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Beatriz estava que não cabia em si de tanto encantamento. Quem disse que
não existia homem perfeito? Quem não conhecia o Serginho, oras!
Ele era um doce! E que doce: bonito, amável, sensível, companheiro e, na
hora dos vamos ver, que pegada, meu Deus! Era homem pra mulher vigiar
com câmera e GPS, porque todas iam querer pra elas.
Faziam uns seis meses que estavam namorando e ele lhe dera uma cópia da
chave da casa dele e lhe arranjara um generoso espaço no guarda-roupa.
Com direito até a uma escova de dentes nova, esperando por ela, junto a
escova dele, no armarinho do banheiro. Meio brega, meio charmoso, mas que
mulher não ia se sentir bem-cuidada com um homem fazendo de tudo pra que
ela não precisasse de nada?
Como ele tivera que viajar a trabalho - era gerente de contas de um
laboratório farmacêutico - então ela resolveu aproveitar para organizar sua
parte do guarda-roupa, dar uma limpada na casa e fazer um jantarzinho
surpresa, já que ele ia chegar aquela noite.
A casa de Sérgio não era grande, tudo era muito organizado, ela não teve
grandes trabalhos. Faltava um toque feminino no lugar, mas ela ia cuidar
disso. Tinha certeza de que ele não ia demorar para pedi-la em casamento.
Bia pensou melhor: talvez devesse deixar a coisa correr mais um pouquinho
antes de pôr uma cortina de contas na porta da cozinha, uma passadeira no
corredor entre os quartos e desaparecer com aquela cortina cinza horrorosa
da sala. Considerando a raiva que ele estava sentindo da ex-mulher, qualquer
toque feminino na área talvez não fosse muito bem vindo. Afinal, um belo dia,
sem dizer nem tchau, a sujeita juntou os trapos e desapareceu. Gente, nessa
falta de homem bom no mercado, a cretina tinha o melhor de todos e
abandonava assim, sem mais nem menos? Bom, pensou Bia, melhor pra
mim!
Quando foi preparar jantar, foi a mesma bobagem de sempre: as panelas
estavam guardadas no armário debaixo da pia. E ela, claro, sentiu medo, tudo
por causa daquela musiquinha idiota que a mãe inventara quando ela só tinha
cinco anos de idade:
Fantasmas Debaixo Da Pia Página 3
Letras de Sangue
Claro que a mãe não fizera por mal, era apenas uma rima boba e grudenta,
daquelas que entram na nossa cabeça e nos atormentam o dia inteiro, mas
quem disse que Bia conseguia se convencer que era apenas isso? Ficou pra
sempre aquele medo idiota de mexer embaixo da pia e encontrar o tal
fantasma lá.
Mas ela esforçou-se para esquecer o assunto, sabia que assim que abrisse a
porta do armário, a única coisa que estaria lá dentro seriam as panelas.
E assim ela o fez.
Como esperado, só panelas, tão organizadas que dava até raiva.
Quer dizer...
Assim, de ver, só mesmo as panelas, mas a sensação de que havia algo mais
lá dentro só piorou quando ela abriu a porta.
Pegou rapidamente a primeira panela que viu pela frente e bateu a porta com
força.
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Serginho, como sempre, foi carinhoso, cuidadoso, maravilhoso. Depois do
jantar, foram para cama e fizeram amor até umas duas e meia da manhã. Mal
deu três horas, Bia acordou com sede e foi até a cozinha.
Acendeu a luz. Tudo normal, exceto que por dentro ela continuava com
aquela má impressão da “coisa” embaixo da pia.
“Bia, Bia!” – ralhou consigo mesma, em pensamento – “Você não tem mais
cinco anos para perder tempo com essa bobagem que a mamãe inventou!”
Pegou um copo no armário, encheu com água que pegou na geladeira e
quando fechou a porta da geladeira, tomou um susto tão grande, que por
pouco o copo não foi parar no chão: as portas do armário sob a pia estavam
abertas, escancaradas!
Ela queria muito saber quem era aquela Laís. Mas Bia também se
atormentava por outra coisa: ela também não fora completamente sincera,
jamais contara a Sérgio sobre o noivado com o Antônio. Aliás, ela morria de
vergonha dessa história, de como se deixara seduzir por aquele crápula e só
não se tornara esposa dele porque o pegou na cama com outra.
Pensando bem, talvez fosse melhor deixar pra lá. Talvez a tal Laís fosse para
Sérgio o que Antônio significava para ela: algo para se manter morto e
enterrado.
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Ela fez questão de ligar antes de voltar para a casa: queria ter certeza que ele
estaria lá e ela não ficaria na companhia dos tais armários que abriam
sozinhos sem mais ninguém por perto.
Ao chegar, ele havia preparado o jantar, era só sorrisos e carinhos. Ela até
sentiu uma pontada de culpa por ter mexido nas coisas dele daquele jeito.
Acabaram fazendo amor ali mesmo no sofá. Ele a carregou nos braços para a
cama, cobriu-a com o edredom e dormiram de colherinha. Ai, que homem!
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Ela levantou de novo às três da manhã. Sua garganta estava seca, estava até
difícil respirar.
Foi ao banheiro e usando as mãos em concha, bebeu água da torneira do
lavatório. Não tinha coragem de ir até a cozinha.
Mas foi inútil, porque a luz da cozinha acendeu sozinha e ela acabou indo até
lá, apesar do pavor que sentia.
Desta vez, não só o armário sob a pia estava aberto, como dos vãos entre as
lajotas do piso, minava sangue, em abundância. Um cheiro de carne morta e
decomposta emanava do ralo da pia.
Ela ouviu um grito distante. Seu próprio grito. Parecia distante porque ela
estava desmaiando...
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Ela acordou no sofá da sala. Sérgio, com cara preocupada, olhava para ela:
- Se você demorasse mais cinco minutos para acordar, eu ia chamar o
resgate. O que aconteceu?
Ela desatou a falar sobre o armário debaixo da pia, dos medos que sempre
sentira, da musiquinha boba da mãe e, finalmente, de que o armário estava
abrindo sozinho e agora ela vira sangue, sentira um cheiro pavoroso. Estava
apavorada demais para medir se preocupar se ele iria acreditar ou achar que
ela enlouquecera.
Ele foi paciente, foi carinhoso, mas colocou tudo na conta da psicologia.
Aquelas coisas deveriam ser sintomas de estresse por causa de tantas
mudanças na vida dos dois. Talvez as coisas estivessem indo rápido
demais...
- Ai, Sérgio! Não, amor, eu tô adorando tudo, eu só não sei porque essa
história de medo da pia piorou de uma hora para a outra, eu não sei. Acho
que depois que eu encontrei as fotos ficou pior ainda...
- Que história é essa de fotos? Você foi mexer nas minhas coisas?
Bia percebeu que falara demais.
- Não é isso, amor! Eu...
- Como não é isso? Caralho, Bia! – era a primeira vez que ele usava aquele
tom com ela – Eu... eu... eu...
Foi muito estranho. Sérgio, normalmente tão pacato, tão controlado, parecia
estar perdendo completamente o controle. As mãos estavam crispadas com
tanta força, que os nós dos dedos embranqueceram. Ele tremia. Começou a
andar de um lado para o outro, e o que falava estava ininteligível. Começou a
jogar coisas no chão.
Mas foi quando ela pode olhar para os olhos dele, foi aí que realmente ela
sentiu um medo tão grande quanto o que sentiu ao ver aquela cena pavorosa
na cozinha.
Os olhos de Sérgio mostravam uma fúria tão intensa quanto desproporcional
ao momento. Era como se outra pessoa olhasse pelos olhos dele, como se
ele não estivesse mais ali.
Bia balbuciou:
- Amor, você está me assustando...
Ao ouvi-la, o efeito de suas palavras foi tão estranho quanto tudo o mais
naquela noite. Como se nada tivesse acontecido, Sérgio retomou o controle
sobre si mesmo, ajeitou os cabelos e sorriu para Bia.
- Tudo bem. Vamos apenas combinar uma coisa: nada mais de mexer no
armário debaixo da pia, tá legal? Eu mudo as panelas de lugar, tá bom?
Sem entender nada, Bia apenas balançou a cabeça, concordando. Estava
assustada demais para discutir.
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Como prometera, Sérgio trocou as panelas de lugar, o armário sob a pia ficou
vazio e ninguém mais falou do assunto no dia seguinte.
Bia mais uma vez perambulou pelos shoppings, até a hora em que Sérgio
estivesse de volta em casa. Ao chegar, ele de novo fizera o jantar, de novo
era todo sorrisos e carinhos, mas ela tinha que se esforçar muito para
continuar sendo agradável. A todo momento, ela se lembrava do olhar insano
de Sérgio na noite anterior e não sabia se tinha mais medo dele ou dos tais
fantasmas debaixo da pia.
Com a chegada da noite, Bia procurou correr para a cama o mais rápido
possível. Cobriu-se toda com o edredom, apesar do calor que fazia. Estava
com medo.
Sérgio, felizmente, não prolongou o assunto. Apenas lhe deu um beijo de boa
noite e dormiu.
Bia, exausta, acabou dormindo também. Mas, novamente, acabou acordando
com a garganta seca. Mas desta vez, não precisou ponderar se iria até a
cozinha pegar água ou não: quando abriu os olhos, Bia já estava lá.
Dormindo, levantara e andara até a cozinha e, à sua frente, lá estavam a pia
e as portas do armário, abertas.
De novo, o sangue jorrava entre as lajotas. De novo, o cheiro insuportável
subia do ralo.
Mas agora, duas vozes femininas gritavam para ela, em coro:
- Fuja! Fuja agora! Ele nos machucou, vai te machucar também!
Apavorada, Bia não conseguia sequer se mexer. Foi quando ouviu atrás de si
a voz de Sérgio:
- Achei que havíamos combinado deixar esse armário pra lá. - Os olhos dele
mostravam de novo aquela fúria inexplicável.
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Bia ficou olhando enquanto a moça abria as portas e procurava por alguma
coisa. Estava curiosa para saber mais sobre ela, mas não havia tempo.
Começou a gritar:
- Fuja! Fuja agora! Ele nos machucou, vai te machucar também!
Vanda e Laís se juntaram a ela em seus gritos. O coro agora tinha três vozes.
----FIM----
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