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Resenha

ZAMBONI, Ernesta. Digressões sobre ensino de História. Razão histórica e memória.


Itajaí, SC: Maria do Cais, 2007.

por Luis Fernando Cerri *

Um olhar em busca de síntese poderá perceber que a produção contemporânea


sobre o Ensino de História no Brasil – que segue a seu modo a conjuntura ocidental na área
– caracteriza-se em torno de cinco grandes movimentos: a organização em grupos, o
incremento dos estudos que dialogam com a com a teoria da História e os Fundamentos da
Educação, a definição progressiva do campo e do objeto de estudos, o retorno insistente de
“velhos” temas (como o comprometimento do ensino de história com a construção da
identidade do cidadão) e a busca de balanços das trajetórias desses estudos até o momento.
Isso tudo num contexto de aceleração do tempo e da fluidificação das identidades e dos
laços sociais.
É nesse contexto e expressando com diferentes intensidades esses movimentos que
vem a público a obra “Digressões sobre o ensino de História”, organizada por Ernesta
Zamboni, inaugurando a coleção Ensino de História da editora Maria do Cais. Se não
existissem outros méritos – e há – a coletânea já poderia ser destacada pelo trabalho de
colaborar com a integração entre centros consagrados de pesquisa, como a Unicamp, e
novos grupos que se formam em outros eixos do país. Pode-se mesmo dizer que a
interiorização e a capilarização dos debates e da construção compartilhada de
conhecimento é um passo fundamental para o desenvolvimento não só do ensino superior e
da pesquisa em ciências humanas e sociais, como da educação em geral.
A obra é a terceira produção em livro do Grupo Memória, História e Educação,
sediado na Faculdade de Educação da Unicamp e fundado pela organizadora. Esse volume
surge a partir da produção de pesquisadores, docentes e discentes que passaram ou estão
passando pelo grupo, e ultrapassa o formato da justaposição de textos sobre trabalhos
individuais de pesquisa para engajar-se na idéia de construção de novas sínteses que
partem do diálogo dos pesquisadores entre si e com autores ou escolas cuja contribuição é
estimada como relevante para o desenvolvimento da área.

*
Professor do Departamento de História e do Mestrado em Educação da Univ. Estadual de Ponta Grossa. E-
mail: lfcerri@uepg.br.
Como se houvesse uma espécie de desenvolvimento cognitivo coletivo das
comunidades de pesquisa, as coletâneas (a área de Ensino de História tem presenciado de 3
a 5 lançamentos anuais há mais de cinco anos) estão superando a fase de justapor
conclusões de pesquisa que se ligam ao texto anterior e ao texto posterior apenas pela
pertinência temática ou pela vizinhança institucional. Verifica-se aos poucos a busca de
trabalhos coletivos integrados na discussão de determinados temas, e a coletânea em tela é
um exemplo desse movimento de transição: dos trabalhos individuais para trabalhos em
que grupos partilham problemas e objetos mais coesos. Da enumeração ao trabalho de
equacionamento de problemas, da descoberta de alguns portos de um território ao
mapeamento do mesmo, e do registro de saídas bem sucedidas ao delineamento de desafios
e rumos possíveis. É esse o deslocamento que se verifica, e que a coletânea representa
bem. Há ainda a vantagem da diferença: o desenvolvimento da área gera uma tendência de
especialização em termos de teorias e métodos. Essa tendência acaba traduzida em alguns
casos como necessidade de cercar-se por nomenclaturas, autores e procedimentos fixos, em
busca de exclusividade. Ao contrário dessa tradução apressada e sufocante, que nas áreas
tecnológicas é premiado com patentes, a obra expressa diferentes trajetórias teóricas,
metodológicas e práticas que são capazes de conviver colaborativamente e transformar-se
mutuamente.
O livro é estruturado em três momentos, que esclarecem o subtítulo: memória,
história oral e razão histórica. Em cada um deles, trios ou duplas de pesquisadores põem-se
a esquadrinhar problemas comuns vividos no fazer de cada uma das pesquisas, problemas
esses que não são teóricos OU metodológicos, mas teórico-metodológicos, ou seja,
nenhuma das reflexões produzidas coletivamente pode ser caracterizada como um estudo
isolado. Os três temas têm implicações relativas ao diálogo com a teoria da História, com a
metodologia da História, com a metodologia da pesquisa em Educação e com a
metodologia do ensino. Além disso, os três temas imbricam-se e colocam dúvidas e
questões uns para os outros.
O primeiro bloco é intitulado “Na esteira da razão histórica: olhares e diálogos com
a obra de Jörn Rüsen”, e ficou a cargo de três pesquisadoras: Lucini, Oliveira e Miranda.
Lucini, pesquisadora do sudoeste do Paraná, defendeu tese sobre o Ensino de História no
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; Oliveira, também do Paraná, dedicou-se
ao estudo sobre a influência dos saberes tácitos sobre o aprendizado das crianças no ensino
fundamental e Miranda, por sua vez, atuante no estado de Minas Gerais, também focou o
ensino fundamental, mas preocupada com as representações das professoras. Voltadas a
objetos distintos, mas ligados, as pesquisadoras assumem o desafio de trazer as novas
questões suscitadas por suas pesquisas para uma discussão dos pressupostos do teórico
alemão Jörn Rüsen, um dos principais pensadores da virada epistemológica da Didática da
História nos anos 70, e um dos líderes no estudo de diretrizes para o ensino de história
tendo a Europa por base identitária.
As autoras contextualizam a contribuição das obras de Rüsen para o público brasileiro,
especialmente para a discussão do Ensino de História no Brasil, tratando do ensino de
história no quadro da razão histórica, bem como dos temas da consciência histórica e do
papel de orientação temporal que o conhecimento histórico representa. O acento da revisão
das autoras encontra-se no aspecto escolar da orientação temporal e da conformação da
consciência histórica, cumpridos pelo ensino de História. Há alguns questionamentos
possíveis nessa síntese. Por exemplo: as autoras afirmam que o saber historiográfico “não é
assumido pelo autor como uma das formas mais apropriadas para a formação histórica” e
por esse motivo “deve sofrer um processo de didatização”. Entretanto, a formação histórica
não se resume ao escolar e ao intencional, e as perspectivas de orientadoras e métodos da
pesquisa histórica, por serem distintos das perspectivas orientadoras e métodos do ensino
não conduzem a que um deva ser didatizado para permitir o outro. O que Rüsen traz,
efetivamente, é que no contexto da hiperespecialização da produção do conhecimento
histórico, os resultados desse trabalho não servem necessariamente – tanto na forma como
no conteúdo – para atender as carências de orientação temporal que o ensino ataca, pois
vinculam-se a outras perspectivas orientadoras, por sua vez também distintas das do
ensino, sociais, enquanto aquelas são disciplinares. Mais do que algo a ser didatizado, o
conhecimento científico tem uma lógica própria que às vezes serve ao ensino, mas nem
sempre é o caso de buscar didatização, seja porque o conteúdo da pesquisa não é
significativo para o contexto do ensino, seja porque seus resultados não precisam ser
didatizados, uma vez que eventualmente o resultado da pesquisa histórica, conforme o
referencial epistemológico, partilha do universo de linguagem e interesse do público em
geral. Essas são, não por acaso, as obras de maior vendagem...
Um outro elemento a ser discutido na síntese que as autoras fazem da perspectiva de
Rüsen para os problemas do Ensino de História é a terminologia para referir-se a tipos de
consciência histórica: tradicional, exemplar, crítica e genética. No texto de 1992 que
sustenta o estudo, Rüsen fala em tipos (na concepção weberiana de tipos-ideais) de
consciência histórica, e não em consciências tradicional, exemplar, crítica... Enfim, o
sentido dos adjetivos desloca-se para as práticas, em vez de qualificar as consciências,
evitando que elas adquiram um sentido de permanência, organicidade e substantividade
que efetivamente não têm. Esse cuidado do autor é reforçado na conferência “What is
historical consciousness”, publicada pelo Centro de Estudos da Consciência História na
Universidade da Columbia Britânica, em que prefere falar em formas de geração de sentido
histórico. As expressões adjetivadas da consciência histórica (“consciência tradicional” e
as demais) transmitem uma idéia instransitiva de consciência, que não corresponde à
proposta do autor. Pesquisas recentes têm demonstrado empiricamente que, na prática, a
consciência histórica dos indivíduos funciona e faz conviver diferentes formas de geração
de sentido, ainda que possa existir predominância de uma ou duas dessas formas.
Para além desses detalhes que não interferem na contribuição trazida, o texto produz
uma interessante articulação entre ambientes e preocupações distintas no ensino de história
e a possibilidade de razão histórica. Na segunda parte dessa produção, as autoras dedicam-
se a rever e destacar os pontos de ligação entre os postulados de Rüsen sobre razão
histórica, consciência histórica e narrativa, e seus objetos de pesquisa nas teses de
doutorado. Respectivamente, Sandra Oliveira dedica-se a investigar o conhecimento dos
alunos e a intervenção dos saberes históricos organizados pela escola sobre os mesmos, nas
séries iniciais do ensino fundamental. Sônia Miranda contribui com a reflexão sobre a
noção de “formação histórica” de Rüsen colocando em cena a formação e transformação
do conhecimento histórico de professores do primeiro e segundo ciclos do ensino
fundamental, articuladamente com o conceito de cultura escolar, de J.C. Forquin. Trata-se
de professoras que, via de regra, não têm formação em história e mesmo assim selecionam,
organizam e disponibilizam saberes históricos para seus alunos e alunas. Embora o estudo
não esteja especialmente centrado nas categorias de Rüsen, as mesmas, recuperadas ao
final desse trecho permitem caracterizar a história ensinada por esses sujeitos dentro das
formas tradicional e exemplar. Marizete Lucini, por fim, contribui com o estudo a partir do
seu objeto, referente ao ensino de História dentro das ações educacionais do MST,
tomando o conceito de narrativa para o estudo de um material didático do movimento,
intitulado “Zumbi, comandante guerreiro”. O trecho sob a responsabilidade de Lucini é o
que demonstra maior proximidade e desenvoltura na discussão dos postulados de Rüsen,
mesmo porque estes estiveram presentes de modo mais orgânico neste estudo doutoral.
Entretanto, Lucini toma a identidade entre a luta dos quilombos no passado e a do MST no
presente como a carência de orientação que gera o material estudado, quando ele é
resultado do esforço de produção de identidade entre as duas realidades históricas; a
carência de orientação é a necessidade de encontrar fundamento no passado para um
projeto político do presente, que envolve militância e conflito, de modo que ele se legitime,
justifique e naturalize, de modo ainda que a ação em favor dele seja a desejável para o
educado nessa perspectiva. A identidade no tempo não constitui a carência, mas busca
saciá-la.
O bloco seguinte é “A memória e o ensino de história hoje: um desafio nos
deslizamentos de sentido”, construído por Franco, de Minas Gerais, e Venera, de Santa
Catarina. Este bloco dedica-se a esquadrinhar a memória, outro tema relevante para a
historiografia e, mais recentemente, para o ensino de história e sua reflexão teórica. O
contexto dessa reflexão é uma pesquisa sobre os hábitos de consumo de televisão por parte
de adolescentes: os altos índices verificados apontam para um quadro em que o
conhecimento que a escola oferece em relação ao tempo, bem como a experiência do
passado através da memória familiar e local são diluídos diante da quase onipresença das
ofertas de sentido pela comunicação de massa. A raridade da freqüência a museus e outros
espaços de memórias completa esse quadro, reconhecido por intelectuais diversos como
uma supervalorização – por vezes sufocante - do presente.
Para os autores, a evocação pura e simples do passado em espaços, coisas e
celebrações isoladas não quebram essa condição, mas pelo contrário, tendem a mantê-la,
num “mercado de passados” tão fugaz, extenso e incapaz de lidar com as fragmentações
identitárias quanto o estado de presente contínuo que marca o momento atual. A
contribuição distintiva desse bloco do livro é revisitar o conceito de memória em seus
diversos ângulos e pontos de partida teóricos em função do ensino de História. Escolhem-
se Maurice Halbwachs, Michel Pollak, Pierre Ansart, uma breve passagem por Jacques Le
Goff e, no campo da produção brasileira, Sandra Pesavento e Ecléa Bosi. As conseqüências
para a sala de aula são claras: a sensibilidade do aluno quanto ao tempo, que passa pela
memória, é condição essencial de qualquer trabalho de ensino e aprendizagem de História,
e temos aqui uma outra aproximação com a obra de Rüsen, não mencionada, que é a noção
de competência de experiência, no conjunto das competências que formam a competência
narrativa (esperada da formação histórica). Essa competência consiste exatamente nessa
capacidade de viver, sentir e entender o passado como constituinte da própria vida, não de
modo superficial, mas de modo extenso. Assim, passamos a marchar em direção a esse
totalitarismo do presente que significa, no final das contas, um embotamento da própria
consciência histórica em sua função de orientação no tempo.
Em suma, Raquel Venera e Alexia Franco postulam a tarefa do ensino de História de
colaborar para que o aluno produza a significação aberta - ainda que titubeante - da própria
experiência da memória e do tempo. Trata-se de ir além da discussão da memória social, o
que já é espaço garantido no ensino de História, para ampliar o espaço da memória
individual e do lidar com ela. Essa proposta, que as autoras classificam como provocação à
criatividade, vem ao encontro da idéia de que o trabalho do professor pode ser
intrinsecamente criativo, no sentido da criação de conhecimento, na perspectiva do saber
escolar pois, por mais que já esteja dado o quadro social no qual as experiências
individuais fluem, essas mesmas experiências e relações com a memória nunca estarão
plenamente contidas dentro da lógica da memória coletiva. Com isso abre-se a porta da
contínua recriação / reconstrução do saber na escola, ainda mais se, com Rüsen, dilatamos
a idéia de História para acolher toda expressão de tempo significado.
O bloco que fecha a obra está sob responsabilidade de Chiozzini, Mesquita e Tuma,
respectivamente atuantes em São Paulo, Minas e Paraná, e intitula-se “Potencialidades da
história oral e da memória para o diálogo com professores e professoras em suas
singularidades”. Nesse texto, a ênfase é maior na dimensão metodológica da pesquisa no
ensino de História: a história oral é discutida na sua dupla condição de portal privilegiado
do trabalho da memória e ação que lança luzes sobre as experiências dos sujeitos. Não
passam despercebidas as conseqüências políticas nem os fundamentos teóricos dessa
prática: privilegiar o sujeito, sua memória e sua experiência reenquadra a produção do
saber histórico e do saber educacional, desconcentrado o poder envolvido nessa prática.
A história oral não se encerra sobre si mesma como uma técnica; pelo contrário,
assume as características de método, com o que multiplicam-se também as
problematizações possíveis. O trio de autores, dentre as múltiplas possibilidades que se
apresentam, elege a memória como problema central a trabalhar, e articula tanto as
pesquisas individuais com as questões teóricas quanto com as preocupações já apontadas
nos textos anteriores da coletânea. Desse modo, não é apenas uma opção metodológica,
mas também uma escolha acadêmica e política que se manifesta na eleição da história oral
para o enfrentamento dos objetos dos autores, quais sejam, a formação de professores, a
experiência dos colégios vocacionais fechados pela ditadura militar e as mudanças de
compreensão e prática de professores de História no ensino fundamental ao longo do
tempo.
As pesquisas cujos resultados são discutidos no texto revelam as mudanças e as
permanências, e nos permitem explorar uma outra reflexão que permanece latente na
argumentação, que relaciona a história da Educação com o ensino de História. Esse
relacionamento torna-se possível pela escolha do objeto, produzido com a ferramenta dos
depoimentos, ou seja, a memória e a experiência dos sujeitos ouvidos. Dessa maneira, os
estudos apontam a possibilidade de prospecção das reflexões, das metodologias e das
experiências de ensino de História em outros tempos, o que pode informar de modo
decisivo as angústias e impasses do presente. Recoloca-se em cena a categoria básica do
pensar histórico, que é a historicidade dos objetos e dos objetivos.
Em suma, a perspectiva assumida na composição do livro é exemplo a ser seguido:
mais que acumular olhares particulares, buscar olhares conjuntos sobre temas e problemas
a partir de pontos de vista distintos. Essa fórmula funciona de modo desigual em cada um
dos blocos, uma vez que essa “cola” depende da conformação das “bordas” de cada
pesquisa, que por sua vez estrutura diferentemente o olhar dos pesquisadores. Ao mesmo
tempo, a obra permite pensar que a evolução para coletâneas efetivamente integradas e
integradoras, depende não só do esforço da organização e dos autores, mas da construção
de times de pesquisa cada vez mais orgânicos e integrados. Para isso, a lógica atual de
projetos individuais que se aproximam temática ou metodologicamente deve dar espaço a
grandes projetos originais de mapeamento e cobertura de temas e problemas delimitados,
nos quais as pesquisas individuais sigam um plano traçado previamente e de forma
coletiva. Embora essa não seja a única ou a melhor forma para a qual devêssemos
obrigatoriamente migrar, trata-se de um norteamento interessante para dar não apenas
maior organicidade aos resultados de pesquisa, mas também e principalmente maior
cumulatividade e aproveitamento dos avanços obtidos nas distintas frentes de trabalho.

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