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Por: Leopoldo Amado*

*(Historiador guineense)Y

Têm razão os companheiros mais chegados de Amílcar Cabral


quando afirmam que a acção de Cabral na luta de libertação
nacional fora pormenorizadamente planeada, senão mesmo
cientificamente planeada, como hoje no-la comprovam, à distância
do seu tempo vivido, o encadeamento perfeito dos factos, acções e
acontecimentos que, cumulativamente, guindaram o PAIGC,
mesmo depois do seu desaparecimento físico, à vitória sobre o
colonialismo português.

Após a Segunda guerra mundial, e sob o influxo das grandes


transformações ocorridas ulteriormente ao nível planetário, alguns
estudantes africanos acercaram-se do Centro de Estudos Africanos
que os próprios criaram em 1951, segundo os mesmos, com o
objectivo de "reafricanização dos espíritos". O Centro de Estudos
Africanos que se apresentava como o corolário bem sucedido do
falhanço resultante da tentativa de "politização" da Casa dos
Estudantes do Império - igualmente frequentado por esses
estudantes africanos, afigura-se-nos, do ponto de vista
periodológico, como a pedra de toque de um moroso e exaltante
processo que foi a das lutas de libertação nos territórios africanos
sob dominação colonial portuguesa. Assim, quase todos os líderes
históricos dos movimentos que protagonizaram essas lutas pela
independência das colónias portuguesas de África partilharam da
mística da "reafricanização dos espíritos", donde despontou a
mística enraizada na necessidade de algo se fazer em prol da
independência dos respectivos países.

Indiscutivelmente, a " («) formação de agrónomo altamente


qualificado e a sua longa prática profissional haviam-no impregnado
da ideia, fundamental, de que quanto mais perfeito for o
conhecimento das situações e processos objectivos, dos seus
condicionamentos e conexões reais, maior é a probabilidade de ser
eficaz a acção a empreender e menos o tempo de produção do
resultado prático que se planeou atingir(«)". É assim que
rapidamente se tornou num dos mais dos mais influentes activistas
do grupo que constituía o Centro de Estudos Africanos, havendo
mesmo fortes razões para se pensar que ele era, tacitamente, o
líder por todos reconhecido, pois em momento algum teria pensado
ser, separadamente, agro-economista ou antropólogo, sociólogo ou
teorizador do processo histórico imperialista em África ou estudioso
da ética ou do Direito Internacional.

Cabral adoptou, conjunta ou alternadamente, estas várias ópticas e


operou com os respectivos conceitos e métodos de análise, por que
ele bem sabia que só esta concepção de indagação e estudo da
realidade, seja qual for o nível, conduz a apreensão, relativamente
objectiva, das formas mais complexas e dos seus processos mais
profundos ou menos patentes. Em contraposição, estava também
convicto de que só por meio da prática se pode alcançar esse
conhecimento, mais perfeito, das situações e processos concretos.
Dizia ele, aliás, de que («) nós temos sido capazes, e temos de ser
cada dia mais capazes de pensar muito os nossos problemas para
podermos agir bem, e agir muito para podermos pensar cada vez
melhor(«) temos que ser capazes de aliar estes dois elementos
fundamentais: pensamento e acção, acção e pensamento(«)"

A experiência africana da luta de libertação nacional e as


perspectivas de evolução futura na correlação de forças no sistema
internacional, evidenciam que a unidade da Guiné e Cabo Verde ±
expressão revolucionária cara à Amílcar Cabral ± , era uma das
pedras angulares no concreto processo de formação da unidade
africana. Assim, para além de que a unidade era e é uma das peças
chaves para compreender o sucesso da luta do PAIGC e de Cabral,
ela deve ser igualmente entendida como um meio e não um fim. A
unidade pode reforçar, pode acelerar a realização do fim, mas não
deve trair o fim, tal como demonstrou o jurista Manuel Duarte, ao
dizer que "o método para a concretização da unidade precisava de
ser definido, pelo que várias soluções poderiam ser, em teoria,
adoptadas".

Por um lado, mesmo supondo - por mera hipótese teórica - que com
a independência ter-se-ia porventura completado o ciclo
fundamental da luta de libertação nacional, na medida em que desta
luta empreendida pelo PAIGC e Amílcar Cabral resultou a nossa
dignificante   na História Contemporânea e Universal, por
outro, convenhamo-nos de que, no essencial, o legado político de
Amílcar Cabral sobreviveu de longe ao seu desaparecimento físico
e ao período pós independência, o que forçosamente interpela e
desafia a nossa capacidade de reflexão colectiva em correlação
com o legado de Cabral e independentemente do percurso político
que a África experimenta actualmente, ressurgindo-se o
pensamento de Amílcar Cabral, neste contexto, muito acima e
aquém das querelas político-partidárias e do momento político
vertente em África.

Contudo, convém sublinhar que no período pós independência,


infelizmente, o legado político de Amílcar Cabral não tem sido
estudado e levado em consideração na sua exacta vali a, porventura
porque como o próprio dizia " (...) a deficiência ideológica, para não
dizer a falta total de ideologia (...) devido a ignorância sobre a
realidade que se pretende transformar, constitui uma das maiores,
senão a maior debilidade da África", (...), sobretudo numa altura em
que essa atmosfera política é agravada pela legitimidade dita
democrática, a qual tende, lamentavelmente, a sobrepor-se à
necessidade de uma mística global africana. Nesse mundo
globalizado, a democracia, pelo menos tal como no-la apresentam
os que o exportaram para a África como modelo político mais
elaborado, só é e só será uma virtude em África quando associada
à um rumo e à um ideal cristalizado que encarna um objectivo
colectivo endógeno que os africanos terão de ser capazes de
universalizar. Dizia Cabral que "quem tem a força e o poder na mão,
faz democracia para ele. Nós na nossa terra, queremos o poder nas
mãos do nosso povo. Aquele que segue o caminho recto, que quer
cada dia mais progresso e felicidade na nossa terra, progresso não
só para fulas, não só para mandingas, não só para filhos de
caboverdianos, não só para balantas, progresso para todos («)"

Aliando a prática revolucionária a correspondente teoria emergente,


Cabral preocupava-se sobremaneira com os perigos da degradação
do continente africano, procurando alicerçar toda uma ideologia que
pudesse servir os propósitos fundamentais da libertação, ou seja, a
salvaguarda dos interesses do povo africano. A análise de Cabral
sobre a libertação nacional em relação à estrutura social",não é
senão uma leitura sinóptica que serviu de base ao delineamento de
estratégias conducentes à uma luta que se pretendia e se sabia de
antemão vitoriosa.

Em 1966, na conferência tricontinental realizada em Cuba de 3 à 14


de Janeiro, após ter insurgido firmemente contra a teoria marxizante
baseado no materialismo histórico que aludia ser a luta de classes o
motor da história, colocando assim fora da História os povos que
ainda não se tinham organizado em grupos com consciência de
classe, Cabral aventou a possibilidade de suicídio da burguesia
nacional, na medida em que, segundo ele, "independentemente do
seu grau de nacionalismo, "o eufeudamento da classe dirigente»
nativa à classe dirigente do país dominador é uma fatalidade, pelo
que limita ou inibe o pleno desenvolvimento das forças produtivas
nas condições concretas da economia do nosso tempo".

Em nossa opinião, esta asserção de Cabral, cuja interpretação é


amiúde desvirtuada por alguns autores hodiernos, tão somente
obedecia a coerência lógica ditada pela prática revolucionária da
luta de libertação, a qual se baseava, em termos ideológicos, na
necessidade de salvaguarda dos profundos interesses do povo.
Ousamos mesmo dizer que não obstante Cabral não ser nem
marxista, nem social-democrata e muito menos comunista,
compartilhava todavia da teorética do materialismo histórico e nesse
sentido, preconizava para a sociedade guineense o salto qualitativo
para outros "modos de produção" (entenda-se formações sócio-
económicas), mesmo que para isso tivesse que queimar etapas.

Cabral compreendeu os problemas fundamentais da sua época à


luz das alianças possíveis na altura, optou e adaptou-se ao estado
e o nível do conhecimento sobre a evolução das sociedades, nos
quais fundamentou e alicerçou a sua teoria revolucionária, com
base na realidade concreta da nossa sociedade e da África. Hoje
em dia, à luz dos conhecimentos que nos permitem descortinar o
facto de que Cabral não pretendia verdadeiramente assumir o poder
numa eventual independência da Guiné-Bissau, exactamente
porque tinha a consciência de que a luta de libertação era dirigida
por uma camada próxima dos meios pequeno-burgueses da
sociedade guineense e caboverdiana, do qual ele próprio fazia
parte, ousamos interpretar o suicídio da burguesia nacional»
proposto por ele como forma de, por um lado, não m   a
correlação desigual do processo do desenvolvimento das forças
produtivas e das relações de produção, permitindo assim o tal "salto
qualitativo" a que nos referimos e, por outro, salvaguardar o
supremo interesse da África e dos africanos; isto é, acautelando-se
assim dos eventuais perigos dum provável elitismo avassalador no
seio da burguesia nacional, o qual poderia, na sua acepção, ferir de
morte os supremos interesses do povo ± o principal elemento
ideológico da luta de libertação nacional.
Pese embora o facto de a maior parte da obra de Amílcar Cabral
ser desconhecida do grande público e a mesma se encontrar sem
um suporte de divulgação massiva que permitisse ou facilitasse a
sua releitura e reinterpretação histórica, apesar disso ± como
dizíamos ± ela mantém-se viva, sublime e actual, ajustando-se
positivamente à situação de vácuo ideológico com que nos
debatemos actualmente em África. YCabral e outros do seu quilate
desenharam, como autênticos arquitectos que foram, as
independências africanas. Neste sentido, ele construiu os alicerces,
mas não podia e nem devia tudo fazer. As nossas independências,
assim entendidas, não são senão uma base e o alicerce sobre o
qual devemos construir um ideal que configure ao nível político uma
ideologia política da nação africana. Não se pode esperar mais do
acto das independências. Cabral e outros como ele no-la deram. E
isso não se repetirá jamais.

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