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AUTOCONHECIMENTO

© JUPITERIMAGES
s alegorias mais

A obscuras freqüen-
temente escondem
as verdades mais
simples. A bagagem metafísica
e, por vezes, esotérica a que
aludimos nestas poucas pági-
Um
nas não deve fazer crer que a
espiritualidade seja algo
complexo. De fato, ela pode sê-
lo em seus desenvolvimentos,
trabalho
sobre si
mas não em seus princípios.
A reflexão se nutre da
contemplação. Sem esse
equilíbrio salvador, o intelecto
se põe a retraçar laboriosa-
mente um caminho já percor-
rido mil vezes. Tomamos como
prova os grandes inventores
das ciências e das letras, que,
sem exceção digna de nota,
mesmo
dedicavam-se a uma forma ou ■ Por PHILIPPE LAURENT, FRC*

outra de meditação, ao lado ou


no centro de sua atividade
intelectual. Certo físico genial
se entregava diariamente à
jardinagem; um outro gostava
de se isolar do mundo ou de
“mergulhar” em longos pas-
seios campestres, “de cara para
as estrelas”. De fato, a idéia
inovadora só pode eclodir
numa terra virgem. O raciocí-
nio vem apenas fortalecer o
germe da inspiração, forne-
cendo-lhe matéria propícia ao
seu desenvolvimento. Mas não
pode substituir o movimento
criativo, assim como a cria não
pode tomar o lugar do genitor.
O problema é que o mundo
moderno privilegiou quase
exclusivamente, no currículo
escolar, a faculdade do racio-
cínio em detrimento da facul-

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dade inventiva. Desse ponto de vista, o lugar Há muitas décadas, as diversas formas de
preponderante dado à matemática, matéria ioga e meditação, inspiradas geralmente em
abstrata e discursiva, bem pouco ligada à técnicas transcendentais orientais, difun-
sensibilidade do aluno e às suas aspirações diram-se largamente no Ocidente. Algumas
de vida (ao menos nas formas de que se pessoas costumavam ironizar essas viagens
reveste seu ensinamento), é particularmente imaginárias, perfumadas à “Patchouli”, mas
significativo. o fenômeno está agora muito solidamente
Isso, evidentemente, não quer dizer que a enraizado em nossas culturas para que se
razão deva ser considerada como faculdade possa ver nele apenas um modismo ou um
secundária no homem. Ela é, sem dúvida, a substituto espiritual.
conquista mais nobre do ser humano e aquilo Para se chegar à união íntima com o
que certamente o diferencia do simples animal. princípio divino, as grandes Tradições desen-
Devemos, contudo, fazer uma cuidadosa volveram sistemas que compartilham de
distinção entre a agitação mental e a verda- certas práticas fundamentais. Prece, medita-
deira reflexão. Existe, na verdade, a mesma ção, contemplação, são as pedras funda-
distância que há entre a tagarelice inútil e o mentais da construção mística.
diálogo construtivo. Pois bem, é fácil cons- Sob a pululação de ritos e costumes,
tatar que nosso mundo podemos sempre distinguir
“moderno” prefere a tagare- essas técnicas de base, que
lice ao diálogo, a ponto de
“…a chave de toda são, ao mesmo tempo, as
os atuais “debates” terem se sabedoria reside no mais simples e espontâneas
transformado em trocas de das formas religiosas e o
invectivas, conseqüência silêncio, e o silêncio resultado de séculos de
lógica da perda da capacidade
de ouvir. O outro não é mais
abre a porta do prática perseverante.
De modo geral, distin-
considerado como interlo- Espírito ao Amor guimos três formas de
cutor, mas como um empe- prece: a prece de inter-
cilho ao monólogo livre!
universal.” cessão, a prece de gratidão
“Silenciar-se” não é e a prece de louvor. A
simplesmente calar, mas cessar a tagarelice. primeira consiste em pedir a realização de
Silenciar-se é também, e mais profunda- um desejo, para si ou para outrem. Este
mente, disciplinar a mente. É pensar em tipo foi de tal forma privilegiado ao longo
apenas uma coisa de cada vez, e numa coisa dos tempos que acabou se tornando sinô-
que valha a pena. É nutrir-se de uma motiva- nimo da própria prece, erroneamente. A
ção nobre e se dirigir, sem distrações, para segunda consiste em agradecer depois da
esse objetivo. obtenção de um benefício atribuído à
Para entrarmos no silêncio, não é neces- intervenção do divino. A terceira, talvez a
sário nos isolarmos numa caverna ou num mais pura de todas, corresponde a uma
monastério. Bem no meio dos ruídos da comunhão com Deus sem segundas inten-
cidade, em nossas ocupações mais banais, ções, rejubilando-se na contemplação.
podemos, por alguns instantes, nos consa- Qualquer que seja sua forma, a prece une
grar a essa prática essencial. Para o religioso, o homem ao Deus que ele é capaz de compre-
esse exercício naturalmente tomará a forma ender e amar. É a manifestação natural de
de uma prece. Para todos os demais, um sua aspiração àquilo que está além dele, à
esforço de síntese em prol de uma idéia-força. transcendência do seu ego e das limitações

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humanas. Expressando-se em palavras ou em nais, não apresentam analogias extrema-


silêncio, vibrando no fundo do ser, a prece mente problemáticas com as técnicas de
nos transporta simultaneamente para fora da meditação oriental.
esfera mental e para o mais interno centro de A partir do século IV, no Oriente Próxi-
nossa natureza. mo, os monges cristãos, que mais tarde
A prece, evidentemente, pressupõe uma foram chamados de “Padres do Deserto”,
meta. Centro da aspiração espiritual, Deus desenvolveram técnicas de meditação desti-
representa, para seu adorador, o ponto nadas a facilitar a experiência íntima de
supremo para onde convergem os ideais mais Deus, por intermédio da prece do coração.
elevados da humanidade. Um budista falaria Suas instruções, para uso dos monges, nos
de figura de meditação, de divindade ou de fornecem uma prova viva de sua experiência
símbolo (necessariamente advindo do espí- com a meditação.
rito). Um teísta daria uma forma mais “A prece é um diálogo da inteligência com
“concreta”. Mas, fundamentalmente, o Deus: que estado lhe é então necessário a fim de
processo é idêntico. Os andamentos intelec- se preparar definitivamente para ir ao encontro de
tuais e teológicos são diferentes, mas a seu Senhor e conversar com Ele sem nenhum
experiência é semelhante. intermediário?”.
Qualquer que seja ele, o objeto da prece “Em tua prece, busca unicamente a justiça e o
desperta o entusiasmo… reino, isto é, a virtude e a sabedoria, e o resto te
O Ocidente, porém, carece terrivelmente será dado em acréscimo”.
de espírito devocional. Para se devotar a um “Durante a prece, esforça-te em manter teu
ser, a uma causa ou a um ideal, é preciso intelecto surdo e mudo: assim poderás orar”.
esquecer-se de si mesmo. E nós somos “Tua inteligência divaga durante a prece? É
preocupados demais com nossa própria porque ela ainda não sabe orar, porque ainda está
pessoa, para nos ocuparmos do resto. Quan- no mundo e ocupada em embelezar a tenda
tos, mesmo grandes espíritos, ainda sofrem exterior”.
por não verem esse céu… “Quando tua inteligência, num ardente amor
O devoto não analisa, contenta-se em a Deus, sai pouco a pouco, por assim dizer, de
viver sua relação pessoal com o sagrado. O tua carne, rejeita todos os pensamentos que
resto é contingente e acessório. Em que advêm dos sentidos, da memória e do tempera-
outro lugar se pode encontrar essa virgin- mento, e se enche de respeito e alegria, é então
dade do espírito senão na experiência que que podes ter certeza de que estás perto das
une ao transcendente? fronteiras da prece”.
Em nossa cultura, a meditação conheceu “Não representes a Divindade em ti enquanto
diversas acepções, sendo a mais divulgada oras, nem deixes tua inteligência aceitar a
aquela que significa a concentração num impressão de uma forma qualquer; mantém-te
único objeto de reflexão. No Oriente, enten- imaterial ante o Imaterial e compreenderás”.
de-se por esse termo, de forma mais geral, o “Não poderás possuir a prece pura se estiveres
fim de toda tensão nervosa ou mental e o estorvado por coisas materiais e por constantes
abandono à calma do Espírito, que abre a inquietações, pois a prece é a ausência dos
porta para a supraconsciência. pensamentos”.
Esse tema foi abundantemente tratado – Evagre, o Pontífice

pelos filósofos do hinduísmo e do budismo.


Diz-se que a tradição cristã (entre outras) A questão é, portanto, silenciar a mente.
desenvolveu aspectos que, para serem origi- Só conseguimos deixar penetrar em nós a luz

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divina quando aquietamos, ao mesmo tempo, mento do pensar e do sentir. Dessa lucidez nasce
a percepção sensorial e o discurso analítico o silêncio. […].
que a interpreta permanentemente. A mente A meditação é um estado mental que consi-
humana é como a água do oceano: agitada, só dera com atenção completa cada coisa em sua
consegue disseminar a confusão e a dispersão totalidade, não apenas em algumas de suas partes.
de ventos contrários, bem como a angústia da E ninguém pode ensiná-lo a ser atento. Se algum
incerteza sobre a rota a seguir. Quando a sistema o ensinasse a maneira de ser atento, seria
tempestade se apazigua e desaparecem as ao sistema que você ficaria atento, e isto ainda
vagas, a água serena se torna um espelho não seria a atenção.
onde pode se refletir a glória do sol pleno. A meditação é uma das maiores artes na vida,
A mente enfim pacificada, o Divino pode talvez a “arte suprema”, e não se pode aprendê-la
então se revelar. Ao mesmo tempo, estamos com ninguém: esta é a sua beleza. Não existe
totalmente abertos ao mundo e ao nosso uma técnica, logo, nenhuma autoridade. Quando
ambiente. No estado meditativo, mais você aprender a se conhecer, observe-se, observe o
nenhuma fronteira existe entre nós e “os modo como caminha, como come, o que diz, a
outros”. As barreiras mentais se esfumam e, bisbilhotice, a raiva, a inveja – estar consciente
ao mesmo tempo e quase paradoxalmente, de todas essas coisas em você, sem tecer julga-
nos tornamos incrivelmente conscientes do mentos, faz parte da meditação.
que nos rodeia. O tempo fica como que Assim, a meditação poderá ter lugar quando
dilatado e cada instante assume uma dimen- você estiver sentado num ônibus, ou caminhando
são enorme. É como se nada do que acontece num bosque cheio de luzes e sombras, ou enquan-
no universo nos seja desconhecido. Essa to estiver ouvindo o canto dos pássaros, ou con-
tomada de consciência é o próprio coração da templando o rosto do ser amado ou de seu filho.
experiência meditativa, o êxtase místico. Compreenda que aquilo que a meditação é
O Oriente desenvolveu abundantemente implica o amor: o amor que não é o produto de
esses temas. Não poderíamos mencionar sistemas, de hábitos, de um método. O amor não
todos os escritos religiosos que se referem a pode ser cultivado pelo pensamento; mas pode –
eles. Preferimos citar um autor “laico”, talvez – nascer em um silêncio completo, no qual
Krishnamurti, com cujo pensamento concor- aquele que medita está inteiramente absorto. A
damos inteiramente no que tange ao ponto mente só pode estar silenciosa quando compreende
específico da “coisa espiritual”. seu próprio movimento como um pensar e um
“A meditação exige uma mente espantosa- sentir, e, para compreendê-lo, não deve condenar
mente ágil; é uma compreensão da totalidade da nada durante sua observação”.
vida, na qual cessou toda fragmentação, e não – Trecho de “Se Libérer du Connu”, Stock, 1970.

uma vontade dirigindo o pensamento. Quando


este último é dirigido, provoca um conflito na Sim, a chave de toda sabedoria reside no
mente, mas quando se compreende sua estrutura e silêncio, e o silêncio abre a porta do Espírito
sua origem, […] ele pára de intervir. Essa ao Amor universal. Depois da expansão do
compreensão da estrutura do pensamento é sua pensamento aos limites do imaginável
própria disciplina, que é meditação. metafísico, a luz da Verdade irrompe nossas
A meditação consiste em estar consciente de brumas humanas, na humildade do silêncio
cada pensamento, de cada sentimento; em nunca e da cessação de si. ■
julgá-los como bons ou maus, mas em observá-
los e mover-se com eles. Nesse estado de obser- * Excerto do livro “Espiritualidade – Oriente-
vação, começa-se a compreender todo o movi- Ocidente”, publicado pela AMORC-GLP.

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