sentido (para matthikena),
êste ou outrem não constituem o agente. É somente depois de ter
perfeitamente compreendido e verificado esta proposição que nos será
permitido negar que nossas ações sejam nossas; até Já, haverá coisas que
devemos fazer, e coisas que não devemos fazer (Vin. I, 233; A. I, 62; D. I,
115).

Na doutrina da causalidade (hetuvãda), como na do efeito causal das ações


(kamma) não há nada que implique necessariamente uma "reencarnação"
das almas. A doutrina da causalidade é comum ao budismo e ao
cristianismo; tanto uma como a outra religião declaram explicitamente crer
numa seqüência ordenada dos acontecimentos. Esta "reencarnação" da
qual o budista quereria ser desembaraçado não é o acidente de uma morte
particular ou de um renascimento particular esperado para o futuro; é todo
o vertiginoso processo de morrer e de renascer muitas vêzes que
caracteriza igualmente a existência neste mundo da condição humana e a
existência no além, durante a eternidade, da condição divina (de um deus
entre muitos outros). O Arahant realizado está por demais prevenido para
perguntar: "Quem fui no passado? Quem sou no presente? Quem serei no
futuro (S. II, 26-27). Para comodidade usual, êle se pode servir da palavra
"Eu" sem deixar entender de qualquer maneira que a noção "Eu" ou "me"
comporta no espírito do animista (D. I, 202; S. I, 14-15). O tempo implica o
movimento, o movimento a mudança de lugar; em outros têrmos a duração
traz consigo a mutação, o porvir. É por isso que a imortalidade considerada
pelo budista, não está no tempo nem no espaço, mas é independente de
tempo e de lugar. Para empregar têrmos pragmáticos da linguagem
corrente, os quais só se aplicam às coisas que têm um princípio, um
desenvolvimento e um fim (D. II, 63) poderemos dizer do Ego: "Outrora foi,
depois deixou de ser; outrora não foi, depois foi; mas em têrmos
verdadeiros: "ele não foi; não será e não é atualmente: êle não é e não será
"meu" (Ud. 66, Th. I, 180). O turbilhão, a roda do porvir budista não é outra
coisa que dtrokoz thz Uenesevz de S. Tiago: O Ego é para o budista uma
não-realidade como para Platão e Plutarco pelo próprio motivo de sua
mutabilidade. A gaiola do esquilo gira, mas “isto não sou eu" e na verdade
existe um meio de fugir à sua revolução.

O mal para o qual Buda buscava um remédio é o da miséria que provém da


corruptibilidade de tudo, o que é nascido, composto e inconstante. O
sofrimento, a mutabilidade, a não-ipseidade (5) (dukkha, annica, anattã) são
característicos de tôdas as coisas compostas, de tudo o que não é
Ipseidade; e de tôdas estas coisas o Ego, o "eu", o “si mesmo" (aham, attã)
e a espécie ou a imagem exata, uma vez que é o fim do homem que nos
ocupa. É um axioma que toda a existência (6) (S. II, 101. etc.) se mantém
pelo alimento material ou mental, como o fogo se nutre de combustível; é
neste sentido que o mundo está em fogo e que nós queimamos. Os fogos da
consciência do ego, da egoeidade, são os do desejo (rãga = kamma, tanhá,
lobha), do ressentimento e da cólera (dosa = Kodha), e da ilusão ou
ignorância (moha = avijjá). Estes fogos só se apagam pelos seus contrários
(A. IV, 445; Dh. 5, 223), pela prática das virtudes correspondentes, pela
aquisição do saber (vijiã ); em outros têrmos, êles não cessam de “puxar",
ou com precisão, êles só se "apagam" quando lhes falta o combustível. É
esta "extinção" que se chama o "expirar" (nibbãna = sansc. nirodna) e que
se encontra naturalmente associado à idéia de um "refrescar".
[5.Em todas as filosofias tradicionais que assentam como axioma que há em
nós uma dualidade é de rigor distinguir o grande Eu, a Ipseidade, do "eu" ou
Ego, o sábio", por assim dizer, do "entendido". Na nossa exposição, a não-
ipseidade coincide com a egocidade (self-isness) ; dizer "não-eu
(unselfihenss) teria sido exprimir exatamente o contrário. É da Ipseidade
somente que uma não-egocidade ontológica, e conseqüentemente, um não-
eu ético, podem ser atributos. No momento, apenas discutimos o ego, o
"eu"; a questão da Ipseidade no budismo, será tratada adiante].
[6.Existência oposta ao "ser", como esse à essência].
O Nirvâna (para empregar a forma da palavra mais familiar aos europeus) é
um têrmo fundamental da terminologia budista, e sem dúvida o mais mal
compreendido de todos. (7) O Nirvâna é uma morte, um fim (no duplo
sentido de estar "terminada" e “aperfeiçoada"). Tomada no passivo, tem
todas as acepções das palavras gregas telev, oposJenmi e as de vukv
(refrescar). O Nirvâna não é nem um lugar nem um efeito; êle não está no
tempo, êle não se obtém por quaisquer meios; portanto é e pode ser
“visto". Os "meios" empregados na prática não são em si os meios de se
atingir o Nirvâna, mas meios de afastar tudo o que perturba nossa “visão"
do Nirvâna, da mesma forma que um candeeiro trazido numa sala obscura
nos permite ver o que aí já se encontra. Compreendemos agora porque o
"eu" (attã) deve ser domado, vencido, refreado, rejeitado, e pôsto fora de
atividade. O Arahant, o Homem Perfeito, é aquêle cujo "eu" é domado (atta-
danto), cujo “eu" foi despojado (atta- jaho); seu fardo foi deposto
(ohitabharo); o que tinha a fazer, foi feito (khatam-karaniyam), A êle são
aplicáveis todos os epítetos dados ao próprio Buda, que não tem mais
qualquer nome pessoal; (8) é "liberto" (vimutto); é extinto (nibutto); para
êle não há mais porvir: obteve o repouso da fadiga (yoga-k-kheman); é
"desperto" (buddho) - epíteto que se aplica a todo Arahant e não somente a
Buda, por excelência - é imutável (anejo); é "Ariano"; não é mais um
discípulo (sekko), é um Mestre (asekho).
[7.É legitimo de o traduzir por "extinção", como se diria de um fogo mas
"aniquilamento" falseia as idéias. Para os hindus um fogo que se apaga não
"sai", como em inglês (going out); "entra" (going In)].
[8.Gotama não é um nome pessoal, é um nome de família, e o próprio
Ãnanda é também um Gotâmida].

O egoísmo (mamattam, “possessividade"; meccheram "mau


comportamento", “lei dos tubarões") é um mal, e por conseqüência o "eu"
só se doma por uma disciplina moral, Mas o egoísmo (selfishness) é mantido
pela “egocidade”- self-isness (asmimana, anatam attã ditthi), e simples
mandamentos serão pouco eficazes enquanto não tivermos destruído a
opinião errônea que "isto, sou eu". Pois o “eu" quer sempre se afirmar; só
depois de têrmos descoberto perfeitamente a verdadeira natureza dêste
“eu" inconstante é que deveremos nos pôr a combater nosso pior inimigo, e
dêle fazer nosso servidor e nosso aliado. O primeiro passo será conhecer
nossa situação, o segundo, desmascarar o "eu" que ficará então
desobrigado conosco; o terceiro agir em conseqüência, Mas tudo isso não é
fácil; estaremos muito pouco dispostos a nos mortificar antes de ter medido
os agregados do desejo em seu verdadeiro valor, antes de ter aprendido a
distinguir nossa Ipseidade e seus verdadeiros interêsses do nosso ego,
nosso "eu" e seus interêsses. O mal fundamental é a ignorância; é pela
verdade que o eu poderá ser efetivamente domado (S. I, 168). Somente"a
Verdade vos libertará". O remédio para o amor do eu (attakãma) é o Amor
do Eu (Ipseidade) (attakãma) e é precisamente neste sentido, para servimo-
nos dos têrmos de Santo Tomás de Aquino, que por caridade, o homem
deve-se amar a si mesmo mais do que a qualquer outra pessoa mais que o
seu próximo (Sum. Theol. ll, 26, 4). E em têrmos budistas: "Que ninguém
comprometa seus próprios interêsses pelo bem de outrem, por maior que
êle possa ser: se se conhecesse bem o verdadeiro interêsse do Eu, seria a
êste fim que se deveria visar" (Dh. 166). Em outros têrmos, o primeiro dever
do homem é de realizar sua própria salvação a partir de si mesmo.

É necessário proceder analiticamente, como se nos é explicado várias vêzes


a propósito da "não-ipseidade" (anattã) de todos os fenômenos. O que é
necessário repudiar, é o que hoje chamar-se-ia de "animismo". O
mecanismo psicofísico que reage não é um "Eu"; está desprovido (sunna) de
toda propriedade de Ipseidade. O ego, consciência ou existência ou
existência "individual" (attasambhãva) é um composto do cinco
fundamentos (dhãtu) associados ou de cinco ramificações (khandha), a
saber o corpo visível (rupa kãya) a sensação invisível (vedana, agradável,
desagradável ou neutra); o reconhecimento ou consciência (sanna); as
construções, isto é, o caráter (samkhãrã); (9) enfim a discriminação, o
discernimento, o julgamento, a apreciação (vinnana): (10) em resumo, é um
composto do corpo e da consciência discernente (savinnãnaka-kãya), é a
existência psicofísica. Demonstra-se por todos êstes fatôres sua origem
causal, sua variabilidade, seu caráter perecível; não são "nosso" uma vez
que não podemos dizer "que sejam (ou: nós mesmos sejamos) assim ou
assim" (S. m, 66-67): não podemos constatar que êles "vêm a ser", o que
nós "vimos a ser": somos apenas uma entidade biológica, movida por
impulsos hereditários. (11). A demonstração termina sempre por estas
palavras: "Aquilo não é meu, eu não sou aquilo, aquilo não é a minha
Ipseidade". Se disto vos libertais para sempre, se renuncias totalmente às
noções do "eu sou Fulano', "eu sou o agente", "eu sou", será "vosso
benefício e vossa felicidade" (S. III, 34). Buda, qualquer Arahant, são os
"Nemo", seria fútil seu nome.
[9.Samkhãrã (uonapitok, ounQeidi) a palavra se aplica aqui às
representações mentais, imaginações, noções, postulados, complexos,
opiniões, preconceitos, convicções ideologias, etc. Num sentido mais geral,
samkhãrã denota tudo o que pode ser designado por um nome ou percebido
pelos sentidos, isto é, todo nãmarupa: todos os objetos inclusive nós
mesmos].
[10. Os cinco Khandhas se assemelham muito às cinco "faculdades da alma"
de Aristóteles (Do An. II, III) e de Santo Tomás de Aquino (Sum. Theol. I, 78,
I) a saber: vegetativa (nutritiva), sensível, apetitiva, intelectual, matriz
(diagnóstica e crítica)].
[11. L. Paul, The Annihilation of man, 1945, p. 156].

Em outras palavras, toda coisa, toda individualidade é caracterizada pelo g ,


Aristóteles, Met.ϕ "nome e forma" (nãma - rupa = dlogo kai h mor VIII, I, 6);
o "nome" se aplica aos componentes invisíveis da individualidade; a
"forma"" ou "corpo" (pois rüpa pode ser substituído por hãya) a seus
componentes visíveis e sensíveis. O que significa que "o tempo e o espaço
são as formas fundamentais de nossa com- preensão de tudo o que se
modifica; a forma (ou corpo) de toda a coisa está sujeita a desaparecer: seu
nome permanece, e por seu nome temos ainda uma ligação com ela. É
devido a seus "nomes", "a lei", "a Verdade" que o Desperto sobrevive neste
mundo, se bem que êle mesmo, igual ao rio que atinge o oceano, seja
liberto do "nome e da forma": aquêle que é "merso nêle" não mais faz parte
de nenhuma categoria, não é mais isto ou aquilo, não está mais aqui ou lá
(Sn. 1074).
Tudo isso não é particularmente budista; é a substância de uma filosofia
mundial, para a qual a salvação consiste essencialmente em salvar o
homem de si mesmo: Deneget seipsum! Si quis...non odit animam suam,
non potest mem discipulus esse!
"A alma é vosso maior inimigo". (12) "Se não tivesse seus empecilhos, quem
ousaria dizer "sou eu". (13) O eu é a raiz, a árvore e os ramos de todos os
males de nossa queda. (14) "é impossível captar duas vêzes a essência de
qualquer coisa mortal... num único e mesmo instante ela chega e se
dissipa". (15) Poder-se-ia multiplicar as citações dêste gênero. O que menos
se sabe, é que muitos naturalistas e psicólogos modernos chegaram às
mesmas conclusões.
[12. AI Ghazãli. AI - RisaItal Laduníyya, cap. II].
[13. Rumi: Mathnawat, I, 2549].
[14.W. Law Hobhouse, pág. 219].
[15. Timeu, 28 A. Cf. Crátilo, 440. Plutarco, Moralia 392 B. Para a doutrina
budista do "instante" (khana ) em que as coisas nascem, amadurecem e
chegam ao fim, ver Vis, I, 329, e os desenvolvimentos da idéia nos textos
mahâyânicos].

"O naturalista sustenta que os estados e os fatos ditos mentais existem


somente onde se encontram certas organizações de coisas físicas...(e) que
êles não são apresentados por estas coisas enquanto elas não são assim
organizadas. O objeto -organizado só faz manifestar as reações de seus
componentes...(êle) não é um elemento adicional que... dirige...as reações
de suas partes organizadas", Até lá, é de modo idêntico que o naturalista e
o budista interpretam .as reações do "objeto organizado", mas o primeiro se
identifica ao objeto que reage, (16) enquanto que o budista .assegura que
não há objeto que eu possa chamar "meu Eu", Ao contrário os psicólogos,
por uma extrapolação do ego, fazem ainda, como os budistas que encaram
a possibilidade -de alguma outra coisa que o ego, que sofrer uma "beatitude
infinita". "Se constatamos que tudo é fluido, constatar-se-á -que a
individualidade e a falsidade são apenas uma única e mesma coisa"; donde
êste corolário como na doutrina do annatã, que "nós" somos diversos da
nossa individualidade, "Nesta individualidade de cada um de nós, êste "eu"
que é tradicional (isto é, habitual) colocarmos em evidência... temos a mãe
de todas as ilusões; o drama desta ilusão da individualidade é que ela
conduz ao isolamento, ao temor, à suspeita quase paranóica, a ódios
absolutamente inúteis". Cada um seria infinitamente mais feliz se aceitasse
a perda de seu "eu individual e, como o diz Buda, não teria mais
preocupações com aquilo que não tem realidade". Na época do racionalismo
científico, que se tornara a psique? A palavra se tomara sinônimo de
consciência... não havia psique fora do ego. Quando o destino da Europa a
fizera participar de uma guerra de quatro anos de um horror sem
igual...ninguém compreendeu que o homem europeu estava possuído por
alguma coisa que o despojava de seu livre-arbítrio."Mas, além, e acima
dêste ego, há uma Ipseidade" em tôrno da qual êle gira, mais ou menos
como a Terra gira em tôrno do Sol"; todavia, "desta relação nada não é
conhecível intelectualmente, porque nada podemos dizer do conteúdo da
Ipseidade". (17) Da Ipseidade, que nos diz o Budismo - "Isso não é meu Eu"
(na me so attã); palavra que, com a expressão "não - Ipseidade" (anattã)
servindo para qualificar o mundo e todas as "coisas" (sabbe dhammã
anattã), (18) está na base da opinião errônea que o budismo "nega (não
somente o eu mas também) o Eu". Mas basta considerar os têrmos em boa
lógica para se perceber que êles implicam a realidade de um Eu, o qual não
é nem uma parte nem a totalidade das "coisas" que se declara não lhe
atribuir. Como o diz Santo Tomás de Aquino, "As coisas primárias e simples
são definidas por negações: um ponto, por exemplo, se define "o que não
tem partes". Dante faz notar que há "coisas que o nosso intelecto não
poderia contemplar... só podemos compreender sua natureza formulando
negações a seu respeito". Era também a atitude da antiga filosofia hindu no
seio da qual o budismo nasceu: qualquer coisa que se possa dizer do Eu,
não é assim Reconhecer que "nada de verdadeiro poderia ser afirmado a
respeito de Deus", não é certamente negar sua essência!
[16. Identificação que volta à proposição animista: “Penso, logo existo”, e
implica o conceito ininteligível de um úrjco agente que pode querer coisas
contrárias num único e mesmo momento. Pareceria que, para permanecer
lógico, o positivista devesse negar a possibilidade de tôda a direção de si
mesmo; é talvez o caso].
[17 Os naturalistas e os psicólogos que acabamos de citar são: Dewey,
Hooke e Vagel; Charles Pierce, H. S, Sullimam, E. E, Haddley, C. J. Jung. Vê-
se que êste último, que fala da "necessidade absoluta de dar um passo
além da ciência" é metafísico sem o querer. Não damos estas citações para
provar a exatidão da análise budista, mas com o único intuito que o leitor
possa compreender melhor esta última: O provérbio inglês diz: "é comendo
o "pudding" que se sabe se êle é bom"].

Quando se insiste na questão "Existe um Eu?" Buda recusa responder sim


ou não. Dizer sim seria participar do êrro "eternalista"; dizer não, do êrro
"aniquilacionista" (A. IV, 400-401). Da mesma forma, quando surge a
questão do destino no além de um Buda, um Arahant, do Homem em Si, êle
responde que não se lhe poderia aplicar qualquer dos têrmos "torna-se"
(hoti) ou "não se torna"; nem se torna, nem não se torna; "torna-se ao
mesmo tempo que não se torna". Pois qualquer uma destas proposições
implicaria a identificação de Buda com tudo ou parte dos cinco fatores da
personalidade; todo porvir implica uma modalidade: ora, Buda é exterior a
todo o modo. É preciso notar que a questão está sempre redigida em
têrmos de "provir", não de ser. A lógica da linguagem só se aplica às coisas
fenomênicas (D. II, 63) : Ora, o Arahant não está contaminado por nenhuma
destas "coisas"; não há expressões verbais para aquêle cujo eu não mais
existe; aquêle que se "recolheu em si mesmo" (19) não mais se encontra
em nenhuma categoria (Sn. 1074, 1076). Todavia afirma-se ainda que Buda
"é" (atthi), se bem que êle não seja visível aqui ou lá; e nega-se que um
Arahant "não seja" além da morte. Mas se verdadeiramente não fica
absolutamente nada quando o eu não existe mais, somos forçados a nos
perguntar de que uma imortalidade poderia ser o atributo? Querer reduzir
uma realidade à nulidade do "filho da mulher estéril" só conduz ao absurdo,
ou ao ininteligível; aliás Buda, repudiando as doutrinas "aniquilacionistas"
que heréticos de seu tempo lhe atribuíam, nega expressamente ter jamais
ensinado a destruição de nada de real (roto sattasa = onvtj oi) (M. I, 137,
140). "Bem que existe, diz êle, um não-nascido, não-tomado, não-feito
(akatam) (20) não composto (asamkhatam) (21) e, se não existisse, não
haveria evasão possível para o que é nascido, tomado, feito e composto
(isto é, do mundo) (Vd. 80) "Tu és o Conhecedor daquilo que jamais foi feito
(akatannü) , ó Brahman, tendo conhecido o declínio de tôdas as coisas
compostas".
[18. Idêntico àquela do bramismo: "Dos que são mortais não existe o Eu"
(anãtmã há martyah). (SB. II. 2, 2-3)].
[19. Atham-gato é um excelente exemplo das numerosas ambigüidades
etimológicas apresentadas pelo pálio No caso attham - sansc. astam, o
sentido é aquêle de "regressado a casa", mas no caso atham - sansc. ar- é
preciso entender "tendo realizado seu desígnio, atingido sua finalidade".
Uma ambigüidade dêste gênero não é um transtôrno, uma vez que
"recolher-se a si mesmo" e "atingir seu fim" vem a dar do mesmo].
[20. O "mundo não feito" (Brahmaloka) dos Upanishads].
[21. "Incomposto", isto é, sem origem, desenvolvimento ou mutação (A. I,
152); o Nirvâna (Mil. 270); o Dhama (S. IV, 359). Por outra parte, os
"estados" contemplativos, mesmo os mais elevados, são compostos: e é
dêstes próprios estados sublimes que existe uma evasão derradeira].

Buda afirma que êle "nada dissimula", que êle não estabelece uma distinção
entre o interior e o exterior, que "sua mão não está fechada" (D. II, 100).
Mas a Lei Eterna e o Nirvâna são "não-compostos" e por êste valor
transcedente (paramattha) não existem palavras adequadas: “all' alta
fantasia qui manco posro” (Dante, Paraíso XXXIII, 742); isto será objeto da
fé (saddhã) do discípulo até que disto êle tenha experiência, até que o
conhecimento venha substituir a Fé. "Aquêle cujo espírito está abrasado
com o desejo do Indizível (anakkhãtã), êsse está liberto de todos os amôres,
nada contra a corrente (Dh. 218). Os Budas só fazem proclamar "a Via" (Dh.
276). Se pode ter uma salvação pela fé (Sn. 1146), é porque “é a fé que
conduz o melhor ao conhecimento" (S. IV, 298): crede ut inteligas. Quem diz
fé diz autoridade; a autoridade de Buda (mahãpadesa) que repousa sôbre
sua experiência imediata e àquela de suas palavras tais como êle as
pronunciou, ou tais como foram narradas pelos monges-mendicantes
competentes; neste último caso, elas não somente foram corretamente
compreendidas, mas ainda verificadas, quanto à sua conformidade com os
textos canônicos e a regra. Esta dependência da etapa inicial sôbre o que
ainda não foi "visto" não é exclusivamente budista e não exige uma
particular credulidade. A matéria do ensinamento de Buda é sempre o que
êle afirma ter visto e verificado pessoalmente: e isso, êle assegura a seus
discípulos que êles também poderão ver e verificar se êles o seguirem na
sua viagem com Brahma. "Os Budas apenas indicam o Caminho; cabe a vós
fatigar-se com a tarefa" (Dh. 276); o Fim permanece indizível (Dh. 218); êle
não possui sinal (S. I, 188, Sn. 342); é uma gnose que não é comunicável (A.
III, 444); aquêles que só confiam no que pode ser dito estão ainda sob êste
jugo da morte (S. I, 11).
Quando se discute a questão da Fé, esquece-se demasiadamente que nosso
conhecimento das "coisas", mesmo as que regem nossos atos mundanos,
está na maior parte baseado na autoridade. Pode-se dizer que a maioria de
nossas atividades diárias cessaria se deixássemos de acreditar nas palavras
daqueles que viram o que ainda não vimos, mas que poderíamos ver
fazendo o que êles fizeram, indo onde êles foram: do mesmo modo as
atividades do neófito budista terminariam se êle não "acreditasse" nesta
finalidade que êle ainda não atingiu. De fato, êle acredita que Buda lhe
disse o que é verdadeiro, e age em conseqüência (D. ll, 93). Somente o
Homem Perfeito é "sem fé" pois nêle o conhecimento do Não-feito substituiu
a Fé (Dh. 97) e esta não mais lhe é útil. Para o budista, o Dhamma, a Lex
Aeterna, sinônimo da Verdade (22) (5. I, 169) é a autoridade suprema, o
-Rei dos reis" (A. I, 109; m, 149). É com esta última autoridade, fora do
tempo e temporal ao mesmo tempo, transcendente e imanente, que Buda
se identifica, identifica a Ipseidade na qual êle se refugiou: “Aquêle que vê o
Dhamma me vê, aquêle que me vê, vê o Dhamma" (S. III. 120; it. qi; Mil.
73). Entre as escrituras budistas, uma das mais grandiosas é intitulada o
Dhammapadas "as Marcas da Lei"; um itinerário, um guia para aquêles que
"marcham na Via da Lei" (dhammacariyam caranti), a qual é também a (Via
de Brahma", "a viagem com Brahma" (brahmacariyam), -a antiga estrada
que seguiram os Todo-Despertos de outrora". Os termos budistas para dizer
a "vereda" (magga) e a "busca" (gavesana) (23) da qual Ipseidade é o
objeto (Vin. I, 23; Vis. 393), indicam implicitamente que é necessário seguir
uma pista, nas marcas. (24) Mas estas pistas terminam quando a margem
do Grande Mar é atingida. O monge-mendicante que era até então um
discípulo (sekho) é daí por diante um perito (asekho); não está mais sob a
direção de um preceptor (Gal. III, 25). A Via prescrita é a do aniquilamento
do eu, da virtude, da contemplação; é necessário caminhar sozinho com
Brahma; mas uma vez atingido o fim desta longa estrada quer seja neste
mundo quer no outro, nada mais resta que o mergulho" no Imortal, no
Nirvâna ( mat' ogadham, nibbãn'ogadham), neste oceano insondável que é
ao mesmo tempo a imagem do Nirvâna, do Dhama e do próprio Buda (M. I,
488,494; S. IV, 179, 180; v, 47; Mil. 319, 346). É uma velha comparação,
comum aos Upanishads e ao budismo: quando os rios atingem o mar,
perdem nome e forma só se fala do "mar". A vocação monástica é já uma
prefiguração dêste fim; semelhantes aos rios que atingem o mar, os homens
de tôda a casta que se tomaram monges-mendicantes não mais são
designados pelo seu antigo nome ou sua antiga linhagem: pertencem
somente à linhagem daqueles que procuram a Verdade e a encontraram
(Dh. 239).
[22. “Uma lei superior a nossos espíritos, chamada Verdade", Santo
Agostinho, De Vera Relig. XXX, Cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Theol. 1-
11, 91-2].
[23. Cf. a história de Gavesin, adiante].
[24. Como em Platão, zkueuv, passim, ou em Mestre Eckart, alma seguindo
a pista de sua prêsa, o Criton].

“A gôta de orvalho desliza para o mar resplandecente". Sim, mas a fórmula


não é exclusivamente budista: nós a encontramos em Rümi (Nicholson,
Divã, xn, XV; Mathmawi, passim), em Dante (sua voluntate...e quel mare aI
qual tutto si muove (Par. III, 84), em Mestre Eckhart (also sich wandelte der
Tropfe in das Meer..."o mar da insondável natureza de Deus: mergulha
dentro, é o afogamento"), em Angelus Silesius (wenn Du das Trópflein weisz
im grossen Meere nennen, denn weisz Du meine Seel'im grossen Gott
erkennen, [Christl. Wandersmann, ll, 25]) e também na China, onde o Tao é
o oceano ao qual tudo regressa (Tao-te king, XXXII). De todos os que o
atingem pode-se somente dizer que sua vida é oculta, enigmática. Buda,
que cada um o pode ver presente em carne e osso é desde agora
"impossível de atingir" (anupalabhyamámo); não é mais" descobrível"
(ananu vejjo); um ser assim "mergulhado em si mesmo" não poderia mais
ser relacionado a qualquer categoria (sankh mana upeti [Sn. 1074]). Pois,
"não há ninguém, que me vendo sob uma forma qualquer, possa me ver";
"nome e aspecto não me pertencem". "Somente aquêle que vê a Lei Eterna,
vê Buda, hoje mesmo tão efetivamente que quando o Mestre estava ainda
revestido com sua personalidade (persona, máscara, disfarce) que, no
momento de sua morte, êle fêz estalar como uma cota de malhas" (A. IV,
312).
Acabamos de deixar perceber a identidade do Mar dantesco com o Mar
budista, parecendo introduzir uma significação deísta nas doutrinas
pretensamente atéias do budismo; bastar-nos-á fazer notar que não existe
uma verdadeira distinção a estabelecer entre a imutável Vontade de Deus e
a Lex Aeterna, sua Justiça de Sabedoria, esta natureza que é a sua Essência,
contra a qual não se poderia agir sem negar a êle mesmo. A Lei, Dhamma,
fora sempre um Nomen Dei: no budismo, a palavra conserva-se sinônima de
Brahma. Se Buda se identifica à Lei Eterna, isto significa que êle não poderia
pecar; não está mais "sujeito à Lei"; sendo êle mesmo a Lei, êle só pode
agir em conformidade com ela, e entre as interpretações do epíteto "Assim
vindo" ou "Descobridor da Verdade", encontramos esta: "como fala, age".
Mas para aquêles que ainda são viajantes inexperientes, o pecado
(adhamma) é muito precisamente um delito contrário à Lei Natural, isto é, a
parte da Lei Eterna que determina as responsabilidades e as funções do
indivíduo. Em outras palavras, a Lei Eterna tem seu correlativo imanente na
'"lei pessoal" (sadhama [Sn. 299]) de cada um, que determina suas
inclinações naturais e suas funções próprias (attano kamma = ta eavtou
prkttein); é por cupidez ou por ambição que o indivíduo é tentado a
desprezar o horóscopo que normalmente o protege (Sn. 314, 315). Notamos
isto de passagem, porque é um êrro muito difundido crer que Buda atacava
o sistema das castas. O que êle fazia na realidade, era distinguir aquêle que
só é brâmane por seu nascimento daquele que é um verdadeiro brâmane
por sua gnose, e lembrar que a vocação religiosa está aberta aos homens
de qualquer origem (A. III, 214; S. I, 167): idéia que nada tinha de nôvo. A
casta é uma instituição puramente social: ora, Buda se dirigia
principalmente àqueles cujas preocupações não são mais sociais: em
relação ao chefe de família êle diz que sua enteléquia é a perfeição de seu
trabalho (A. III, 363), e somente são condenadas às atividades que
prejudicariam a outrem. Os deveres do Soberano são muitas vêzes
enumerados. O próprio Buda era um personagem real, pois instituiu uma
Lei; mas era brâmane por personalidade (Mil. 225-227). Os brâmanes só são
criticados quando não permaneceram à altura de sua antiga norma. Em
muitas passagens, "brâmane" é sinônimo de "Arahant".

Pretendeu-se que o Budismo só conhecia o deus pessoal Brahmã, de modo


algum a Divindade, Brãhma, o que teria sido estranho na Índia do século V
antes da nossa era, sobretudo num antigo discípulo dos brâmanes, e em
textos que contêm tantas reminiscências dos Brãhmanas e dos Upanishads.
De fato, não se poderia duvidar que na expressão gramaticalmente
ambígua brahma-bhuto que define o estado dos totalmente libertos, é
Brãhma que se deve ler e não Brahmã; aquêle que está “plenamente
desperto", é Brahma que êle "veio a ser". E com efeito: 1.° nossa atenção é
freqüentemente atraída para o conhecimento relativamente limitado de um
Brahmã; 2.° os Brahmã são (por conseguinte) os discípulos de Buda, não é
êle que é discípulo dêles (S. I, 141-145; Mil. 75-76); 3.° em seus
nascimentos anteriores, Buda já tinha sido um Brahmã e um Mahã-Brahmã
(A. IV, 88-00); seria portanto absurdo, na identidade brahma-bhalo = bud-
dho (A. v, 226; Dh. III, 84; It. 57, etc.) admitir que brahma = Brahmã; 4.°
está dito explicitamente que Buda é bem mais que um Mahã-Brahmã (Dh. A.
ll, 60). É verdade que os brâmanes, falando a Buda, o chamam
freqüentemente Brahmã (Sn. 293, 479, 508), mas nestas passagens Brahmã
não é o nome do deus, mas, como em Skr., a denominação de um
verdadeiro e sábio brâmane (25) e o equivalente de Arahant (Sn. 518, 519).
Quanto aos deuses (deva) por exemplo, os Indras, os Brahmãs e muitas
outras deidades menores, ou anjos, não é somente verdade que êles
possuem ao menos tanta realidade que os homens, e que Buda, como
outros Arahants visitam seus mundos e falam com êles; aliás Buda é "o
mestre dos deuses bem como dos homens" (S. III, 86); e o que melhor, em
resposta aos seus interrogadores, declara absurda a idéia que "não existe
outro mundo” (como o sustentam os adeptos do "nada mais", que hoje
chamaríamos positivistas [M. I, 203]) e a opinião paradoxal que "os deuses
não existem" (M. n, 211). Considerando enfim que as mesmas proposições
se aplicam ao Eu e a Buda - por exemplo, esta que nem um nem outro
podem legitimamente se definir na forma "ou isto, ou aquilo", não somente
a paráfrase de "Buda", é: aquêle cujo Eu é desperto (26) (Visc. 209; cf. BU,
IV, 4, 13); mas não é apenas duvidoso que o Comentador tenha razão ao
afirmar que, nestas passagens, o Descobridor da Verdade, o "assim vindo",
é o Eu (Ud. 67 com UdA. III, 40). Buda não é apenas um princípio
transcendente - Lei Eterna e Verdade - é também universal- mente
imanente como Homem neste homem: pode-se deduzi-lo do epíteto "Todo
no interior" (vessantara = sansc. vicvãntara [M. I, 386, It. 32]) que se lhe
aplica, como das palavras: "Que aquêle que me deseja tratar, trate dos
doentes" (Vin. I, 302) espantosamente análogas às de Cristo: "O que
tiverdes feito por um dos menores dêstes meus irmãos, têlo-eis feito por
mim."
[25. No ritual védico, o Brahmã é o mais sábio dos quatro oficiantes
brâmanes, sua autoridade em todas as questões duvidosas; deduz-se que
Brahma é o título mais respeitável que um brâmane possa dar a outro
quando a êle se dirige].
[26. Budh', attã buddho, Vis. 209; ef. BU, IV, 4, 13, pratibudho atmã. O “Eu
desperto” será o “Eu que fui submetido à mutação” (bhavit’ attã), passim,
isto é, o “Eu não nascido (ajãta’attã) que não envelhece nem morre” (DhA.
I, 228 cf. BG. II, 20)].

Em todos os escritos canônicos do budismo, procurar-se-ia inutilmente a


afirmação de que não existe o Eu, nem realidade distinguível do eu empírico
que sofre repetidamente a decomposição destrutiva. Muito ao contrário, o
Eu é afirmado explicitamente; em particular na expressão que reaparece
freqüentemente para dizer que isto ou aquilo não é o meu eu. Não devemos
esquecer o axioma nil agit in seipsum, nem o que diz Platão: "Quando em
um indivíduo, num mesmo momento, a propósito da mesma coisa,
constatamos dois impulsos contrários, dizemos que nêle deve haver dois
sêres. (Rep. 604 B). É o caso, por exemplo, quando o Eu é o amigo ou
inimigo do eu-ego, (8. I, 57, 71-72; como em B.G. VI, 5-7) e sempre que
existe uma relação entre os dois "eu". Cabe ao budista "honrar aquilo que é
mais que o eu" (A. I, 125) e êste "mais" só pode ser "o Eu Ipseidade", senhor
do eu, e finalidade do eu" (Dh. 380). É do Eu, e não certamente de si mesmo
que fala Buda quando diz: "Tomei refúgio no Eu" (D. II, 120) ou quando êle
ordena aos outros a "procurar o Eu" (Vin. I. 23; Vis. 393), de "fazer do Eu
vosso: refúgio e vossa candeia" (D. II, 101; III 42; cf. S. III, 143). Estabelece
igualmente uma distinção entre "o Grande Eu" (mah'atta, "Mahãtmã", o
magnânimo), e "o Pequeno eu (app'ãtumo, o pusilânime); entre "o Belo Eu"
e o "eu vilão": o primeiro reprova o segundo quando um êrro foi cometido
(A. 1,57; I, 149; S. v, 88). Enfim, é absolutamente certo que dizer que Buda
"negava um Deus, negava uma Alma, negava a Eternidade" é falso.

Em muitas passagens, diz-se de Buda e outros Arahants , ou Homens


Perfeitos que êles "fizeram realizar o Eu" (bhavit' atto ); fizeram realizar", da
mesma maneira que "uma mãe educa seu filho único"; com efeito esta
forma causativa do verbo "realizar" - é muito incômodo que ela falte em
nossas línguas - tem o sentido de "educar", tratar", cultivar", "servir",
.prover às necessidades de", como qeoapenv". Transformar o Eu é uma
parte indispensável da tarefa que incumbe ao budista, tão indispensável
como sua contraparte negativa, por fim a todo "porvir". Se uma tarefa é
terminada, outra o é ao mesmo tempo, e o fim é atingido. "É assim, diz
Woodsworth, que construímos o ser que somos". Mas o sábio moderno deve
distinguir com grande cuidado o "porvir" - que é um simples metabolismo,
um processo não dirigido de desenvolvimento automático, do "progresso",
do "realizar" que é uma cultura seletiva. O que se "realiza" é unicamente o
eu empírico, composto de corpo e de consciência (vinnãna). Fora da
constituição corporal, a consciência não pode surgir; nossas "habitações de
outrora", isto é, nossas vidas anteriores são compostas dêste gênero, mas
elas "não são minhas", "não são meu Eu" (S. III, 86); a propósito do religioso
que suprimiu nêle as condições que trariam uma mutação renovada de sua
consciência, nos é dito que é um ser cujo Eu se libertou, existente,
plenamente satisfeito, e que sabe que para êle não há mais nascimento,
mais porvir (S. III, 55).

O fim último não é somente atingir os mundos de Brahma ou de tornar um


Brahmã, certamente que é um prodigioso êxito o de se tomar um Brahma,
ou o que é bem mais, a Bahã-Brahmã da presente idade; mas não a mesma
coisa ter-se tornado Brahma, um Buda e Arahant totalmente extinto. A
distinção entre Brahmã e Brahma, transposta no vocabulário cristão, seria
aquela que existe entre Deus e a Divindade; os textos budistas serão
esclarecidos pela citação de proposições análogas tiradas de dois místicos
cristãos entre os maiores e os mais intelectuais. Ei-los:

Mestre Eckhart diz: "Convém aprender o que são Deus e a Divindade, Deus
trabalha, a Divindade não faz trabalho algum. Deus torna-se e não se torna
(wirt und entwirt); êle é a imagem de todo o porvir (werdende); mas a
natureza do Pai não "vem a ser" (unwerdentlich ist) e o Filho é um com ele
neste não porvir (entwerdende). O porvir temporal termina no eterno não-
porvir (Pfeiffer, 497 e 516). Pois-é mais essencial que a alma perca Deus, do
que ela perca as criaturas" (Evans I, 274) se ela deve atingir êsse estado em
que seremos "tão livres como quando não éramos, livres como a Divindade
em sua não-existência", Por que não se fala da Divindade? Porque tudo o
que ela é em si é apenas uma só e mesma coisa, e que nada há a dizer.
Quando retomar ao solo, às profundezas, à fonte da Divindade, ninguém me
perguntará de onde vim ou o que fui" (Pfeiffer 180-181). “Nossa essência
não é aniquilada, embora não devêssemos ter nem conhecimento, nem
amor, nem beatitude: isso se toma como um deserto onde somente reina
"Deus", (27) É por isso que o autor desconhecido do Livro de Conselho
Privado e da Nuvem da Ignorância faz uma distinção entre aquêles que são
chamados à salvação e aquêles que são chamados à perfeição: citando a
escolha de Maria "que tornou a melhor parte, aquela que não lhe será
arrebatada (Livro do Conselho Privado, f. 150 a) êle diz a propósito da vida
contemplativa que "se ela começa neste mundo, ela durará eternamente" e
acrescenta que nessa outra vida "não mais será necessário praticar obras
de caridade nem chorar pela nossa miséria" (Livro do Conselho Privado, cap,
XXI).
[27. A "não-existência" a "fonte" o "deserto" de Mestre Eckhart são análogos
ao Mar dos budistas de que falamos, onde desaparece a diferenciação (cf. a
definição da theosis em Nicolas de Cuse: ablatio omnis alteritatis et
diversitatis) e ao Mar do Amor, a Não-existência de Rümi, onde o Amante se
torna o Amado (Mathnawi, I, 504, 1109; H. 688-690; 1103; III, 4723; VI, 2771
e passim, os comentários de Nicholson)].

Os paralelos dêste gênero ajudarão às vêzes melhor a compreender o


conteúdo do budismo que as citações diretas do cânon búdico: colocam o
.leitor na medida de passar de um vocabulário que êle conhece a uma
linguagem que conhece menos, É quase inútil dizer que para o leitor ou o
erudito europeu que se propõe estudar seriamente uma religião oriental,
um conhecimento amplo da doutrina e do pensamento cristão e seu
ambiente grego, é quase indispensável.

Os dois "eu" se encontram numa dramática oposição quando um dirige


censuras ao outro. "O Eu repreende o eu (attüpi attanam upavadati) quando
se faz o que não se devia fazer (A. I, 57-58); por exemplo, quando o
Bodhisatta mendiga seu alimento pela primeira vez. Os restos pouco
apetitosos que lhe dão enojam-lhe o coração, mas "êle se censura e não se
deixa abater" (J. I, 66), O Eu sabe o que é verdade e o que é falsidade: o eu
Feio não pode dissimular sua má ação ao Belo Eu (A, I, 149), O Eu é pois
nossa -consciência, nosso saber interior, nossa syntêrêsis, o Daimon
socrático "que só ama a Verdade” e que "sempre me reprime do que meu
eu queria fazer", Todos os homens sabem por experiência que há "uma
coisa na alma, como diz Platão, que os convida a beber e uma coisa que
lhes proíbe; uma tem fome e sede, a outra "faz as contas" e cabe a nós
decidir qual das duas será a soberana, a melhor ou a pior. O "Eu" é o
Agathos Daimon; cabe a "mim" obedecer-lhe.

Isto nos leva a considerar a doutrina da "pureza do Daimon” (yakkassa


suddhi), Não nos importemos com o fato que os gênios possam ser
múltiplos, da mesma maneira que outras tradições conhecem uma
multiplicidade de outros espíritos além do Espírito; admitiremos que o
Daimon, por excelência (sansc. yaksha) fôra, a princípio, e era ainda nos
Upanishads, Brahma: êste Brahma que é ao mesmo tempo transcedente, e,
como o "Eu do eu", imanente. Os próprios Sãkyas tinham sido os adoradores
do Yakkha Sãkyavardhana, que muito provavelmente não passa da natureza
"sempre fecunda". No budismo, Buda tão freqüentemente qualificado de
"Tornado Brama" (brama-büta), é também chamado um Yakkha, um
Daimon, do qual falamos de passagem sôbre a "'pureza", Buda é "não-
contaminado (anüpalitto), totalmente "expirado", chegado ao têrmo (attha-
gata, como o predizia o nome que lhe deram, Sidharta), puro (suddho),
imutável (anejo), sem desejo (Sn, 478; cf, M, I, 386,
buddhassa...ãhuneyyassa yakhassa); "Tal é a pureza do Daimon, êle que é o
Descobridor da Verdade tem direito à oferenda"; êle é o Daimon ãhuneyya a
quem se deve apresentar a oferenda do sacrifício (S. I, 32; M. I, 386; Sn.
478). Enquanto que tôdas as existências se mantêm pelo "alimento" (físico
ou mental) (D. III, 211) e com êle se deliciam, pergunta-se "qual é então o
nome dêste Daimon que não encontra prazer no alimento?"' (S. I, 32; cf. Sn.
508). Isto lembra exatamente a pergunta: 'Não me dirás quem é? e a
resposta de Sócrates: Se te dissesse seu nome, tu não o conhecerias"; aliás
na tradição hindu e em muitas outras "Quem?”, é o nome mais apropriado
do Deus que é o "Eu de tôdas as existências", que não veio de parte
alguma, que jamais se tomou alguém. Este "Eu de todos os sêres" é o Sol;
"não o sol que todos podem ver, mas o Sol que poucos conhecem pelo
Espírito (arepassa, isto é, anulpalitto). É essa uma das numerosas razões
para assimilar Buda (brahmabhüta, também chamado "o Olho que está no
mundo" e "cujo nome é verdade") a esta "Luz das luzes", êste "Sol dos
Homens".

O que nos ocupa no momento é a expressão "não contaminado".


Explicitamente ou implicitamente, tanto nos textos búdicos ou prebúdicos
(onde deparamos ainda com o "Sol”, "Lótus único do céu") a alusão
metafórica se refere à pureza do lótus que "não é molhado pela água"
acima da qual flutua. Buda, literalmente "não é maculado pelos contactos
humanos" (Sn. 456; cf. S. IV, 180); não maculado pelo mundo (A. lII, 347)
nem por tôdas as coisas do mundo (A. IV, 71). O que fica assim explícito,
projeta uma luz sôbre a natureza do fim que Buda e outros Homens
Perfeitos procuraram e atingiram. Imagina-se demasiadamente que a noção
de um fim além do bem e do mal é de origem moderna. Ao contrário, ela se
apresenta não somente nos textos hindus, mas também islâmicos e
cristãos, faz parte da diferenciação normal entre a vida ativa e a
contemplativa: a virtude é essencial para a primeira, dispositiva somente
para a segunda, cuja perfeição é precisamente o fim último do homem, isto
é, a contemplação beatífica da Verdade. É uma idéia que é repetida muitas
vêzes nos textos budistas: aquilo de que o Homem Perfeito não é
contaminado, não é somente o mal ou o vício, é também o bem e a virtude.
Muitos textos o dizem em têrmos próprios: "não contaminado, seja pela
virtude, seja pelo vício, o eu rejeitado, pois nenhuma ação é doravante
necessária aqui" (Sn. 790); "aquêle que fugiu dos laços seja da virtude, seja
do vício, que é sem mágoas, ao qual nenhuma poeira adere, aquêle que é
puro, é a êle que chamo um verdadeiro brâmane. (Dh. 412), isto é, um
Arahant. Ainda mais notável é a parábola da balsa: "Abandonai o bem e
com mais razão ainda, o mal; aquêle que atingiu a outra margem não
precisa de balsas" (M. I, 135). Temos uma analogia perfeita na frase de
Santo Agostinho: "Que êle mais se sirva da Lei como meio de conseguir
quando conseguiu" (De spir. et lit. 16) e aquela de Mestre Eckhart: "Atingida
a outra não preciso mais de nau"; o mesmo autor diz também "Olhai a alma
divorciada do que quer que seja... não deixando mais traço nem de vício
nem de virtude".
A “pureza" não se atinge pela fé, nem a audição, nem o conhecimento, nem
a ética, nem a ação: mas ela não se atinge também sem elas (Sn. 389); em
outros têrmos, a formação moral é absolutamente indispensável, mas em si
ela não traz a perfeição. Há regras de conduta estabelecidas para os chefes
de famílias e outras para os religiosos; estas últimas, bem entendido, são
mais severas, mas elas nada têm de excessivo: as torturas do corpo são
severamente condenadas. Os religiosos que tinham cometido uma falta (é
necessário compreender bem que alguns quiseram entrar na Ordem por
razões indignas) podiam ser citados e censurados publicamente diante da
assembléia dos monges, e expulsos no caso de faltas graves. Ao contrário,
os monges-mendicantes não estavam então, mais do que hoje, aliás,
ligados por laços inquebrantáveis; eram livres de regressar à vida familiar
quando o quisessem; no máximo êles se expunham a que lhes censurassem
sua fraqueza.

A prática das virtudes morais pelo chefe de famÍlia ou o discípulo-


medicante, o conduz a renascer num céu mais ou menos elevado. O
primeiro obtém méritos pela sua boa conduta e sobretudo pela sua
generosidade; e a êste propósito deve-se notar que Buda exorta um chefe
de família recentemente convertido, e tornado zelador leigo, a não
abandonar seu antigo hábito de sustentar materialmente uma ordem rival
de religiosos que são portanto heréticos aos olhos de um budista. O
religioso-mendicante, que só possuía suas vestes, sua tigela de esmolas,
seu cântaro e seu bastão, não podia êle ser generoso de seus bens; mas
podia ensinar aos outros, e não se lhe poderia oferecer mais digno presente
que de lhes dar a Lei Eterna. Os laços de família não existiam mais para êle
como obrigações que implicam deveres; era-lhe proibido ocupar-se de
política, participar dos prazeres, das provas, das ocupações das pessoas
que vivem no mundo. Seu dever era devolver o amor pelo ódio àquele que o
insultasse em palavras ou por vias de fato, e pregar as "estadas de Brahma"
(brahma vihãra), os "estados divinos" do Amor, da Piedade, da Ternura e da
Imparcialidade (mettã, karmã, uperkkhã). O primeiro dêstes estados
consiste em fazer resplandecer voluntariamente um amor benevolente para
todos os sêres vivos sem exceção. "Com um coração de Amor, êle
permanece irradiante uma quarta parte, depois um segundo, um terceiro,
um quarto; e assim o vasto mundo inteiro acima, abaixo, de todos os lados
e por tôda a parte, continua a irradiar do coração de Amor abundante, sem
limites, sem máculas" e pensando: "Que todos sejam felizes!" (Sn. 143 sg.).
Aqui a palavra "todos" não designa somente os sêres humanos, mas todos
os sêres do universo sem exceção. A Imparcialidade, ao contrário, é um
estado subjetivo de paciência e de desprendimento, é considerar as coisas
agradáveis ou desagradáveis que vos acontecem, no mesmo espírito que
vós olharíeis representar uma peça: vós assistis às aventuras do herói sem
nela participar. A “libertação do coração" que daí resulta é favorável a um
renascimento último dos mundos de Brahma e à familiaridade, senão
identidade de Brahmã, considerando que a disposição do religioso que nêle
desenvolve êstes estados de espírito sem egoísmo é a mesma que a de
Brahmã. Poder-se-á observar que até aqui é um método exclusivamente
ético, que pressupõe a virtude da inocência (da não-novicidade) (ahimsv, M.
I, 44; S. I, 163; Sn. 309, 368, 515, etc.). É uma palavra que se tomou muito
familiar a nossos contemporâneos, sendo o princípio de "não violência"
preconizada por Gandhi como regra de conduta em tôda a circunstância:
"Depõe teu gáudio”. A educação da vontade precede logicamente à do
intelecto.

Mas êstes métodos éticos que comportam ainda, a noção do eu por


oposição a outrem são apenas uma parte do "caminhar com Deus" (brahma-
cariyam = qewsnuopaeii) ou caminhar com a Lei" (dhamma-caryam); não é
êste o último ponto do caminho; muito resta ainda a fazer. É-nos dito que,
como os religiosos que não são ainda "completamente libertos e que se
gabam de terem chegado ao fim de sua tarefa (A. v, 336; cf. M. I, 477) os
deuses são freqüentemente inclinados a crer, bem falsamente, que sua
situação é imutável, eterna, e que nada mais têm a realizar (A. IV, 336, 355,
378; S. I, 142). E, com efeito, vemos Buda censurar Sãriputta de ter
indicado, a um brâmane que o interrogava, o modo de ter acesso aos
mundos inferiores de Brahma somente quando resta ainda tanto caminho a
percorrer (M. II, 195-196). É constantemente admitido que aquêles que
ainda não obtiveram seu "expirar" total (sansc. parinirvãna) neste mundo,
se todavia êles estão bastante adiantados para "não mais regressar", têm a
faculdade de atingir sua perfeição e assegurar-lhes sua evasão final seja
qual fôr sua situação no mundo: é esta a razão pela qual Buda é o mestre
não somente dos homens, mas também dos deuses.

Qual é pois a tarefa que resta a cumprir aos religiosos e àqueles que
atingiram uma vida (susceptível de durar idades) nos céus do Empíreo, sem
pertencer ainda ao número de Arahants cuja "tarefa foi cumprida"? Não se
trata de obter um estado superior pelas boas obras; o fruto das obras já foi
adquirido: trata-se daí por diante unicamente da vida e contemplação
(jhuna) O jhãna (sansc. dhyana, chin, tch' an, jap. zen) corresponde quase
exatamente ao segundo têrmo da série: "Consideração, Contemplação e
Êxtase" na ascese ocidental; a sahudhi, literalmente "composição" ou
"síntese", como a dos raios no centro do círculo (28), corresponde ao Êxtase
e pressupõe a consumação do jhãna em tôdas as etapas, O jhãna, é a
realização ativa e desejada de estados de ser diversos daquele no qual o
contemplativo se encontra normalmente; a fôrça do têrmo é totalmente
desconhecida pelos sábios que a denominam uma "meditação" ou, o que é
ainda mais falso, um "devaneio". A contemplação é uma disciplina metal
das mais árduas, que exige uma longa prática: não é uma variedade de
sonho no estado de vigília; "nada aí lembra o transe, mas muito mais uma
vitalidade exaltada" (P. T, S. Pãli Dictionary, s. v. jhãna) , O adepto pode
passar na hierarquia dos estados de um a outro, a sua vontade, e a nela
tomar a descer (D. II, 71, 156); êste domínio absoluto dos estados
contemplativos distingue claramente o yoga hindu de tôda a experiência
mística que é apenas passiva e adventícia. Os estados contemplativos
constituem uma espécie de escala que se pode ascender de estado de ser
ou "níveis" inferiores, aos superiores; mas a finalidade última da libertação
se encontra ainda além.
[28. No simbolismo arquitetural, ao qual se refere freqüentemente, a
concentração dos poderes psíquicos em sua origem, empresta,
freqüentemente, a imagem dos arqueiros que se reúnem no acabamento do
zimbório, e êste acabamento (arrendado) é a "porta do sol" pela qual se
escapa de um mundo condicionado qualquer, que representa o espaço
interior (a "gruta" de Platão) do edifício].
Os jhãnas são em número de quatro, acessíveis tanto aos leigos quanto aos
monges; com os quatro arupa-jhãnas (estados "sem forma", completamente
imateriais), é uma série de oito etapas da libertação (vimokkha, D. II 69-71,
112, 156. e passim). No primeiro jhãna, é preciso dar ao espírito "uma única
direção" e voltar a atenção sôbre qualquer suporte da contemplação que
seja de uma natureza apropriada ao temperamento e à constituição do
discípulo; é geralmente seu mestre que o escolhe. No segundo, o praticante
vê ainda a forma exterior a êle, mas não mais tem consciência da sua
própria; é uma experiência extática. No terceiro, o êxtase se desvanece, e
só resta uma consciência da infinidade do poder de discriminação (vinnãna).
No sexto domina a sensação que "nada existe" (n'atthi kimaci). No sétimo,
não há mais discriminação, e é um estado onde não há nem consciência
nem inconsciência (sannã). No oitavo, há a interrupção de tôda a
consciência ou sensação (D. II, 68-71, 112, 156). Quando um religioso se
tornou mestre dêstes oito graus da libertação em sua ordem ascendente,
em sua ordem descendente, e numa e outra ordem consecutivamente, de
tal sorte que se pode submergir em qualquer um dêstes estados, ou dêles
sair à vontade e durante o tempo que desejar; quando pela extirpação dos
fluxos êle penetra nesta liberdade da vontade (cetto vimutti) e nesta
liberdade intelectual (pannã - vimutti) da qual êle tem agora um
conhecimento direto e uma prática efetiva desde agora, então se diz dêste
religioso que êle é "livre nos dois sentidos", e não existe liberdade, nos dois
sentidos, diversa nem mais alta que aquela (D. II, 71; cf. Sn. 734-753).

Mas é necessário compreender bem claramente que a obtenção dêste


completo domínio, permitindo percorrer a hierarquia dos estados de
existência ou céus superpostos, não é um fim em si, mas um meio de obter
a libertação de todos os "estados"; pois todos são contingentes, todos têm
uma origem e um fim; por pouco que se conheça sua natureza verdadeira,
seus prazeres e suas dores, e o meio de dêles se evadir (nissaranam) ,
ninguém com êle se deliciará nem nêle desejará permanecer para sempre,
fôsse mesmo no estado mais alto (D. II, 79). Seja qual fôr a nossa situação
na hierarquia dos mundos, sempre restar-nos-á uma outra margem a
atingir: é somente para o ser completamente liberto que nada mais resta a
cumprir. Do ponto de vista do summum bonum; alcançar um dos céus não
vale muito mais que estar ainda neste mundo; a grande obra não está ainda
realizada. É para explicar isso que Buda expõe a doutrina do Caminho do
Meio: Jajjhena tathagato dhammam deseti.

Esta doutrina importantíssima, que é platônica, aristotélica e escolástica,


tanto como bramânica e budista, tem tantas aplicações quantas alternativas
possui; se se escolhe entre êste mundo e qualquer outro que se opõe como
as "orlas" de um mar, êste é apenas um caso particular.
O verdadeiro "habitante do fim do mundo (lok' anta-gu) não está ligado à
existência neste mundo nem a nenhum outro, por mais alto que seja; pois
todos os sêres (sattã), os deuses com os homens, estão presos nas
correntes da morte" (S. I, 97, 105). Há sempre dois extremos (antã); é
perante o extremista (anta-g-gahika) que dá um valor absoluto a um ou
outro, que Buda propõe o que é mediano; o verdadeiro “Caminhar com
Deus" (brahmacariya) é um Caminho do Meio. Desde o tempo em que era
Bodhisatta, após ter sido criado na abundância, depois de ter mortificado a
carne quase até morrer, o Mestre compreendera que nem um nem outro
dêstes extremos o conduzirá ao conhecimento que procurava o que obteve
seguindo o Caminho de Meio. (Vin. I, 10). Da mesma maneira a Pureza não
se obtém pela virtude, como também sem ela (Sn. 839); trata-se de ser
puro não somente do vicio mas também da virtude. O mesmo se dá com
tôdas as “teorias" (ditthi), tôdas as afirmações e negações: é (é o êrro
eternalista) e não é (é o êrro aniquilacionista) não são nem uma nem outra
das definições exatas da realidade última (S. II,19-20,117): como para
Bventhins, a "fé é uma média entre heresias contrárias". Isto não quer dizer
que o Caminho do Meio tenha uma dimensão, se se quisesse localizá-Io no
espaço, o fim não estaria aqui, nem além, entre os dois (Ud. 8) e não é,
"contando seus passos" mas em si mesmo que se chega ao fim do mundo
(8. I, ó1-ó2; A. 11, 48-49; 8. IV, 94). O tempo é encarado da mesma
maneira, e é talvez êste o lado mais interessante do principio atomista. A
existência (isto é, a origem e a dissolução) de tôdas as coisas, é
momentânea (khamika, Vis. I, 230, 239; Dpvs. I, 16) como ela o era para
Heráclito (cf. Plutarco, Moralia, 392 a. C.). Este in stant e (khana) no qual
todas as coisas surgem, existem o cessam de ser simultaneamente, é êste
presente sem duração que separa o passado do futuro e dá a ambos uma
significação. O tempo, no seio do qual sobrevém a mutação, não é nada
mais que a sucessão ou fluxo de instantes análogos, cada um dos quais
sendo em si fora do tempo (29) é nosso Caminho do Meio (A. IV, 137). A
vida, tal como a conhecemos empiricamente, é o campo das ações
transitórias, e são elas, precisamente, das quais herdamos as
conseqüências. Por outro lado, as atividades imanentes, permanecendo
confinadas no agente, não envolvem êste nos acontecimentos exteriores, e,
pela mesma razão, permanecem inacessíveis à observação. Várias
expressões budistas por ex. thit'ato (S.III, 55; Sn. 519, cf. 920) que se opõe
ao caráter transitório aniccam de tudo o que é não- ipseidade, implicam a
imobilidade do Eu liberto. Daí resulta que a vida transcendente, supralógica,
do Eu liberto, está contida no Eu. Os instantes tomados em si mesmos são
apenas um só; sua sucessão aparente é convencional.
[29. É verdade que os "homens têm o sentimento de que o que não pode
ser formulado em função do tempo não pode ter significação", mas "a noção
de um ser imutável e estático deve-se entender mais como indicando um
processo de uma vivacidade tão intensa que ele compreende ao mesmo
tempo o princípio e o fim" (W. H. Sheldon, The Modern Schoolman, XXI,
133). "Mais a vida do eu se identifica com a vida do não-eu (isto é, o Eu),
mais se vive intensamente” (Abd - el- Hãidi no Véu de lsis, jan. 1934)].

O 'Instante" sem duração conseqüentemente, é nossa mais bela ocasião: -


"é hoje o dia da salvação" - e vemos Buda dirigir elogios aos religiosos que
"aproveitaram seu instante", e censurar os que o deixaram escapar (S. IV
126; Sn. 333). Os instantes, de fato, não escapam; mas quem consegue
segurar um, escapa de uma só vez à sua sucessão; para o Arahant que
"expirou", o Tempo não mais existe. Seja qual fôr o caso, é pelo princípio de
causalidade que Buda ensina o Caminho do Meio: sejam quais forem, os
dois extremos, é o desejo, literalmente a "sêde" (tanhã) que "semeia" o ser
para um porvir renovado; é somen
te pensando no Meio que se evita ser contaminado por um extremo ou por
outro (A. III, 399-401; Sn. 1042). Platão, igualmente, diz que é segurando
bem o fio de ouro da Lei comum que o boneco humano evitará os puxões
contrários e desordenados que nos puxam para cá e para lá, na direção das
boas ou más ações, determinadas pelos nossos desejos (Das Leis 644).
Não é sem razão que o religioso é tratado de operário (semana,
literalmente, "aquêle que se esforça", o exato equivalente semântico de
“asceta"), êle não conhecerá repouso antes de se tomar aquêle que (fêz o
que tinha a fazer" (kata- karaniyo). É necessário que seja um homem senhor
de sua i vontade e de seu pensamento, não seu joguête. Aquêle que Buda
louva como "iluminador” da floresta onde vive na solidão, é o religioso que,
regressando de sua viagem, de sua mendicidade, retoma ao seu assento de
meditação, resolvido a não se levantar antes de se ter libertado dos fluxos.
Para obter o que não foi ainda atingido, para verificar o que não foi ainda
verificado, o religioso que abandonou o mundo por pura fé, que é ainda um
discípulo, deve dar prova de virilidade, de heroísmo (viriyam - andreia -
virtus) e tomar a mesma resolução do próprio Bodhisatta. "'Possa eu só
conservar a pele, os tendões e os ossos, enquanto minha carne e meu
sangue secarem, em vez de me conceder um descanso na prática da
virilidade antes de ter obtido o que se pode obter pela paciência humana, a
virilidade e o progresso perseverante" (S. ll, 28; M. I, 481; A. I, 50; J. I, 70).
"Eu me tornarei diferente da substância que constitui um mundo, eu
extirparei a noção de "eu": e do "meu", eu terei o domínio perfeito da gnose
que não se comunica, eu verei claramente a causa e origem causal de tôdas
as coisas"; tais são as intenções do religioso.

Como vimos, o desígnio original e fundamental (attha) do Bodhisatta era


obter a vitória sôbre a morte, e com efeito êle venceu a morte durante a
noite do Grande Despertar; em seguida, ensinando a Lei Eterna, êle abriu as
portas da imortalidade a outros. Podemos pôr à prova a eficácia do
"Caminhar com Brahma" (que o religioso realiza de conformidade com seu
ensinamento) perguntando-nos como o Arahant considera a morte de outro
ou aguarda a sua própria. No que concerne à morte de outro, faz parte de
sua disciplina estar "atento à morte", refletir no fato de que todos os sêres
sem exceção, mesmo os deuses do mundo de Brahma, são, no fim de
contas, mortais; não perdendo nunca de vista esta idéia, o religioso
permanece impassível mesmo diante da morte de Buda, pois sabe que a
corrupção e a dissolução são inerentes a todos os compostos: somente os
noviços e os deuses inferiores choram e se lamentam quando "O Olho do
Mundo" desaparece. A Índia repetia há muito tempo que a imortalidade do
corpo é coisa impossível; portanto o Arahant sabe muito bem que sua hora
virá. O homem mediano, ignorante, "se lamenta, esmorece, chora e geme"
quando o fim se aproxima; não o discípulo ariano que extingue os fogos do
eu; sabe que a morte é o fim inelutável de todos os sêres que nasceram; é
para êle um axioma, e espera a morte perguntando-se somente "como fazer
o melhor uso de minha fôrça no acontecimento que se aproximar (A. III, 56).
Estando já morto para tudo o que é suscetível de morrer, espera. com
perfeita calma a. dissolução do vínculo temporal; pode dizer: Não desejo a
Vida e não estou Impaciente para morrer. Espero minha hora como um
servidor espera seus salários; despojar-me-ei de meu corpo enfim,
perciente, refletido" (Th. I, 606, 1002). Mesmo se o discípulo ariano - seja
êle religioso ou ainda chefe de família - não terminou de fazer tudo o que
tinha a fazer, tem ao menos a segurança que, voltando à existência alhures,
segundo seus méritos, ser-lhe-á possível, também, lá, trabalhar está no seu
aperfeiçoamento. As palavras "O tumba, onde está tua vitória, ó morte,
onde está teu aguilhão?", poderiam ter saído dos lábios de Buda ou de
qualquer verdadeiro budista. Para êle, não mais porvir, não mais
sofrimentos; se fica ainda a sofrer, não poderia ser por muito tempo, pois já
está adiantado na longa estrada que leva ao Nirvâna, e -em verdade, êle em
breve atingirá o seu término".

. O Jainismo
O jainismo teria sido revelado ao gênero humano por uma sucessão de
Mestres, os Tirtakharas, ou santos, que conseguiram passar, como que a
vau, o rio das reencarnações. Mahavira é o vigésimo quarto e último da
lista. A ele se atribui a fundação da seita na sua forma atual. Segundo a
tradição, Mahavira viveu de 599 a 527 a. C. Tendo renunciado ao mundo
com a idade de 18 anos, começou uma carreira de penitência. Vinte anos
depois, recebeu a "iluminação". Assumiu, então, a qualidade de profeta e o
título de Jaina ou "conquistador espiritual". Ensinou durante trinta anos e
organizou os quadros da seita. Seus monges e suas religiosas são, antes de
tudo, ascetas, as quais, através das penitências as mais diversas,
encaminham-se para a penitência suprema: a morte, ou, mais exatamente,
o suicídio por inanição, que os põe de posse da libertação. Ateus, não oram
nem oferecem sacrifícios; anapsiquistas, vêem almas até na matéria;
atomistas, afirmam a impermanência das substâncias compostas de átomos
qualitativamente semelhantes. Discute-se ainda se eles admitiram a
impermanência absoluta de tudo em face da afirmação hindu da
imutabilidade do Brahman.
Desobrigados de interpretar os livros sagrados dos hindus, eles trabalharam
em outros setores. A dialética, em primeiro lugar, na qual se esforçam para
demonstrar a incapacidade de toda definição para alcançar a realidade de
maneira adequada. A psicologia, em seguida e principalmente, em que
algumas de suas análises das faltas e dos meios de romper os grilhões do
pecado não deixam de ter profundeza. A prática monástica de uma espécie
de exame de consciência diário (comum aos leigos, se bem que mais
espaçada) abriu aos jains, reconhecidamente, vastos horizontes sobre as
molas da alma humana. Dentre as virtudes que eles sempre encareceram, a
Ahimsa, ou não-violência, vem em primeiro lugar. Ela vai ser levada por eles
ao excesso. Exemplo: o véu que levam no rosto para filtrar um eventual
mosquito ou, melhor, para não causar dano aos seres microscópicos e vivos
que se encontram no ar. Os jains conheceram dias de triunfo e levaram seus
monumentos até o sul do subcontinente. Mas quando o hinduísmo se
reorganizou para reconquistar o terreno perdido, as discussões teológicas
muita vez terminaram pelo extermínio dos jains: o paredão oriental do
grande templo de Madura conservou para nós a lembrança desses horrores.
Os jains são aí representados como vítimas de torturas desumanas,
empalados, cortados em pedaços. Oito mil deles morreram nos arredores da
cidade. Mas o hinduísmo se encontrava também diante de um outro
adversário de peso, nascido desde o começo da reforma de Mahavira: o
budismo.

in Gathier, E. O Pensamento Hindu. Paris: Seuil, 1960.

http://indologia.blogspot.com/2008/04/o-jainismo.html

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