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Luís Alves Lomanth

Rio de Janeiro
2010
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Melissa Ricca caminhava distraída, sem romper o silêncio,
numa sinuosa calçada de pedras portuguesas. Era pouco mais
de meio-dia, verificou no relógio de pulso. Depois, olhou
para cima, e teve a impressão de que nuvens alvas de algodão,
sopradas pelo vento na direção contrária do local para onde
ela estava indo, empurravam o sol para longe. A manhã fora,
para ela, preguiçosa, perturbada apenas por um movimento
de carros e de pessoas quase inexistente. Ela pensou, enquanto
andava: Hoje parece véspera de feriado... O dia está meio lerdo,
mergulhado numa inércia terrível! Nada acontece...
Vez por outra, enfiava a mão no bolso do blazer, pegava
um lenço e enxugava o suor do rosto. Outras vezes, tateava
outro bolso, para ver se a coronha da arma continuava ali.
Era uma questão de hábito. Havia chovido na madrugada e
refrescara um pouco às primeiras horas da manhã. Mesmo as-
sim, o mormaço persistia – e a incomodava. Podia ter parado
um táxi, se quisesse, já que estava sem o seu automóvel. E até
pensou nessa possibilidade, mas, disse para si mesmo, como se
repetisse um velho anúncio de sapatos de tênis: Caminhar faz
bem à saúde.
Vinte minutos depois, entrou numa sorveteria e acomo-
dou-se numa mesa de canto. Enquanto esperava que alguém
lhe servisse, pôs-se a refletir. Pensou no marido e no longo
tempo que não iam para a cama. Não ignorava os olhares de
desejo dos homens que a viam caminhar nas ruas, mas cogi-
tou a possibilidade de estar sendo traída. O sorvete lhe foi

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servido e, no primeiro contato do creme com a língua, ela
escutou barulhos abafados, seguidos de algo parecido com um
corvejar. Provavelmente era o canto de outro pássaro. Olhou
para os fundos da loja – até onde o movimento do pescoço
lhe permitiu – como se procurasse a ave ou o que quer que
fosse e tivesse um ninho por ali. Deu de ombros. Tudo lhe
pareceu em ordem, aparentemente em ordem. Então passou a
saborear o sorvete. Na calçada, a poucos metros da sorveteria,
havia um mendigo doente, deitado à sombra de uma árvore,
que interpretou a sequência de ruídos como uma combinação
diabólica. Ele se arrepiou da cabeça aos pés, mas reuniu forças
para fazer o sinal da cruz e dizer para si: “É hora de ir”. O
canto da ave, ou o que quer fosse, havia chegado até ele como
um anúncio fúnebre. Segundos depois, o som de um tiro o fez
encolher-se todo.
O estampido rompeu o silêncio e ecoou em meio aos
prédios, assustando os moradores de uma região tida como
tranquila. O tiro assustou mais por ressoar como um trovão
fora de época, como um surdo solitário em funeral de sam-
bista. Mas o disparo da arma de fogo estava longe de ser aci-
dental; não era mais um tiro para o alto dado por quem que-
ria demonstrar força; tampouco era endereçado ao mendigo.
Tinha um alvo certo: a cabeça da detetive Ricca, e por pouco
não a atingiu.
É claro que, se a policial pressentisse alguém em seu en-
calço, alguém que pudesse estar seguindo seus passos desde
que saíra do Gávea Trade Center, jamais teria entrado naquela
sorveteria e sentado a uma mesa de canto, desprotegida, tor-
nando-se alvo fácil. Era esperta o suficiente para não cometer
um deslize que lhe pudesse custar a vida.
Mas o tiro existiu e era bem mais real que o improvável
canto de um corvo no Rio de Janeiro. O tiro foi disparado a
uma distância de pelo menos dez metros de Ricca, que esta-
va sob um toldo envelhecido no hall. O impacto do projétil
abriu um buraco na parede e espalhou fragmentos de reboco
sobre a mesa em que ela estava. Mas isso, ela não sabia ainda, e

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tudo o que fez foi atirar-se no chão numa rapidez felina, já de
arma em punho. Arrastou-se por baixo de mesas e cadeiras até
alcançar um pequeno portão de ferro entreaberto. Sua experi-
ência lhe mandara ir para a direita, na direção da Marquês de
São Vicente, local escolhido pelo atirador, embora por trás do
muro baixo dos fundos da sorveteria houvesse um tremendo
descampado, também um convite irrecusável a quem quisesse
matar sem ser alcançado. A cápsula deflagrada ainda estava
quente sobre a calçada.
Deitada no chão com o revólver apontado à procura do
alvo, viu o que lhe pareceu o atirador, um homem vestido
de preto, em fuga. Era alto, tinha os cabelos presos em uma
trança ou rabo de cavalo, e usava um sobretudo. Foi o que ela
pôde perceber ao vê-lo em disparada. Não atirou. Não saberia
explicar por que, mas não puxou o gatilho. O suposto atirador
segurava uma carabina rente à perna direita, como se estivesse
preocupado em esconder a arma enquanto corria. Ela custou
a acreditar na agilidade do homem ao vê-lo pular o alambrado
do Planetário da Gávea e sumir logo depois no gargalo do via-
duto do Minhocão.
Finalmente, Melissa Ricca levantou-se do chão. O blazer
e a saia estavam imundos. Ela limpou a roupa com um lenço
ou, pelo menos, tentou tirar um pouco da sujeira. Depois,
franziu a testa, decepcionada, ao observar o estado que ficara
sua roupa. Respirou fundo, murmurou algo incompreensível
e guardou o revólver, um Taurus 38, cano curto, numa cartu-
cheira escondida pelo blazer preto em cuja lapela realçava um
broche de ouro da Scuderie Le Cocq, que achara quando re-
mexia o velho baú do pai, Alexei Ricca, um dos mais notáveis
homens da polícia carioca, morto durante uma emboscada, no
final dos anos 1970, contra gangs do Jogo do Bicho.
Pelo celular, comunicou-se com a Central de Polícia e,
em poucos minutos, cinco viaturas, duas da Polícia Militar e
três da Civil, transformavam a Marquês de São Vicente num
cenário cinematográfico, com policiais agitados, de olhos agu-
çados em todas as direções, de armas em punho, interditando

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ruas, vasculhando carros e prédios à procura de um homem
que, por certo, àquela hora, já deveria estar longe dali.
A detetive ajeitou uma das cadeiras viradas na correria,
e sentou-se. Tentou relaxar enquanto aguardava a chegada da
perícia. Seu coração ainda pulsava forte. Arfava. Sentiu que a
cabeça ziguezagueava. Era como se ela tivesse atravessado uma
ponte de madeira e de cordas bambas sobre um rio de águas
barrentas, quando a pessoa tem a ligeira sensação de desmaio.
Levantou-se rapidamente e respirou fundo. Sentiu-se mais ali-
viada. Voltou a sentar-se.
– Foi muita sorte sua ter escapado com vida – comentou
friamente o perito que examinava o buraco deixado pela bala
na parede da sorveteria.
– Não! – ela discordou. – Acho que não foi sorte não.
Ele teria me acertado se quisesse. – Respirou fundo, meneou a
cabeça e cedeu: – Dei mole, isso sim!
– O que aconteceu por aqui? Assalto? – quis saber Pe-
dro Lessa, delegado da Divisão de Homicídios, que acabara de
chegar. – Recebi o recado pelo celular. O que houve, Mel? O
que aconteceu? Por que está com a roupa tão suja?
– Alguém atirou em mim, mas não chegou perto, não
demonstrou querer algo de mim, não acredito em assalto. Ele
parecia vestido para algo especial. Mas não – sacudiu a cabeça
desapontada –, para um assalto não.
– Atentado? Pode ter sido um atentado?
– Não sei, Pedro. O cara atirou na direção da minha ca-
beça. Basta olhar o buraco da bala na parede. Eu estava senta-
da aqui. Se tivesse a fim de assaltar teria ido ao caixa do outro
lado – apontou para a esquerda do balcão onde se podia ver a
caixa registradora. – E ninguém iria se fantasiar para assaltar
uma sorveteria, né? Se fosse um banco... Mas tenho a impres-
são de que não queria me matar.
O delegado encaminhou-se, sem pressa, na direção do
balcão, sempre escorrendo os dedos nos suspensórios. A prefe-
rência pelas tiras elásticas lhe dava a aparência de um homem
que se vestia para se destacar no meio policial, pelo menos era

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o que parecia, porque há muito os suspensórios deixaram de
ser moda. Com o olhar atento às cadeiras de ferro, como se
buscasse em meio à bagunça alguma pista para levá-lo ao autor
do atentado, Lessa, vez por outra, resmungava algo incompre-
ensível.
Pedro Lessa abriu um freezer e pegou uma lata de re-
frigerante. Depois do primeiro gole, tirou do bolso algumas
moedas, ajeitou os suspensórios e deixou o dinheiro sobre o
balcão, mesmo sabendo que não havia ninguém por trás dele.
– Mel, você viu a cara do sujeito? – indagou o delegado, de
volta.
– Não. Eu estava distraída, tomando um sorvete, quan-
do escutei o estampido e muita terra voar sobre mim. Quando
alcancei o portão me arrastando, vi alguém correndo na dire-
ção do Planetário. Era um cara de cabelos compridos, amarra-
dos... Hum... – ela se esforçou para lembrar – rabo de cavalo, é
isso. Ah! Acho que ele estava de óculos... Sim, óculos escuros.
E pela rapidez que deixou o local, só pode ser sarado. Um
indivíduo de idade não teria fôlego pra correr tanto, e muito
menos pular aquela grade com a agilidade que fez.
– Suspeita de alguém? Quero dizer... Algum desentendi-
mento, sabe como é... Alguém que a tenha ameaçado?
– Não. Quero dizer... – fez uma pausa recordando algo e
depois comentou, encolhendo os ombros: – Não.
– Costuma frequentar essa sorveteria?
– Faço isso todas as quintas-feiras, quando saio mais
cedo da DH. Mas hoje voltei a pé, porque o meu carro está
na revisão.
– Não nos vimos hoje na DH. De onde está vindo, Mel?
– Do Gávea Trade Center. Fui pagar uma conta e decidi
voltar pra casa andando. Até pensei num táxi, mas a distância
até minha casa é mínima, seria desperdício de dinheiro. Além
disso, de táxi ou não, com certeza tomaria o meu sorvete, a
parada aqui é obrigatória. Pelo menos era – suspirou.
– Não percebeu nada de estranho? Ninguém te seguindo?
– Não – ela olhou para os lados. – Andei tranquilamente

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até aqui. Algumas pessoas passaram por mim. Alguns carros,
nada mais.
– Ninguém viu o cara andando na rua com uma arma na
mão? Como isso é possível?
– Não há ninguém na rua. É um dia morto! Os policiais
tentaram arrancar alguma coisa de um mendigo aí ao lado,
mas o coitado está muito doente, e já não enxerga mais. Foi
encaminhado para um hospital.
– O cara já chegou atirando, é isso?
– Acho que sim, porque estava tudo sossegado. Atirou
de longe. Antes do tiro escutei um barulho seco e logo em se-
guida ouvi o canto de uma ave. Era um canto rasgado, como
o de uma coruja à noite. Foi então que olhei para o telhado, e
escutei o tiro.
– Ei, você aí! – o delegado gritou ao ver o empregado da
sorveteria, e caminhou na direção dele. – Você viu o rosto do
homem que atirou?
– Não. Vi quando ele apontou a arma pra lá – mostrou
o buraco, na parede. – Foi coisa de segundo. Não sei de onde
aquele cara saiu. Só sei que me joguei no chão. Aí escutei o tiro.
– Ele aparentava estar calmo? Chegou andando normal-
mente ou estava de carro? Tinha alguém com ele?
– Isso eu não sei dizer, porque o cara saiu daquele lado
do portão, e aquela parede lá impede de ver o outro lado da
rua, estando eu onde estava, é claro!
– E onde você estava?
– Perto do freezer. Ali – apontou para os fundos da sor-
veteria.
– Alguma coisa com que possamos identificá-lo?
Pedro Lessa passou a olhar para o garçom como se esti-
vesse a mensurá-lo. O rapaz enrubesceu. O homem franzino,
de lábios roxos e mãos trêmulas, fez que não com a cabeça. O
delegado insistiu:
– Ele tinha uma trancinha no cabelo, pelo menos isso
você percebeu, né?
– Não, senhor – retrucou – Sei que estava de preto.

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Parecia um casaco de frio. E aquilo que ele tinha no rosto era
um... Sei lá, acho que eram óculos escuros. Talvez uma más-
cara, o senhor compreende? Também não sei dizer se algum
carro parou pra ele descer. Mas acho que sim, porque uma
pessoa não pode sair andando por aí com uma roupa daquela
numa lua dessas, o senhor não acha? Ao me virar para saber
se a moça queria mais alguma coisa, foi quando vi de relance
a arma apontada para ela. Parecia um canhão. Aí me joguei
no chão e só me levantei depois que a moça ali – apontou
novamente para a detetive – se levantou do chão e guardou a
arma dela.
– Ela é policial – murmurou Pedro, atirando a lata vazia
do refrigerante no cesto de lixo. E acrescentou: – Você é capaz
de fazer um retrato falado do sujeito? Sabe o que é um retrato
falado?
– Sei sim. Só não sei se vou ser útil... Como disse, foi
tudo muito rápido.
– Vamos tentar! Amanhã, às três da tarde, na Homicí-
dios, não falte.
– Sim, estarei lá – e repetiu incrédulo: – Não sei se vou
poder ajudar, mas estarei lá.
– Ah – fez o delegado, pensativo: – quantas vezes o cara
atirou?
– Uma vez só. Parece que queria matar a moça policial.
O delegado assobiou, voltou a escorrer os dedos nos sus-
pensórios e indagou, num suspense:
– O que o leva a pensar que o sujeito queria matar a
policial?
O empregado fez um beiço engraçado, encolheu os om-
bros e murmurou:
– O cara atirou nela e se mandou – e disse para si mes-
mo: Ih... que merda! Será que falei demais?
– Não acha estranho ele ter atirado apenas uma vez, es-
tando com uma arma daquela nas mãos? Então, por que acha
que ele queria matar a policial?
O empregado estreitou os olhos. Havia falado demais, agora

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tinha certeza. Abriu os olhos e tentou se safar devolvendo a pergunta:
– Então por que ele atirou apenas nela se havia outras
pessoas aqui? O senhor me desculpe, não falei por mal, mas
acho que qualquer pessoa na minha situação pensaria assim.
O delegado sacudiu a cabeça umas duas ou três vezes e
disse, para encerrar a conversa:
– Amanhã, às três da tarde na DH. Sabe onde fica?
– Sei sim.
– Então, tá.
– Boa tarde, delegado.
– Dr. Lessa! – gritou um detetive de dentro da viatura
parada em frente à sorveteria – Temos problemas na área da
32ª!
Pedro Lessa debruçou-se na porta da viatura, uma Bla-
zer DLX, e, atento, escutou a mensagem que saía do radio-
transmissor. Uma voz rouca alertava sobre o cadáver de uma
mulher, encontrado num matagal, às margens da estrada do
Gabinal. Lessa estreitou os olhos ao ouvir o policial identificar
o corpo como sendo o da detetive Jacqueline River. O delega-
do sentiu um forte calafrio em todo o corpo.
– Vamos para a Gabinal – ordenou.
– Eu quero ir, Pedro – a detetive falou enquanto olhava
para a sujeira na roupa.
– Não. Vá para casa se cuidar. Precisa de um bom ba-
nho. A gente se vê mais tarde.
– Errado. Eu quero acompanhar o caso – disse ela, deci-
siva, já entrando no carro.
– Bom, sendo assim... Toque o carro, Melville! E mais
essa! Uma detetive assassinada! – frisou o delegado.
De sirene ligada, a viatura da Homicídios seguiu em
direção a Jacarepaguá. Quando o carro pegou a Avenida das
Américas, o asfalto dava a impressão de estar se derretendo por
causa do calor. Às margens da avenida, ninguém arriscava an-
dar sem uma proteção qualquer sobre a cabeça, a não ser uma
penca de moleques malcheirosos de voz estridente a anunciar,
nos sinais, água mineral em promoção.

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