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Organizadores

JEAN-CHRISTOPHE MERLE
LUIZ MOREIRA

Direito e
Legitimidade
Escritos em homenagem
ao Prof. Dr. Joaquim Carlos Salgado,
por ocasião de seu Decanato como
Professor Titular de Teoria Geral e Filosofia
do Direito da Faculdade de Direito da UFMG

EDITORA
DIREITO E LEGITIMIDADE
Organizadores
Jean-Christophe Merle e Luiz Moreira
CATHERINE AUDARD • BRIAN BARRY • ANDRÉ BERTEN • ADELA CORTINA
REGENALDO DA COSTA • TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.
ALEXANDRE TRAVESSONI GOMES • PETER HÄBERLE • JÜRGEN HABERMAS
OTFRIED HÖFFE • AXEL HONNETH • MATTHIAS KAUFMANN
WOLFGANG KERSTING • JEAN-FRANÇOIS KERVÉGAN • PETER KOLLER
ROSEMIRO PEREIRA LEAL • HENRIQUE CLÁUDIO DE LIMA VAZ
JEAN-CHRISTOPHE MERLE • LUIZ MOREIRA • EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA
PHILIP PETTIT • ULRICH K. PREUß • HENRY S. RICHARDSON
LUIZ PAULO ROUANET • JOAQUIM CARLOS SALGADO
ANTÔNIO ÁLVARES DA SILVA • QUENTIN SKINNER • CLÁUDIA TOLEDO
ANTÔNIO CARLOS WOLKMER

Tradução
Claudio Molz
Tito Lívio Cruz Romão

Revisão técnica da tradução


Luiz Moreira
Cláudia Toledo

© Jean-Christophe Merle e Luiz Moreira

Capa
Camila Mesquita

Editor
Antonio Daniel Abreu

Revisão e diagramação eletrônica


Oficina das Letras Apoio Editorial S/C Ltda.
internet: www.oficinadasletras.com.br

Landy Livraria Editora e Distribuidora Ltda.


Alameda Jaú, 1791 – Tels. e Fax (11) 3081.4169
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2003
SUMÁRIO

JEAN-CHRISTOPHE MERLE e LUIZ MOREIRA – Introdução ................. 9

PARTE I
SOBERANIA, DIREITOS HUMANOS E LEGITIMIDADE

ANDRÉ BERTEN – Republicanismo e motivação política ................ 21


R EGENALDO DA C OSTA – Discurso, Direito e democracia em
Habermas ................................................................................. 37
PETER HÄBERLE – A humanidade como valor básico do Estado
Constitucional .......................................................................... 53
JÜRGEN HABERMAS – Sobre a legitimação pelos direitos humanos 67
A XEL H ONNETH – A superinstitucionalização da eticidade em
Hegel ........................................................................................ 83
MATTHIAS KAUFMANN – Discurso e despotismo ............................. 94
WOLFGANG KERSTING – Democracia e educação política ............... 107
JEAN-FRANÇOIS KERVÉGAN – Democracia e direitos humanos ........ 115
HENRIQUE CLÁUDIO DE LIMA VAZ – Ética, Direito e Justiça .......... 126
LUIZ MOREIRA – Direito e normatividade ...................................... 144
ULRICH K. PREUß – Os elementos normativos da soberania ......... 158
HENRY S. RICHARDSON – Em defesa de uma democracia qualificada 175
JOAQUIM CARLOS SALGADO – Princípios hermenêuticos dos direitos
fundamentais ............................................................................ 195
QUENTIN SKINNER – Estados livres e liberdade individual ............. 212
CLÁUDIA TOLEDO – A argumentação jusfundamental em Robert
Alexy ....................................................................................... 231

PARTE II
PLURALISMO CULTURAL, LEGITIMIDADE E PROCEDIMENTO

CATHERINE AUDARD – Ética pública, moral privada e cidadania ... 249


BRIAN BARRY – Procedimento e justiça social ............................... 262
ADELA CORTINA – Ética transnacional e cidade cosmopolita ........ 274
8 DIREITO E LEGITIMIDADE

TERCIO S AMPAIO F ERRAZ J R . – A legitimidade pragmática dos


sistemas normativos ................................................................ 288
ALEXANDRE TRAVESSONI GOMES – Ética, Direito e paz perpétua .... 298
OTFRIED HÖFFE – Estados nacionais e direitos humanos na era da
globalização ............................................................................. 309
PETER KOLLER – Soberania nacional e justiça internacional ......... 322
ROSEMIRO PEREIRA LEAL – O garantismo processual e direitos fun-
damentais líquidos e certos ..................................................... 335
JEAN-CHRISTOPHE MERLE – Ética kantiana de integração e negocia-
ção de ingresso ........................................................................ 344
EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA – A suprema corte e a era da incer-
teza ........................................................................................... 355
PHILIP PETTIT – Democracia e contestabilidade ............................. 370
LUIZ PAULO ROUANET – Igualdade complexa e igualdade de renda
no Brasil .................................................................................. 385
ANTÔNIO ÁLVARES DA SILVA – Da legitimidade do empregado e do
empregador na solução de seus próprios conflitos ................ 395
ANTÔNIO CARLOS WOLKMER – Pressupostos de legitimação para se
pensar a justiça e o pluralismo no Direito ............................. 416
DEMOCRACIA E EDUCAÇÃO POLÍTICA*

WOLFGANG KERSTING
Professor Titular de Filosofia da Universidade
de Kiel, Alemanha.

1. O problema democrático

Que é que se pretende dizer com o problema democrático? Será de


ajuda iniciar a explicação com uma tese geral. Diz assim: qualquer or-
dem política baseia-se em fundamentos pré-políticos, não decide por si
sobre o seu próprio êxito, mas depende, nos seus serviços formais de
satisfação e de coordenação, de pressupostos sócio-morais e sócio-cul-
turais. Esses pressupostos têm caráter formador de ethos, eles caracteri-
zam os perfis de comportamento e os modelos de sentido; são os recur-
sos motivacionais da unidade política e da coesão social; eles perpas-
sam as ordens do interesse e do Direito coercitivo e possibilitam a uni-
dade que apenas pelos sistemas de coordenação não pode ser garantida.
Se eu traduzir essa tese sociológica para a linguagem da ética, ela dirá:
a eficácia de uma ordem política depende de uma concepção conjunta
do bem, a qual provê a base motivacional da convivência e estabelece o
sentido comunitário que se exige para a unidade social. A política clás-
sica sempre soube disso; é um lugar comum republicano o fato de que,
sem cidadãos virtuosos, as melhores leis e instituições não têm valor
nenhum e de que, por causa disso, uma boa política não pode negligen-
ciar, em meio ao cultivo das leis, a educação dos cidadãos ou, como
diria Platão, a formação das suas almas.
Essa ligação da ordem política com pressupostos pré-políticos dei-
xará de ser perigosa, quando as estruturas internas da ordem política
não obstruírem a reprodução moral da sociedade. Quando a ordem po-
lítica, porém, for de tal sorte que ela destrua os seus próprios fundamen-
tos sócio-culturais e com isso interrompa a regeneração moral da socie-
dade, então os efeitos serão funestos. Se é que os críticos do liberalismo
tiverem razão, seria justamente isso que ocorre com a ordem liberal.

( )
* Tradução do original em alemão: Claudio Molz; Revisão técnica da tradução:
Luiz Moreira e Cláudia Toledo.
Artigo gentilmente cedido pelo autor para o presente livro do original em
alemão Demokratie und politische Erziehung.
108 DIREITO E LEGITIMIDADE

Desde o princípio, assim dizem os críticos, a ordem liberal teria saquea-


do as reservas morais do sistema de vida. E quando, então, em seguida,
os recursos tradicionais da solidariedade e do autocomprometimento se
esgotarem e as coisas corriqueiras do respeito e consideração sumirem,
então a sociedade liberal não mais poderia resistir à pressão centrífuga do
crescente individualismo; ela sucumbiria e voltaria para o lugar, de onde,
de acordo com o seu próprio mito de fundação, proveio, para o estado
natural da ausência de leis e da guerra de todos contra todos. Aos olhos dos
seus preocupados críticos, à sociedade liberal restaria apenas um caminho
para evitar esse destino. Para frear a especulação econômica e, simultanea-
mente, a dinâmica de auto-realização inescrupulosa, ela precisaria assegu-
rar-se de novo do apoio das forças da tradição e fortalecer os compromis-
sos do sistema de vida, precisaria reabilitar a religião e a metafísica, já que,
em última instância, não seriam as instituições do Direito, mas seria so-
mente Deus que poderá conduzir o ser humano moderno da sociedade
liberal para fora do dilema em que está preso.
No entanto, nada de novo se está narrando ao liberalismo com essa
crítica. Ele nem sequer cogita de pôr em dúvida os dados diagnostica-
dos. Só que lhes atribui uma avaliação contrária, isto é, emancipatória.
Foi, ao menos, coisa semelhante que fez nos seus anos de juventude.
Basta lembrar o famoso dito de Kant, no sentido de que “o problema da
instauração do Estado [...]” seria “solucionável mesmo para um povo
de demônios [...], contanto que tenham racionalidade”. Com essa drás-
tica imagem o filósofo expressou a convicção fundamental do liberalis-
mo clássico de que tranqüilamente se poderia prescindir da virtuosidade
do cidadão republicano na época moderna, uma vez que todos os recur-
sos exigidos para serem investidos na integração social poderiam ser
supridos exclusivamente do fundo motivacional do interesse próprio
iluminista. Entrementes, o liberalismo naturalmente perdeu esse oti-
mismo. Há muito entendeu que Kant se enganara e que não é possível
estabelecer nenhuma sociedade exclusivamente sobre o fundamento
soberano do Direito. A sociedade liberal tem uma necessidade conside-
rável de ethos, a necessidade de uma concepção conjunta do bem que
produza senso comunitário e engajamento cidadão e gere a disciplina
moral, que é necessária, a fim de salvar a “linda, espirituosa e temerá-
ria” questão do liberalismo.1 Mas onde é que se encontra essa concep-
ção conjunta do bem? Os adeptos das varinhas mágicas comunitaristas
dirigem o seu olhar firmemente para o passado e, por vezes, têm-se a
impressão de que a atualidade está se tornando um local de encontro
para redivivos. Nos dossiês dos semanários e nos encontros das acade-
mias evangélicas a reanimação está em alta. Espera-se um redescobri-

(1)
ORTEGA Y GASSET, José, Der Aufstand der Massen [O levante das mas-
sas] (1930), Hamburg, 1956, p. 55.
WOLFGANG KERSTING 111

participação democrática são garantidas por uma configuração jurídica


favorável, pelo aumento na adoção de elementos plebiscitários consti-
tucionais. Essa asseveração precisa ser, sempre de novo, contraposta a
todos os entusiastas da ética do discurso e da sociedade civil. É roman-
tismo democrático crer que a qualidade da cultura cidadã seja apenas
um problema de participação, alegando-se que, de momento, essa par-
ticipação estaria pelo chão, como que estrangulada devido a passivida-
de política forçada, mas que, a seguir, com o corajoso fortalecimento
dos elementos participatórios, iria subitamente florescer. A qualidade
da participação ética depende exclusivamente da competência ética dos
cidadãos. E essa competência não se adquire por meio de procedimen-
tos de Direito Constitucional, mas tão-somente pela educação.

2. Educação política ética

O tema da educação política ética tem consistentemente feito parte


da política clássica. Na Filosofia política moderna, entretanto, esse âmbito
é desconsiderado como problema. Há duas razões para isso.
Por um lado – é o que vale para a Filosofia política nos inícios da era
moderna, de Hobbes até Kant –, achava-se que seria suficiente trabalhar
com o fundo motivacional do interesse próprio iluminista. Por outro
lado – é o que vale para a Filosofia política na atualidade –, havia a
inibição para fazer perguntas sobre a educação, em vista do dever de o
Estado ser neutro. Um Estado que se compreende como moderador e
administrador do pluralismo não pode transmitir ele mesmo orienta-
ções de valoração e tem que deixar tarefas desse tipo às instituições
sociais respectivas, à família e à igreja. Obviamente a exclusão da edu-
cação deixou sem responder a questão, de onde deveriam afinal vir os
cidadãos eticamente competentes que formariam a sustentação para que
a sociedade pudesse organizar-se a si mesma de forma deliberativa e
democrática. Em vez disso, acabou-se gerando na teoria um
romanticismo democrático-teórico que, com os olhos intencionalmente
bem fechados, se esmerava dedicadamente em dar um polimento ao
ideal democrático, confrontando a realidade com conceitos cada vez
mais fantásticos de participação cidadã e de autodeterminação pela so-
ciedade civil. E alguns, que eram especialmente imunes à realidade, até
chegam a crer, por isso, que aquilo que, no Estado nacional, não foi
bem-sucedido, seguramente daria certo na amplitude da sociedade mun-
dial transnacional. Quem lamentar a desmotivação política, a crescente
falta de senso comunitário e a desertificação social do sistema de vida,
não deveria calar a respeito de educação política. E quem quiser calar a
respeito de educação política, não deveria fazer exigências de democra-
tização, pleitear por engajamento da sociedade civil e cobrar mais opor-
tunidades de participação. A autenticidade do teórico manda que a idéia
não definhe em gesticulação. Crítica normativa que estiver comprome-
WOLFGANG KERSTING 113

de distensão do individualismo quanto dos efeitos de alienação do


universalismo. O cidadão liberal precisa de virtudes específicas da
modernidade, virtudes reflexivas, nas quais se expressa a propriedade
distintiva da vida na era moderna; ele necessita estar capacitado para a
complexidade e saber combinar a demanda por tolerância no pluralis-
mo com a capacidade de defender conscientemente uma característica
liberal própria; ele precisa saber agüentar incertezas e resistir às tenta-
ções das coisas simples; ele precisa ser altamente capacitado para coo-
perar e estar em condições de elaborar em conjunto concepções de metas
políticas e de autocompreensão ética; e ele não pode sacrificar a dispo-
sição de defender essa forma de vida, que é a mais complicada que já foi
desenvolvida até agora na história mundial, em nome de um estado de
atenção neutralista, em atitude de expectativa, esperando o momento
que lhe pudesse carrear a maior vantagem.
Partindo dessa idéia, falta apenas um pequeno passo até a educação.
É que virtudes precisam ser aprendidas; cidadãos não caem do céu, e
uma sociedade liberal não deveria relegar a formação de uma cidadania
liberal ao acaso. Esta linha de argumentação tem a vantagem de evitar o
viés funcionalista, no qual cai a maioria da crítica do liberalismo. Ainda
que fosse certo que para a sua necessidade de integração a sociedade
liberal abasteceu-se até agora das fontes éticas que ainda jorram de
sistemas da tradição, já há muito empalidecidas, esse fato não nos leva
adiante. Tradições são perpassadas por elementos de veracidade e não
podem, por isso, ser artificialmente revividas; aqueles que pretendem
reintroduzir a religião e a metafísica, em virtude dos seus bem-vindos
efeitos integrativos, desprezam a ambos, o sistema de interpretação da
tradição e a sociedade liberal da atualidade. Indubitavelmente, o libera-
lismo constitui um projeto sobremaneira frágil da era moderna política,
mas é ilusório que se pudesse estabilizá-lo por meio de imitações da
tradição, aplicadas como instrumentos de forma manipuladora. Mas é
igualmente ilusório, atribuir força geradora de motivação às regras uni-
versalistas do Direito e da Moral; a Constituição não é uma pátria. So-
mos pessoas em busca de felicidade e de sentido, mas não em busca de
justiça; concepções de felicidade e interpretações de sentido podem
motivar-nos, os procedimentos universalistas de formação da vontade
democrática e a ordem que contextualiza o igualitarismo dos direitos
humanos, porém, não produzem efeitos que orientem para a ação. O
liberalismo, no entanto, constitui uma ordem exigente que precisa da
lealdade, da efetiva afirmação e da ativa colaboração dos cidadãos. Se o
liberalismo perder os seus cidadãos, ele se torna indigesto, o sistema
político definha, a cultura da distância desaparece e o Direito se acovar-
da. O liberalismo, portanto, tem que compreender a si mesmo como um
bem e não titubear em tomar providências para a sua continuidade, pelo
interesse político próprio através de uma educação política corajosa.
Mas para alcançá-lo, será exigido a formação de um ethos liberal, um
114 DIREITO E LEGITIMIDADE

ideal de cidadania, que o liberalismo desista de autocompreender-se


por um mal-entendido neutralista e que encontre a coragem de não pro-
ver alunos apenas com cognitivas qualificações-chave e oportunidades
individuais de carreira, mas de educá-los como cidadãos, que em uma
educação político-ética, orientada para a excelência, se suscite nos ado-
lescentes a compreensão de que o liberalismo é um assunto bom e justo,
e, por isso mesmo, belo, imaginativo e arriscado.
O problema da democracia apresenta, porém, ainda outra faceta: é
que apenas a educação dos cidadãos não basta. Na democracia liberal a
necessidade de ethos é maior. Necessitamos também de políticos etica-
mente educados, uma vez que não só uma cidadania que vai sumindo,
pode arruinar a ordem política liberal, mas o abandono ético dos políti-
cos também pode destroçar a democracia e o Estado de Direito. Afinal
de contas, a falta de sensibilidade para questões de forma, de postura e
de decência entre a classe política é ainda bem mais periclitante para a
qualidade e a consistência da democracia liberal, uma vez que de qual-
quer modo, como não sem razão alguns alegam, o cidadão já estaria de
todo politicamente desapropriado e o sistema comunitário teria passado
às mãos dos partidos políticos. Se os proprietários e ocupantes do poder
já não forem orientados pelo suave regime dos parâmetros costumeiros
da decência, se fraquejar a força da naturalidade ética, que é a que for-
ma a mentalidade e orienta a ação, e abandonar o campo em favor do
oportunismo de auto-afirmação descompromissado, descarado e versá-
til, então o fundamento da democracia liberal cai em erosão. Como será
que nós liberais chegamos à convicção de que tão-somente o conjunto
de regras e o sistema contariam e que só importaria dar uma forma tal à
moldura institucional que todos, cidadãos e políticos, já funcionariam
por interesse próprio, como o plano geral da política de estabilidade
previa? Seguramente coube razão à democracia diante de Platão. Não
há motivo para entregar a direção do sistema comunitário a um grupo de
extraordinários especialistas da sabedoria e abdicar da organização da
soberania democrática. Mas parece – e acumulam-se as motivações para
suspeitá-lo – que a democracia não consegue arranjar-se sem Platão.
Preocupantes fenômenos de carência ética clamam por uma teoria de
educação política e ética dos cidadãos e dos políticos. E certamente é
tarefa da Filosofia política da atualidade adotar essa temática e encon-
trar uma forma de expressão, que fosse adequada às condições atuais de
pensamento e de vida, para o problema da garantia suficiente dos recur-
sos éticos de engajamento, de lealdade e de decência. É que não será
possível, de modo tão descomplicado, revolver a tralha, como Rawls e
os seus ao ressuscitarem o contrato, e reativar o venerável gênero do
espelho do príncipe.
ESTADOS LIVRES E LIBERDADE
INDIVIDUAL*

QUENTIN SKINNER
Professor Titular de História Moderna da
Universidade de Cambridge, Grã-Bretanha.

Na Grã-Bretanha do início da Idade Moderna, a teoria neo-romana


dos Estados livres tornou-se uma ideologia altamente subversiva. A es-
tratégia seguida pelos teóricos neo-romanos (Milton, Harrington, More,
Sidney, Nedham etc.) foi a de apropriar-se do valor moral supremo de
liberdade e aplicá-lo exclusivamente a certas formas um tanto radicais
de governo representativo. Isto acabou permitindo-lhes estigmatizar,
com o ignóbil nome de escravidão, a um número de governos – como o
Ancien Régime na França e o domínio britânico na América do Norte –
que eram considerados legítimos e até progressistas. Por este moti-
vo, dificilmente causará surpresa a idéia de que a teoria neo-romana
sempre conviveu com uma saraivada de críticas fortemente hostis.
A mais radical dentre estas críticas foi expressa, talvez da forma mais
decisiva, no Leviatã, de Hobbes. Trata-se da mais pura confusão, afirma
Hobbes, supor que haja alguma ligação entre o estabelecimento de Es-
tados livres e a manutenção da liberdade individual. A liberdade descri-
ta tanto pelos autores romanos quanto por seus admiradores modernos
“não é a liberdade dos indivíduos”, porém, simplesmente, a “liberdade
do Estado”.1

(*)
Tradução do original em inglês: Tito Lívio Cruz Romão; Revisão técnica da
tradução: Cláudia Toledo e Luiz Moreira.
Artigo gentilmente cedido pelo autor para o presente livro com o título origi-
nal Free states and individual liberty.
(1)
HOBBES, Thomas. Leviathan, or The Matter, Forme & Power of a Commom-
weath Ecclesiasticall and Civil, ed. Richard Tuck, revised student edn.,
Cambridge [tradução brasileira Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um
Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Editora
Martin Claret, 2002] 1996, p. 149.
QUENTIN SKINNER 213

Desde então, a objeção de Hobbes, logo adotada por Filmer,2 tem


sido reiterada por diversos autores.3 Segundo consta, os autores neo-
romanos estavam preocupados com a liberdade das cidades e não com
a liberdade dos cidadãos individualmente.4 Todavia, esta controvérsia
não logra arcar com a estrutura da teoria neo-romana de liberdade. Se é
verdade que os referidos autores tomam esta idéia de Estados livres
como seu ponto de partida, assim o fazem, em parte, por causa de uma
tese radical que desejam desenvolver acerca do conceito de liberdade
individual. De acordo com sua tese – e sem maiores rodeios – somente
se pode ser livre em um Estado livre.
É verdade que esta não foi a principal razão apontada originalmente
para se querer viver como um cidadão de um Estado livre. Nestas altu-
ras, talvez precisemos atentar para uma importante incompatibilidade
de opiniões na tradição do pensamento neo-romano. Conforme os anti-
gos autores romanos e seus discípulos renascentistas, o mais importante
benefício da vida numa civitas libera [cidade livre] consiste em tais
comunidades apresentarem uma disposição especial para alcançar a
glória e a grandeza. Dentre os autores da Antigüidade, Salústio é cons-
tantemente invocado como a autoridade incontestável nesta área. Sua
obra Bellum Catilinae [Guerra Catilinária] inicia-se com um apanhado
histórico da ascensão de Roma. As informações aí contidas nos ensi-
nam que “a autoridade real, instituída, em primeiro lugar, para conser-
var a liberdade e fazer crescer o Estado, resvalou pela arrogância e pela
tirania”.5 Confrontado com esta crise, o povo romano trocou seus reis
por um sistema anual de magistraturas, após o que “é incrível lembrar a

(2)
FILMER, Sir Robert. Patriarcha and Other Writings [Patriarca e outros escri-
tos], ed. Johann P. Sommerville, Cambridge, 1991, p. 275.
(3)
As duas formas mais conhecidas de retomada desta temática talvez tenham
sido empreendidas por Benjamin Constant e, na nossa era, por Isaiah Berlin.
Cf. CONSTANT, Benjamin. The Liberty of the Ancients Compared with that
of the Moderns in Political Writings [A liberdade dos antigos comparada com
a dos modernos nos escritos políticos], ed. Biancamaria Fontana, Cambridge,
1988, p. 309-328, especialmente p. 309, 316-317, e BERLIN, Isaiah. Two
Concepts of Liberty: An Inaugural Lecture delivered before the University of
Oxford on 31 October 1958 [Dois conceitos de liberdade: uma aula inaugural
feita na Universidade de Oxford em 31 de outubro de 1958], Oxford, 1958,
especialmente p. 39-47.
(4)
Vide, por exemplo, SCOTT, Jonathan. “The Rapture of Motion: James
Harrington’s Republicanism” [O arrebatamento da proposta: o republicanismo
de James Harrington]. Political Discourse in Early Modern Britain [Discurso
político na nascente Grã-Bretanha moderna], ed. Nicholas Phillipson and
Quentin Skinner, Cambridge, 1993, nota à p. 152.
(5)
SALLUST. Bellum. Catilinae in Sallust, tradução e edição J. C. Rolfe, London,
1931, p. 1-128, especialmente, 6.7, p. 12.
QUENTIN SKINNER 215

do esboço histórico feito por Salústio sobre a República Romana é mais


sombria e irônica, do que se poderia esperar. Com a grandeza, queixa-
se Salústio, aportaram, entre os líderes de Roma, a ambição e a cobiça
por poder; com o aumento do poder, vieram a avareza e uma necessida-
de insaciável por cada vez mais butins e troféus. Segundo consta, o
vilão desta história seria Lúcio Sulla, que ergueu um exército perigo-
samente grande, ensinou a seus comandados a cobiçar esplendores
asiáticos e depois usou seu exército para tomar posse do Estado
romano “transformando excelentes etapas iniciais em um desagradável
desfecho”.11
Ao longo do interregno, tornou-se extremamente fácil, para os auto-
res neo-romanos na Grã-Bretanha, identificar Oliver Cromwell com a
imagem de Sulla retratada por Salústio, sobremodo após Cromwell ter
conquistado a Escócia e a Irlanda e ter feito uso da força para dissolver
Parlamento no ano de 1653. Harrington faz uma clara advertência ao
lembrar-nos que Sulla “derrubou o povo e o Estado” de Roma, estabe-
lecendo “a base da monarquia subseqüente”.12 Um crescente temor de
que a busca por glória no estrangeiro pudesse levar à ruína da liberdade
em seu próprio país fez de Harrington, bem como de seus adeptos, crí-
ticos veementes do protetorado cromwelliano, levando-os, ao mesmo
tempo, a pensar de modo diferente sobre os méritos especiais de regi-
mes republicanos. Ao invés de alardearem a capacidade de ascensão de
Estados livres à glória e à grandeza, passaram sobretudo a destacar a
capacidade destes regimes de assegurarem e promoverem as liberdades
de seus próprios cidadãos.
Este sempre fora um tema secundário nos textos antigos e
renascentistas. “O benefício comum de se viver em um Estado livre”,
atestara Maquiavel, “é o de ser capaz de usufruir, com liberdade e sem
nenhum temor, de suas próprias possessões”.13 A isto acrescentara, num
tom salustiano: a razão pela qual os países livres sempre têm imensos
ganhos reside em que “todos sabem não apenas que nasceram em um
Estado de liberdade, e não como escravos, mas também que podem
ascender, através de sua virtù, a posições de destaque”.14 Esta é a reivin-
dicação que os autores neo-romanos da República inglesa apresentam
como centro de sua visão de Estados livres. No início de Oceana,
Harrington declara que o valor especial de comunidades desta natureza

(11)
SALLUST. Bellum Catilinae in Sallust, 11.4, p. 18-20.
(12)
HARRINGTON, James. The Commonwealth of Oceana and A System of
Politics, p. 44.
(13)
MACHIAVELLI, Nicollò. Il principi e Discorsi sopra la prima deca di Tito
Lívio, 1.16, p. 174.
(14)
MACHIAVELLI, Nicollò. Il principi e Discorsi sopra la prima deca di Tito
Lívio, 11.2, p. 284.
216 DIREITO E LEGITIMIDADE

deve-se a que suas leis são “formuladas por todo indivíduo” a fim de
“proteger a liberdade de todo indivíduo, o que, dessa maneira, vem a
consistir na liberdade do Estado”.15 Milton termina seu Readie and Easie
Way com uma retumbante reafirmação do mesmo sentimento. Além de
nossa liberdade de religião, “a outra parte de nossa liberdade consiste
nos direitos de cidadão e progressos de cada indivíduo”, e é indubitável
que “a fruição destes nunca [é] mais segura, e o acesso a eles, nunca
mais aberto, do que num Estado”.16
Nesse sentido, estes autores estão comprometidos com uma conclu-
são primordial: somente é possível usufruir integralmente da liberdade
individual, caso se viva como cidadão de um Estado livre. Seja como
for, como nos vem lembrar Hobbes, isto está longe de ser uma inferência
óbvia e, ao que tudo indica, parece menos consistente que um ilusionis-
mo verbal. Agora necessitamos, portanto, considerar que evidência os
autores neo-romanos apresentam para apoiar sua conclusão e como se
defendem da sempre repetida acusação feita por Hobbes.
Para acompanharmos sua argumentação, é necessário, de início,
voltarmos à analogia que fazem entre corpos políticos e corpos natu-
rais. Segundo os autores, o significado de possuir ou de perder sua liber-
dade deverá ser o mesmo tanto para um cidadão quanto para uma comu-
nidade livre de Estados ou um Estado livre. Conseqüentemente, argu-
mentam que, para indivíduos como para Estados, sempre haverá dois
caminhos distintos, através dos quais a liberdade poderá ser perdida ou
minada. Em primeiro lugar, o indivíduo será privado de sua liberdade,
caso o poder do Estado (ou de seus concidadãos) seja usado para forçá-
lo ou coagi-lo a praticar (ou deixar de praticar) alguma ação que não
seja nem imposta nem proibida por lei. Recorrendo ao exemplo mais
óbvio: caso o poder político esteja nas mãos de um governante tirânico,
e caso o tirano em questão empregue seu poder para ameaçar ou inter-
ferir na vida dos indivíduos, a liberdade ou as propriedades destes, bem
como sua liberdade enquanto cidadãos, estarão minados até este ponto.
Por esse motivo, a recusa de John Hampden em pagar o imposto ship
money* no ano de 1635 sempre ocupou um grande espaço nas explica-
ções oferecidas por estes autores sobre a eclosão da guerra civil ingle-

(15)
HARRINGTON, James. The Commonwealth of Oceana and A System of
Politics, p. 20.
(16)
MILTON, John. “The Readie and Easie Way to Establish a Free
Commonwealth” Complete Prose Works of John Milton [Trabalhos comple-
tos de John Milton], vol. VII, ed. Robert W. Ayers, revised edn., New Haven,
Conn, 1980, p. 458.
(*)
Nota do tradutor: o “ship money” era um imposto pago apenas pelas cidades
portuárias para a defesa da marinha real, que Carlos I (1625/1642) estendeu
às demais regiões do país.
IGUALDADE COMPLEXA E IGUALDADE
DE RENDA NO BRASIL

LUIZ PAULO ROUANET


Professor de Filosofia da PUC-Campinas e
da Universidade São Marcos, São Paulo.

“(...) é manifestamente contra a lei da natureza,


seja qual for a maneira por que a definamos,
uma criança mandar num velho, um imbecil conduzir
um sábio, ou um punhado de pessoas regurgitar
superfluidades enquanto à multidão faminta
falta o necessário.”
(Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos
da desigualdade entre os homens, 1978, p. 282, in fine)

A partir de uma preocupação em se pensar as condições que tornam


possível uma sociedade justa, a questão da desigualdade, especialmente
gritante em um país como o Brasil, coloca-se como central. Mais, tal-
vez, do que a questão da tolerância, cuja importância é central em paí-
ses com aguçados conflitos étnicos e religiosos, a pesquisa sobre a de-
sigualdade, ou a busca de igualdade, impõe-se em um país que apresen-
ta as mais altas taxas de concentração de renda do mundo, em uma
perversa combinação das mais altas taxas de lucros por parte das em-
presas com os salários mais baixos pagos aos trabalhadores. A reflexão
sobre a desigualdade encontra apoio na bibliografia filosófica, a come-
çar por Jean-Jacques Rousseau e chegando a nossos dias com John Rawls
e Michael Walzer.

1. Igualdade complexa

Primeiramente, apresento o conceito de igualdade complexa, con-


forme a definição de Walzer: “Em termos formais, igualdade complexa
significa que a posição de nenhum cidadão em uma esfera ou em rela-
ção a um bem social pode ser minada por sua posição em alguma outra
esfera, em relação a algum outro bem”.1 Em outros termos, a suposta

(1)
WALZER, Michael. Spheres of justice [Esferas da justiça]. New York: Basic
Books, 1983, p. 19.
386 DIREITO E LEGITIMIDADE

superioridade de um cidadão em uma determinada esfera não lhe garan-


te superioridade em uma esfera distinta daquela. O crucial é que ne-
nhum bem, ou posição, seja dominante, isto é, seja mais importante, em
sentido absoluto, do que outro bem ou posição. Em uma sociedade jus-
ta, portanto, um determinado bem, como o dinheiro, não deve prevale-
cer sobre outros bens, como educação, saúde, alimentação, trabalho
digno, lazer etc. Mas há o risco de um elemento utópico em um mau
sentido, algo a que Walzer se refere, em outro texto, como “utopismo
ruim” (“bad utopianism”): “A filosofia deve ser historicamente infor-
mada e sociologicamente competente se quiser evitar o utopismo ruim
e reconhecer as duras escolhas que muitas vezes se exigem na vida
política”.2 É preciso, portanto, considerar a sociedade concreta, pois
depende de sua organização interna haver esse predomínio de um fato
sobre os outros. Como diz David Miller, “a extensão da convertibilidade
entre esferas de distribuição depende dos arranjos institucionais de cada
sociedade”.3 Assim, se pensarmos em nossas próprias sociedades, e no
meu caso, no Brasil, é evidente que a grande desigualdade existente é
primordialmente econômica, refletindo-se sobre todas as demais esfe-
ras.4 Neste texto, gostaria de discutir a aplicabilidade desse conceito de
igualdade complexa a uma sociedade como a brasileira, e que vale, em
certa medida, também para outras sociedades latino-americanas.
David Miller manifesta essa preocupação na extensão da igualdade
complexa a outros tipos de sociedade:
“(...) não quero excluir a possibilidade de que a escala de desigual-
dade de renda em sociedades contemporâneas constitua um obstáculo
independente à igualdade complexa. Pode ser que, onde as diferenças
de renda são muito grandes elas sejam suficientes para suscitar divisões
perceptíveis de classe, mesmo que sejam contrabalançadas por outras
esferas distributivas. Nesse caso, os igualitarianos complexos não po-
derão mais limitar sua atenção ao controle da dominância: manter a
separação das esferas de justiça pode ser insuficiente para alcançar igual-
dade de status”.5

(2)
WALZER, Michael. On toleration. New Haven/London: Yale University Press,
1997, p. 5 [edição brasileira: WALZER, Michael. Da tolerância. Trad. Almiro
Pisetta. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 8].
(3)
MILLER, David; WALZER, Michael (eds.). Pluralism, justice, and equality
[Pluralismo, justiça e igualdade], Oxford: Oxford University Press, 1995, p.
216.
(4)
Sobre os dados sobre a desigualdade no Brasil, ver BARROS, Ricardo P. de;
HENRIQUES, Ricardo; MENDONÇA, Rosane. “Desigualdade e pobreza no
Brasil: retrato de uma estabilidade inaceitável”. Revista Brasileira de Ciên-
cias Sociais, vol. 15, n. 42, p. 123-142.
(5)
MILLER, David; WALZER, Michael (eds.). Pluralism, justice, and equality
[Pluralismo, justiça e igualdade], p. 214.

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