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Público • Sexta-feira 9 Abril 2010 • 39

Se não se inventou substituto para o jornalismo, a produção de informação tem de saber viver num mundo em mudança

Do iPad na Quinta Avenida ao “projectista” da Guarda

O
SPENCER PLATT/GETTY IMAGES/AFP
que há de comum entre a sofisticada loja
da Apple na Quinta Avenida, em Nova
Iorque, e um tosco armazém na aldeia
de Faia, concelho da Guarda, construído
quase no meio da rua? Nada – e ao mes-
mo tempo tudo aquilo de que depende o futuro do
jornalismo. Deste lado e do outro do Atlântico.
José No último sábado Nova Iorque acordou com imen-
Manuel sas filas de ansiosos clientes da Apple que queriam
Fernandes ser os primeiros a comprar o novo iPad – e uma das
mais longas formou-se na Quinta Avenida. Horas
Extremo depois começaram a surgir nos blogues e nos sites
ocidental os primeiros comentários à mais recente criação
de Steve Jobs. A latitude das reacções não podia
ser maior: desde os que defendiam tratar-se de um
gadget sem utilidade alguma aos que viam no iPad
potencial para acabar com o mercado dos compu-
tadores portáteis ou, mais importante ainda, para
salvar da morte lenta os grandes órgãos de informa-
ção, sobretudo os jornais.
Veremos. Mas algo é inegável: a ansiedade com
que os geeks da Apple esperavam pelo iPad é em tudo
semelhante à ansiedade com que os profissionais da
informação esperam pelo momento em que se acen-
da uma luz ao fundo do túnel da crise que vivem. Só
que a dos geeks foi mais fácil de satisfazer…

A
deus, velhos leitores
Os dilemas da indústria dos media são
bem complexos e, esta semana, uma tro-
ca de opiniões entre dois blogers (André Mesmo imaginando que a publicidade vai migrar regressar a informação ao tempo em que os jorna-
Abrantes Amaral de O Insurgente e Luís para a Internet – o que ainda não sucedeu: estima-se listas a controlavam por esta ser unidireccional, ao
Naves de O Albergue Espanhol) ajudou a situar o que o investimento publicitário na Net corresponda contrário do que passou a suceder com a Web 2.0,
problema. Sobretudo porque André Abrantes Ama- a menos de metade do que deveria ser se fosse con- em que os consumidores passaram a ser também
ral, um advogado trintão, foi sincero: não compra siderado o tempo que as pessoas estão a utilizá-la emissores de informação. Por isso escreve que o
jornais portugueses há cinco anos pois substituiu- por comparação com o tempo que gastam a ler jor- iPad é um aparelho “retrógrado” que quer “colocar
os pela edição online do WSJ (30 nais em papel ou a ver televisão –, ficariam sempre os consumidores de novo apenas na plateia”.
Para muitos, o iPad pode cêntimos/dia) e pela leitura online a faltar as receitas da venda em banca. De novo, veremos. Algo, contudo, devia ser in-

Q
salvar os jornais e, com do que lhe interessa nos sites por- discutível, e vem muito bem explicado no texto The
tugueses. Quanto à opinião, disse uem pagará pelo jornalismo? Price of Journalism em que o Times justiça a opção
eles, o jornalismo. Para confiar mais na blogosfera, onde Ora é precisamente aqui que entra o iPad por conteúdos pagos: não há jornalismo de qualida-
outros é um retrocesso, pois encontra “mais diversidade” e gen-
te que pensa “pela sua cabeça”.
(assim como outros e-readers, como Kin-
dle da Amazon). A grande novidade des-
de sem recursos dedicados e profissionais a tempo
inteiro. Menos jornalistas traduz-se numa menor di-
pode voltar a colocar os Não há nada de novo na confis- te aparelho é que, mesmo permitindo versidade e numa inferior qualidade da informação,
são, apenas o que muitos profis- uma navegação convencional na Inter- e a verdade é que, como se notava recentemente na
leitores na plateia e não sionais se recusam a ver: há cada net, privilegia a utilização de aplicações dedicadas, à The Economist, se o número de jornalistas acredita-
no palco das notícias vez menos leitores das edições em semelhança do iPhone. Muitos órgãos de informação dos junto da União Europeia em Bruxelas diminuiu
papel entre os que têm menos de já desenvolveram essas aplicações e, lendo as recen- de mais de 1300 em 2005 para 752, isso não resultou
30, 35 anos. E menos ainda quem pague pelo seu sões, percebe-se que são vários os caminhos a serem de qualquer alergia aos eternos céus cinzentos da
jornal nessas faixas etárias. testados. Jornais como o New York Times ou o Wall capital belga mas de os órgãos de informação terem
A alusão à importância da opinião também é sig- Street Journal optaram por criar a aparência de um deixado de poder pagar a tantos correspondentes.

U
nificativa. Não só por a procurar nos blogues – onde jornal convencional. Já a BBC ou a Associated Press
é mais fácil entrar do que nas colunas da imprensa seguiram por um caminho intermédio entre o design m mundo composto de mudança
escrita –, mas por a lógica de leitura na Internet ser habitual de uma página Web e modelos que permi- Ninguém pode, com honestidade, adi-
muito diferente da resultante do folhear de um jor- tem tirar partido das funcionalidades do iPad. vinhar em que proporções circulará a
nal. Se um texto se refere a outro texto, por exemplo, A esperança dos editores é conseguirem voltar informação quer nos canais tradicionais,
há sempre uma hiperligação que nos permite com- a cobrar algum dinheiro pelos conteúdos informa- quer em novos canais como os smartpho-
parar argumentos ou verificar alegações. Também é tivos, quer através de assinaturas, quer através de nes e o iPad, quer nos canais informais das redes
possível nem sequer procurar, pois as colunas prefe- micropagamentos que plataformas como as dispo- sociais, pelo que não há alternativa senão procurar
ridas podem chegar-nos por email, surgirem-nos na nibilizadas pela Apple (via iTunes) ou pela Amazon estar atento aos mais pequenos sinais de mudança
página de entrada do Facebook ou aparecerem-nos tornam muito mais simples de concretizar. O preço e às inovações que chegam de todo o lado. Mas pa-
no Twitter. O que significa que também as podemos a que disponibilizariam essas assinaturas poderia ra quem se alimenta, se veste e se desloca graças
ler num telemóvel se este for um smartphone. ser muito mais baixo do que na edição em papel às receitas geradas por todos os que necessitam de
Há cada vez mais leitores que preferem seleccionar (não é preciso imprimir nem distribuir…) e, como as informação, é bom não esquecer que ainda não se
a informação em vez de confiarem na selecção dos notícia são actualizadas ao longo do dia e se oferece inventou um substituto para o jornalismo. E que sem
jornalistas, e que fazem circular os artigos que acham mais do que o papel (pois haverá som e imagem), empresas capazes de suportarem o custo de uma in-
mais interessantes nas suas comunidades virtuais. É acabaria por convencer os consumidores que não vestigação de meses, como a que José António Cerejo
muito difícil imaginar que esses leitores algum dia podem, indefinidamente, aceder a bom jornalismo fez sobre os projectos de José Sócrates na Guarda,
fiquem satisfeitos se comprarem apenas um jornal, sem pagarem nada. É essa a aposta de Rupert Mur- não é só o jornalismo que perde, é a democracia
ou que optem por trazer metade do quiosque para doch, actualmente o maior empresário do sector, plural e competitiva que fica mais pobre.
casa. Mais: a grande, a terrível dúvida, é a de saber que vai começar a cobrar no site do mítico The Ti- É o iPad parte da solução? Se for, estamos a viver
se estes leitores estarão dispostos a pagar pela infor- mes. E sem esperar pelo iPad. um novo “momento Gutenberg”. Jornalista
mação a que hoje acedem de forma gratuita. Só que os hábitos podem já ter mudado demasiado
Claro que isto coloca terríveis problemas a uma para permitir o que alguns vêem como uma “marcha P.S. – Por lapso referi a semana passada que o Papa
indústria cujo modelo de negócio se baseia nas re- atrás”. É o caso de Jeff Jarvis, do Business Insider, aceitara a demissão do principal responsável da Igreja
ceitas da venda em banca e da venda de publicidade. que considera que o modelo do iPad procura fazer irlandesa, quando aceitou a de um bispo.

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