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"Ouve-se sempre nos escritos de um ermitão algo também do eco do ermo, algo do tom
sussurado e da arisca circunpescção da solidão; em suas palavras mais fortes, mesmo em
seu grito, soa ainda uma nova e mais perigosa espécie de calar, de silenciar. Quem, entra
ano, sai ano, e de dia e de noite, sentou-se a sós com sua alma em confidencial duelo e
diálogo, quem em sua caverna - pode ser um labirinto, mas também uma jazida de ouro - se
tornou urso de cavernas ou cavador ou vigia de tesouro e dragão: seus próprios conceitos
acabam por conter uma cor própria de lusco-fusco, um odor de profundeza como de mofo,
algo de incomunicável e renitente, que sopra frio em todo aquele que passa. O ermitão não
acredita que um filósofo - suposto que um filósofo sempre foi primeiro um ermitão - tenha
jamais expresso suas próprias e últimas opiniões em livros: não se escrevem livros ,
precisamente, para resguardar o que se guarda em si? - ele até duvidará se um filósofo
pode, em geral, ter opiniões "últimas e próprias", se nele, por trás de cada caverna, não jaz,
não tem de jazer uma caverna ainda mais profunda, um modo mais vasto, mais alheio, mais
rico, além de uma superfície, um sem-fundo por trás de cada fundo, por trás de cada
"fundamento". Cada filosofia é uma filosofia de fachada - eis um juízo ermitão: "Há algo de
arbitrário se aqui ele se deteve, olhou para trás, olhou em torno de si, se aqui ele não cavou
mais fundo e pôs de lado a enxada - há também algo de desconfiado nisso."
Cada filosofia esconde também uma filosofia; cada opinião é também um esconderijo,
cada palavra também uma máscara."
Existe algo de inexprimível naquilo que a solidão revelou. Os escritos de um filósofo não
trazem nunca sua visão mais íntima, mais fiel a si, nem a força plena daquilo que é o
amadurecimento de uma meditação solitária. O próprio sentido da meditação é o de uma
ruptura com a efemeridade da vivência cotidiana, da banalidade desesperada com que se
vive o presente. O filósofo pode explicar a realidade através de uma estrutura conceitual.
Mas aquele que participa das coisas, de certa forma, é impedido de perceber estas coisas
com a mesma clareza. Odores que nos parecem familiares são estranhos aos que vem de
fora. Pode-se calar um protesto, engolindo em seco, e escolher uma conivência hipócrita.
Mas sempre se corre o risco de um olhar estrangeiro colocar tudo em nova perspectiva.
Nietzsche é um crítico da cultura e adota essa postura com toda as suas conseqüências,
teóricas e pessoais. Ao mesmo tempo em que declama aforismos inspirados que demolem
boa parte da tradição filosófica ocidental, da ciência, da religião, e do modo como se
pensam as coisas, adverte que aquele não é o sentido último de sua obra, nem sua revelação
mais profunda. Aqui, tendo em vista o conjunto conceitual de sua obra, que, apesar de seu
conteúdo, é extremamente coerente, deve-se tomar cuidado com a escolha dos termos. Pois,
se quisermos seguir os conselhos do autor e tomarmos como válidas as chaves de leitura
que indica para poder interpretar sua obra, corremos o risco de efetivarmos na análise do
autor certas posturas que são combatidas em sua obra.
Nietzsche procurou coisas ocultas nos autores que comentou. À crueza de sistemas
fechados, que fundam a si sobre suas próprias bases, opôs uma avaliação "psicológica",
conformou-os ao seu próprio pensamento, e extraiu deles observações perspicazes, mas
distantes das correntes consagradas pela tradição. Essa nova visão que o autor traz revela-se
seminal para a filosofia do século posterior. Como o mar fecundado pelo sangue de urano, a
filosofia do século XX se vê devedora em muitos aspectos da filosofia de Nietzsche: ,a
forma de exposição, no pensamento teórico, na procura pelo golpe derradeiro na metafísica,
na proclamação do fracasso do projeto iluminista racional e das pretensões religiosas.
Seus inimigos são tão devedores de sua filosofia como seus discípulos. Pode-se torcer o
nariz, procurar enquadrá-lo, determiná-lo, mas nunca destituí-lo de sua importância
devastadora. A velha pretensão da verdade na filosofia encontra em Nietzsche o seu mais
ferrenho adversário. É através dele que vertente derrotada da filosofia - a dos que negam ao
homem a capacidade de conhecer a verdade - torna-se vencedora. Certamente seus
adversários encontram muitas brechas para tecer suas críticas. Bertrand Russel, por
exemplo, ataca Nietzsche ferrenhamente por causa de seus aforismos "machistas" e por
negar um suposto "amor universal". Mas esta visão filtrante implica numa leitura
superficial de outros aspectos muito mais importante. Ademais, só é válida enquanto feita
dentro de uma pespectiva: a postura teórica e pessoal de Bertrand Russel, no caso.
Nietzsche vai também buscar na Grécia a base de sua filosofia. A influência dos gregos e
dos helenos em Nietzsche é central em toda a sua obra, desde as novas formas de se pensar
o problema trágico e relacioná-lo com o presente que aponta em seu primeiro livro, A
origem da tragédia no espírito da música, até os seus últimos escritos, que pretendiam
superar os gregos, por exemplo O que devo aos gregos no Crepúsculo dos Ídolos.
Mas Nietzsche, desde que se configura como um autor original na filosofia, nega esta
tradição triunfante de que falávamos, que pode ser nomeada em diferentes momentos como
platonismo, aristotelismo, racionalismo e que tem em comum a firme fé na possibilidade de
uma ciência. À essa tradição o autor usa, em diferentes momentos e formas, os seus
contrários, como o transe dionisíaco, o relativismo, a exacerbação, o excesso passional ou o
império da Vontade. Poucas pessoas escapam, no decorrer da obra, de sofrer as marteladas
do autor. Embora esboça admiração por alguns, como Goethe, Espinosa e até Platão, tenho
a impressão de que o único "herói filosófico" de Nietzsche, após sua ruptura com
Schopenhauer, é o pré-socrático Heráclito de Éfeso. A este autor não tenho o conhecimento
de nenhuma crítica negativa, mas sim um cultivo, uma continuidade, um refúgio para a
grande e ingrata tarefa que foi a de negar a filosofia como aduladora da verdade. Como
disse antes, podemos dividir a filosofia como dois gomos de uma laranja. Ao gomo de que
participa Nietzsche estão os outrora desprezados, como os céticos, os relativistas,
Schopenhauer etc.
É dentro desta perspectiva, portanto, que devemos tomar contato com os textos do autor.
Procurando lendo com os olhos livres, sem se deixar impregnar com toda essa estrutura
valorativa, presente em nosso espírito, que é vestígio da investigação filosófica e está
implementada de forma menos pura no senso comum. Não se pode ler Nietzsche dentro do
"rebanho" sem com isso ficarmos feridos pelo implacável veneno de sua crítica, e
percebermos o quanto de nós é afetado por essa crítica por sermos, mesmo
involuntariamente ou inconscientemente, cristãos, procuradores de uma verdade, aspirando
a um absoluto e ressentidos por nada encontrarmos, por vermos a natureza indiferente às
pretensões antropocêntricas de um homem que se quer merecedor de um privilégio divino.
Tampouco adianta tentar voltar contra o autor suas próprias setas, tentando determinar seu
pensamento como um sintoma de sua estrutura psicológica ou de frustrações de suas vida
pessoal. Pois como adverte Nietzsche no §22 de Para Além de Bem e Mal, ele já está
precavido contra tal sorte de críticas, e ao fazê-lo podemos apenas afirmar uma das formas
múltiplas que seu pensamento propõe.
Zaratustra, o ermitão, passa dez anos consigo mesmo em uma montanha e depois desce
ao vilarejo para pregar seus ensinamentos aos "populachos". Seu espírito encontrava-se já
como uma taça cheia de vinho que começa a transbordar, uma supersafra de mel, como ele
mesmo afirma. Urge jogar à humanidade o fruto daquilo que a solidão revelou e esperar
que alguém possa entendê-lo. Nietzsche é um estrangeiro, o velho filólogo que com um ar
irônico e um tanto lacônico pede perdão por inverter as teorias físicas que querem ler a
natureza como um livro e por enquadrar no (ao seu ver) passageiro espírito democrático de
uma época a universalização das leis naturais. Mas também procura um leitor, coisa que
talvez não tenha encontrado em vida. Queixoso uma vez disse: "Gostaria que me lessem
como lêem Aristóteles". Isto é, com a mesma atenção, o mesmo cuidado, o afinco e a
exegese que torna cada vírgula no texto de Aristóteles objeto de um estudo ou fruto de uma
controvérsia. Para sanar essa falta, se coloca na figura de um anunciador. O Zaratustra é o
menestrel de uma filosofia do porvir e do devir, mas também do eterno retorno, e mesmo de
uma nova humanidade.
"Cada filosofia é uma filosofia de fachada", escreve o autor. "não se escrevem livros
precisamente para resguardar o que se guarda em si?". "Cada filosofia esconde também
uma filosofia; cada opinião é também um esconderijo, cada palavra também uma máscara".
Estas afirmações podem ser usadas para duas coisas. Primeiramente para entender o esforço
filosófico e filológico do autor em seu método genealógico, que busca as condições, as
causas e as máscaras que levaram os filósofos a direcionarem seus escritos para o alto, para
o além-mundo, ou que levaram os fracos e os escravos a inverter o sentido da palavra bom
como mal e criar assim a moral. Mas serve também para entender que o melhor do
pensamento de Nietzsche não nos foi contado, e mesmo o que foi dá margem à inúmeros
erros de interpretação. Pois é preciso uma esmerada arte-de-interpretação para entender
Nietzsche, para fazer jus à sua obra ou à sua postura perante os problemas da filosofia. Ou,
na exatidão técnica do dizer de Vânia Dutra de Azeredo:
"O levante dos escravos na moral começa quando o ressentimento se torna criador
de valores: o ressentimento de seres tais, aos quais está vedada a reação propriamente dita,
o ato, e que somente por uma vingança imaginária ficam quites. Enquanto toda moral nobre
brota de um triunfante dizer-sim a si própria, a moral dos escravos diz Não logo de início, a
um 'fora', a um 'outro', a um 'não-mesmo': e esse é seu ato criador. Essa inversão do olhar
que põe valores - pertence, justamente, ao ressentimento: a moral de escravos precisa
sempre, para surgir, de um mundo oposto e exterior, precisa, dito fisiologicamente, de
estímulos para em geral agir - sua ação é, desde o fundamento, por reação". (Nietzsche,
GM, I, §10 apud AZEREDO, 2000)
Além dessa aspecto orgânico da vontade de potência, que encontra relação com a ciência
do século XIX, a qual Nietzsche não era alheio, nos salta aos olhos esse eterno efetivar-se
cego que constitui um jogo de forças. Esse efetivar-se nunca recai numa teleologia, não visa
nenhum fim a não ser o próprio efetivar-se e a busca de sua ampliação. A vida vai ao
encontro de mais potência, em direção do máximo de potência. A sua realidade mais íntima
e profunda é o querer. Dos conflitos que aí resultam temos não meramente a vontade de
dominar, pois o dominar está ainda ligado aos valores que o homem tem de se desprender,
mas a vontade de criar. O homem senhor-de-si consegue vencer o dragão milenar dos
valores que dizem "Tu Deves" (cf. ZARATUSTRA).
Com isso fica evidente que a filosofia de Nietzsche fala também para um porvir, se
envolve de um caráter esperançoso e otimista. O seu caráter aforismático e asistemático
rendeu e rende inúmeras interpretações e até mesmo algumas tentativas de apropriação; por
diferentes meios: artísticos, filosóficos, políticos, pessoais e existenciais. Mas permanece
inapropriada e aberta ainda aos olhos livres, como um coringa, sendo isso explicado pelo
nosso mote do parágrafo §289 de Para Além de Bem e Mal, pois um "ermitão não acredita
que um filósofo - suposto que um filósofo sempre foi primeiro um ermitão - tenha jamais
expresso suas próprias e últimas opiniões em livros".