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LIBERDADE E IGUALDADE:
UMA PERSPECTIVA
HISTÓRICO-CONCEPTUAL

Artur Alves
2003
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Índice

Introdução 3
Capítulo I: A Ideia de Liberdade em Locke 6
Capítulo II: A Igualdade: Origem e Construção 11
Capítulo III: Liberdade de Expressão 16
Considerações Finais 20
Bibliografia 21

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Introdução

A Democracia é o mais imperfeito de todos os sistemas


- com excepção de todos os outros.

(Sir Winston Churchill)

A nossa actual noção de democracia traz consigo toda uma


profunda genealogia, cujas origens são bem conhecidas.
Devemos o conceito e a forma institucional de realização a
um período específico da história ateniense. Na verdade, o
surgimento de uma democracia participativa, em que a polis
se desenhava na ágora, apoiada pelo ensino e cultivo das artes
retóricas e de governo, foi como um breve momento na História -
e o facto de, ainda hoje, nos revermos nele não pode escamotear
o quão pouco dele sabemos e o compreendemos.
As fontes da actual teoria e estrutura democráticas são múlti-
plas e variadas: do Direito e administração romanos, da moral
cristã, das instituições comunitárias medievais às filosofias polí-
ticas do Iluminismo, desenvolveu-se um conjunto de conceitos e
estruturas que, para o Ocidente, resultariam na emergência das
democracias liberais. De natureza indirecta, uma vez que já não
poderia haver lugar para a participação política dos cidadãos,
dada a dimensão dos Estados-nações, estes regimes são, desde
há dois séculos, aqueles que maior desenvolvimento e benefí-
cios trouxeram para a Humanidade. Embora não universalmente
adoptado, os seus princípios não são negados nem contraditos
por nenhum regime - excepto na medida em que podem, pre-
sumivelmente, ser melhor implementados -, e as suas vantagens
para os indivíduos por nenhum igualadas.
Contudo, como Churchill bem sabia, a democracia não é o re-
gime ideal, perfeito em todos os aspectos. Em alguns sentidos,
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é realmente muito desaconselhável. Presta-se à aquisição de ví-
cios de poder, à demagogia, à tirania escondida sob a capa da
representatividade e da alternância de poderes. A democracia
liberal, atacada por crises económicas e sociais como as do pe-
ríodo entre as guerras, não resistiu incólume às promessas da
força armada, da arregimentação bélica; só um novo modo de
pensar a estrutura política, económica e social do Estado, com a
introdução de medidas de protecção dos cidadãos, viria assegu-
rar a sobrevivência mais ou menos sã dos regimes - e não sem os
sacrifícios de mais uma guerra.
A democracia, como sugere John Locke, um dos autores que
abordamos neste trabalho, exigiu o sacrifício de muitas gerações,
que procuraram não apenas resistir e abolir as tiranias, através
de guerras e revoluções, mas também compreender a natureza
humana e construir instituições eficazes para organizar a socie-
dade e o sistema político. Assim, a história da origem da demo-
cracia é, sobretudo, recheada de lutas por direitos considerados
essenciais, defendidos em nome dos povos, do indivíduo, da na-
ção ou de Deus.
Os princípios orientadores são muitos, como podemos verifi-
car pela leitura das constituições de todo o mundo. Contudo,
na origem da teoria liberal democrática, muito ligada ao utilita-
rismo, residia uma luta contra uma certa tirania do Uno, que se
manifestava na justificação divina da monarquia despótica. Este
conflito essencial, que toma como palco toda a Europa ociden-
tal, procede a uma definição dos direitos do Homem, partindo
também, de certo modo, da ideia de criação divina e das prer-
rogativas que decorriam dessa origem para o indivíduo e para a
Humnaidade. Este processo toma uma forma precoce nos con-
flitos civis da Inglaterra do século XVII, na revolução americana
nos períodos pré-revolucionário e revolucionário em França, até
ao século XIX; intervêm nomes como Espinosa, Hobbes, Locke,
Rousseau, John Stuart Mill, entre muitos outros herdeiros do
racionalismo cartesiano comprometidos com os ideais de busca
incessante de conhecimento e de valor crítico da razão.
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Assim, neste “caldo” de direito natural humano, consideração
das intenções de Deus para o Homem e secularização do Direi-
to, surgem as teorias contratualistas de Locke, Mill e Rousseau,
desenvolvendo e instituindo as ideias de liberdade e igualda-
de que, ainda hoje, enformam a nossa noção de democracia e
os nossos regimes. Obviamente, a herança socialista vem trazer
grandes inovações conceptuais no sistema democrático, mas po-
demos dizer que se encontram nas obras destes autores as bases
das actuais democracias liberais capitalistas. O estudo de alguns
dos seus contributos será apresentado nos dois primeiros capí-
tulos.
A construção de um regime com espaço para a liberdade de
expressão do indivíduo alimentara, ainda no século XVII, o génio
de John Milton. Ao escrever Areopagitica, advogava a necessida-
de de “libertação” do livre arbítrio humano. Este conceito será
a ideia central do terceiro capítulo deste ensaio, onde se pro-
curará também salientar a sua importância para a concepção e
evolução da democracia.
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Capítulo I:
A Ideia de Liberdade em Locke

Todo o ser da Natureza tem da Natureza


tanto direito quanta capacidade tem para
existir e agir: a capacidade pela qual existe
e age qualquer ser da Natureza não é outra coisa senão
o próprio poder de Deus, cuja liberdade é absoluta.

(Bento de Espinosa)

A inda que as ideias de liberdade e igualdade se encontrem


ligadas, tanto na definição dos autores analisados, como no
senso comum, a sua separação em dois capítulos conceptuais
distintos pode vir a criar-nos problemas. Na realidade, a igual-
dade dos seres humanos, em democracia, é assegurada por um
conjunto de garantias de direitos e liberdades. Obviamente, sa-
bemos que os esforços por uma sociedade igualitária e perfeita-
mente livre foram e são, muitas vezes, subvertidos pela própria
necessidade de assegurar que os indivíduos sejam livres. É um
paradoxo extremamente interessante, que poderemos começar a
esclarecer, através da definição mais precisa do termo.
Obviamente, em regimes despóticos e autoritários, a ideia de
liberdade aplica-se apenas, em certo sentido, ao soberano; este
é o único a quem á concedida uma autonomia da vontade, en-
quanto sujeito que exerce o Poder. A própria condição de pos-
sibilidade para esta imensa concentração de Poder é a privação
dos súbditos da sua capacidade de acção autónoma, bem como
a distribuição de benesses e “liberdades” para aqueles que se
movimentam nas proximidades desse “buraco negro”. Ou seja,
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num regime autoritário as liberdades, longe de autónomos di-
reitos do cidadão, incontestados, eram outorgadas, e a igualdade
face ao soberano (representante de Deus na Terra) não poderia
existir. Tanto assim que, como veremos em Locke, a liberdade do
cidadão é definida, inicialmente, de modo negativo, erigida em
reacção ao poder despótico.
Segundo Raymond Aron, o conceito de liberdade em democra-
cia não é uno, podendo ser repartido em diversas definições1. 1. V. Aron,
1997:64-69.
Por isso, é preciso fazer algumas distinções, de modo a não con-
fundir problemas e temas. Assim, a “liberdade” pode significar
liberdade de participação na formação ou exercício do poder
(liberdade de cidadania), protecção dos direitos pessoais contra
a arbitrariedade dos dirigentes (liberdade-segurança), liberdade
de realização social e liberdade-autonomia, ou o direito à dife-
rença de um indivíduo quer em relação aos outros indivíduos,
quer à sociedade. Tudo isto é necessário à constituição de uma
sociedade democrática. Contudo, é necessário, de acordo com o
próprio Raymond Aron, distinguir entre a liberdade de partici-
pação no sistema político e o respeito pelos direitos pessoais. O
facto de se realizarem eleições, como experiências recentes nos
recordam, não significa que esteja instituído, na sua plenitude,
um regime democrático - que não pode surgir sem que se reúna
um conjunto mais homogéneo destas liberdades.
Exactamente contra um sistema de falsas representações e legi-
timidade foram erguidas, a partir do Iluminismo, teorias como
a de John Locke, que ainda hoje continua a ser determinante
para a nossa compreensão das democracias liberais. Insurgindo-
se contra o sistema monárquico despótico da Grã-Bretanha do
século XVII, Locke viria a apoiar a Gloriosa Revolução de 1688
(e a entrada de Guilherme de Orange no país, com a deposição
de Carlos II), que daria origem a um novo equilíbrio de poder
entre a Câmara dos Comuns e a Câmara dos Lordes. Os Dois
2. Usa-se, neste
Tratados sobre a Governação, e em particular o Segundo Trata- trabalho, a versão
do2, definem uma teoria de governo, negando a origem divina original da obra
do poder do Rei e instituindo formas de legitimidade para um de Locke The
Second Treatise of
Governo que não apenas a força e a violência. Government.
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Para justificar essa teoria, Locke constrói uma teoria assente,
como as de Hobbes e de Rousseau, no direito natural do Homem
e na necessidade de um contrato social. No que diz respeito ao
direito natural, o filósofo inglês começa por referir um estado
natural do Homem. Defende, ao contrário dos apoiantes de uma
teoria despótica do poder, que não há nada de originário que
justifique a apropriação do Poder por parte de um só indivíduo.
Na realidade, Locke considera que os seres humanos, criados à
imagem de Deus, são iguais desde a origem e, logo, nenhum pos-
sui mais direitos sobre o que quer que seja do que os restantes.
Assim, a origem comum da família humana retira, ab initio, o
direito divino ao monarca absoluto. Mas esta seria, se acabas-
se por aqui, uma teoria anarquista. Ora, Locke propõe-nos um
3. A discussão exercício3: imaginar um estado natural do Homem, reflectindo
acerca da existên-
cia histórica deste o próprio direito natural (que são os direitos atribuídos ao Ho-
estado natural é, na mem antes de qualquer forma de governação), como forma de
nossa opinião, com- perceber como surge o Governo.
pletamente estéril,
uma vez que é De acordo com o autor, as primeiras formas de administração
inconsequente para do Poder surgem devido à condição insatisfatória do estado na-
o valor heurístico
do exercício inte- tural. Na verdade, este estado pode não ser isento de uma forma
lectual. de governo, embora não seja necessariamente legítimo: este es-
tado persiste enquanto não houver acordo entre os indivíduos
para estabelecer um governo político, ideia que vai de encontro à
necessidade de um consentimento universal explícito da comu-
nidade para constituir uma unidade política.
Compreender a constituição de um Governo parece complica-
do, face a um estado natural aparentemente perfeito. Mas não é
assim. O direito natural (bem caracterizado pela Regra de Ouro,
de acordo com a qual é necessário tratar o Outro como se de-
seja ser tratado), se bem que outorgado na Criação, é passível
de violação, o que cria agressores e vítimas, mas não pressupõe
a existência de um sistema de justiça. Por isso, o carácter as-
sistemático do direito do estado natural implica que a aplica-
ção da justiça advenha dos indivíduos, pelo que, mais tarde ou
mais cedo, seria impossível evitar um certo caos social devido às
tentativas de vingança e de restabelecimento da ordem original.
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Nesta perspectiva, atribuir ao Homem total liberdade é lançá-lo
numa condição hobbesiana, donde, é necessário que a razão o
guie antes de se tornar um indivíduo autónomo:
The freedom then of man, and liberty of acting according to
his own will, is grounded on his having reason, which is able to
instruct him in that law he is to govern himself by, and make him
know how far he is left to the freedom of his will. To turn him
loose to na unrestrained liberty, before he has reason to guide
him, is not the allowing him the privilege of his nature to be free,
but to thrust him out amongst brutes, and abandon him to a state
as wretched and as much beneath that a man as theirs.4 4. In Locke,
2003:II,63.

As condições para a constituição de governos são, assim, a ra-


cionalidade humana e a percepção de que o estado natural não
permite a realização do interesse de preservação e realização
pessoal. Este interesse é também um dos deveres do Homem face
a Deus: o indivíduo pertence, em última análise, a Deus, e não
pode dispor livremente da sua vida. Tem a obrigação de realizar
ao máximo o seu potencial e, para tal - paradoxalmente -, neces-
sita de liberdades e garantias de segurança que não pode conse-
guir no estado natural, em que pode decair ao estado indigno de
um animal. A liberdade do Homem é tanto um propósito humano
como um desígnio divino.
O contrato social (abordado em mais detalhe no segundo ca-
pítulo deste trabalho) apresenta-se, cada vez mais, como uma
necessidade. Tanto mais que o estado natural parece ser mais
favorável a usurpações e abusos sem limites do que um governo
- Locke fala-nos das formas de escravatura, como domínio abso-
luto do outro, uma das quais é, justamente, a vontade do monarca
despótico de subjugar os indivíduos. A forma do governo, claro,
determina até que ponto as liberdades do indivíduo lhe são ga-
rantidas - sendo que a democracia liberal é, para Locke e Mill, o
regime que consegue assegurar melhor esta realização.
Mas não sem fazer concessões. Em boa verdade, como nos mos-
tra Mill, já no século XIX, a democracia implica que as diferen-
ças de potencial ou de interesse que existem entre os indivídu-
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os venham ao de cima. Simplesmente, estes sistemas possuem
elementos de controlo que asseguram que questões como a da
propriedade não limitam a liberdade dos indivíduos. Em resu-
mo, não parece que Locke creia que exista mais liberdade no
estado natural do que aquela suficiente para a realização de
um projecto divino para o Homem - a liberdade nunca é total,
e tem sempre um limite em Deus e na liberdade do Outro. As
limitações impostas pela ausência de garantias de manutenção
das liberdades no estado natural, motivadas pela pressão sobre
a comunidade humana, fazem com que essas liberdades apenas
possam ser garantidas por um governo - concentrando o poder
dos indivíduos. Por outro lado, esse governo fará a sua função
tanto melhor quanto respeitar o direito dos indivíduos e lhes
permitir pôr em campo as suas liberdades.
Esta funcionalização da comunidade humana, que atinge o seu
auge na democracia liberal (com a sua ênfase na propriedade e
na produção), chama-nos a atenção para questões muito actuais;
sem um certo grau de desigualdade não parece ser possível ha-
ver garantias de liberdade para todos, e apenas a forma de orga-
nização das funções numa sociedade - e também num sistema
político - define a que ponto a realização individual de cada um
pode ser uma realidade. Ou seja, nos estados sociais da Europa,
como nos Estados Unidos da América, acaba por ser o indivíduo,
na sua concretização pessoal, a contribuir, em vários sentidos,
para que o Governo zele pela preservação do todo, i.e., retribuin-
do com a sua própria forma de eficácia na regulação das relações
entre os indivíduos.
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Capítulo II
A Igualdade: Origem e
Construção

The struggle between Liberty and Authority


is the most conspicuous feature in
the portions of history with which
we are earliest familiar.

(John Stuart Mill)

A frase em epígrafe relembra-nos que, ainda que tentemos


fazer uma separação entre conceitos políticos, eles
estão de tal forma interligados que não é possível separá-los
salomonicamente. Quando muito, podemos, como se tenta neste
curto trabalho, compreender as suas relações de forma geral,
de modo a obter um maior esclarecimento sobre a origem da
estrutura que os sistemas democráticos apresentam, sobre o
discurso inerente ao modo de fazer política nestes sistemas e
sobre os fantasmas que os continuam a assombrar.
O conceito de igualdade está tão relacionado com o fundo cris-
tão da teoria política democrática como o de liberdade e de cria-
ção divina. Os fundadores da teoria democrática adoptam como
ponto de partida a criação divina do Homem, o que significa a
passagem por um direito natural até à constituição do Gover-
no sob a égide de um contrato social. Já vimos que o direito
natural é um elemento central e fundador do questionamento
da liberdade humana, no sentido em que eles se condicionam
mutuamente: sem a preservação do direito natural, o Homem
não é livre.
Tal como acontece com a liberdade, há diversas nuances na
ideia de igualdade. Em primeiro lugar, se é possível conceber
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uma igualdade política, mormente ao nível dos sistemas demo-
cráticos (por muito imperfeita, superficial e aparente que ela
possa ser), relativa aos direitos, prerrogativas e deveres, uma
igualdade efectiva a nível das oportunidades de realização do
indivíduo é pouco menos que impensável. As teorias contratu-
alistas procuram, então, resolver o problema da desigualdade
que, a certo ponto, passa a impossibilitar a convivência sã entre
os indivíduos. Hobbes justifica com este argumento a necessida-
de de um Estado forte e soberano, com imensos poderes sobre
os cidadãos. Isto mostra que nem todos os contratualistas estão
necessariamente de acordo quanto ao regime a adoptar. Na ver-
dade, parece ser pacífico que essa decisão resulta da quantidade
de liberdade e direitos que os pensadores pensam ser suficien-
tes, ou necessários, para a manutenção do direito natural e rea-
lização individual dos cidadãos. Contudo, e devido ao próprio
objecto deste trabalho, não iremos recuar a Hobbes.
Rousseau procura explicar a necessidade de um contrato social
a partir, justamente, da ideia de desigualdade. É a partir do seu
trabalho sobre a origem da desigualdade entre os homens que
iremos desenvolver este capítulo. Não nos podemos esquecer
que na base de todas estas ideias está a consideração de uma
igualdade originária, profunda, que é, como refere Aron, difícil
de conciliar com a realização dos ideais de liberdade. Em demo-
cracia, como explica este autor, «(.. ) les individus aient le maxi-
mum de liberté par rapport à l’État et oú les individus soient aussi
5. In Aron, égaux que possible dans l’ordre social ou économique»5. Voltamos,
1997:71.
portanto, à ideia de Locke acerca da necessidade de mecanismos
de equilíbrio e de compensação, bem como de vigilância, con-
trolo e apoio social. Nas formas diferentes de realização desta
intenção têm origem as tendências liberais - que dão mais im-
portância à liberdade individual - e socialista - cujo ênfase recai
sobre a igualdade entre os cidadãos. As formas de democracia
que conhecemos hoje têm aqui a sua raiz profunda.
Para Rousseau, o Homem é naturalmente bom. Apenas o con-
tacto com outros indivíduos, ou seja, a sociedade, torna o ser
humano mau e corrupto. A vida social retira-lhe a energia e a
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força, fazendo-o render-se a necessidades, medos e actividades
que não se coadunam com as suas origens no estado natural. A
complexificação da vida do Homem faz com que ele perca o que
tem de mais próprio: o estado natural é instinto, e não discur-
so, assenta na generosidade da Natureza, e não na propriedade
privada. Segundo Jean-Jacques Rousseau, o primeiro Homem a
apropriar-se de uma fracção da Terra é o verdadeiro responsá-
vel pelo surgimento da sociedade civil e da corrupção.
Locke justifica a aquisição de propriedade com a eficácia: a
partir de certo ponto, a Natureza deixa de poder suster todos
os seres humanos. Torna-se, então, necessário que o Homem
produza para si próprio, de acordo com as suas necessidades, e
para os outros, através das trocas. Obviamente, a introdução do
dinheiro transforma este sistema económico de troca, porque
permite acumulação de riqueza de acordo com a ocupação do
indivíduo. A necessidade de dinheiro para a sobrevivência altera
a própria economia política da sociedade, uma vez que aqueles
que conseguem acumular maior riqueza adquirem maior poder
- e ascendência sobre os outros indivíduos, devido à capacida-
de ilimitada de aquisição de mais propriedade privada ainda. A
sobrevivência dos outros passa a depender também da riqueza
destes indivíduos, ainda que não o desejem - daqui a desigual-
dade entre os homens.
A teoria do contrato social implica um acordo pacífico sobre o
equilíbrio entre poderes e liberdades, de forma a preservar os
direitos e liberdades dos indivíduos, enquanto assegura a sobre-
vivência de toda a sociedade. Também é necessário um estado
de igualdade original que, ameaçado, passa a exigir a instituição
de medidas correctivas para ser assegurado. Normalmente, este
acordo geral exige a concessão no campo das liberdades indivi-
duais (particularmente o direito à diferença e à autonomia), em
favor da segurança. Trata-se de um tema comum na vida política.
Em tempos de crise, os indivíduos são obrigados, ou tentados, a
conceder ao governo competências adicionais, de modo a asse-
gurar a manutenção de segurança comunitária.
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Outra manifestação de desigualdade é o facto de o governo se
operar por representação e não participação. A democracia, tal
como se concebe hoje, é representativa, mas o sufrágio universal
assegura a igualdade de participação dos cidadãos na escolha
dos seus representantes. Trata-se de um direito conquistado,
num processo que atribui ao conjunto de indivíduos de uma
Nação a posse do Poder, que é continuamente delegado nos go-
vernantes. Para Rousseau, sem poder de participação o indivíduo
tem de se resignar a expressar-se apenas pontualmente, como se
exorcizasse medos de tirania, mas sem intervir directamente nos
negócios do governo.
A realização da igualdade contratual, com a instituição do con-
trato social, pode ser espontânea, com uma transição mais ou
menos pacífica, ou com uma revolução ou intervenção pela for-
ça. Esta é, aliás, justificada por Locke como forma de repor um
estado de justiça, liberdade e igualdade onde eles não existe.
Recorde-se, desde logo, a Revolução Francesa, o 25 de Abril em
6. Evocam-se Portugal, mas também a recente intervenção dos Estados Unidos
aqui, obviamente,
não os motivos da América no Iraque6. Esse momento fundador tem reflexos na
mais ou menos constituição de toda a sociedade, como é óbvio, e na história de
profundos da uma comunidade: determina o alcance da autoridade, a força do
intervenção, mas
sobretudo os Estado social ou a iniciativa individual, a dependência da socie-
efeitos: foi depos- dade civil face ao Governo.
to um governo
autoritário. O contrato social como forma de legitimidade para os gover-
nos, em vez do direito divino é, de facto, extremamente eficaz.
A vontade de justiça incorporada, tanto por Locke (por acordo
entre governantes e governados) como por Rousseau (por acordo
entre os membros da sociedade) no contratualismo mostra que
a injustiça é o bloqueio humano por excelência à realização
do projecto da Criação, ou do estado original. Paradoxalmen-
te, o Estado, que Rousseau afirma corromper o Homem, tem
de instituir a Justiça como forma de garantir a manutenção do
direito natural. Ainda hoje, nas nossas democracias, as questões
da justiça e da propriedade são absolutamente centrais, consti-
tuindo problemas recorrentes do Direito. A injustiça tem como
origem a eliminação da irmandade entre os indivíduos: a partir
15
do momento em que não existem um sentimento de pertença
e partilha de um mesmo mundo e das mesmas condições de
existência, é possível ameaçar o mais divino dos direitos do Outro,
i.e., o direito à preservação da própria vida. Os diferentes modos de
pressão sobre esse direito radicam na eliminação de uma igualdade
de condição, e não necessariamente nas diferenças de aptidão. Pode-
mos dizer, assim, que as desigualdades e a injustiça surgem quando
um indivíduo ou grupo de indivíduos assume ilegitimamente o
Poder ou não respeita os direitos contratualizados da sociedade
- ou, num momento anterior, exerce qualquer forma de pressão
sobre o direito de outrem.
16

Capítulo III:
Liberdade de Expressão

If we think to regulate printing,


thereby to rectify manners,
we must regulate all recreation and pastimes,
all that is delightful to man.

(John Milton)

A democracia é impensável sem liberdade de expressão. O


facto de a participação dos cidadãos na coisa pública ser
reduzida, em favor de uma forma de participação indirecta,
através de representantes, implica que tenha de haver constante
comunicação contínua entre governantes e governados. Ora, esse
tipo de feedback tem de ser processar através de um sistema
de input e output, em que se compensa essa “deficiência”
essencial das democracias. Os próprios pensadores cujas teorias
impulsionaram as revoluções ou transições democráticas tiveram
de lutar contra regimes que, pura e simplesmente, não admitiam a
necessidade de crítica, e a própria perversidade do silenciamento
dos governados.
Em John Milton, essa revolta é a fonte de um tratamento iró-
nico da censura. Chega, aliás, na sua obra Areopagitica, de 1644,
a afirmar que procurar limitar os direitos de impressão e di-
vulgação através de uma estrutura autoritária centralizada não
era garantia de estabilidade governativa, ou fosse do que fosse.
Na verdade, continuariam a colocar-se problemas quanto à in-
tegridade e competência dos censores, à quantidade de obras
que é possível criar, ler e censurar e aos erros que podem ser
cometidos em todas as fases do processo. Mas a questão essencial
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é: não será melhor dar liberdade de expressão àqueles que, de
facto, estão preocupados com os negócios públicos, ainda que o
preço de tal liberdade seja a mistura nessa corrente de críticas
negativas e de charlatães?
Milton sugere, neste discurso dirigido ao Parlamento inglês,
que a abolição das restrições censórias à liberdade de expressão
e, muito particularmente, dos privilégios e monopólios de im-
pressão e edição, só poderá beneficiar o Governo e o público. E
isto por diversas razões diferentes: em primeiro lugar, todas as
obras poderão ser expostas à crítica pública, em vez de circula-
rem subterrânea e descontroladamente, sob a capa de um segre-
do que ajuda a criar o mito. Milton sublinha, assim, o valor da
racionalidade pública: se as obras puderem ser expostas à crítica
racional, o seu verdadeiro valor surge.
Em segundo lugar, as obras e críticas que vêm a luz do dia
têm um valor acrescentado para os próprio governantes, que têm
toda a vantagem - se excluirmos o seu próprio narcisismo - em
ouvir o que pensam os governados das suas acções. Isto tem
importância acrescida, quando consideramos que essa relação
resulta de um contrato social voltado para um regime democráti-
co. Nestes casos, e por causa da realização periódica de eleições
para escolha dos líderes, a liberdade de expressão e a discussão
pública são absolutamente essenciais. Obviamente, não se passa
o mesmo em regimes autoritários, que se inclinam para a manu-
tenção de um Estado securitário de controlo, que se baseia na
conservação de um poder ilegítimo.
Isto representa um novo problema: o regime democrático não
pode existir sem a liberdade de expressão, que representa uma
espécie de garantia para a manutenção de todas as outras liber-
dades e garantias. A natureza do espaço público contemporâneo,
contudo - como nos mostra Jürgen Habermas, não é tal que faci-
lite a manutenção de um estado de igualdade no acesso à tribuna
pública. Por isso, mesmo no campo da expressão e da opinião, há
“representantes”, que asseguram a crítica do comportamento dos
responsáveis políticos. É uma forma de controlo institucional, se
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bem que não oficial, do contrato social, que assegura eficácia na
responsabilização e escolha dos líderes políticos.
A crítica pública é, para Milton, um modo mais válido e vantajoso
de gerir o governo civil do que o estrangulamento do público. Por
exemplo, proibir livros “perniciosos” tem mais inconvenientes do
que vantagens:
Seeing, therefore, that those books, and those in great abundan-
ce, which are likeliest to taint both life and doctrine, cannot be
supressed without the fall of learning and of all ability in dispu-
tation, and that these books of either sort are mosst and soonest
catching to the learned, from whom to the common whatever is
heretical or dissolute may quickly be conveyed, and that evil man-
ners are as perfectly learnt without books a thousand other ways
which cannot be stopped, and evil doctrine not with books can
propagate, except a teacher guide, which he might also do without
writing, and so beyond prohibiting, I am not able to unfold, how
this cautelous enterprise of licensing can be exempted from the
7. In Milton,
1644:10.
number of vain and impossible attempts.7

De acordo com John Milton, aqueles que ficam em desvantagem


com as limitações à impressão e publicação são apenas os letrados,
i.e., justamente aqueles que se interessam pela coisa pública e pelo
bem estar de toda uma sociedade. De resto, todas
aquelas doutrinas que podem ser nocivas para o Estado - e
que, como é óbvio, só podem ser definidas de acordo com o
bem comum dos cidadãos, e não em benefício da manutenção no
Poder daqueles que dele se apropriaram ilegitimamente - podem
propagar-se por outros meios. Por isso, limitar a expressão escri-
ta é duplamente nocivo: (1) não permite aos melhores espíritos
expressar as suas ideias - mesmo que contra o bem geral da so-
ciedade -, impossibilitando a discussão das boas e más ideias que
circulam e, (2), faz com que as conspirações, juntamente com
os negócios públicos, se passem num certo “segredo” pernicioso.
Como consequência geral, o nível de instrução, conhecimentos
e competências dos cidadãos para participar na res publica são
limitados até ao ponto de um autismo governamental e isolamento
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de governantes e cidadãos. A quebra da capacidade de comuni-
cação e crítica determina a quebra da própria razão do contrato
social referido nos capítulos anteriores: o contacto entre gover-
nantes e governados com vista ao bem comum.
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Considerações Finais

P udemos verificar, ao longo deste trabalho, que a emergência


da teoria política democrática - as bases do sistema
democrático liberal em que vivemos - corresponde, de certo
modo, à falência do pensamento utópico que marca a maior
parte do pensamento político anterior ao século XVII. Segue-se,
assim, uma linha mais pragmática, que não hesita em eliminar os
sonhos utópicos de sociedade perfeita e concentrar-se no bem
estar geral, ou o mais alargado possível.
A partir da compreensão da falível natureza humana - o que
implica uma perda de confiança na bondade do Homem -, os
autores que estudámos constroem formas de coabitação e or-
ganização política da sociedade, com o objectivo de instituir
as liberdades e formas de igualdade que (1) eram próprias do
Homem no seu estado original que, por uma ou outra razão, não
podia ser mantido ou, (2), devem ser instituídas por mecanis-
mos próprios, de forma a realizar um potencial de outro modo
inalcançável. O facto de esse potencial estar em défice relativa-
mente à perfeição é algo que podemos observar em Maquiavel
e Hobbes: o Governo dos homens tem, portanto, de ter isto em
consideração, sem, ao mesmo tempo, impedir a realização pes-
soal do indivíduo. O conjunto de instituições que podem vir a
permitir a emergência de um regime democrático tem de ser,
8. Esta expressão é
usada comummen-
então, equilibrado, um sistema de checks and balances8.
te em referência Esta desmistificação também se volta contra a teoria do direito
ao sistema político
norte-americano,
divino (o primeiro tratado de Locke é uma violenta crítica a Fil-
em que os poderes mer e à justificação divina da monarquia) e, em última análise,
do Presidente são desligitima quaisquer formas de Poder que não tenham como
contra-balançados
por um conjunto de
base e fonte os cidadãos. São, assim, estabelecidas as fundações
instituições. de uma teoria política democrática propriamente moderna.
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