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Associated Press
Tabuleiro de xadrez
com peças
caracterizadas como
personagens das
histórias de Sherlock
Holmes
O conto é tão antigo quanto o homem. Talvez até mais, pois podem muito bem ter
existido primatas ancestrais que contavam contos feitos inteiramente de grunhidos,
que são a origem da linguagem humana: um grunhido, bom; dois grunhidos,
melhor; três grunhidos já são uma frase. Assim nasceu a onomatopéia e com ela a
epopéia. Mas antes desta, cantada ou escrita, houve contos feitos inteiramente de
prosa: um conto em verso não é um conto, mas outra coisa: um poema, uma ode,
uma narração com métrica e talvez com rima: uma ocasião cantada, não contada,
uma canção.
Antes até que aquele anônimo artista de Altamira pintasse seus minuciosos murais,
deve ter existido um autor anônimo na região que contasse contos para seus
companheiros de caverna sentados em volta de uma fogueira. O homem, como
sabemos, é o único animal que faz fogo. O contista é o único ser humano que faz
contos. Esses contos seriam, por exemplo, narrações de um dia de caça perdido no
encalço de um cervo branco com um chifre na testa. Os contos não perduraram nas
paredes da caverna, mas não se perderam: foram reencontrados, contados, na
memória coletiva.
Séculos mais tarde, outro contista pegou o mesmo conto, embelezou o cervo
branco e o converteu em mito ao chamá-lo unicórnio. Embora a experiência fosse
alheia, tomou e fez seu o tema do unicórnio perdido. Muitos séculos mais tarde,
outro contista enfeitou com metáforas (isto é, embelezou poeticamente) esse
animal único com seu único chifre. Passados outros tantos séculos, o homem que
conta já havia aprendido a escrever (e, é claro, a ler), e outros animais e outros
homens que se transformavam em animais povoaram com contos o que chamamos
mitologia, mas que para eles era essa transcendência chamada religião.
Protéico, como se sabe, vem de Proteus, deus grego que estréia na cena olímpica
com a "Odisséia", poema feito de contos. Proteus sabia tudo de tudo, mas mudava
de forma para não ser interrogado. Isto é, fazia o contrário de um autor atual, que
nunca muda de forma, mas procura sempre ser interrogado: pela imprensa, pelo
rádio e pela televisão - e, às vezes, pela polícia. Creio desnecessário frisar que
Proteus era uma metamorfose feita deus. Proteus está muito perto de prosa, que é
o que os contistas cultivam. Protéico, prosaico - dá na mesma.
Um escritor cairota, Naguib Mahfuz, em suas Noites das Mil e Uma Noites, que o
editor cataloga como romance (os editores são capazes de chamar de romance a
lista telefônica, que pode não ter narração, mas tem uma porção de personagens),
esse escritor consciente, demasiado consciente, tenta se tornar uma Sherazade
assídua. Mas fracassa em seu intento. O livro quer ser árabe e é apenas egípcio.
Por outro lado, Los Cuentos Negros de Cuba são minhas mil e uma noites negras,
contadas por uma Sherazade branca, Lydia Cabrera, para entreter as noites em
claro de uma amiga agonizante. No final do livro, a doente já estava morta, mas os
contos vivem na imortalidade da literatura. Eu os classifiquei, qualifiquei, como
"antropoesia".
A trama tecida noite após noite por Sherazade, Penélope contista com milhares de
pretendentes, levou muitos escritores - desde d. Juan Manuel, Boccaccio e Chaucer
- a tentar uma imitação em que diversos talentos buscam emular o encantamento
árabe. Poucos o conseguiram, mas um escritor nosso contemporâneo, Manuel Puig,
em seu O Beijo da Mulher Aranha, é uma Sherazade argentina que a cada noite
conta um filme inventado para seu companheiro de cela, seu vizir cruel:
completamente surdo às dádivas orais que lhe oferece Puigrazade - assim como é
cego a suas investidas sexuais.
Edgar Allan Poe inventou com três contos - "Os Crimes da Rua Morgue", "O Mistério
de Marie Roget" e "A Carta Roubada" -, ele sozinho, a literatura policial, que são o
conto e o romance de mistério. Todos os cultivadores do gênero recém-criado
foram seus epígonos, de Arthur Conan Doyle, criador do insólito Sherlock Holmes, a
Dashiell Hammett e Raymond Chandler, romancistas que foram também contistas
e, de passagem, renovaram o gênero. Uma epígona (se alguém disse "jóvenas", eu
posso muito bem dizer "epígona"), Agatha Christie, disse: "O conto é o domínio
natural da literatura de crime e mistério".
Muitos contistas, quase todos anglo-saxões, fizeram do conto seu habitat, que era
como uma casa mal-assombrada. Todos seguiram o ditame de Poe, que disse que o
conto "é uma narração curta em prosa" e definiu o conto breve como uma peça
literária que "requer de meia hora a uma hora e meia ou duas de leitura". Eis aí um
importante modo de usar, "com cuidado". Mas há - ah! - leitores descuidados. Para
estes, a melhor maneira de ler é no avião - e um best-seller ou livro que se compra
porque se vende.
Os herdeiros de Mark Twain são tão numerosos quanto os seguidores de Poe, mas
os primeiros, que chamaremos aqui humoristas, atentaram apenas para o lado
luminoso da lua de Twain -sem enxergar suas regiões de sombra e de penumbra. O
mais bem-sucedido deles foi Damon Runyon, com suas historietas em que o
submundo de Nova York aparecia povoado de gângsteres sentimentais, jogadores
sementais e uma porção de mulheres de moralidade duvidosa e um (pouco) siso
legível como sexo. O cinema e o teatro, onde ninguém lê, criaram um Runyon
ilustrado para iletrados. Runyon, que fazia rir, ia ao banco sempre rindo.
Não foram só os contistas com humor que tiveram sucesso popular. A partir do
século 19, houve também quem cultivasse - e fosse popular por algum tempo -
essa estranha e elusiva planta chamada "conto fantástico". Na Inglaterra, onde se
desperdiçara a tradição realista iniciada por Chaucer, houve muitos autores de
fantasias cujo objetivo não era induzir o sonho, e sim o pesadelo. Lembro, entre
outros, Arthur Machen, Saki e Roald Dahl.
Na Irlanda, terra de luzidas lendas nada lúcidas, Sheridan le Fanu foi um contista
de mistério e terror cuja coleção In a Glass Darkly (em Dublin, cidade alcoólica,
tomam o espelho, "glass", como copo, e o livro se chama "Em um Copo Escuro") é
um dos clássicos do conto de terror como horror. Sua contrapartida foi mais tarde o
norte-americano H.P. Lovecraft, um precursor da ficção científica, gênero
praticamente inventado por H.G. Wells na Inglaterra. A ficção científica encontrou
no conto sua forma perfeita para uma arte imperfeita. Vale registrar que todos os
mestres do conto de horror anglo-saxão têm, também eles, em Poe seu antecessor
primordial.
É preciso abrir aqui um parágrafo para Rudyard Kipling, talvez o maior contista
inglês de todos os tempos. Kipling não fica nada a dever a Poe ou a Mark Twain, e é
para a Inglaterra o que Maupassant foi para a França e Tchecov para a Rússia: um
contista natural. Começou publicando em jornais indianos e, quando afinal foi a
Londres, então o centro do universo literário, tinha apenas 20 anos (Kipling é quase
nosso contemporâneo, morreu em 1936). Deixara para trás a Índia, embora fosse
justamente seu lado muçulmano, mais do que o hindu, o que mais lhe interessava
no subcontinente.
A França não teve um Chaucer, mas teve um mestre do conto no século 18, tardio,
mas nada lerdo em sua arte da ironia, exercida com uma inteligência incomum.
Refiro-me a Voltaire, cuja obra-prima, Cândido, não é um romance, e sim uma
fábula com uma moral em cada página. Os franceses tiveram de esperar todo o
século 19 para que, afinal, surgisse um dos maiores contistas de todos os tempos,
Guy de Maupassant, assombroso autor de sucessivas obras-primas do gênero.
Maupassant teve Gustave Flaubert como mestre e Émile Zola como mentor. Mas
nenhum dos dois, embora tanto Flaubert como Zola tenham escrito contos
memoráveis, conseguiu superar o discípulo nascido para o conto. Sua influência foi
enorme em toda parte e teve seguidores (se não verdadeiros plagiários) na
Inglaterra, nos EUA e na Rússia.
Se James Joyce tivesse morrido logo depois de publicar Dublinenses, ainda assim
seria considerado um escritor notável e um grande contista. Traduzir é reescrever.
Traduzindo Dublinenses, tive a oportunidade de encontrar os "tricks" e tiques de
Joyce mas também seus magistrais contos originais e sombrios e sua escritura
cômica.
"The Dead" (que traduzi como "El Muerto") é uma obra-prima dolorosa e um dos
grandes contos escritos em inglês, quase um romance, por seus personagens
inesquecíveis e sua extensão. "The Dead" não é um precursor do Ulisses, e sim
uma peça acabada em si mesma, de uma prosa milagrosamente extraordinária.
Não se poderia deixar de falar de um dos escritores mais originais do século 20,
Franz Kafka, inventor da fábula com moral teológica, ou seja, metafísica. Sua
influência se faz sentir em muitos escritores judeus, como Isaac Bashevis Singer,
ou genuinamente gentílicos como Milan Kundera, que o reclama para a literatura
tcheca, embora Kafka tenha escrito em alemão e pertença à cultura talmúdica.
Felizmente para nós, que não somos nem tchecos nem judeus nem alemães, Kafka
pode ser lido com verdadeiro deleite literário.
Hemingway e Tarantino
O conto americano do século 20 nada deve a Maupassant, mas sim a Tchecov. Seu
renascimento lembra mais Twain do que Poe e começou, como ocorrera com Twain,
com uma literatura regional que pulava as fronteiras do Meio-Oeste para chegar a
Nova York e daí ao mundo. Seu pioneiro se chamava Sherwood Anderson,
patrocinador de William Faulkner e modelo de Ernest Hemingway. Seu livro
Winesburg, Ohio (conhecido na América do Sul e em Cuba como Las Novelas de lo
Grotesco, embora não sejam romances, e sim contos, e essa história de grotesco
seja gratuita, mas não deixa de ser um título com gancho) continha uma nova
visão do mundo adolescente num lugarejo de Ohio, e sua linguagem, coisa bem
importante, era entre ingênua e sábia.
Faulkner, que graças a Anderson publicou seu primeiro romance, é famoso como
romancista, ou melhor, como um poeta falastrão, mas escreveu meia dúzia de
contos memoráveis. Hemingway, por sua vez, é mais contista do que romancista:
um artista que renovou a prosa moderna americana com seus diálogos sofisticados
para conversar com primitivos, que são de uma mestria ainda atual. Seu conto "Os
Assassinos", em que apenas com o diálogo se oferece uma amostra do mal sob a
forma de uma conversa aparentemente casual, revela uma violência latente que
nunca se faz patente.
Dos grandes escritores americanos dos anos 20, Scott Fitzgerald é o único que
frequentou a universidade, mas nunca chegou a se formar. Todos, portanto, foram
autodidatas. Alguns, como John Steinbeck e William Faulkner, exerceram as mais
variadas atividades, quase sempre manuais. Ernest Hemingway se dedicou ao
jornalismo -que é quase um trabalho manual. O único instrumento que se tem de
aprender a utilizar é a máquina de escrever, e Hemingway sempre foi um mau
datilógrafo. Todos eles eram contistas respeitáveis, mas, à exceção de Hemingway,
o cultivo do romance ocultou essa qualidade.
Faulkner, como Fitzgerald, também foi alcoólatra e, como Fitzgerald, também foi a
Hollywood e serviu como tarefeiro de ouro (ou dourado), especialmente para o
diretor Howard Hawks. Mais esperto ou mais duro de domar, Faulkner ia a
Hollywood, mas, assim que recebia seu dinheiro, voltava correndo para Oxford. Não
a universidade inglesa, mas o pobre povoado do Mississippi onde ele nasceu e
morreu, no mais profundo e racista Sul. Ao contrário de Fitzgerald e Hemingway,
Faulkner era um reacionário público e um liberal privado. Dessas tensões são feitos
não apenas seus romances mas os muitos contos que ele escreveu.
Alguns de seus romances, como Palmeiras Selvagens, cujo belo título acaba de ser
surrupiado e estropiado pelo diretor Oliver Stone, e Desça, Moisés, são feitos de
contos mais ou menos longos, entre os quais algumas obras-primas como "O Urso".
Outras de suas narrações breves, como "A Rose for Emily" e "Barn Burning",
constam de todas as antologias e integraram a seleção feita pelo próprio Faulkner
em suas Selected Stories. William Faulkner chegou a publicar um livro de contos
detetivescos. Chama-se Knight's Gambit, e seu fio condutor é uma atividade que
ninguém associaria ao narrador de "Enquanto Agonizo" e "O Som e a Fúria": o
xadrez.
Tão contraditório quanto Faulkner foi John Steinbeck: primeiro, comunista; depois,
liberal e, mais tarde, um dos defensores mais ferrenhos do presidente Johnson e da
Guerra de Vietnã. Além de seus grandes êxitos novelísticos, como Vinhas da Ira
(conhecido na Espanha por um título menos bíblico e mais vitícola, Las Uvas del
Rencor), que é, apesar da opinião de certos críticos americanos como Mary
McCarthy, uma obra-prima popularizada em todo o mundo por John Ford,
Steinbeck escreveu e publicou muitos contos, e seu segundo livro, Pastagens do
Céu, é uma coleção de contos. Seu conto "O Cavalinho Vermelho" é uma pequena
obra-prima, e seus contos longos, como "Ratos e Homens" e "A Pérola", são obras-
primas desse gênero, a novela, que parece ter sido inventado pelos escritores
americanos, de Henry James, com A Volta do Parafuso, a Hemingway, com O Velho
e o Mar.
Mas vim aqui falar do conto. Toda intromissão de outros gêneros deve ser
considerada uma digressão. E a digressão nunca deve ser considerada uma
agressão. Como diz Laurence Sterne, é o sol que brilha sobre a conversa. Também,
diriam vocês, sobre meu monólogo. Outro escritor contemporâneo desses autores
artistas foi um jornalista que era um contista nato: o risonho e frágil Ring Lardner,
que influenciou todos os mestres do humor americano que o sucederam. Lardner,
embarcado numa missão impossível - criar o conto de humor absurdo -, se
autodestruiu com o álcool.
Outro escritor agora esquecido, Erskine Caldwell, que já foi considerado o melhor
contista do Sul selvagem, sabia mesclar o drama rural com uma sexualidade que,
na época, era franca e atrevida, mas divertida. Agora, perto do que se vê no
cinema, seus contos parecem se passar num convento de freiras que fumam.
Lardner, contudo, teve colegas de mérito, como James Thurber, Robert Benchley e
Dorothy Parker, que apostavam tudo no humor.
Ao mesmo tempo, outros de seus colegas da revista "New Yorker" fiavam, mas não
confiavam no esquivo amor - que muitas vezes se escrevia ódio; outras, tédio.
Talvez o maior mestre entre eles tenha sido John O'Hara, que fez dos diálogos
aprendidos de Hemingway uma espécie de sábia sarabanda em que tudo se fiava à
conversa, para revelar, mas muitas vezes ocultar, os conversantes, conversos de
uma religião atéia.
Desde então não houve nenhum contista americano tão influente e tão lido - se
excluirmos Raymond Carver. Ambos, O'Hara e Carver, são, à sua maneira,
epígonos de Hemingway. Há outro grande contista contemporâneo que não vem da
tradição americana, que não é americano, mas cria sua própria tradição na
América, embora sua arte singular não tenha seguidores. Além de seus grandes
romances, escreveu contos perfeitos que, curiosamente, foram quase todos
publicados pela primeira vez na revista "New Yorker". Seu nome, claro, é Vladimir
Nabokov. Acabaram de sair seus contos completos, e entre eles há pelo menos
meia dúzia de obras-primas do gênero.
Assim como ocorreu nos EUA com o conto escrito em inglês, o conto escrito em
espanhol será escrito na América. Um crítico peruano chamou a América (referia-se
antes à América hispânica) de "romance sem romancistas". Estava enganado, é
claro, mas não teria errado se tivesse chamado as Américas de continente que
contém contos. Pelo menos, se o título não é exato, ele poderia ter tirado algum
proveito de minha aliteração.
Por quê? Simplesmente porque haveria peitos a conter, mas não contos a contar.
Toda regra tem uma exceção lutando por vir à tona, e deve-se dizer que uma
recente coletânea de contos de Javier Marías, Cuando Fui Mortal, que contém
contos não imorais, mas sim imortais, poderia continuar a tradição inaugurada por
d. Juan Manuel, que foi neto e sobrinho de reis, adiantado do reino de Múrcia
quando Múrcia era um reino. Mas não é o escritor da nobreza o que nos interessa,
e sim a nobreza do escritor - e sobretudo sua popularidade: em poucos meses,
Marías vendeu perto de 50 mil exemplares de seu livro de contos. Mas eu não vim
aqui para fazer o elogio de Marías, e sim do conto americano ou hispano-
americano, muito embora três dos maiores contistas cubanos (Hernández Catá,
Carlos Montenegro e Lino Novás Calvo) tenham nascido na Espanha: em Castela e
na Galícia, respectivamente. Lino Novás, outra surpresa, foi o verdadeiro criador
dessa coisa curiosa chamada realismo mágico. Aparece pela primeira vez num
conto dele, "Aquella Noche Salieron los Muertos", muito antes que Alejo Carpentier
formulasse sua teoria estética (tomada emprestada de um surrealista francês) do
"real maravilhoso".
Horacio Quiroga é o primeiro contista qua contista (gosto dessa palavra latina, qua,
porque lembra água, aqua, e repetida, qua, qua, parece um chamariz para patos,
quá, quá, quá) e um louco perseguido pelo infortúnio. Perdeu o pai num acidente
de caça (caçava patos na fronteira do Uruguai com a Argentina: os dois países
reivindicam sua paternidade) e seu padrasto se suicidou pouco depois. Perder o pai
pode ser uma desgraça, mas perder um padrasto me parece um descuido.
Ambos, tomem nota, por favor, morreram de morte violenta. Poucos anos depois,
Quiroga matou seu melhor amigo, no que os juízes qualificaram de acidente.
Quiroga se casou, e, não muito depois da lua-de-mel (ele obrigou sua jovem
mulher a passá-la na mais densa selva brasileira), quase nem preciso dizê-lo, foi a
vez de ela se suicidar. Casado mais uma vez, sua nova mulher, como a oitava de
Barba Azul, sobreviveu a ele. Doente de câncer da próstata (até nisso ele foi um
pioneiro), Quiroga escolheu o suicídio.
Outro escritor de contos nascido na Argentina, mas com a cabeça bem no lugar, é
Adolfo Bioy Casares. Muitas vezes é associado a Jorge Luis Borges só porque eram
amigos e colaboravam em empresas narrativas. Alguém os chamou, a ambos,
Biorges. Mas Bioy continuou escrevendo depois da morte de Borges e foi cada vez
mais individual e distinto, não apenas no porte mas na escritura. Bioy escreveu a
mais comovente história de amor da literatura em espanhol do século 20. Chama-
se A Invenção de Morel e, embora alguns a chamem de romance, é uma novela ou
conto longo e, para mim, é perfeita. É a melhor ilustração do conselho francês
"cherchez la femme".
Agora uma breve interpolação para falar, brevemente, embora ele mereça ensaios
e tratados, desse grande autor: um americano que não escreve em espanhol e que
não segue a tradição de sua língua, porque está criando as duas. Refiro-me a
Machado de Assis, o único grande romancista sul-americano do século 19, que é
também um contista extraordinário: sempre original, sempre na vanguarda de um
homem só. Leiam, como aperitivo para o festim de um Trimalcião literário, seu
conto "O Alienista".
O uruguaio Felisberto Hernández era o oposto físico do cubano Virgilio Piñera. Não
gostava de homens magros, como Virgilio, mas de mulheres, muitas, gordas e
caras: casou-se quatro vezes. Ao contrário de Virgilio, que nunca foi musical,
Felisberto (podemos chamá-lo Felisberto: ninguém se chama assim) era um músico
profissional, que, curiosamente, trabalhava como pianista de teatro, mas não de
palco, e sim no fosso, e não para acompanhar sopranos, mas fazendo música de
fundo para filmes mudos.
Suas vidas opostas tiveram um final parecido, mas diferente. Virgilio morreu
reconhecido como pederasta passivo, com passagens pela prisão, condenado por
invertido. Sua morte foi chorada por poetas pederastas, mas seu cadáver
desapareceu do velório: as autoridades estavam convencidas de que seu corpo
presente recriaria o ausente com fins políticos. Felisberto morreu de leucemia muito
mais jovem que Virgilio, mas seu corpo inchou tanto que foi preciso procurar às
pressas um caixão adequado, uma coisa tão enorme que não pôde ser tirada pela
porta da funerária e saiu para a eternidade por uma janela.
Juan Rulfo chamou Guimarães Rosa de "o maior autor surgido nas Américas neste
século". Não se deve exagerar, mas Guimarães Rosa, que escreveu o melhor
romance do chamado "realismo mágico", é um grande escritor. Para deleite de
vocês (já que sua obra-prima, Grande Sertão: Veredas é longa, complexa e
metafísica), ele tem um volume de contos, mais zen do que sensacionais, intitulado
Primeiras Estórias, que em espanhol ganhou o sugestivo título de um de seus
textos, "A Terceira Margem do Rio". Há outros compatriotas de Machado de Assis
que vale a pena citar, ainda que rapidamente. Murilo Rubião, com seu conto "O Ex-
Mágico da Taberna Minhota", que é "sui generis", como são os contos de João
Ubaldo Ribeiro, sobretudo seu "Foi um Dia Diferente o da Matança do Porco" e o
elusivo e alusivo Rubem Fonseca, que com seu “Corações Solitários" criou um
escândalo internacional ao ser proibido pelas autoridades de seu país.
O escândalo chegou aos ouvidos do presidente Carter, mais conhecido como "el
manisero", não por causa da saborosa rumba havanesa, mas por ter enriquecido
cultivando amendoim. Há outra rumba chamada "Tanta Lipidia por un Medio de
Maní" cujo título me leva a explicar aqui meu interesse e até meu afeto pelos
cariocas do conto. Não há outro país na América que se pareça tanto com a
minúscula Cuba como o gigantesco Brasil: ambos têm sua musicalidade na música
e na língua, ambos são uma mistura de brancos ibéricos e negros africanos, ambos
criaram uma nova religião, que no Brasil se chama macumba e, em Cuba,
"santeria".
Todos acreditamos que o ritmo não está só na música mas na fala, nos movimentos
do corpo e nesse balanço que em Havana se chama "el caminao". Este meu ensaio,
por exemplo, foi escrito como falam em Havana os "hablaneros".
Penso, ou sinto, não serem muito bons os contos de Rulfo, que me parecem parcos,
mas primitivos. Em compensação, acredito que Pedro Páramo é um grande
romance em poucas palavras e o melhor romance mexicano já escrito - neste e em
outros séculos. O contrário acontece com o defunto Julio Cortázar: seus romances
são para mim enfadonhos exercícios de uma vanguarda que o tempo mandou para
a retaguarda.
Também o é seu conto longo "Concerto Barroco" - se esquecermos seu final, que
eu não quero esquecer. Também Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes e Mario
Vargas Llosa escreveram e publicaram contos. Mas, apreciados ou desprezados,
devem ser considerados romancistas antes de mais nada ou depois de tudo.
Não me escapa e, claro, não escapará a vocês, que fui parco em nomes e largo em
adjetivos. Não era meu propósito compor aqui um guia de autores, mas oferecer
um panorama do conto mais geográfico do que histórico. Depois de passear - como
queria Anatole France que fosse a visão, não a missão, do crítico - por entre obras-
primas, posso chegar a uma conclusão, se é que chego. Talvez o conto requeira
mais arte que verdade. Isto é, uma quantidade maior de ficção.
Anatole France, aliás, deu uma aula sobre memória histórica em seu magistral
conto "O Procurador da Judéia". Em Roma, Pôncio Pilatos, que fora procurador da
Judéia, vai a uma festa romana, que vocês podem chamar orgia, e seu anfitrião lhe
pergunta por "um judeu desordeiro" chamado Jesus. Pilatos, uma taça de vinho na
mão, a toga impecável, o penteado à César, pensa por um momento e diz: "Jesus?
Não conheci ninguém com esse nome".
O que ler
Esopo
"Fábulas Completas" (Moderna)
Voltaire (1694-1778)
"Candido" (Martins Fontes)
"Zadig ou o Destino" (Ediouro)