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Adaptação dramática
por Luísa Alvim
Braga
2010
Peça de teatro em 5 actos
Personagens
Narrador
Calisto Elói
Teodora
Deputado Libório
Deputados
Abade Estevães
Ifigénia
Lopo de Gamboa
Tomásia
Luísa Alvim
Casa de Camilo
mluisa.alvim@gmail.com
1º Acto
Sala de estar de um solar antigo em Caçarelhos. Teodora está sentada a cozer.
Uma criada limpa a sala. Vê-se uma mala grande aberta.
Narrador - Nem todos os anjos têm asas, nem todos vêm do céu, onde se diz que eles
moram. Os anjos bons, naturalmente. Alguns habitam connosco, sentam-se à nossa
mesa, tornam-se nossos amigos.
Conheço um, que me acompanha há muitos anos. Veio lá de cima, do Norte, de Trás-os-
Montes, da aldeia de Caçarelhos, no termo de Miranda, onde nasceu em 1815.
Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, seu nome de baptismo (nome pomposo e
fidalgo, sim senhor), era morgado de Agra de Freimas e casou, aos vinte anos, com a
sua segunda prima D. Teodora Barbuda de Figueiroa, morgada de Travanca. Os
morgados eram, como se sabe, os donos de morgadios, isto é, de bens considerados
indivisíveis, que apenas podiam ser transmitidos ao filho mais velho, geralmente varão
(isto é, do sexo masculino), com o objectivo de conservar intacto o património familiar.
Unidos os dois morgadios, o de Agra de Freimas e o de Travanca, passou a casa de
Calisto Elói a ser a maior da região. E, com o correr dos anos, prosperou ainda mais
graças à vida regrada do morgado, mas, sobretudo, ao espírito económico de D.
Teodora.
Teodora – Luzia vai tratar dos animais, deitar-lhes comida. Tenho de acabar de cozer
esta roupa porque o Senhor Calisto Elói, meu marido, parte hoje para Lisboa.
“Remendo teu pano, chegar-te-á ao ano”. (repete)
Teodora - dê de comer aos coelhos. Estou tão ocupada…ai isto do meu marido Calisto
ir para o Parlamento em Lisboa!
Narrador - Aos 44 anos, foi Calisto Elói eleito deputado por Miranda, depois de, em
1840, ter ocupado por algum tempo a presidência da Câmara Municipal da cidade, que
abandonou subitamente, irritado com os vereadores da oposição. Amante do passado,
defensor das normas e dos princípios que regulavam a vida dos antigos, pretendia,
contra a opinião dos seus opositores, aplicar no governo da Câmara as leis estabelecidas
desde a fundação. Dizia ele que, sendo os homens sempre os mesmos, também as leis o
devem ser. Despediu-se, por isso, com a seguinte afirmação:
Voz de Calisto - Tenho o governo de minha casa, onde sou rei e governo segundo os
forais da antiga honra portuguesa.
Narrador - E nunca mais voltou à Câmara. Por morte do pai, Calisto Elói, que fizera
estudos no seminário de Braga, viu-se obrigado a abandonar um projecto de
doutoramento em Direito e entregou-se à leitura de toda a espécie de livros, que o
transformaram, não propriamente num homem culto e sábio, mas num erudito, dotado,
além do mais, de prodigiosa memória. Essas leituras viriam a ser-lhe muito úteis nas
conversas com os seus colegas, durante as quais frequentemente recorria a citações dos
autores antigos, e nos discursos proferidos no Parlamento, cuja exposição fazia
acompanhar de frases ou sentenças latinas.
(entra Calisto)
Calisto – Teodora, põe mais estes livros na minha mala, vou gostar de os ler em Lisboa.
Um é sobre os meus antepassados, os meus avós e bisavós. O outro é sobre história
portuguesa.
Teodora – Vamos lá ver se ainda cabem. Calção de tafetá, chapéu, espadim, duas
dúzias de garrafas de vinho, orelheira e presunto. Ai Meu Deus, vais sozinho para
Lisboa trabalhar para o parlamento. O que te irá acontecer!
Calisto – Claro que não, mandarei sempre cartas com notícias minhas e o tempo passa
rápido.
Calisto – pois bem, vou tentar como deputado resolver esses pedidos. E agora adeus,
Venham lá esses abraços. (abraçam-se). Não chores. Ó Teodora, o malandro do teu
primo Lopo é que não veio despedir-se.
Teodora - (chora) Ele esteve aí, mas não calhou. Adeus meu marido Calisto.
2º Acto
Parlamento (em cena Calisto, Libório, Presidente, Estevães)
A sua estreia no Parlamento mereceu alguns risos e comentários trocistas, mas também
recebeu entusiásticos aplausos. Do seu discurso, longo e exaltado, salientamos a
seguinte afirmação:
Narrador: Na capital via o deputado Calisto EIói por toda a parte, oiro, pompas e
janotas enluvados enchendo os teatros, as praças e os botequins. Não surpreende, por
isso, que terminasse a sua intervenção dizendo alto e bom som:
Calisto- Não entendo quase nada do que disse, porque o Senhor deputado Libório não
falou português. Falou farfalhices de quem não fala português de gente, eu sou um
homem das serras e falo à moda velha em linguagem rasa e correntia. As laranjas,
espremidas demais, dão sumo azedo, que corta a língua. O sr. deputado fez do seu
idioma laranja azeda. Se a linguagem portuguesa fosse aquilo que eu acabo de ouvir,
devia estar no vocabulário da língua bunda.
Narrador - para quem não sabe, esclarece-se que a língua bunda era a língua falada por
uma das tribos de Angola.
E, ao mesmo tempo que censurava o uso duma linguagem que, no seu dizer,
“tresandava a bafio”, condenava, em nome da pureza da língua, o emprego de
galicismos, que é como quem diz, de palavras de origem francesa. “O mau português”,
dizia ele, “começa a sê-lo, desde que a pureza de sua língua”.
Mas vamos sair do Parlamento e olhar o que se passa nas ruas de Lisboa, o que o
inocente Calisto, o homem-anjo, observa à sua volta. Homem de bem e marido fiel, o
morgado sentiu sangrar o coração ao ter conhecimento de que uma ilustre dama da
corte, de seu nome Catarina, casada, filha do desembargador Sarmento, andava metida
de amores com outro fidalgo. Tendo comunicado a sua surpresa e dor ao abade de
Estevães, seu colega no Parlamento.
Calisto – Que pena, esta mulher Catarina Sarmento andar a enganar o marido! Coitado
do desembargador Sarmento!
Abade Estevães – Ora o morgado tem coisas! Vª Exª parece que caiu há pouco de
algum planeta! Olhe que Lisboa não é Mirando, meu amigo! Se o morgado tem de
espantar-se por cada caso destes que chegar ao seu conhecimento, a sua vida na capital
tem de ser um permanente ponto de admiração!
Calisto – Que remédio! Mas o que farei é sacudir o pó dos meus botins à porta das
casas cuja desordem de costumes me escandaliza. Não voltarei mais a casa do
desembargador.
Abade Estevães – Olhe que você não é nenhum apóstolo dos bons costumes.
Calisto – Mas mesmo assim, hei-de pôr a pontaria aos vícios e se puder vou pôr bons
pensamentos de emenda aos que não se estão a portar bem.
3º Cena – Parlamento
Deputado Libório (fala para o Abade Estevães) – Olha o Calisto Elói! Guapamente
entrajado vem mestre Calisto! Substituiu a casaca de saragoça que trouxera da
província, as calças rematando em polainas abotoadas de madrepérola e as botas são as
da moda. E luvas nas mãos!
A alteração dos seus hábitos e do trajo não passou despercebida ao pai da jovem. Em
conversa com Calisto, lamentou o desembargador que, em menos de três meses, o
modelo de português dos bons velhos tempos que era o seu amigo tivesse substituído a
simplicidade provinciana pelos viciosos hábitos e maus costumes da capital.
Importa dizer que, informado por Adelaide de certas atitudes de Calisto reveladoras da
sua súbita inclinação pela filha, o desembargador, para afastar de sua casa o incómodo
galanteador, decidira mandar a filha passar uma temporada à sua quinta de Campolide.
Mas esqueçamos Adelaide, de quem, aliás, Calisto em breve se esquecerá também e
vejamos a rapidez com que as notícias correm, corno são largas as bocas do mundo. De
Teodora, a esposa, recebera Calisto já duas cartas a que não dera resposta. Uma terceira,
mais recente, trazia recados, insinuações, suspeitas. É que, dizia ela, lhe haviam
chegado rumores de que ele gastara em Lisboa, na loja dum comerciante, mais de cem
moedas de ouro (o que era verdade: para alindar os seus aposentos, Calisto adquirira
num armazém alguns móveis de estilo). E lançava suspeitas:
3º Acto
(em casa de Calisto está sentado na sala de estar a ler a carta de Teodora)
1ª Cena
Voz de Teodora - pior é se tu pegas a doidejar com as mulheres, e sais do teu sério.
Eras um marido perfeito como a santa religião o quer, e tenho cá uns agoiros, uns
pressentimentos maus, no peito que me não deixam fechar olho há três noites. Longe da
vista, longe do coração, diz lá o ditado. Esteve cá há dias o meu primo Afonso Gamboa
dizendo que na capital as mulheres enguiçam os homens e fazem deles gato-sapato.
Responde sem demora.
Calisto – OH, oh, oh! O quê? (dobra a carta e prepara-se para escrever a resposta)
Narrador – Calisto respondeu à Teodora mentindo, dizendo-se saudoso dela, o que era
falso, como sabemos.
Calisto- Pobre mulher, já estou cansado com as tuas cartas. Agora vejo que tu não eras
nada na minha vida, não sei em que lugar do coração estiveste, porque não dou pela
falta, nem sequer a saudade me chama para ti…Vou escrever-te:
(fala alto enquanto escreve)
Prima Teodora e estimada esposa. Tenho muitas saudades tuas, estou sempre ocupado
no Parlamento com as leis, os afazeres do Estado ocupam-me todo o tempo. Não tenho
tempo para escrever cartas. Não dês ouvidos ao teu primo Gamboa, que te diz que em
Lisboa as mulheres enguiçam os homens e fazem destes gato-sapato. Não é verdade.
Manda-me presuntos, salpicões e algumas garrafas de vinho da Ribeira. Teu muito
afecto e extremoso Calisto.
Narrador - Calisto vai receber uma visita duma formosa dama, chegada do Brasil, a
quem falecera o marido e que procurava em Lisboa o amparo de que necessitava.
Ouvira Calisto no Parlamento, ficara seduzida pelo ar grave e pela eloquência do
morgado e decidira-se a procurá-lo, na mira de, por seu intermédio, obter do Estado
uma pensão pelos muitos serviços prestados à Pátria, em trinta anos, pelo defunto
marido. A vista da nobre dama despertou uma violenta paixão na alma de Calisto. Era
uma mulher alta com olhos de azeviche e um busto de marfim.
Calisto – Ó minha senhora! A que devo a honra desta visita, minha senhora?
Ifigénia – Abreviarei a minha história e o que desejo. Sou brasileira. Pela fala me terá já
conhecido. Casei no Brasil com um militar português Gonçalo Teles de Teive Ponce de
Leão que serviu bravamente o império. Morreu, mas antes de morrer disse-me que o
Governo em Portugal me ampararia e me daria uma pensão, que preciso para viver. Fui
então ao Parlamento e ouvi Vª Exª discursar e fiquei maravilhada. Sei que Vª Exª me
pode ajudar.
Calisto – Não me parece que o governo a possa ajudar dando-lhe uma pensão em
dinheiro.
Teodora – Eu seria feliz numa casinha com duas árvores, com os meus livros….
Calisto – Prima Ifigénia, eu não permitirei que perca a sua mocidade numa casinha
entre duas árvores. Para as árvores e flores se fizeram as aves.
Vou falar-lhe de mim. Sou rico, não tenho filhos, mas sou casado…A minha prima e
mulher é uma criatura feita no campo. Casei, porque era necessário. Acho-me ligado à
mulher há vinte anos que não devia ser minha. Não sei o que é a felicidade….Posso
alugar uma casa em Sintra ricamente mobilada e decorada para Vª exª lá morar…
comigo.
Narrador - Chegou Teodora a Lisboa e, pergunta aqui pergunta ali, lá foi parar à Rua
de S. João dos Bem Casados, na qual ficava situado o palacete onde vivia a brasileira.
Abriu-lhe a porta a criada Tomásia.
Teodora – Quero falar com a senhora brasileira viúva. Olha para este palacete! Onde
anda o meu dinheiro! Parece o palácio real!
Tomásia – Ah! Então é a esposa do senhor morgado….A Senhora que procura é uma
fidalga e anda a viajar pela a Europa
Teodora – Eles são uns malandros. O meu dinheirinho! O meu dinheirinho! Ai que eu
rasgo o retrato da brasileira que está ali na parede!
Tomásia – Isso alto lá, minha senhora, Vª Exª não estraga coisa nenhuma. E vou pô-la
lá fora
Narrador – Teodora lá abandonou, por fim, aquela casa. Mas, à saída, ergueu o punho
fechado contra o retrato da brasileira suspenso numa das paredes, ao lado de um outro
de Calisto Elói. De regresso a Caçarelhos, Teodora decidiu transferir-se para o solar de
Travanca. Confiando ao primo Lopo a administração dos seus bens, logo este se mudou
para casa da prima e tratou de devolver àquele solar a sua antiga dignidade. Entretanto,
também graças ao primo Lopo, operou-se em Teodora uma completa transformação no
vestuário, no porte.
Calisto quando voltou a Lisboa instalou-se no palacete da brasileira. Já livre dos
sobressaltos do coração, entregou-se à leitura de livros modernos. Releu o seu discurso
sobre o luxo que tinha feito no Parlamento quando chegou a Lisboa mas queimou o
manuscrito. Rendeu-se às novas luzes, às novas ideias. A ciência moderna apaixonava-
o. E o luxo também.
E, sem mais delongas, aqui termina a história dum anjo que perdeu a inocência Dum
homem do Portugal velho rendido ao progresso e aos encantos femininos.
O destino deu-lhe ainda dois filhos, mas também, ao que veio a saber-se, no solar de
Travanca apareceu um repolhudo menino fruto dos amores serôdios do primo Lopo com
a virtuosa Teodora.
“Assim se fazem as cousas...” - diria o nosso Gil Vicente.