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Começarei lembrando esse estado de crise no qual nos instalamos numa angústia,
numa depressão ou numa tensão que não parece ter fim. Depois, na tentativa de
esboçar respostas, ou melhor, traçar trilhas incertas ainda, mas que esperamos
acabem desenhando caminhos, proponho que enfrentemos a perspectiva de uma
ética da responsabilidade, a partir de um prisma no qual tempo e espaço encolhem
e tornam próximo os que estão "longe". Isso me leva a afirmar e ensaiar
demonstrar que a perspectiva ecológica, abordada com radicalidade, é renovadora
da ética. Visão idílica de uma improvável sociedade harmônica? Gostaria de
mostrar, por fim, que a sociedade sustentável e democrática que almejamos não é
tirada de um futuro imaginado na virtualidade absoluta dos nossos sonhos, mas já
está sendo preparado, vivido. A população da Amazônia brasileira, na sua grande
diversidade, nos guia, ao meu ver, nesse caminho.
Crises e rupturas
Tornou-se banal dizer que momentos de crise são momentos propícios para
rupturas, rupturas que possam provocar o surgimento do novo. Destacaria três
rupturas que parecem se impor para sairmos da paradoxal pasmaceira que nos
invade na hora em que estamos frente a esse desafio: a ruptura política com um
modelo de democracia representativa cristalizada no Estado-nação; a ruptura
epistemológica com um modelo de conhecimento que separa o objeto do sujeito e
só percebe a realidade fragmentada e com o seu corolário atual, a tecnociência; e a
ruptura ética. A minha pretensão aqui é tão somente iniciar – eu e talvez alguns
leitores – uma reflexão sobre a relação entre ética e meio ambiente.
A postura ética surge no reconhecimento com que pai e mãe, olhando e acariciando
o recém-nascido, se sentem, espontaneamente, sem precisar de análises
filosóficas, de preceitos religiosos ou morais, responsáveis por essa criança e por
seu futuro. Os pais não têm a obrigação de fazer seus filhos felizes, mas têm a
obrigação de cuidar para que o máximo possível, dentro de suas possibilidades, das
condições para tanto sejam reunidas. O filósofo e moralista Hans Jonas enuncia que
“a obrigação para com a posteridade... é o arquétipo de todo agir responsável...que
a natureza implantou poderosamente em nós (pelo menos na parte da humanidade
procriadora)” (Jonas, 1995, 88). Ao abraçar essa criança, os pais, de um certo
modo, abraçam o mundo, firmando compromisso de responsabilidade para com
esse mundo que será dela.
Talvez possamos perceber algo que nos une além desta “unidade afetiva”. Em
qualquer sociedade, mesmo nas mais rígidas e reprimidas, existem, em estado
latente, valores que formam o substrato de uma sociedade, que na tradição
ocidental chamaríamos de democrática, tais como vontade de liberdade e de
autonomia aliados ao senso da fraternidade e da solidariedade, reconhecimento da
possibilidade de igualdade entre os seres humanos. Aparecem ou voltam a se
manifestar logo que algum acontecimento pessoal ou coletivo, que caracterize uma
desestabilização cultural e um choque intercultural, o permite.
Talvez a minha reflexão aponte para uma certa visão ingênua da humanidade.
Definitivamente não somos iguais. É verdade, mas a crise da ética é a dualização
radical do mundo: o mundo real, do poder, da economia e da tecnociência, e o
virtual, dos valores éticos; o mundo dos incluídos e o dos excluídos; o mundo do
hedonismo individualista e o outro, da responsabilidade; o bem e o mal. Mas as
fronteiras traçadas entre dois mundos não demarcam duas porções da humanidade.
Elas atravessam países, povos, classes e, em definitivo, cada ser humano. E, ao
atravessá-los, elas se diluem tanto que se torna difícil distinguir onde está o bem e
o mal. Até onde, por exemplo, a justa satisfação das minhas necessidades me faz
participar da irresponsabilidade da sociedade dominante frente ao direito dos outros
de satisfazer as suas?
Hoje, essas duas esferas da ética estão em crise. Num mundo urbanizado e
individualista, atravessado por múltiplas influências culturais e ideológicas e
progressivamente sufocado pela mão de ferro do mercado, dilui-se a noção de
próximo. No plano da mesosfera, mal começávamos, ainda saindo da ditadura, a
inventar a cidadania e esta já definhava. Depois do grande mutirão cívico que
representou a elaboração da “Constituição cidadã” de 1988, tivemos dificuldade em
exercer a nossa cidadania plena, pois a discussão democrática do futuro nos é
demasiadamente subtraída. Tornou-se domínio quase que absoluto das
tecnoburocracias nacionais e internacionais a serviço de um capitalismo sem rosto.
Ficou para nós a periferia da ação política: as políticas compensatórias e o meio
ambiente. Numa sociedade em que o Estado não viabiliza os direitos dos cidadãos e
não favorece a participação cidadã na ação político-social, perde-se em
contrapartida a noção dos deveres e da responsabilidade, a noção de cidadania.
Estes riscos são em boa parte manifestações de “três desequilíbrios maiores: entre
o Norte e o Sul do planeta; entre os ricos e os pobres no seio de cada sociedade;
entre os seres humanos e a natureza” (Aliança 1996) . Eles nos falam da grande
atualidade dessa macro-esfera e da premência de formular princípios éticos globais
amplamente aceitos. Estamos longe disso! É nessa hora que uma perspectiva
ecológica, sem dúvida, aporta algo a uma ética contemporânea que nos prepare
para o futuro.
Tornou-se já comum afirmar que a reflexão sobre o meio ambiente nos leva a
acabar com a separação radical entre o ser humano e a natureza, consagrada em
termos filosóficos por Descartes, que fez do homem pensante o mestre e possuidor
da natureza, matéria a transformar e re-fabricar. A ecologia, nota François Ost,
registra na história do universo um continuum marcado por dois saltos qualitativos:
o surgimento da vida e o do sentido (a hominização), o que o faz afirmar: “Não há
mais, de um lado, o ser humano e a natureza do outro; é no seio de cada ente que
passa doravante a diferença: o homem é, ao mesmo tempo, matéria, vida e
ciência, capaz de significação, natureza e cultura.” (Ost. 1995, 255) Edgar Morin,
ao introduzir o leitor ao pensamento complexo, por sua vez escreve: “Assim, o
mundo está em nossa mente nosso espírito, a qual está no interior do mundo”.
(Morin, 1990, 60) Cada ser humano é assim herdeiro do passado, nos seus genes e
na sua cultura, e responsável por fazer frutificar para os seus descendentes essa
herança.
Poderíamos dizer que o passado do mundo e da humanidade está em cada um de
nós. Que somos cada um como um condensado do mundo. Nos situamos na
história da humanidade, que vai além do tempo histórico que ela constrói e se
estende desde antes do surgimento da vida. Entende-se assim a humanidade não
somente como herdeira de um patrimônio cultural expresso nas religiões e
filosofias, nas línguas, nas artes etc, mas herdeira também de uma natureza da
qual emergiu e à qual pertence.
Vê-se que, entre as três esferas da moralidade que guiaram essa reflexão, não
existe uma hierarquia ou alguma solução de continuidade. A dilatação da
responsabilidade a dimensões espaciais e temporais que escapam ao alcance da
nossa experiência individual faz com que o “próximo” seja meu familiar, meu
vizinho e, ao mesmo tempo, meu semelhante que nunca encontrarei e sempre
desconhecerei. Esta reflexão vai de encontro ao que declarava o populista russo
Petrachewski: “Não encontrando para mim nada que seja digno do meu apego,
nem entre os homens, nem entre as mulheres, me consagro ao serviço da
humanidade” (citado por Nicolas Baerdieff in Sources e sens du communisme
russe).
A segunda armadilha seria a de tomar como referência dessa nova ética uma
humanidade abstrata, como coletivo indiferenciado, ao qual seria atribuída a
responsabilidade para com o futuro, esquecendo-se o presente e as profundas
clivagens que a atravessam. Sabemos e vivenciamos a profunda desigualdade na
distribuição e na apropriação dos recursos naturais e do meio ambiente, o que
evidencia a enorme diferença existente nos graus de responsabilidade de cada um.
Vemos como, e isso é particularmente visível na cidade, às manifestações de
exclusão social, acrescenta-se a exclusão e mesmo uma certa apartação
ambientais. O Rio de Janeiro pobre é, geralmente, mais distante das praias e,
quando se abre uma Linha Amarela que encurta as distâncias e o aproxima da
Barra da classe média, o murmúrio dessa classe média contra os invasores torna
ainda mais visível esse apartheid sócio-ambiental. Nesse plano, a perspectiva
ecológica alarga a nossa percepção dos valores que sustentam a democracia e dá
novas formas a certos conflitos sociais, que passam a se chamar de “conflitos
sócio-ambientais”. Ao dar concretude à nossa humanidade universal, ela revigora o
sentido da “mesosfera” da cidadania que se constrói na escala da nação.
A Constituição de 1988 legitima essa visão quando declara que o meio ambiente é
“bem de uso comum do povo”. E é baseado nesse princípio que Henri Acselrad
reflete sobre o sentido dos conflitos ambientais no Brasil: “Essas lutas têm por
objetivo geral introduzir princípios democráticos nas relações sociais mediadas pela
natureza: a igualdade no usufruto dos recursos naturais e na distribuição dos
custos ambientais do desenvolvimento; a liberdade de acesso aos recursos
naturais, respeitados os limites físicos e biológicos da capacidade de suporte da
natureza; a solidariedade entre as populações que compartilham o meio ambiente
comum; o respeito à diversidade da natureza e aos diferentes tipos de relação que
as populações com ela estabeleçam; a participação da sociedade no controle das
relações entre os homens e a natureza” (Acselrad, 1992, 19).
Referências bibliográficas
Acselrad, Henri (org.) Cidadania e meio ambiente. In: Meio ambiente e democracia.
Ibase, Rio de Janeiro, 1992.
Morin, Edgar. Le paradigme perdu: la nature humaine, Ed. du Seuil, Paris, 1973.