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Versão de 7/4/2005

IR PARA CASA EM PAZ:


a economia das virtudes, e a apatia como direito*
Bruno P. W. Reis
UFMG, Departamento de Ciência Política

Para o Zé Eisenberg,
que a culpa é toda dele.

“Mas talvez pareça estranho que eu ande pelas ruas


dando conselhos em particular e me intrometendo nos
negócios dos outros e que, em público, não ouse aparecer
em vossas assembléias e dar conselhos à Cidade.”
Sócrates1

C
onvidado a escrever para uma mesa sobre “justiça e virtudes”, no contexto de
um encontro de um grupo de trabalho sobre “república e cidadania”, cujo tema
este ano é “bem comum e apatia”, é impossível deixar de reverberar
mentalmente a herança do humanismo cívico em sua recepção contemporânea: um
ideal de governança participativa, politicamente igualitário e apoiado numa idéia
ativamente deliberativa da cidadania.2 Postos estritamente nesses termos, dificilmente
se encontraria quem contestasse abertamente a relevância e a pertinência desses ideais
no mundo contemporâneo. Eu gostaria de explorar aqui, entretanto, certas
ressonâncias mais proximamente associadas à alusão ao “bem comum” e à “apatia”,
que orientam nosso encontro deste ano. Frente à evocação conjunta desses dois
conceitos, a presunção habitual é de que a apatia implica grave comprometimento do

* Trabalho preparado para apresentação em mesa sobre “Justiça, Virtudes e o Bem Comum” junto ao GT
“República e Cidadania”, no XXVI Encontro Nacional da ANPOCS, em Caxambu, 24 de outubro de 2002.
Quero agradecer ao José Eisenberg pelo generoso convite, à Marta Assumpção Rodrigues pela conversa
animada e o encorajamento infatigável, ao Fábio Wanderley Reis pela licença para apropriar-me do título
de um belo artigo de jornal (reproduzido em Tempo Presente, pp. 401-3), e à Gildene Tomé – a primeira
pessoa que me fez pensar um pouco mais sistematicamente sobre apatia política.
1 Platão, Apologia, 31c (apud Claude Mossé, O Processo de Sócrates, p. 87).
2 Veja-se Cass Sunstein, “Beyond the Republican Revival”, para um enunciado sintético dos principais
ideais de um “republicanismo liberal”.
2 Bruno Reis – Ir para Casa em Paz
ANPOCS 2002

bem comum, envolvendo invariavelmente a disseminação de uma postura egoística,


que prefere deixar de arcar com os “custos da participação”, explorando o penoso
empenho de seus concidadãos na busca de soluções para problemas que também são
seus.

É claro que este pode perfeitamente ser o caso. Mas apenas pode. Quero
perseguir aqui outras ramificações desta problemática – talvez menos evidentes, mas
que me parecem igualmente relevantes. Por um lado é bastante óbvio que a
universalização de uma atitude politicamente apática, desinteressada dos assuntos
públicos, seria mortal não apenas para a realização dos ideais de um humanismo cívico,
mas até mesmo para a mera operação de um regime político democrático nos moldes
contemporâneos: se ninguém comparecer para votar, ou mesmo se ninguém se
dispuser a participar do debate político, o sistema se inviabiliza em seus mais
elementares mecanismos de operação. Sob este ponto de vista, a apatia política parece
violar flagrantemente o imperativo categórico kantiano,3 pois nem mesmo aquele que
não deseja participar pode consistentemente desejar a universalização de sua conduta
sem temer o colapso global do sistema político. Refletindo sobre a apatia política sob o
ponto de vista da inquirição das relações entre justiça e virtudes, parecerá claro,
portanto, que toda abstenção da participação política será entendida como ação não-
virtuosa, de implicações patentemente injustas. No plano mais imediato, pela mera
exploração do trabalho alheio envolvido na presunção de que alguém mais arcará com
os ônus da participação; num plano agregado, pela “distorção” dos resultados do
processo político que minha eventual omissão em manifestar minha preferência (ou
expor minhas razões) tenderá a produzir.

Receio, contudo, que isto seria ir depressa demais. Mesmo no plano mais
estritamente normativo, e ainda que nos atenhamos apenas a o que foi exposto até
aqui, há duas premissas necessárias às conclusões do parágrafo anterior. Em primeiro
lugar, aceita-se sem discussão (ou mesmo sem conjectura alternativa), que a
participação é intrinsecamente onerosa, e que aqueles que participam são explorados
pelos que não participam. No jargão corrente da abordagem da escolha racional, dir-se-
ia que aqueles que participam são suckers a colaborar para a produção de um bem
público (a decisão política) que será igualmente consumido por eles e pelos “caronas”
absenteístas. Não pretendo negar que esta visão captura um aspecto relevante da

3 “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza.”
(Kant, “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, p. 130.)
Bruno Reis – Ir para Casa em Paz 3
ANPOCS 2002

questão, sobretudo à medida que o número de pessoas envolvidas aumenta – e a


influência de cada uma tende a se tornar infinitesimal, ao mesmo tempo em que os
custos de transação para a tomada de decisão se elevam. Mas devemos sempre ter em
mente que aqueles que se abstêm de participar abdicam de sua parcela de influência em
favor dos demais, delegando a estes a prerrogativa de decidir por eles. Ou seja, aqueles
que arcam com os custos da participação detêm um poder que de outra forma não
teriam. Afirmar, portanto, de maneira genérica, que eles seriam explorados pelos
demais prejulga uma questão de natureza empírica, que admitirá respostas diferentes
em contextos variados. A aceitação incondicional do primeiro argumento implica
aceitar que os negros sul-africanos sob o regime do apartheid, ou os operários ingleses
do século XIX, excluídos do sufrágio, eram os beneficiários do sistema de exclusão
enquanto tal. Claro, todos concordaremos que a universalização do direito à
participação política é condição necessária para a plausibilidade da tese da exploração
aqui evocada. Mas a menos que se demonstre que essa universalização do sufrágio é
também condição suficiente da exploração dos participantes pelos apáticos (tese
fortemente implausível, já que implicaria que os negros do Alabama sob o regime
segregacionista exploravam os brancos ao deixarem de se registrar para votar), então
todos concordaremos também que nem sempre a apatia política resulta em prejuízo
para aqueles que se dispõem a atuar politicamente. (Veremos abaixo como nem sempre
ela resulta em prejuízo para os absenteístas tampouco, mas reservemos isto por
enquanto.)

A segunda premissa não demonstrada do raciocínio anterior encontra-se


incorporada na idéia de que a omissão de alguns “distorce” o resultado do processo
político – e é igualmente problemática. De saída, essa tese faz caso omisso do teorema
de Arrow, na medida em que parece supor a existência de algo como uma representação
“não-distorcida” (veraz, autêntica) da vontade coletiva, que se possa estabelecer de
maneira inequívoca.4 Mas, mesmo que se queira disputar a interpretação a ser
atribuída ao teorema de Arrow, permanece relevante considerar o que há de arbitrário
na simples naturalidade com que pensamos na distorção que eventualmente se
produziria pela omissão de alguns, sem sequer cogitarmos da possibilidade de idêntica

4 O “teorema de Arrow” prova a impossibilidade de um sistema de decisão coletiva, entre pelo menos três
alternativas, que deixe de violar pelo menos uma das seguintes condições: racionalidade coletiva,
domínio irrestrito, eficiência de Pareto, independência frente a alternativas irrelevantes e não-ditadura.
Foi originariamente exposto em Kenneth Arrow, Social Choice and Individual Values, de 1951. Variadas
formas de se demonstrar o teorema, assim como uma exposição breve do significado de cada uma das
condições mencionadas, podem ser encontradas em John Craven, Social Choice.
4 Bruno Reis – Ir para Casa em Paz
ANPOCS 2002

distorção produzida pela manifestação de todos. Estou ciente de que aqui tocamos em
tema delicado, e antes que me acusem de pretender cassar prerrogativas políticas de
quem quer que seja, quero fazer minha profissão de fé democrática, e afirmar que a
anteposição de qualquer tipo de obstáculo externo a qualquer manifestação política
não-violenta constitui arbitrariedade inaceitável, intrinsecamente injusta e imoral.
Mas, novamente, uma vez assegurada a possibilidade de que cada um se manifeste
cabalmente (e não apenas uma possibilidade formal, jurídica, mas efetiva, prática), não
me parece auto-evidente que um processo em que todos efetivamente escolham se
manifestar seja inerentemente superior àquele em que alguns – livremente – optam
pelo silêncio, ou pela abstenção, ou mesmo pela mera ausência do fórum deliberativo.
Penso aqui sobretudo no grave problema da assimetria quanto à intensidade das
preferências. Dada a impossibilidade da comparação interpessoal de preferências,
parece impossível inventarmos um sistema de votação capaz de dar o devido eco às
diferenças de intensidade com que cada um dos membros de uma dada comunidade
política prefere essa ou aquela opção.5 Se se puder presumir que aqueles com
preferências menos intensas sobre um tema político qualquer estarão mais propensos a
se absterem, isto torna pelo menos disputável a suposição de que a manifestação de
todos será sempre preferível à abstenção de alguns.

Portanto, antes de pronunciar juízos cabais sobre a apatia política no plano da


filosofia moral, eu gostaria de acrescentar à discussão alguma dose de realismo
histórico e sociológico. Nem se trata aqui de retomar a conhecida tese de Seymour
Lipset em Political Man, segundo a qual alguma dose de apatia política seria
simplesmente sintoma do sucesso da ordem política em apaziguar os grandes conflitos
da sociedade,6 ou a tese de Samuel Huntington em The Crisis of Democracy, segundo a
qual um excesso de demandas produziria um “destempero democrático” de efeitos
paralisadores sobre a capacidade operacional do sistema político. Quero apenas me

5 Em passagem bastante conhecida (e que, até onde sei, permanece válida), Robert Dahl, Um Prefácio à
Teoria Democrática, p. 118, concluiu que “a análise sugere convincentemente, embora não prove, que
nenhuma solução do problema da intensidade de preferências através de normas constitucionais ou
processuais é possível”.
6 Embora seja justo que se diga, sobre a tese de Lipset, que ela roça tema de largo alcance. Pois, sob a
guerra, a ninguém é facultada a mera possibilidade (nem se fale o direito) da apatia. Ela é, portanto,
ainda que nem sempre um desiderato em si mesma, certamente um atributo da ordem política virtuosa.
Quando é possível a muitos se manterem relativamente indiferentes em relação aos assuntos públicos
sem se prejudicarem (ou a terceiros) sensivelmente com isso, é porque já se alcançou uma “conquista
mínima”: ampliaram-se simplesmente os graus de liberdade de que cada um dispõe para conduzir a
rotina de sua vida como bem lhe aprouver.
Bruno Reis – Ir para Casa em Paz 5
ANPOCS 2002

deter preliminarmente sobre alguns presumíveis efeitos do processo de modernização


sobre a dinâmica política das sociedades humanas nos últimos séculos – dinâmica esta
que se conecta de maneira importante com o tema aqui tratado. Adicionalmente,
gostaria de considerar brevemente uma estrutura de incentivos plausível que cerca a
decisão sobre a participação política (mais especificamente, a decisão de votar) e que
indica que, sob certas condições, a decisão de abster-se pode envolver mais do que
mera preguiça ou alienação – e que esperar uma mobilização universal permanente
pode ser não apenas irrealista, mas também contraproducente para o objetivo de se
produzirem decisões politicamente representativas e coletivamente racionais.

O argumento histórico-sociológico

Qualquer que seja a caracterização que se queira fazer do processo de


modernização, um traço perfeitamente saliente de seu desenvolvimento, presente em
toda matriz da reflexão sociológica, de Karl Marx a Norbert Elias, é a expansão da
abrangência dos laços de interdependência entre as pessoas, no contexto de uma forma
crescentemente complexa de sociedade.7 Por razões tecnológicas ou quaisquer outras, o
fato é que a história humana do último milênio é dramaticamente caracterizada por
uma expansão sem precedentes do raio de abrangência dos contatos humanos. Durante
todo o período, as pessoas passaram a interagir através de áreas geográficas em
expansão contínua, no interior de populações sempre crescentes. Naturalmente, as
instituições políticas não poderiam passar incólumes por esse processo, e de fato
experimentaram-se profundas transformações políticas durante o período.8

Um dos componentes cruciais do processo de adaptação por que passam as


instituições políticas durante esse período prende-se ao fato de que à medida que se
expande o tamanho do grupo relevante, e aumenta o grau de anonimato com que as
pessoas se movem no interior da população, menos esperável se torna a adesão
incondicional a virtudes (ou, dito genericamente, a valores coletivamente partilhados)
como móvel incondicional da ação. Costuma-se dizer que o lugar da vergonha é a cara.
Do anel de Giges da mitologia grega ao barrete das Mil e Uma Noites, lendas de todos

7 Para quem quiser consultar as fontes aqui aludidas, as referências mais usuais são, respectivamente, o
Manifesto Comunista, de Marx e Engels, e a sinopse de Elias publicada no final do volume 2 de seu O
Processo Civilizador, particularmente a conclusão, pp. 263-74. Naturalmente os exemplos polares aqui
evocados são arbitrários e possivelmente nem serão os melhores. Poderiam facilmente ser mencionados
também Comte, Tocqueville, Durkheim, Weber, Parsons etc.
8 Para uma discussão minimamente detalhada do processo aqui aludido, pode-se recorrer a minha tese de
doutorado, “Modernização, Mercado e Democracia”, esp. cap. 2.
6 Bruno Reis – Ir para Casa em Paz
ANPOCS 2002

os povos são unânimes em associar a invisibilidade à canalhice.9 O mais resoluto herói


converte-se invariavelmente num rato ao tornar-se invisível e livrar-se do controle
imposto pelo julgamento de seus iguais (mesmo quando isto se dá sob o império das
boas intenções).

O que se passa na modernidade é análogo. Ao mergulhar na multidão, o homem


moderno não revoga, mas abranda sensivelmente o jugo das expectativas alheias que
pesam sobre si. O problema da ação coletiva, tão cruamente descrito por Mancur Olson
em The Logic of Collective Action, embora não encontre aplicação empírica universal
(pois restrições valorativas continuam a existir, é claro – e, afinal, ninguém se torna de
fato invisível), encontra sim aplicação crescente à medida que os números crescem:
pois as oportunidades para se comportar como um carona se multiplicam. Não é por
mera coincidência que a formulação seminal do problema político na modernidade por
Hobbes no Leviatã se apóia numa conjectura sobre o entrechoque esperado a partir da
coexistência de pessoas anônimas imersas numa multidão de estranhos – onde cessa a
vigência de todo vestígio de qualquer norma. Tocqueville explora outro desdobramento
do mesmo problema num breve e eloqüente capítulo da Democracia na América, sobre
o individualismo nos países democráticos. Rompidas as cadeias (verticais, no caso) que
prendem umas pessoas às outras nas sociedades aristocráticas, o individualismo típico
das sociedades democráticas isola cada ser humano de sua comunidade, seus
descendentes e seus antepassados, e – ainda que o integre muito mais plenamente que
antes à espécie, à humanidade – encerra-o cada vez mais em si mesmo no dia-a-dia de
sua existência.

Portanto, mais que por uma percepção externa da honra pessoal, capturada no
juízo que seus pares façam de suas virtudes, o homem moderno – protegido na relativa
invisibilidade social de que desfruta – pode crescentemente pautar seu comportamento
por uma consulta aos seus interesses pessoais. Significativa porção da literatura
moderna dá testemunho do contraste entre o aristocrata desprendido de si, orientado
para valores elevados (embora não universalistas), e o burguês avarento, seco de
virtudes, de costas para o mundo, a contar suas moedas.10 Se isto é assim, então é

9 Alusão ao anel de Giges encontra-se em Platão, A República, 359c-360d; e a história do barrete da


invisibilidade é belamente reconstruída por Naguib Mahfouz, Noites das Mil e Uma Noites, pp. 194-208.
10 Reinhard Bendix, Construção Nacional e Cidadania, pp. 335-6, nos dá saborosa notícia da manifestação
peculiar desses arquétipos na prosa de Goethe: o aristocrata de boas maneiras, mas coração frio
(consistentemente com o particularismo que lhe atribui Tocqueville); o burguês mal-educado, que vale
por seus feitos, mas é aviltantemente especializado (“alienado de si”, seria dito mais tarde); e o artista,
dedicado ao “cultivo harmonioso de sua natureza”.
Bruno Reis – Ir para Casa em Paz 7
ANPOCS 2002

natural imaginar que as instituições políticas, neste contexto, tenham tido de passar
por um paulatino – e penoso – processo de adaptação, de modo a capacitar-se a operar
sob um baixo input de virtudes. De fato, este é um propósito ostensivo do arcabouço
institucional democrático contemporâneo, expressamente aludido nos Federalist
Papers, particularmente no Artigo n.º 10, sobre o problema das facções.

Contrariamente a Rousseau, para quem a sobrevivência das repúblicas


dependeria da virtude dos cidadãos e da eliminação de todo facciosismo interno,
Madison constata que essa eliminação é incompatível com um governo livre. E, embora
toda a tradição apelasse à virtude como fundamento do governo popular, o mundo
moderno parecia particularmente pouco propício a tal expectativa.11 Como se sabe, ele
irá prescrever a solução contrária, que ditaria o tom da ciência política do século XX: a
proliferação das facções, de maneira a se impedir que qualquer uma delas alcance
posição majoritária, e logrando, assim, sua relativa neutralização recíproca.12 Em texto
muito utilizado em nossas salas de aula, Norberto Bobbio tampouco se furtou a advertir
expressamente que a democracia nasce de uma concepção individualista da
sociedade:13 desde a livre competição por posições de poder até o sufrágio universal e
secreto, o cidadão é constantemente chamado pelo sistema democrático a consultar
suas aspirações e interesses pessoais, não obstante admoestações em contrário que as
autoridades constituídas ou os meios de comunicação se vejam na contingência de
fazer.

Mas, ao proceder a esta adaptação individualista, com baixo input de virtudes


pessoais requerido dos agentes políticos, deve-se admitir a possibilidade de que as
instituições democráticas modernas não apenas se adaptem a uma tendência
independente, exógena, mas que também reforcem esta tendência, endogeneizando-a
em larga medida. Assim, a questão que se segue está longe de ser trivial, e se torna
muito fundamental: até onde queremos ir em busca de virtudes? Posta na direção

11 Para uma breve exposição do teor do “Federalista” n.º 10, pode-se recorrer a Fernando Limongi,
“Remédios Republicanos para Males Republicanos”, esp. pp. 252-5.
12 Em 1956, Robert Dahl, Um Prefácio à Teoria Democrática, cap. 1, leva a cabo uma crítica poderosa do
modelo madisoniano, mas – naquilo que nos diz respeito aqui – apenas para levar o argumento dos
“Founding Fathers” mais longe do que eles mesmos: em que pese a demonstração da vacuidade do temor
de uma “tirania da maioria” (fonte das preocupações de Madison) e da insuficiência da divisão de poderes
para impedir a tirania, Dahl radicaliza seu argumento ao mostrar que é impossível distinguir de maneira
não-arbitrária uma “facção” de qualquer outro grupamento político. Minha impressão é que, do ponto de
vista do modelo poliárquico de Dahl, tudo o que resta do modelo madisoniano é o argumento pluralista
do Artigo n.º 10, aqui aludido.
13 Bobbio, “O Futuro da Democracia”, p. 22.
8 Bruno Reis – Ir para Casa em Paz
ANPOCS 2002

contrária, esta pergunta permite outra formulação, talvez orientada mais frontalmente
para nossas preocupações: até onde queremos ir com instituições democráticas? Mas,
insisto, são duas versões da mesma pergunta.14

Embora eu não tenha a pretensão de fornecer aqui uma resposta cabal a


pergunta de tão largo alcance, tampouco me seria possível simplesmente deixá-la no ar,
deixando de dirigir-me a ela após tê-la formulado. Portanto, vou tratar de enunciar,
resumidamente, minha posição básica. De maneira largamente independente de chegar
a determinar se um sistema político “perfeito” (“justiça”?) requererá ou não cidadãos
virtuosos (e mesmo concedendo provisoriamente que quanto mais gente virtuosa
houver, melhor será para a operação da polis), seria sábio para qualquer sistema
político reduzir o montante de virtudes cívicas requeridas para a sua operação.
Entendo que, em larga medida, minha mera condição profissional de cientista político
(que toma instituições políticas por objeto de análise e se pergunta sobre a sua
capacidade de organizar normativamente a coexistência pacífica das pessoas em
sociedade) me conduz à posição básica de que, todas as demais variáveis mantidas
constantes, quanto menor o input de virtudes requerido pelo sistema político para
operar, melhor o sistema político – pelo simples fato de que isto significa um requisito
operacional a menos. Se eu não posso tomar por empiricamente assegurada a virtude
de meus concidadãos, então é melhor eu não presumir sua existência quando legislar.

De fato essa é uma das lições pelas quais Maquiavel mais se empenha n’O
Príncipe;15 encontra-se – como vimos – ostensivamente aplicada por Madison no
Federalista n.º 10; e produziu como conseqüência histórica até aqui as instituições
democráticas representativas tal como as conhecemos hoje. Bruce Ackerman batizou
essa lição como o princípio da “economia de virtudes”.16 Sua versão mais forte ganha
expressão cabal na Riqueza das Nações, de Adam Smith, que postulará não apenas a
desejabilidade prudencial de que não contemos com a virtude alheia, mas – indo bem
mais longe – afirmará a superioridade, do ponto de vista da felicidade coletiva, da
generalização de um comportamento auto-interessado. Não pretendo endossar aqui a
tese de Smith – até porque a teoria dos jogos mostrou, pelo “dilema do prisioneiro”,

14Quero agradecer ao Prof. James Johnson, da Universidade de Rochester, pela sugestão do efeito de
retroalimentação das instituições democráticas sobre a dinâmica de “desidratação” da relevância pública
das virtudes pessoais na modernidade.
15“Vai tanta diferença entre o como se vive e o modo por que se deveria viver, que quem se preocupar com
o que se deveria fazer em vez do que se faz aprende antes a ruína própria, do que o modo de se preservar
[...].” (Maquiavel, “O Príncipe”, p. 63.)
16 Cf. Ackerman, “Neo-federalism?”, esp. pp. 156-74.
Bruno Reis – Ir para Casa em Paz 9
ANPOCS 2002

que isto nem sempre se observará. Mas Weber já nos chamou a atenção para o papel
insubstituível do mercado como veículo de socialização entre estranhos17 – e é preciso
não minimizar a relevância do vínculo entre a legitimidade dessa autodeterminação
individualística de nossas prioridades pessoais e muitos de nossos mais cultivados
valores humanísticos. A legitimação do auto-interesse sanciona a conduta do burguês
no mercado, mas também – num marcante contraste – a do espírito livre que não se
conforma a tradições e busca exprimir-se em grandes feitos. A mesma lógica do
raciocínio que quer obrigar a todos ao dever cívico de comparecer e atuar em
deliberações políticas em que não estão interessados exigirá do artista de vanguarda
que quer viver em Leningrado que cumpra seu dever junto à sociedade numa fábrica na
Ásia Central. Pode ser verdade que, em contraste com a frieza desamparadora da
sociedade mercantil, a vida numa comunidade com fortes padrões internos de conduta
pareça muito reconfortante – mas isto desde que você não cultive hábitos exóticos.
Viver em Salem terá sido uma experiência e tanto, desde que seus queridos vizinhos
não resolvessem acreditar que você acreditava em bruxas. Em todo resgate das
potencialidades positivas do engajamento coletivo para a vida humana (e elas são
muitas, e evidentes), é crucial não abandonar o requisito da livre opção pelo
engajamento – ou encontraremos não a moderna “sociedade civil”, mas antes as
fogueiras, ou os cálices de cicuta.18

O argumento analítico-filosófico

A presunção de que a participação política, mais que um direito, é quase um


dever do cidadão decorrerá talvez das premissas simplificadoras segundo as quais todas
as pessoas têm (ou deveriam ter) alguma opinião sobre todos os temas de relevância
pública – e que prezariam a sua opinião pessoal mais que a de qualquer outra pessoa.19

17 Weber, Economia e Sociedade, vol. 1, pp. 419-22. Para uma exposição do argumento weberiano sobre o
mercado em seus vínculos com a sociedade moderna, pode-se consultar meu “Justiça Social em um
Mundo de Estranhos”, pp. 1-4.
18 Detalhada discussão dessa matéria, à luz das elaborações de William Kornhauser e Ernest Gellner sobre
o tema, pode ser encontrada em Fábio Wanderley Reis, “Desigualdade, Identidade e Cidadania”, esp. pp.
5-8. No contexto de nossa discussão e da idealização de que a tradição republicana com freqüência é
acusada no que toca à vida política greco-romana, será relevante sublinhar que Gellner, Condições da
Liberdade, pp. 13-16, 30, 88-92 (apud F. W. Reis, p. 8, n. 3), não hesita em estender à cidade antiga –
apoiado em Fustel de Coulanges – as características sufocantemente opressivas que ele atribui à
“sociedade comunal”, por contraste com a “sociedade civil” moderna.
19 A propósito, se a esta idéia de que as pessoas deveriam ter opinião a propósito de tudo acrescentamos
outra, segundo a qual essa opinião será dedutível segundo algum parâmetro sociológico objetivo, então
10 Bruno Reis – Ir para Casa em Paz
ANPOCS 2002

Contudo, essas são premissas flagrantemente irrealistas, que não se aplicam sequer aos
políticos profissionais. Felizmente. Pois imaginemos por um instante uma comunidade
política cujos membros têm, todos, opiniões claras sobre todos os assuntos relevantes.
Das duas, uma: ou eles têm todos (ou uma clara maioria deles) a mesma opinião em
todos esses assuntos, formando aquela experiência comunal opressiva a que me referia
acima, ou esta cidade estará permanentemente às portas da guerra civil, pois disporá de
graus de liberdade extremamente reduzidos para persuasão recíproca e barganha, e
toda deliberação será tremendamente penosa. Observe-se que, como cenário oposto a
este, já não penso simplesmente em uma população dicotomicamente dividida entre
apáticos e não-apáticos, informados e não-informados, mas também que – mesmo
entre aquelas politicamente atuantes – é de se esperar (e desejar) que algumas pessoas
se envolvam mais intensamente em alguns temas que em outros, que tenham
preferências mais intensas em alguns temas que em outros.

Disto se segue também que não há motivo racional para que eu preze a minha
opinião mais que a de qualquer de meus concidadãos. Afinal, há assuntos de interesse
público que despertam minha curiosidade pessoal, e sobre os quais me julgo
razoavelmente bem informado – e (com ou sem razão) confiante em minha opinião a
ponto de estar eventualmente mesmo disposto a influenciar opiniões alheias sobre a
matéria. Mas há também assuntos que não me parecerão tão importantes (ou
simplesmente me parecerão maçantes ou “difíceis”), sobre cujo andamento eu mal
chego a me inteirar, abandonando-me completamente ao juízo de meus concidadãos
sobre o tema. E haverá ainda aqueles assuntos em que – embora eu os julgue
relevantes, e mesmo interessantes – por um conjunto de razões qualquer não chego a
confiar em meu juízo sobre eles, e sobre eles delego de bom grado a representação de
minha vontade a alguma outra pessoa (ou conjunto de pessoas) cujas opiniões prezo
mais que a minha própria, e utilizo como fonte de informação sobre a matéria, ou
mesmo adoto como sendo minhas próprias opiniões. De passagem, é importante frisar
que, concretamente, a distinção entre o primeiro caso e o terceiro não é tão fácil de
traçar como pode parecer aqui – já que, em ambos os casos, em algum ponto eu tenho
de me apoiar em informações externas providas por terceiros.20

teremos alcançado o raciocínio pelo qual algumas pessoas se julgarão aptas a “conscientizar”
politicamente outras.
20É extremamente oportuno, no contexto dessa digressão, remeter o leitor ao primeiro capítulo de Robert
Dahl, After the Revolution?, onde se discutem magistralmente os três critérios pelos quais alguém chega
a gozar de autoridade junto a terceiros: por escolha pessoal daquele que se dispõe à obediência, por
Bruno Reis – Ir para Casa em Paz 11
ANPOCS 2002

Observe-se que aqui já nos encontramos muito distantes da singeleza das


considerações tecidas no início do presente trabalho. Na condenação moral da apatia
política ali esboçada, há implícita uma premissa de simetria informacional entre os
cidadãos, que serve de base para o experimento mental da universalização das máximas
antitéticas de “participar” e de “não participar”. A esta altura é ocioso frisar o quanto é
inadequada essa premissa. Numa aproximação minimamente realista do problema de
se especificarem os efeitos políticos da apatia, bem como o cálculo individual que lhe é
subjacente, é necessário introduzir na análise alguma forma de assimetria
informacional.

Neste contexto, acredito que pode ser iluminador o recurso ao teorema da


“maldição do eleitor indeciso” (“the swing voter’s curse”), publicado recentemente por
Timothy Feddersen e Wolfgang Pesendorfer.21 Ali se retoma o velho problema do
comparecimento eleitoral, agora sob informação assimétrica. Como se sabe, o
comparecimento eleitoral constitui um famoso paradoxo, do ponto de vista de um
eleitor racional que valorize exclusivamente o resultado da eleição: como a
probabilidade de qualquer eleitor individual vir a decidir a eleição é infinitesimal,
tendendo para zero, qualquer custo em que ele tenha de incorrer deveria ser suficiente
para fazê-lo desistir.22 De fato, os modelos de escolha racional são uma aproximação
bem mais razoável de fenômenos empíricos quando os custos e benefícios associados à
escolha são altos o bastante para justificar a presunção de que o ator se dê ao trabalho
do cálculo envolvido. No caso da decisão de votar, tanto uns quanto outros são
tipicamente residuais, e soa um tanto extravagante a aplicação da técnica – tanto que
mais recentemente a literatura da public choice tem se inclinado por descartar o
paradoxo nessas bases, alegando baixos custos envolvidos e/ou a simplicidade do ato, e
a caminhar na direção de um esforço de formalização do que chamam de “ação
expressiva”. Mais que um “investimento” do qual se esperaria retorno (como em
Downs), sob esta perspectiva o voto seria, em condições normais, um ato de

(presunção de) competência, e por economia (principalmente de tempo – talvez o mais valioso recurso
escasso).
Feddersen e Pesendorfer, “The Swing Voter’s Curse”, de 1996. Na prova do teorema, há um erro que
21

Mark Fey e Jaehoon Kim, “A Note on the Swing Voter’s Curse”, reclamam haver corrigido.
22O paradoxo foi explicitado em 1957 por Anthony Downs, Uma Teoria Econômica da Democracia, cap.
14. É importante formular a ressalva de que Downs não o enuncia como um paradoxo, já que inclui no
modelo a possibilidade de uma preferência pela viabilização da democracia que poderia ser incluída no
cálculo do voto, aumentando a probabilidade de que o eleitor afinal se decidisse por votar. Parece-me,
contudo, que a introdução dessa possibilidade não salva a situação, já que a probabilidade de que o
comparecimento de qualquer eleitor individual venha a salvar a democracia tende igualmente para zero.
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ANPOCS 2002

“consumo”: tratar-se-ia antes de realizar uma projeção de sua auto-identificação


pública num ato que seria valorizado em si mesmo.23

Seja como for, tanto Downs quanto a literatura posterior tomam como auto-
evidente a suposição arbitrária de que cada eleitor sempre valoriza a sua opinião mais
que qualquer outra, sem se darem conta de que essa é uma postulação irracional sob a
vigência de assimetrias informacionais. A não ser por alguma irracionalidade
autoritária, por que é que eu deveria dar mais valor à vaga impressão que chego a ter
sobre determinado assunto, em detrimento da opinião de uma pessoa (ou de um grupo
de pessoas) em cujos padrões de julgamento confio, e que eu acredito estar mais
informado que eu próprio? Ainda que este nem sempre seja o caso, e existam eleitores
que sempre valorizem mais o que acreditam ser a sua própria opinião, a mera
possibilidade de se observar o contrário modifica os termos do problema: ao contrário
do que aponta Downs, na presença de assimetrias informacionais nem sempre o eleitor
racional valorizará positivamente a probabilidade de que o seu voto faça diferença na
eleição. O que Feddersen e Pesendorfer mostram é que, com informação assimétrica, o
eleitor que se acredita comparativamente pouco informado maximiza se se abstém ou
vota em branco, mesmo quando ele não é indiferente entre os candidatos, e mesmo que
o custo de votar seja igual a zero.

A rationale do ato aqui ainda se prende estritamente à produção do resultado.


Mas, ao contrário dos modelos anteriores, em que o eleitor valorizaria positivamente a
utilidade de seu próprio voto na razão direta da probabilidade de que ele viesse a fazer
diferença no resultado final, nesse modelo a pessoa que se considera menos informada
– embora deseje exprimir-se, já que o voto não tem custo – quer evitar a remota
possibilidade de vir a fazer diferença, dada sua incerteza sobre suas próprias
preferências, e sua crença (fundada ou não, diga-se) de que outros de seus concidadãos
encontram-se melhor informados que ela própria.24 Nesse caso, o melhor interesse do

23Ver, por exemplo, Morris Fiorina, “Voting Behavior”, pp. 402-3, e John Aldrich, “When is it Rational to
Vote?”, esp. pp. 389-90, para alusões ao problema do baixo custo e da simplicidade do ato de votar. A
abordagem pela perspectiva da ação expressiva é brevemente descrita por Aldrich (pp. 385-7), e acaba de
receber uma primeira tentativa de formalização cabal em Alexander Schuessler, A Logic of Expressive
Choice (2000).
24Observe-se que esse resultado ecoa muito proximamente um paradoxo aludido pelo próprio Downs no
apêndice ao cap. 14 de Uma Teoria Econômica da Democracia: se eleitores indiferentes votam por senso
de dever, eles podem decidir “irracionalmente” a eleição. “Irracionalmente” porque eles não querem
decidi-la. Ou não seriam indiferentes. A diferença é que Feddersen e Pesendorfer levam esse argumento
mais longe, na medida em que seu argumento não requer que os eleitores sejam indiferentes para que
prefiram se abster – mas meramente que se presumam menos informados que outros de seus
concidadãos.
Bruno Reis – Ir para Casa em Paz 13
ANPOCS 2002

próprio cidadão que se considera desinformado estaria melhor atendido se ele se


eximisse de votar e evitasse assim a possibilidade (remota, mas em todo caso
indesejável) de que seu voto “desinformado” viesse a decidir a questão.25

Se o teorema de Feddersen e Pesendorfer efetivamente estiver correto, e minha


interpretação dele fizer o mínimo sentido, esse resultado abre a surpreendente
possibilidade teórica de que, para além de mais um direito individual a ser reivindicado
contra as pressões ou interesses dos demais, a abstenção se torna uma atitude que
poderia, em certos casos, ser chamada de... cívica!

O que tenho em mente é que, sob esse resultado, a apatia política não é mais
meramente uma conduta idiossincrática, talvez apenas preguiçosa, adotada por alguém
que simplesmente não quer arcar com os custos da participação (por maior que seja o
direito que essa pessoa tenha a isso). Ela agora pode ser uma variedade irônica de
“virtude cívica”, na medida em que você aumente a probabilidade de uma decisão
coletivamente superior ao abster-se de votar em matérias sobre as quais se considere
relativamente desinformado, independentemente dos custos de participação (ou seja, a
preguiça está por definição excluída). Nesse caso a apatia política é não apenas um
direito individual, uma “liberdade negativa”, mas também pode tomar a forma de uma
espécie de “etiqueta política” claramente afim à dimensão “positiva” da liberdade, 26
talvez provendo um mecanismo aproximado espontâneo para se lidar com o velho – e
aparentemente intratável – problema de se fazer com que as diferenças na intensidade
das preferências se exprimam de alguma forma.

Sob esta perspectiva, você deveria guardar silêncio sempre que você realmente
não se importar com um tema, esperando assim ser capaz de se fazer ouvir quando você
efetivamente quiser dizer algo. Claro, o cidadão, e somente o cidadão, pode ser o juiz
desta decisão – e, portanto, apesar de Huntington, o sistema político deve estar
perfeitamente apto a processar a eventual manifestação de todos. Mas se,
alternativamente, todos estiverem sempre obrigados a se manifestarem sobre todos os

25E antes que me façam a costumeira acusação de elitismo que se levanta contra toda alusão à importância
da informação para a qualidade do debate e da decisão política, quero declarar que estou longe de
acreditar que pessoas formalmente mais educadas sejam sistematicamente mais informadas sobre
assuntos politicamente relevantes. Ao contrário, prezo deveras a admoestação feita por Umberto Eco há
poucos anos, de que os intelectuais deveriam saber também quando guardar silêncio. Com efeito, se
fossem devidamente socráticos, eles deveriam – melhor que os outros – saber estimar a extensão de sua
própria ignorância.
26A distinção – tão célebre quanto contestada – entre “liberdade negativa” e “liberdade positiva” deve-se
originariamente a Isaiah Berlin, “Dois Conceitos de Liberdade”, de 1958.
14 Bruno Reis – Ir para Casa em Paz
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assuntos, será provavelmente impossível esperar que diferenças na intensidade das


preferências encontrem maneira de se manifestar.27

Retornando por um instante ao tópico da “exploração”, talvez se possa dizer que


o “swing voter” efetivamente explora os demais – já que se permite permanecer
desinformado e se calar sobre um problema, e espera beneficiar-se do esforço de
informação e deliberação de seus concidadãos. Mas, a bem do realismo, deve-se
reconhecer que, à medida que o teorema supõe auto-atribuição de informação que em
princípio variará conforme o tema em pauta, então o importante é incorporar a
assimetria informacional como um dado de toda análise sobre apatia, a orientar
decisões livres que pessoas diferentes tomam em sentidos diferentes em contextos
diferentes – e que a tolerância recíproca viabilizará, para maior proveito de todos.
Assim, aquele que se julga desinformado e prefere se calar (e “explorar” os pares) sobre
determinada decisão, em princípio se julgará informado e interessado em convencer os
demais e eventualmente votar (e assim se deixar “explorar”) quando outro assunto se
apresentar (ou for por ele mesmo apresentado).

Não é irrelevante observar, a propósito, o caráter perfeitamente universalizável


da máxima que orienta a conduta descrita acima. O que repõe, agora com sinais
trocados, a questão da moralidade dos atos de participar e de abster-se, mencionados
no início. Quando confrontamos, muito simplificadamente, as máximas “Participarás” e
“Não participarás”, a primeira parece claramente mais universalizável que a segunda.
Mas quando confrontamos a máxima incondicional “Participarás” com a máxima
“Participarás quando tu te julgares informado e motivado sobre o assunto em tela, caso
contrário guardarás obsequioso silêncio”, é patentemente esta última fórmula,
condicional, a que se apresenta como passível de converter-se, pela vontade daquele
que age, em lei universal. É ela que envolve a operação mental de colocar-se na posição
do outro ao avaliar a situação; é ela, portanto, a que encarna a moralidade e a justiça
em grau superior de reflexividade, e presidirá a conduta política do homem justo – e, se
se quiser, virtuoso.

27Outra ressalva: antes que digam que isto constitui um ataque ao instituto do voto obrigatório no Brasil,
quero dizer que a analogia não se aplica, já que a possibilidade de votar em branco ou anular o voto
permite a todos se absterem quando assim preferirem. Num país desigual como o Brasil, sou favorável ao
voto obrigatório não pelo insustentavelmente elitista (e, no limite, autoritário) argumento “educacional”
tão freqüentemente mobilizado, mas pelo simples fato de que é crucialmente importante que o direito ao
voto esteja absolutamente franqueado, e não vejo outra maneira de impedir que intimidações espúrias ao
exercício do voto se façam presentes – a não ser tornando-o obrigatório.
Bruno Reis – Ir para Casa em Paz 15
ANPOCS 2002

Pois aludir a virtudes no contexto desta discussão é aludir sobretudo à virtude


da tolerância (virtude política moderna por excelência), que incorpora e sintetiza em
sentido profundo todas as quatro virtudes cardeais: pois requer a sabedoria que nos
leva à curiosidade de ouvir o outro, a temperança que nos faz duvidar de nossas
próprias vontades, a coragem para aceitar a possibilidade de que a atitude do outro
afinal prevaleça, e a justiça que nos faz aceitar o que contraria nossas vontades. E,
fundamentalmente, é também uma atualização dessas virtudes para o contexto do
mundo moderno. Pois, sendo virtude intrinsecamente dialógica, a tolerância sobrevive
ao nosso naufrágio na relativa invisibilidade da multidão. O vício da intolerância não
pode ser cultivado invisivelmente, solitariamente, entre quatro paredes – ao contrário
do obscurantismo, da intemperança, e da covardia. A tolerância ou a intolerância se
dará numa interação, se manifestará externamente numa relação com outro, e
permanecerá sempre publicamente identificável e denunciável – não importa o
tamanho da multidão.28

Confluindo os planos: algumas considerações finais

Trazendo de volta a democracia para a conversa, meu sentimento básico é que


se se começa (ou, antes, se recomeça) a acreditar que tais ou quais predicados morais
dos cidadãos são necessários para a democracia funcionar “apropriadamente”, logo
veremos as pessoas começarem a clamar realisticamente por ditaduras. (A propósito,
há uma ironia aqui: existe o ditador virtuoso?) Admitir-se-á como requisito moral
aceitável uma única virtude, largamente procedimental, e requisito do exercício da
liberdade pessoal: a tolerância. Quanto à apatia, tratei de mostrar como, sob
determinadas circunstâncias, ela pode até mesmo ser tomada como sintoma de virtudes
subjacentes. Mas, da argumentação aqui desenvolvida, depreende-se que, mesmo não
sendo a apatia ela mesma uma virtude, terá inequivocamente de ser aceita como um
direito, a ser exercido conforme o arbítrio pessoal de cada um: eu tenho o direito de me
abster de votar, ou de falar, ou até mesmo de ouvir discussões sobre temas em que não
estou interessado, e em vez disso ficar em casa com meus filhos ou ir ao estádio para
um jogo de futebol.

28É possível admitir, portanto, que não necessariamente se trata propriamente de fazer operar um
princípio de “economia de virtudes” em geral, mas apenas de certo gênero de virtudes, que seria
deslocado em favor de outro. Esta é a posição de Stephen Holmes, The Anatomy of Antiliberalism, esp.
pp. 227-8.
16 Bruno Reis – Ir para Casa em Paz
ANPOCS 2002

Estou perfeitamente ciente do que pode haver de problemático em me referir


genericamente à “apatia política” apoiado em um argumento sobre abstenção eleitoral.
Certamente a primeira é uma expressão mais forte, e eu poderia me ater à segunda, a
bem da precisão semântica. Mas a verdade é que o uso da expressão “apatia política”
para se referir à abstenção é absolutamente generalizado na ciência política, e a esta
altura consagrado pelo uso. Em todo caso, compartilho da ressalva, e estou pronto a
deixar de usar a palavra “apatia” nesse contexto se combinarmos todos parar de tratar
como sintoma de “apatia política” as taxas de abstenção eleitoral das democracias
modernas. Pelo raciocínio aqui perseguido, é bastante disputável esta inferência – e
altamente duvidoso que as populações das democracias contemporâneas tenham se
tornado mais “apáticas” politicamente nas últimas décadas, independentemente dos
crescentes índices de abstenção eleitoral e desconfiança das instituições e dos
governantes. Particularmente este último indicador pode perfeitamente ser lido na
direção contrária, ou seja, como sintoma de atenção, vigilância e informação crescentes
sobre a rotina governamental – mais genericamente, como sintoma de redução da
subordinação automática ou compulsória dos indivíduos às instituições e organizações
existentes na sociedade.29 Alguns poderão ler o mesmo processo como sintoma de
diminuição da coesão e da integração social. Não quero negar em princípio a
possibilidade de que haja problemas quanto a isso, mas nem por isso o processo
poderia ser lido como regressivo ou desmobilizador: só pode ser emancipatória aquela
forma de coesão que for livremente escolhida de modo reflexivo e crítico pelos
indivíduos; e essa livre escolha inclui a própria escolha das maneiras, oportunidades e
bandeiras de suas manifestações políticas. Não custa lembrar que a Albânia talvez
detenha o recorde mundial do comparecimento eleitoral: 99,9%, na última reeleição de
Enver Hoxha.30

Em suma, a “apatia política” (ainda que ocasional) apresenta-se como talvez o


mais comezinho direito que todo sistema político se vê forçado a reconhecer junto aos
seus cidadãos. Tendo em vista o terceiro critério da autoridade a que se refere Dahl, a
economia (sobretudo de tempo, esse bem intrinsecamente escasso),31 a polis não tem
efetivamente escolha, se se trata de possibilitar ao cidadão, além do cultivo da
fraternidade entre camaradas (talvez pessoalmente estranhos), também o desfrute do

29 Veja-se a respeito Ronald Inglehart, Modernization and Postmodernization, cap. 10.


30 Cf. Inglehart, Modernization and Postmodernization, p. 206.
31 Dahl, After the Revolution?, pp. 40-56.
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ANPOCS 2002

amor junto àqueles que ele escolhe ter perto de si em sua fugaz existência. O direito de
ir para casa em paz quando bem lhe apetecer é a interpelação mínima que todo cidadão
faz a seu sistema político.

Belo Horizonte, setembro/outubro de 2002.

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Resumo

Texto que – mobilizando elementos dispersos na obra de autores como Isaiah Berlin, Robert
Dahl e Stephen Holmes – ensaia em torno da tese de que, se é verdade que não é possível a
justiça na completa ausência de virtudes, não é menos verdade que o bom sistema político deve
ser parcimonioso no input de virtudes requerido, sob pena de impor condições demasiado
restritivas ao seu próprio funcionamento. Presumindo-se uma distribuição aproximadamente
aleatória de virtudes no tempo e no espaço, será ceteris paribus preferível um sistema que
pareça equipado a operar não apenas nos períodos de “abundância de virtudes”, mas também –
e talvez sobretudo – nas épocas de vacas magras, em que as virtudes pareçam escassear nos
corações das pessoas. Isto se tornará uma exigência particularmente crucial no contexto da
sociedade moderna, em que a complexificação e a impessoalidade crescente das relações sociais
produzirão um anonimato que recomendará extrema cautela na presunção da virtude envolvida
nas relações sociais – conforme nos ensina toda a sociologia (afinal, o lugar da vergonha é a
cara...). Nesse contexto, a prudência aconselha e a tolerância exige que a apatia – o ato de “ir
para casa em paz” – nos seja reconhecida, senão como nova modalidade de virtude, pelo menos
como um direito elementar num contexto em que nem todas as questões envolverão a todos
igualmente, e nem todas as vozes serão audíveis em todo momento: por seu exercício, calo-me
respeitosamente perante o juízo de atores mais intensamente envolvidos que eu quando for o
caso, e permito-me esperar que o silêncio de alguns outros me faça poder ser ouvido quando for
meu desejo expressar-me.

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