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Para o Zé Eisenberg,
que a culpa é toda dele.
C
onvidado a escrever para uma mesa sobre “justiça e virtudes”, no contexto de
um encontro de um grupo de trabalho sobre “república e cidadania”, cujo tema
este ano é “bem comum e apatia”, é impossível deixar de reverberar
mentalmente a herança do humanismo cívico em sua recepção contemporânea: um
ideal de governança participativa, politicamente igualitário e apoiado numa idéia
ativamente deliberativa da cidadania.2 Postos estritamente nesses termos, dificilmente
se encontraria quem contestasse abertamente a relevância e a pertinência desses ideais
no mundo contemporâneo. Eu gostaria de explorar aqui, entretanto, certas
ressonâncias mais proximamente associadas à alusão ao “bem comum” e à “apatia”,
que orientam nosso encontro deste ano. Frente à evocação conjunta desses dois
conceitos, a presunção habitual é de que a apatia implica grave comprometimento do
* Trabalho preparado para apresentação em mesa sobre “Justiça, Virtudes e o Bem Comum” junto ao GT
“República e Cidadania”, no XXVI Encontro Nacional da ANPOCS, em Caxambu, 24 de outubro de 2002.
Quero agradecer ao José Eisenberg pelo generoso convite, à Marta Assumpção Rodrigues pela conversa
animada e o encorajamento infatigável, ao Fábio Wanderley Reis pela licença para apropriar-me do título
de um belo artigo de jornal (reproduzido em Tempo Presente, pp. 401-3), e à Gildene Tomé – a primeira
pessoa que me fez pensar um pouco mais sistematicamente sobre apatia política.
1 Platão, Apologia, 31c (apud Claude Mossé, O Processo de Sócrates, p. 87).
2 Veja-se Cass Sunstein, “Beyond the Republican Revival”, para um enunciado sintético dos principais
ideais de um “republicanismo liberal”.
2 Bruno Reis – Ir para Casa em Paz
ANPOCS 2002
É claro que este pode perfeitamente ser o caso. Mas apenas pode. Quero
perseguir aqui outras ramificações desta problemática – talvez menos evidentes, mas
que me parecem igualmente relevantes. Por um lado é bastante óbvio que a
universalização de uma atitude politicamente apática, desinteressada dos assuntos
públicos, seria mortal não apenas para a realização dos ideais de um humanismo cívico,
mas até mesmo para a mera operação de um regime político democrático nos moldes
contemporâneos: se ninguém comparecer para votar, ou mesmo se ninguém se
dispuser a participar do debate político, o sistema se inviabiliza em seus mais
elementares mecanismos de operação. Sob este ponto de vista, a apatia política parece
violar flagrantemente o imperativo categórico kantiano,3 pois nem mesmo aquele que
não deseja participar pode consistentemente desejar a universalização de sua conduta
sem temer o colapso global do sistema político. Refletindo sobre a apatia política sob o
ponto de vista da inquirição das relações entre justiça e virtudes, parecerá claro,
portanto, que toda abstenção da participação política será entendida como ação não-
virtuosa, de implicações patentemente injustas. No plano mais imediato, pela mera
exploração do trabalho alheio envolvido na presunção de que alguém mais arcará com
os ônus da participação; num plano agregado, pela “distorção” dos resultados do
processo político que minha eventual omissão em manifestar minha preferência (ou
expor minhas razões) tenderá a produzir.
Receio, contudo, que isto seria ir depressa demais. Mesmo no plano mais
estritamente normativo, e ainda que nos atenhamos apenas a o que foi exposto até
aqui, há duas premissas necessárias às conclusões do parágrafo anterior. Em primeiro
lugar, aceita-se sem discussão (ou mesmo sem conjectura alternativa), que a
participação é intrinsecamente onerosa, e que aqueles que participam são explorados
pelos que não participam. No jargão corrente da abordagem da escolha racional, dir-se-
ia que aqueles que participam são suckers a colaborar para a produção de um bem
público (a decisão política) que será igualmente consumido por eles e pelos “caronas”
absenteístas. Não pretendo negar que esta visão captura um aspecto relevante da
3 “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza.”
(Kant, “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, p. 130.)
Bruno Reis – Ir para Casa em Paz 3
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4 O “teorema de Arrow” prova a impossibilidade de um sistema de decisão coletiva, entre pelo menos três
alternativas, que deixe de violar pelo menos uma das seguintes condições: racionalidade coletiva,
domínio irrestrito, eficiência de Pareto, independência frente a alternativas irrelevantes e não-ditadura.
Foi originariamente exposto em Kenneth Arrow, Social Choice and Individual Values, de 1951. Variadas
formas de se demonstrar o teorema, assim como uma exposição breve do significado de cada uma das
condições mencionadas, podem ser encontradas em John Craven, Social Choice.
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distorção produzida pela manifestação de todos. Estou ciente de que aqui tocamos em
tema delicado, e antes que me acusem de pretender cassar prerrogativas políticas de
quem quer que seja, quero fazer minha profissão de fé democrática, e afirmar que a
anteposição de qualquer tipo de obstáculo externo a qualquer manifestação política
não-violenta constitui arbitrariedade inaceitável, intrinsecamente injusta e imoral.
Mas, novamente, uma vez assegurada a possibilidade de que cada um se manifeste
cabalmente (e não apenas uma possibilidade formal, jurídica, mas efetiva, prática), não
me parece auto-evidente que um processo em que todos efetivamente escolham se
manifestar seja inerentemente superior àquele em que alguns – livremente – optam
pelo silêncio, ou pela abstenção, ou mesmo pela mera ausência do fórum deliberativo.
Penso aqui sobretudo no grave problema da assimetria quanto à intensidade das
preferências. Dada a impossibilidade da comparação interpessoal de preferências,
parece impossível inventarmos um sistema de votação capaz de dar o devido eco às
diferenças de intensidade com que cada um dos membros de uma dada comunidade
política prefere essa ou aquela opção.5 Se se puder presumir que aqueles com
preferências menos intensas sobre um tema político qualquer estarão mais propensos a
se absterem, isto torna pelo menos disputável a suposição de que a manifestação de
todos será sempre preferível à abstenção de alguns.
5 Em passagem bastante conhecida (e que, até onde sei, permanece válida), Robert Dahl, Um Prefácio à
Teoria Democrática, p. 118, concluiu que “a análise sugere convincentemente, embora não prove, que
nenhuma solução do problema da intensidade de preferências através de normas constitucionais ou
processuais é possível”.
6 Embora seja justo que se diga, sobre a tese de Lipset, que ela roça tema de largo alcance. Pois, sob a
guerra, a ninguém é facultada a mera possibilidade (nem se fale o direito) da apatia. Ela é, portanto,
ainda que nem sempre um desiderato em si mesma, certamente um atributo da ordem política virtuosa.
Quando é possível a muitos se manterem relativamente indiferentes em relação aos assuntos públicos
sem se prejudicarem (ou a terceiros) sensivelmente com isso, é porque já se alcançou uma “conquista
mínima”: ampliaram-se simplesmente os graus de liberdade de que cada um dispõe para conduzir a
rotina de sua vida como bem lhe aprouver.
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O argumento histórico-sociológico
7 Para quem quiser consultar as fontes aqui aludidas, as referências mais usuais são, respectivamente, o
Manifesto Comunista, de Marx e Engels, e a sinopse de Elias publicada no final do volume 2 de seu O
Processo Civilizador, particularmente a conclusão, pp. 263-74. Naturalmente os exemplos polares aqui
evocados são arbitrários e possivelmente nem serão os melhores. Poderiam facilmente ser mencionados
também Comte, Tocqueville, Durkheim, Weber, Parsons etc.
8 Para uma discussão minimamente detalhada do processo aqui aludido, pode-se recorrer a minha tese de
doutorado, “Modernização, Mercado e Democracia”, esp. cap. 2.
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Portanto, mais que por uma percepção externa da honra pessoal, capturada no
juízo que seus pares façam de suas virtudes, o homem moderno – protegido na relativa
invisibilidade social de que desfruta – pode crescentemente pautar seu comportamento
por uma consulta aos seus interesses pessoais. Significativa porção da literatura
moderna dá testemunho do contraste entre o aristocrata desprendido de si, orientado
para valores elevados (embora não universalistas), e o burguês avarento, seco de
virtudes, de costas para o mundo, a contar suas moedas.10 Se isto é assim, então é
natural imaginar que as instituições políticas, neste contexto, tenham tido de passar
por um paulatino – e penoso – processo de adaptação, de modo a capacitar-se a operar
sob um baixo input de virtudes. De fato, este é um propósito ostensivo do arcabouço
institucional democrático contemporâneo, expressamente aludido nos Federalist
Papers, particularmente no Artigo n.º 10, sobre o problema das facções.
11 Para uma breve exposição do teor do “Federalista” n.º 10, pode-se recorrer a Fernando Limongi,
“Remédios Republicanos para Males Republicanos”, esp. pp. 252-5.
12 Em 1956, Robert Dahl, Um Prefácio à Teoria Democrática, cap. 1, leva a cabo uma crítica poderosa do
modelo madisoniano, mas – naquilo que nos diz respeito aqui – apenas para levar o argumento dos
“Founding Fathers” mais longe do que eles mesmos: em que pese a demonstração da vacuidade do temor
de uma “tirania da maioria” (fonte das preocupações de Madison) e da insuficiência da divisão de poderes
para impedir a tirania, Dahl radicaliza seu argumento ao mostrar que é impossível distinguir de maneira
não-arbitrária uma “facção” de qualquer outro grupamento político. Minha impressão é que, do ponto de
vista do modelo poliárquico de Dahl, tudo o que resta do modelo madisoniano é o argumento pluralista
do Artigo n.º 10, aqui aludido.
13 Bobbio, “O Futuro da Democracia”, p. 22.
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contrária, esta pergunta permite outra formulação, talvez orientada mais frontalmente
para nossas preocupações: até onde queremos ir com instituições democráticas? Mas,
insisto, são duas versões da mesma pergunta.14
De fato essa é uma das lições pelas quais Maquiavel mais se empenha n’O
Príncipe;15 encontra-se – como vimos – ostensivamente aplicada por Madison no
Federalista n.º 10; e produziu como conseqüência histórica até aqui as instituições
democráticas representativas tal como as conhecemos hoje. Bruce Ackerman batizou
essa lição como o princípio da “economia de virtudes”.16 Sua versão mais forte ganha
expressão cabal na Riqueza das Nações, de Adam Smith, que postulará não apenas a
desejabilidade prudencial de que não contemos com a virtude alheia, mas – indo bem
mais longe – afirmará a superioridade, do ponto de vista da felicidade coletiva, da
generalização de um comportamento auto-interessado. Não pretendo endossar aqui a
tese de Smith – até porque a teoria dos jogos mostrou, pelo “dilema do prisioneiro”,
14Quero agradecer ao Prof. James Johnson, da Universidade de Rochester, pela sugestão do efeito de
retroalimentação das instituições democráticas sobre a dinâmica de “desidratação” da relevância pública
das virtudes pessoais na modernidade.
15“Vai tanta diferença entre o como se vive e o modo por que se deveria viver, que quem se preocupar com
o que se deveria fazer em vez do que se faz aprende antes a ruína própria, do que o modo de se preservar
[...].” (Maquiavel, “O Príncipe”, p. 63.)
16 Cf. Ackerman, “Neo-federalism?”, esp. pp. 156-74.
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que isto nem sempre se observará. Mas Weber já nos chamou a atenção para o papel
insubstituível do mercado como veículo de socialização entre estranhos17 – e é preciso
não minimizar a relevância do vínculo entre a legitimidade dessa autodeterminação
individualística de nossas prioridades pessoais e muitos de nossos mais cultivados
valores humanísticos. A legitimação do auto-interesse sanciona a conduta do burguês
no mercado, mas também – num marcante contraste – a do espírito livre que não se
conforma a tradições e busca exprimir-se em grandes feitos. A mesma lógica do
raciocínio que quer obrigar a todos ao dever cívico de comparecer e atuar em
deliberações políticas em que não estão interessados exigirá do artista de vanguarda
que quer viver em Leningrado que cumpra seu dever junto à sociedade numa fábrica na
Ásia Central. Pode ser verdade que, em contraste com a frieza desamparadora da
sociedade mercantil, a vida numa comunidade com fortes padrões internos de conduta
pareça muito reconfortante – mas isto desde que você não cultive hábitos exóticos.
Viver em Salem terá sido uma experiência e tanto, desde que seus queridos vizinhos
não resolvessem acreditar que você acreditava em bruxas. Em todo resgate das
potencialidades positivas do engajamento coletivo para a vida humana (e elas são
muitas, e evidentes), é crucial não abandonar o requisito da livre opção pelo
engajamento – ou encontraremos não a moderna “sociedade civil”, mas antes as
fogueiras, ou os cálices de cicuta.18
O argumento analítico-filosófico
17 Weber, Economia e Sociedade, vol. 1, pp. 419-22. Para uma exposição do argumento weberiano sobre o
mercado em seus vínculos com a sociedade moderna, pode-se consultar meu “Justiça Social em um
Mundo de Estranhos”, pp. 1-4.
18 Detalhada discussão dessa matéria, à luz das elaborações de William Kornhauser e Ernest Gellner sobre
o tema, pode ser encontrada em Fábio Wanderley Reis, “Desigualdade, Identidade e Cidadania”, esp. pp.
5-8. No contexto de nossa discussão e da idealização de que a tradição republicana com freqüência é
acusada no que toca à vida política greco-romana, será relevante sublinhar que Gellner, Condições da
Liberdade, pp. 13-16, 30, 88-92 (apud F. W. Reis, p. 8, n. 3), não hesita em estender à cidade antiga –
apoiado em Fustel de Coulanges – as características sufocantemente opressivas que ele atribui à
“sociedade comunal”, por contraste com a “sociedade civil” moderna.
19 A propósito, se a esta idéia de que as pessoas deveriam ter opinião a propósito de tudo acrescentamos
outra, segundo a qual essa opinião será dedutível segundo algum parâmetro sociológico objetivo, então
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Contudo, essas são premissas flagrantemente irrealistas, que não se aplicam sequer aos
políticos profissionais. Felizmente. Pois imaginemos por um instante uma comunidade
política cujos membros têm, todos, opiniões claras sobre todos os assuntos relevantes.
Das duas, uma: ou eles têm todos (ou uma clara maioria deles) a mesma opinião em
todos esses assuntos, formando aquela experiência comunal opressiva a que me referia
acima, ou esta cidade estará permanentemente às portas da guerra civil, pois disporá de
graus de liberdade extremamente reduzidos para persuasão recíproca e barganha, e
toda deliberação será tremendamente penosa. Observe-se que, como cenário oposto a
este, já não penso simplesmente em uma população dicotomicamente dividida entre
apáticos e não-apáticos, informados e não-informados, mas também que – mesmo
entre aquelas politicamente atuantes – é de se esperar (e desejar) que algumas pessoas
se envolvam mais intensamente em alguns temas que em outros, que tenham
preferências mais intensas em alguns temas que em outros.
Disto se segue também que não há motivo racional para que eu preze a minha
opinião mais que a de qualquer de meus concidadãos. Afinal, há assuntos de interesse
público que despertam minha curiosidade pessoal, e sobre os quais me julgo
razoavelmente bem informado – e (com ou sem razão) confiante em minha opinião a
ponto de estar eventualmente mesmo disposto a influenciar opiniões alheias sobre a
matéria. Mas há também assuntos que não me parecerão tão importantes (ou
simplesmente me parecerão maçantes ou “difíceis”), sobre cujo andamento eu mal
chego a me inteirar, abandonando-me completamente ao juízo de meus concidadãos
sobre o tema. E haverá ainda aqueles assuntos em que – embora eu os julgue
relevantes, e mesmo interessantes – por um conjunto de razões qualquer não chego a
confiar em meu juízo sobre eles, e sobre eles delego de bom grado a representação de
minha vontade a alguma outra pessoa (ou conjunto de pessoas) cujas opiniões prezo
mais que a minha própria, e utilizo como fonte de informação sobre a matéria, ou
mesmo adoto como sendo minhas próprias opiniões. De passagem, é importante frisar
que, concretamente, a distinção entre o primeiro caso e o terceiro não é tão fácil de
traçar como pode parecer aqui – já que, em ambos os casos, em algum ponto eu tenho
de me apoiar em informações externas providas por terceiros.20
teremos alcançado o raciocínio pelo qual algumas pessoas se julgarão aptas a “conscientizar”
politicamente outras.
20É extremamente oportuno, no contexto dessa digressão, remeter o leitor ao primeiro capítulo de Robert
Dahl, After the Revolution?, onde se discutem magistralmente os três critérios pelos quais alguém chega
a gozar de autoridade junto a terceiros: por escolha pessoal daquele que se dispõe à obediência, por
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(presunção de) competência, e por economia (principalmente de tempo – talvez o mais valioso recurso
escasso).
Feddersen e Pesendorfer, “The Swing Voter’s Curse”, de 1996. Na prova do teorema, há um erro que
21
Mark Fey e Jaehoon Kim, “A Note on the Swing Voter’s Curse”, reclamam haver corrigido.
22O paradoxo foi explicitado em 1957 por Anthony Downs, Uma Teoria Econômica da Democracia, cap.
14. É importante formular a ressalva de que Downs não o enuncia como um paradoxo, já que inclui no
modelo a possibilidade de uma preferência pela viabilização da democracia que poderia ser incluída no
cálculo do voto, aumentando a probabilidade de que o eleitor afinal se decidisse por votar. Parece-me,
contudo, que a introdução dessa possibilidade não salva a situação, já que a probabilidade de que o
comparecimento de qualquer eleitor individual venha a salvar a democracia tende igualmente para zero.
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Seja como for, tanto Downs quanto a literatura posterior tomam como auto-
evidente a suposição arbitrária de que cada eleitor sempre valoriza a sua opinião mais
que qualquer outra, sem se darem conta de que essa é uma postulação irracional sob a
vigência de assimetrias informacionais. A não ser por alguma irracionalidade
autoritária, por que é que eu deveria dar mais valor à vaga impressão que chego a ter
sobre determinado assunto, em detrimento da opinião de uma pessoa (ou de um grupo
de pessoas) em cujos padrões de julgamento confio, e que eu acredito estar mais
informado que eu próprio? Ainda que este nem sempre seja o caso, e existam eleitores
que sempre valorizem mais o que acreditam ser a sua própria opinião, a mera
possibilidade de se observar o contrário modifica os termos do problema: ao contrário
do que aponta Downs, na presença de assimetrias informacionais nem sempre o eleitor
racional valorizará positivamente a probabilidade de que o seu voto faça diferença na
eleição. O que Feddersen e Pesendorfer mostram é que, com informação assimétrica, o
eleitor que se acredita comparativamente pouco informado maximiza se se abstém ou
vota em branco, mesmo quando ele não é indiferente entre os candidatos, e mesmo que
o custo de votar seja igual a zero.
23Ver, por exemplo, Morris Fiorina, “Voting Behavior”, pp. 402-3, e John Aldrich, “When is it Rational to
Vote?”, esp. pp. 389-90, para alusões ao problema do baixo custo e da simplicidade do ato de votar. A
abordagem pela perspectiva da ação expressiva é brevemente descrita por Aldrich (pp. 385-7), e acaba de
receber uma primeira tentativa de formalização cabal em Alexander Schuessler, A Logic of Expressive
Choice (2000).
24Observe-se que esse resultado ecoa muito proximamente um paradoxo aludido pelo próprio Downs no
apêndice ao cap. 14 de Uma Teoria Econômica da Democracia: se eleitores indiferentes votam por senso
de dever, eles podem decidir “irracionalmente” a eleição. “Irracionalmente” porque eles não querem
decidi-la. Ou não seriam indiferentes. A diferença é que Feddersen e Pesendorfer levam esse argumento
mais longe, na medida em que seu argumento não requer que os eleitores sejam indiferentes para que
prefiram se abster – mas meramente que se presumam menos informados que outros de seus
concidadãos.
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O que tenho em mente é que, sob esse resultado, a apatia política não é mais
meramente uma conduta idiossincrática, talvez apenas preguiçosa, adotada por alguém
que simplesmente não quer arcar com os custos da participação (por maior que seja o
direito que essa pessoa tenha a isso). Ela agora pode ser uma variedade irônica de
“virtude cívica”, na medida em que você aumente a probabilidade de uma decisão
coletivamente superior ao abster-se de votar em matérias sobre as quais se considere
relativamente desinformado, independentemente dos custos de participação (ou seja, a
preguiça está por definição excluída). Nesse caso a apatia política é não apenas um
direito individual, uma “liberdade negativa”, mas também pode tomar a forma de uma
espécie de “etiqueta política” claramente afim à dimensão “positiva” da liberdade, 26
talvez provendo um mecanismo aproximado espontâneo para se lidar com o velho – e
aparentemente intratável – problema de se fazer com que as diferenças na intensidade
das preferências se exprimam de alguma forma.
Sob esta perspectiva, você deveria guardar silêncio sempre que você realmente
não se importar com um tema, esperando assim ser capaz de se fazer ouvir quando você
efetivamente quiser dizer algo. Claro, o cidadão, e somente o cidadão, pode ser o juiz
desta decisão – e, portanto, apesar de Huntington, o sistema político deve estar
perfeitamente apto a processar a eventual manifestação de todos. Mas se,
alternativamente, todos estiverem sempre obrigados a se manifestarem sobre todos os
25E antes que me façam a costumeira acusação de elitismo que se levanta contra toda alusão à importância
da informação para a qualidade do debate e da decisão política, quero declarar que estou longe de
acreditar que pessoas formalmente mais educadas sejam sistematicamente mais informadas sobre
assuntos politicamente relevantes. Ao contrário, prezo deveras a admoestação feita por Umberto Eco há
poucos anos, de que os intelectuais deveriam saber também quando guardar silêncio. Com efeito, se
fossem devidamente socráticos, eles deveriam – melhor que os outros – saber estimar a extensão de sua
própria ignorância.
26A distinção – tão célebre quanto contestada – entre “liberdade negativa” e “liberdade positiva” deve-se
originariamente a Isaiah Berlin, “Dois Conceitos de Liberdade”, de 1958.
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27Outra ressalva: antes que digam que isto constitui um ataque ao instituto do voto obrigatório no Brasil,
quero dizer que a analogia não se aplica, já que a possibilidade de votar em branco ou anular o voto
permite a todos se absterem quando assim preferirem. Num país desigual como o Brasil, sou favorável ao
voto obrigatório não pelo insustentavelmente elitista (e, no limite, autoritário) argumento “educacional”
tão freqüentemente mobilizado, mas pelo simples fato de que é crucialmente importante que o direito ao
voto esteja absolutamente franqueado, e não vejo outra maneira de impedir que intimidações espúrias ao
exercício do voto se façam presentes – a não ser tornando-o obrigatório.
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28É possível admitir, portanto, que não necessariamente se trata propriamente de fazer operar um
princípio de “economia de virtudes” em geral, mas apenas de certo gênero de virtudes, que seria
deslocado em favor de outro. Esta é a posição de Stephen Holmes, The Anatomy of Antiliberalism, esp.
pp. 227-8.
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amor junto àqueles que ele escolhe ter perto de si em sua fugaz existência. O direito de
ir para casa em paz quando bem lhe apetecer é a interpelação mínima que todo cidadão
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Resumo
Texto que – mobilizando elementos dispersos na obra de autores como Isaiah Berlin, Robert
Dahl e Stephen Holmes – ensaia em torno da tese de que, se é verdade que não é possível a
justiça na completa ausência de virtudes, não é menos verdade que o bom sistema político deve
ser parcimonioso no input de virtudes requerido, sob pena de impor condições demasiado
restritivas ao seu próprio funcionamento. Presumindo-se uma distribuição aproximadamente
aleatória de virtudes no tempo e no espaço, será ceteris paribus preferível um sistema que
pareça equipado a operar não apenas nos períodos de “abundância de virtudes”, mas também –
e talvez sobretudo – nas épocas de vacas magras, em que as virtudes pareçam escassear nos
corações das pessoas. Isto se tornará uma exigência particularmente crucial no contexto da
sociedade moderna, em que a complexificação e a impessoalidade crescente das relações sociais
produzirão um anonimato que recomendará extrema cautela na presunção da virtude envolvida
nas relações sociais – conforme nos ensina toda a sociologia (afinal, o lugar da vergonha é a
cara...). Nesse contexto, a prudência aconselha e a tolerância exige que a apatia – o ato de “ir
para casa em paz” – nos seja reconhecida, senão como nova modalidade de virtude, pelo menos
como um direito elementar num contexto em que nem todas as questões envolverão a todos
igualmente, e nem todas as vozes serão audíveis em todo momento: por seu exercício, calo-me
respeitosamente perante o juízo de atores mais intensamente envolvidos que eu quando for o
caso, e permito-me esperar que o silêncio de alguns outros me faça poder ser ouvido quando for
meu desejo expressar-me.