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Universidade Federal de Campina Grande

Campus I - Campina Grande (PB)


Centro de Humanidades
Departamento de Sociologia e Antropologia
Curso de Ciências Sociais

Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque

DESTREZA E SENSIBILIDADE: os vários sujeitos da Jurema


(As Práticas Rituais e os Diversos Usos de um Enteógeno Nordestino)

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1
DESTREZA E SENSIBILIDADE: os vários sujeitos da Jurema
(As Práticas Rituais e os Diversos Usos de um Enteógeno Nordestino)

Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque

Monografia apresentada em atendimento às exigências da


disciplina “Estágio Supervisionado em Pesquisa
Antropológica II” e para a obtenção do grau de Bacharel
em Ciências Sociais, com área de concentração em
Antropologia, pela Universidade Federal de Campina
Grande, Campus I, Campina Grande em outubro de 2002.

2
BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________________
Prof. Dr. Rodrigo de Azeredo Grünewald (DSA – UFCG - Campus I)
(Orientador)

________________________________________________________
Prof. Dr. Márcio de Matos Caniello – (DSA – UFCG - Campus I)
(Examinador)

________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Magnólia Gibson Cabral da Silva – (DSA - UFCG - Campus I)
(Examinadora)

3
dedicado ao Amor...

quando aprendido por Pai


Mãe
e Ny.

dedicado ao imprescindível Amar...

quando conforta meu coração e alma,


Waleska

Dedicado a todos que bebem Jurema.

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS......................................................................................1

INTRODUÇÃO.................................................................................................2

CAPÍTULO I – A Jurema Indígena.................................................................19

CAPÍTULO I I – Os Juremeiros de Alhandra, a Umbanda e o Maracatu.......46

CAPÍTULO I I I– A Jurema no contexto metropolitano contemporâneo.......77

CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................111

BIBLIOGRAFIA............................................................................................117

5
AGRADECIMENTOS

Foram muitas as pessoas que me ajudaram ao longo deste trabalho e também no


curso de Ciências Sociais (Antropologia) do qual ele é resultado. Gostaria aqui de expressar
meus agradecimentos a todos eles. Principalmente ao Programa Especial de Treinamento
em Antropologia (PET-Antropologia). Por tudo que vivi e aprendi no tempo que passei
junto a bons amigos neste programa. Aos tutores Mércia R. Baptista, Rogério Zeferino
Nascimento (também acredito que somos possíveis – Anarquia Sempre), e a Elizabeth
Cristina A. Lima (Bebete). A tríade vara – Eduardo Gusmão (vara-mor), Greilson Lima e
Martinho Tota. A Malba Kaline, Lídia Arnaud e Karlla Araújo. Aos professores Sávio Rosa
e Ubiraci de S. Braga, pelo entendimento de que o desejo é algo viável. Aos protagonistas
deste trabalho: Augusto Gustavo de Oliveira, Dona Ana e toda comunidade Atikum.
Cacique José Bernardino e ao pajé José Moisés e a toda comunidade Kapinawá. Ao pajé
Kariri Júlio Suíra e toda comunidade Kariri-Xocó. Ao pajé Auro e toda comunidade
Karapotó. A Maria das Dores da Silva Guimarães (Dona Dora). A Roberta e todos que
fazem o Terreiro de Umbanda Oxum Talademi. A Severina Maria da Silva (Dona Biu) a ao
Maracatu Rural Cambinda Brasileira. A Philippe Bandeira de Mello, e todos que fazem a
Arca da Montanha Azul, Leonor Ramos Chaves e esposo, Ali Zeitoun, Marco Tromboni de
S. Nascimento e Boris. Especial agradecimento a Clarice N. da Mota e Estevão Palitot
(ensinou-me muito sobre nossos índios). A Sévia Sumaia. Ao LACED/Museu Nacional e
Fundação Ford pelos recursos disponibilizados para o survey entre os índios do nordeste.
Aos meus pais (Marcos A. Albuquerque e Normândia R. dos S. Albuquerque) por terem me
ajudado no esforço da pesquisa. Nycolas (Ny) meu irmão, “por me deixar usar o
computador” (sic)! A Waleska de A. Aureliano, inominável paixão, por ter me ajudado na
pesquisa de campo, pela viagem compartilhada ao Rio de Janeiro, por me ajudar nas
transcrições das músicas. E por fim ao amigo e orientador Rodrigo de A. Grünewald por
dividir comigo o esforço da pesquisa de campo, do trabalho de escrever este texto e por me
proporcionar conhecer a Jurema Sagrada.

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INTRODUÇÃO

“Tomei muito cauim (cachaça com jurema) em catimbós nordestinos.


A jurema como que potencializa a ação do álcool, dando um sentimento de
plena alegria, de paz com o mundo e com nós mesmos, de empatia com todas
as criaturas. Acredito que, se tivesse tendência mística, eu poderia
experimentar então o êxtase da comunhão celestial.”

Sangirardi Jr. (1983:202)

A jurema é uma planta arbustiva que no Brasil ocorre principalmente na região


nordeste. Ela é investida por parte da população local, e por outras de fora, de um profundo
entendimento simbólico. A riqueza simbólica da jurema ultrapassa vários contextos sociais.
A jurema é reconhecida como planta sagrada e como planta de poderes e mistérios por
vários sujeitos em contextos sociais os mais diversos. Este texto interessa em trazer para o
campo da antropologia um recorte desta produção simbólica. Aqui se pretende apresentar
os símbolos e as representações sobre a jurema em contextos bastante diversos. Como
também os ritos nos quais estes símbolos ligados à jurema são apresentados e tematizados.
O objeto deste trabalho, então, é a construção cultural, principalmente simbólica, de uma
planta chamada jurema, em vários contextos culturais diferentes por inúmeros sujeitos
sociais.
Justifica-se a elaboração de trabalho como este, porque a pesquisa relacionada a
plantas sagradas e/ou psicoativas, ou seja, que causam alteração de consciência, ou são
depositárias de cultos e ritos religiosos por populações específicas, não tiveram ainda a
preocupação de catalogar e identificar representações simbólicas sobre a jurema que
abranjam estes símbolos para além daqueles ligados aos afro-indígenas. Aqui se relatarão
estes símbolos e cultos desde os fornecidos pela cultura indígena, pela afro-descendente,
chegando finalmente aos fornecidos pelos metropolitanos contemporâneos. Colocando sob
um mesmo discurso etnográfico, uma mesma perspectiva interpretativa, estes vários
símbolos. Este texto tem a pretensão de contribuir para o entendimento, para o maior
número de exemplos e para a variedade de interpretações acerca do uso e significação

7
social de plantas psicoativas ou simplesmente de plantas sagradas. A jurema é o objeto
singular deste trabalho, é sobre do que dela falam e fazem seus protagonistas, em vários
contextos sociais, que se envereda esta pesquisa.
Escrever este registro é algo que encontra grandes motivações e também enseja
muitas dificuldades. Optei por um texto livre, em que a subjetividade dos sujeitos
entrevistados e apresentados fosse também a tentativa de meu próprio repertório. Gostaria
que este texto fosse lido como um ensaio. Um ensaio antes de qualquer coisa não tem a
pretensão de totalizar o conhecimento produzido sobre o objeto de que trata. Também
acredita que sistematizar tal conhecimento é esforço ambíguo. E isso porque a
subjetividade de cada autor enseja interpretações particularistas acerca do objeto que
tratam.
Um esforço de interpretação destes símbolos ligados à jurema me foi a tarefa
mais envolvente. Aqui cabe trazer as indicações de Geertz (1978:20), para ele, “fazer a
etnografia é como tentar ler (no sentido de ‘construir uma leitura de’) um manuscrito
estranho...”. O autor nos ajuda a compreender que fazer etnografia parte de um pressuposto
bastante atraente e também ambíguo, relatar é inscrever um discurso, é interpretação, sobre
a qual somos já a terceira ou segunda das vozes que a constroem, “Trata-se, portanto, de
ficções; ficções no sentido de que são ‘algo construído’, ‘algo modelado’- o sentido original
de fictio- não que sejam falsas, não-factuais ou apenas experimentos de pensamento”,
(Geertz, ibid:25).
Neste sentido, o sujeito pesquisador deve situar-se, ou seja, tentar atingir o
sentido dos símbolos da cultura que tenta relatar no texto. Este movimento não se revela
sem algum tipo de constrangimento: “Situar-nos, um negócio enervante que só é bem
sucedido parcialmente, eis no que consiste a experiência etnográfica como experiência
pessoal”. E mais: “Tentar formular a base na qual se imagina, sempre excessivamente,
estar-se situado, eis no que consiste o texto antropológico como empreendimento
científico”, (Geertz, ibid:23). Esta ficção, portanto construída pelo sujeito pesquisador
deve ser dirigida para “o alargamento do discurso humano”, (Geertz, ibid:24), porque só
neste sentido a antropologia (no caso a interpretativa) se revela como produtora de
conhecimento.

8
Parte daquele que registra estas representações, demonstrar que o encontro de
subjetividades, durante o espaço de construção e resgate de informações, tem de assumir o
prejuízo, ou será o crédito, de que as informações ao final de tudo serão manipuladas por
aquele sujeito final, a autoridade etnográfica, o sujeito pesquisador, como bem apontou
Clifford (1998a). Para este autor a produção antropológica, em sua maior parte (incluindo
aí o próprio C. Geertz), sempre inscreveu o discurso nativo como uma categoria genérica,
uma voz coletiva sem sujeito, uma realidade cultural única, sem ambigüidades, (Clifford,
ibid:41). Em conta disto tudo, usei a sugestão deste autor para relatar minha pesquisa e
compreensão sobre estes sujeitos, seus símbolos e a jurema: Uma etnografia dialógica foi
tentada. Neste tipo de etnografia, aquele que escreve e interpreta o faz trazendo a voz do
sujeito, o protagonista, para o corpo do texto: “Um modelo discursivo de prática
etnográfica traz para o centro da cena a intersubjetividade de toda fala, juntamente com seu
contexto performativo imediato”, (Clifford, ibid:43). Faz isso porque acredita que o autor
como autoridade máxima no texto deve proporcionar àquele que o lê, a oportunidade de
contrastar as interpretações do autor com aquelas que aquele acha devida.
Um tipo de texto assim é claramente ambíguo, ela revela um sem número de
fraquezas. Mas é exatamente aí que um texto neste estilo pode fornecer alguma coisa de
novo e por isso mesmo saudável. Um texto nesta categoria não pretende se comprometer
com registros verdadeiros e intocáveis. Coloca o próprio autor como protagonista no
diálogo fictício que constrói junto ao informante, negando por vezes a presença de outros.
Por isso, Clifford (ibid:47) pôde dizer que: “O diálogo ficcional é de fato uma condensação,
uma representação simplificada de complexos processos multivocais”, no qual o diálogo
apenas apostaria na veracidade de um discurso a dois, quando na verdade o que se
apresenta é um discurso construído entre o autor, o informante e o contexto social que os
abriga nesta interação. Por isso, nesta proposta: “Uma maneira alternativa de representar
essa complexidade discursiva é entender o curso geral da pesquisa como uma negociação
em andamento”, (Clifford, ibid:ibidem), como também tentar construir uma etnografia
polifônica, (Clifford, ibid:49), - esta mais relevante no entanto para etnografias que desejam
dar conta do geral de uma sociedade. Uma posição dialógica, por tanto, é sem dúvida regida
por mim, mas esforça-se por ser a tentativa de unir personagem, protagonista, com o autor,
literato, no momento em que a vida e a experiência de outros são o conteúdo da narrativa

9
daquele de fora, que se intromete e interpreta, e talvez neste esforço sinta, uma autoridade
adquirida.
Talvez neste espírito, cobre-se demasiado do leitor. Tanto porque a leitura possa
parecer frágil, como também solta. Mas é ainda Clifford (ibid:57) que nos dá uma
alternativa de compreensão desta estrutura narrativa, “a recente teoria literária sugere que a
eficácia de um texto em fazer sentido de uma forma coerente depende menos das intenções
pretendidas do autor do que da atividade criativa de um leitor”. Para não cancelar outras
alternativas, pode-se apostar em outros instrumentos à mão de um leitor atento, tal como:
“ler a contrapelo da voz dominante no texto, procurando outras semi-ocultas autoridades,
reinterpretando as descrições, textos e citações reunidos pelo escritor”, (Clifford,
ibid:ibidem). E para mover os mais intransigentes, Clifford, (ibid:58), pretende que uma
apresentação textual coerente seja sinal de um modo controlador de autoridade do
etnógrafo. Entendendo que para o momento é valida a idéia de que “esta imposição de
coerência a um processo textual sem controle é agora inevitavelmente uma questão de
escolha estratégica”, (Clifford, ibid:ibidem). Ficando assim a possibilidade de
experimentalismo etnográfico, momento oportuno para permitir o enaltecimento das
expectativas dialógicas e revelar o contexto relacional da construção do conhecimento.
Dentro deste espírito narrativo, a teoria clássica sociológica ou antropológica,
tem uma função minimizada. É Geertz (1978:37) que nos sugere, para uma antropologia
interpretativa, os elementos teóricos divergentes da postura clássica:

“a diferença (...) que surge nas ciências experimentais ou observacionais entre


‘descrição’ e ‘explicação’ aqui aparece como sendo, de forma ainda mais relativa, entre
‘inscrição’ (‘descrição densa’) e ‘especificação’ (‘diagnose’) – entre anotar o significado que
as ações particulares têm para os atores cujas ações elas são e afirmar, tão explicitamente
quanto nos for possível, o que o conhecimento assim atingido demonstra sobre a sociedade na
qual é encontrado e, além disso, sobre a vida social como tal (...) Em etnografia, o dever da
teoria é fornecer um vocabulário no qual possa ser expresso o que o ato simbólico tem a dizer
sobre ele mesmo – isto é, sobre o papel da cultura na vida humana”.

Utilizando esta perspectiva, mas assumindo que ela pode ser radicalizada a
partir da alegoria etnográfica indicada por Clifford (1998b), tem-se como determinante

10
neste trabalho, a idéia de que os pressupostos teóricos que informam a construção desta
etnografia se encontram no contexto relacional da produção do conhecimento. Momento
em que a narrativa etnológica e suas interpretações assumem a característica alegórica. Tal
como explicado por Clifford (ibid:65):

“Um reconhecimento da alegoria enfatiza o fato de que retratos realistas, na


medida em que são ‘convincentes’ ou ‘ricos’, são metáforas extensas, padrões de associações
que apontam para significados adicionais coerentes (em termos teóricos, estéticos e morais).
A alegoria (de maneira mais forte que a ‘interpretação’) destaca a natureza poética,
tradicional e cosmológica de tais processos de escrita”.

Por isto, neste trabalho, as interpretações assumirão esta característica


relacional, diminuindo assim o papel de uma teoria clássica, apontando para o intricado
esforço das construções explicativas do social. Aposta-se com isso numa perspectiva que
crie o entendimento muiti-focal, o tipo de interpretação entendido como metáfora,
resguardo empírico das sensibilidades envolvidas. Um sistema interpretativo onde o sujeito
das assertivas seja um crítico de suas próprias pretensões. Acreditando que neste
movimento ele enseja uma possibilidade de conhecimento também construído nos silêncios
e interstícios do discurso narrado, tanto no campo de pesquisa quanto aqui, no texto final.
Para que se dê conta destes enormes sistemas de símbolos e representações,
coletaram-se informações junto a comunidades e pessoas que usam a jurema e tem por isso
uma produção cultural, e, para mim, os símbolos acerca do controle e entendimento do que
é a jurema. Todas as entrevistas foram realizadas em vídeo (VHS). Pretende-se, como
desdobramento deste trabalho realizar um vídeo etnográfico. Com os chamados
informantes, foram realizadas entrevistas nos locais de moradia destes. Quando a
oportunidade se fez, realizaram-se imagens (VHS) dos cultos nos quais os entrevistados
administram o conhecimento sobre a planta. Quando não se teve acesso a um destes cultos,
o próprio entrevistado os narrou. O uso do vídeo como forma de registrar a fala e imagem
do sujeito, do protagonista, demonstrou ser de bastante utilidade, ultrapassando em muito a
usual entrevista feita com o gravador sonoro. Esta superioridade do uso do vídeo se deve ao
fato de que a imagem guarda muito mais da memória viva do momento ritual ou da
entrevista do que qualquer outro meio de registro. Através do uso da imagem, as

11
informações dadas passaram a ter uma contemporaneidade incrivelmente mais rica. A
memória do pesquisador segue tranqüila os resgates da subjetividade envolvente na
interação realizada em prol da produção deste trabalho.

Pequena nota sobre o trabalho de campo1


O trabalho de pesquisa começou no dia 28 de abril de 2002. Neste dia registrei
em vídeo (VHS) o trabalho na casa de umbanda do tatalorixá Pai Vicente Mariano. A casa
chama-se Terreiro Senhor da Bonfim Ilê de Oxum Ajamim. Localizado na cidade de
Campina Grande, Paraíba. Neste dia, Vicente Mariano homenageava o mestre Antonio
Pretinho, entidade que há cinqüenta e três anos “recebe”. No dia 29 seguinte, mais um
trabalho, agora um Toré, foi registrado em vídeo (VHS) no mesmo terreiro. Por um certo
mutismo de Pai Vicente, apenas conversas informais foram possíveis de realizar. No dia 04
de maio do mesmo ano, foi feita visita a Alhandra. Esta localidade situa-se no litoral norte
da Paraíba. No local chamado de Acais, mora Maria das Dores da Silva Guimarães,
conhecida por Dona Dora, ela é a memória viva dos tempos em que se faziam
sistematicamente trabalhos com jurema em Alhandra. A cidade ficou conhecida
nacionalmente como a “cidade dos juremeiros” (Vandezande, 1975), ela tem uma história
significativa dentro do contexto religioso popular. Dona Dora mantém nítida lembrança
daqueles tempos, ela é uma das últimas herdeiras da família mais importante no registro
histórico do uso da jurema nos chamados “catimbós”.
No dia 23 de maio fiz visita a Feira Central de Campina Grande, neste local
vendem-se subprodutos da jurema fornecidos para casas de umbanda. Conversas informais,
sem nenhum tipo de registro mecânico, foram feitas com vários “erveiros”. No dia 24 do
mesmo mês, realizei entrevista com a mãe de santo Roberta. Ela dirige a casa de umbanda
chamada Terreiro de Umbanda Oxum Talademi, localizada na cidade de Campina Grande,
Paraíba. No dia 26 seguinte foi registrado em vídeo uma festa, ocorrida nesta casa,
dedicada aos pretos-velhos.
No dia 14 de junho de 2002, realizei entrevista com Philippe Bandeira de Mello
na cidade do Rio de Janeiro. Ele é o fundador e diretor da casa A Arca da Montanha Azul,

1
Todas as entrevistas foram feitas em vídeo (VHS) como já falei, exetuando-se casos em que for
descriminado o contrário.

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uma casa religiosa sincrética, inter-religiosa. Nesta casa utilizam-se enteógenos (ver o que é
adiante) nos cultos, dentre os quais a jurema é um dos principais. No mesmo dia na parte da
noite, registrei em vídeo um trabalho que ocorre de forma semanal na casa. No dia 20 do
mesmo mês e na mesma cidade, entrevistei Leonor Ramos Chaves. Leonor é psicoterapeuta
e faz trabalhos sistemáticos usando a jurema. Ainda na cidade do Rio de Janeiro, entrevistei
o antropólogo Marco Tromboni de S. Nascimento no dia 21 de junho de 2002. Tromboni
estudou a jurema em contexto indígena no mestrado e agora estuda enteógenos no meio
urbano. No mesmo dia e cidade fiz entrevista com Boris, que é um dissidente da União do
Vegetal (UDV)2. No dia 21 e 22, mesmo mês e cidade, realizei entrevista com Ali Zeitoun,
que é um egípcio, engenheiro de navegação marítima, residente nos E.U.A. e que tem como
prática de vida a busca por experiências extáticas usando enteógenos.
No dia 06 de julho de 2002, entrevistei Severina Maria da Silva (Dona Biu) que
é mãe de santo do Maracatu Rural Cambinda Brasileira. Dona Biu tem profundo trabalho
com a jurema. A entrevista se realizou em sua residência na cidade de Nazaré da Mata,
zona da mata de Pernambuco, cidade que também é cede do Cambinda Brasileira. No dia
12 de julho de 2002, na cidade de Sergipe, estado de Alagoas, foi feita entrevista com
Clarice Novais da Mota, antropóloga pioneira nos estudos etnobotânicos sobre a jurema
indígena.
As visitas às áreas indígenas foram realizadas com o apoio do Laboratório de
Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED) e do Museu Nacional -
UFRJ. O LACED financiou um survey, a partir de recursos da Fundação Ford, que tinha
como objetivo mapear e registrar o modo de vida do índio nordestino e como este modo de
vida deveria ser para que a vida destes indígenas fosse a mais aprazível possível. Como
membro da equipe responsável por cumprir este trabalho3, aproveitei a oportunidade e fiz a
pesquisa correspondente ao interesse desta monografia. No dia 12 de julho de 2002 na área
indígena Kariri-Xocó4 entrevistei o pajé Kariri Júlio Suíra. No dia 13 entrevistei o
farmacólogo Ângelo Antoniolli da Universidade Federal de Sergipe (UFS), co-responsável
junto com Clarice N. da Mota pelo projeto Farmácia Viva, o qual procura recuperar e

2
UDV é uma casa espírita que usa em seu culto a bebida enteógena ayahuasca.
3
Eram membros da equipe neste trabalho: Rodrigo de A. Grünewald (orientador desta monografia),
supervisor técnico da equipe e Estevão M. Palitot, graduando em Ciências Sociais, UFPB.
4
A área indígena Kariri-Xocó se localiza vizinha à cidade de Porto Real do Colégio, em Alagoas. Possui
população de mais de três mil pessoas.

13
recriar o uso de plantas medicinais na área Kariri-Xocó. Ângelo falou da jurema e seus
compostos químicos. No mesmo dia entrevistei Tekainã, índio Kariri-Xocó que promove
apresentações rituais de seu grupo em grandes centros urbanos do país, como São Paulo e
Rio de Janeiro. No fim da tarde uma apresentação no Ouricuri (ver o que é adiante) do
grupo foi feita e registrada em vídeo (VHS).
Em 14 de julho em Karapotó5, a segunda área visitada, foi feita entrevista com o
pajé Auro. Fotografias e descrições do trabalho de Ouricuri foram apresentadas. No dia 15
em Kapinawá6, junto com o cacique José Bernardino Barbosa e com o pajé José Moisés,
mais um pequeno grupo de índios, foi feita e registrada em vídeo uma coleta de jurema para
ser usado no toré que seria realizado à noite. Registrada entrevista com o pajé e cacique
citados, não registrada em vídeo, mas sim em gravador. À tarde foi registrado em vídeo
(VHS) toré (ver o que é adiante) no local sagrado do grupo conhecido como Furnas. Na
parte da noite foi feito registro em vídeo (VHS) do toré com jurema.
No dia 17 de julho de 2002, visitou-se a comunidade indígena Atikum7. Neste
mesmo dia realizei entrevista com a ex-cacique Dona Ana. Registrei em vídeo (VHS) uma
coleta de jurema junto com o pajé José e com o ex-pajé Augusto Gustavo de Oliveira. Após
registrou-se em vídeo (VHS) a preparação da jurema por Augusto em sua casa. À noite foi
registrado em vídeo (VHS), um ritual de gentio (ver o que é adiante) na casa de Augusto.
Na manhã do dia 18 foi feito e registrado em vídeo (VHS) um pequeno toré na Pedra do
Gentio, espaço sagrado Atikum. No dia 19 seguinte conheci uma emergência étnica
(processo político de uma comunidade em prol de sua legitimidade étnica diferenciada - no
caso indígena) Atikum na Serra do Arapuá, vizinha a Serra do Umã, lá o líder da
comunidade, José de Miguel mostrou um pouco do trabalho de gentio e de terreiro (ver o
que é adiante) junto com crianças e outros membros adultos. Ele também mostrou o modo
como faz e distribui a jurema nos trabalhos espirituais. Neste mesmo dia à noite na base da
Serra do Arapuá, conheci Adelmo Pereira Nunes, filho de Vardo Pereira Nunes, conhecido
cangaceiro de Lampião chamado pelo grupo deste de Moita Brava. Adelmo contou como

5
A área indígena Karapotó se localiza no município de São Sebastião, no estado de Alagoas. Sua população é
de mais de mil pessoas.
6
A área indígena Kapinawá se localiza no município de Buíque, entrada para o sertão de Pernambuco. Sua
população é de cerca de mil e seiscentas pessoas.
7
A área indígena Atikum se localiza na Serra do Umã, no município de Carnaubeira da Penha, sertão de
Pernambuco. Sua população é de mais de quatro mil habitantes.

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seu pai conhecia a jurema dos índios e como o bando de Lampião usava a jurema. Também
Adelmo contou como a jurema é usada pela população branca da área.

O que é a jurema8
Aspectos botânicos.
Nomenclatura: Mimosa tenuiflora
(Willd.) Poir.
Sinonímia: Acácia tenuiflora Willd.
Mimosa hostilis Benth.
Mimosa Cabrera H. Karst.
Mimosa nigra Huber.
Mimosa limana Rizzini.
Acácia hostilis Mart.9

Descrição morfológica
SOUZA (2002:21) dá uma descrição
morfológica da jurema-preta, eis o trecho inicial:

“Planta arbustiva de um a oito metros de altura,


armada com espinhos dispostos irregularmente nos entrenós,
ou inerme. As raízes são longas, se bifurcando no solo,
externamente com uma cutícula marrom escura, e vermelho
vinho por baixo desta, e internamente amarela, com fraturas
irregulares; acentuadamente áspera com pequenas
eminências puntiformes; e com sabor amargo adstringente”.

8
Neste trabalho catalogou-se o uso da jurema em diversos contextos, a principal jurema usada na maioria dos
casos é a chamada jurema-preta. É dela que se fazem as descrições a seguir. Foto:
http://www.erowid.org/plants/mimosa/mimosa_images.shtml.
9
Retirado de SOUZA (2002:21).

15
Lima (1946:71) e Sangiraidi (1983:191) utilizam a descrição de Martius que se
encontra na “Flora Brasiliensis” (1870-76) de algumas características morfológicas da
jurema-preta (M. tenuiflora), o primeiro cita em latim e o segundo em português.
“Arbustiva, pubérula (víscida?), acúleos esparsos, fortes e retos; folíolos multijugos,
ligeiramente pubescentes; espigas cilíndricas; flores de 4 pétalas e 8 estames; legume quase
séssil, chato, víscido, pluriarticulado”.

Seus variados nomes


No México é conhecida como tepescahuite, tepesquehuite; em Honduras,
Colômbia e Venezuela como carbón, carbonal, cabrera ou cabrero. Na América Central
(Guatemala, El Salvador, Honduras e Nicarágua) ela é conhecida como carbón negro10. No
Brasil foram catalogadas até agora dezenove espécies conhecidas por jurema como indica
Albuquerque (2002:182).
O nome jurema parece ter vindo do tupi Yu-r-ema, (Mota, 2002:21), Yú-r-ema,
(Sangirardi, 1983:191 e Souza, 2002:24) ou Yu’rema, (Andrade e Anthony, 1999:104), que
quer dizer, segundo Lima (1946:56) e Sangirardi (ibid), “espinheiro”. Ainda segundo Lima,
o pesquisador Oliveira China (1935) designa o termo como “espinho suculento”. Para
Lima, o termo jurema viria de “iucema”, que quer dizer “iú- espinho e cema- partícula que
indica agrupamento, servindo para formar os substantivos coletivos. A transformação de
‘iucema’ em ‘iurema’ obedeceu a uma índole eufórica tão forte na língua tupi, (...) tais
como ‘cemirera’ que passou a ‘remirera’ (resto), ‘cetama’ a ‘retama’ (pátria) e até mesmo a
‘rama’”.

Distribuição geográfica
A jurema é encontrada principalmente em todo o nordeste brasileiro, menos no
litoral do que no sertão. Na Bahia e em Minas Gerais, Pio Corrêa, apud Souza (2002:22),
em 1926 narrou a presença da planta. Grünewald (2002:100) indica a presença dela além de
todo o nordeste brasileiro, também em Minas Gerais11. Simon e Proença, apud Souza

10
Levantamento feito por Camargo-Ricalde citado em SOUZA (2002:21).
11
Grünewald (2002:100), indica que em Minas Gerais, “a jurema é elemento central de rituais Xakriabá”. Na
região, ainda segundo este autor, a jurema seria por hipótese também usada na medicina popular, “e quiçá, em
outros rituais não indígenas”.

16
(2002:22), indicam a presença da jurema também no Piauí e Bahia, além de México,
América Central, Venezuela, Colômbia. Carmago-Ricale, apud Souza (2002:22), indica sua
presença em Honduras, Guatemala, El Salvador, Nicarágua e Panamá. No Egito e Norte da
África, Palestina e todo o Oriente Médio a jurema tem plantas irmãs, vários tipos de
Mimosas.

Princípios ativos
Gonçalves de Lima e a equipe que o acompanhava, foram os primeiros a
detectar o alcalóide que provoca alteração de consciência encontrado nas cascas de raiz de
jurema preta. Suas pesquisas se deram no dia seguinte a seu retorno de pesquisa em
algumas áreas indígenas (Pankararu- Brejo dos Padres e Fulni-ô- Águas Belas). No dia
trinta de outubro de 1942 iniciaram-se pesquisas com o intuito de encontrar algum
alcalóide na jurema. Os pesquisadores conseguiram junto aos Pankararu algumas raízes
frescas de jurema usadas nos trabalhos rituais. Descobriram estes pesquisadores a presença
de um alcalóide que recebeu o nome de nigerina (0,31%), (Lima, 1946:72).
Sangirardi (1983:204) dá a conhecer trabalho posterior em 1959 de Patcher,
Zacarias e Ribeiro, que isolaram de cascas de raízes de jurema preta (Mimosa hostilis, ou
mais contemporaneamente Mimosa tenuiflora (Willd.) Poir.): “um alcalóide com as
mesmas características da nigerina, cuja estrutura determinaram como sendo um derivado
indólico: a N, N-dimetiltriptamina (D.M.T.)”. Souza (2002:44) relata experiência de Melo
e Bandeira (1961) que também comprovaram o resultado dos estudos de Patcher e equipe
de 1959. Eles encontraram o alcalóide N,N-dimetiltriptamina (DMT), que apresenta em sua
configuração atômica C12-H16-N2. Segundo Corbett (1977, apud Souza, 2002:44) o efeito
alucinógeno do DMT é semelhante ao efeito do LSD-25, sendo ele de menor duração que
este último.
Souza (2002:45), catalogando trabalhos de Corbett, 1977, Schultes e Hofmann,
1980 e Craing e Sitzel, 1986, indica que “o efeito alucinógeno da N,N-dimetiltriptamina,
quando administrada oralmente, é inibido pela ação das monoamino oxidase (MAO),
enzimas componentes insolúveis das mitocôndrias que catalisam a remoção de um grupo
anima do alcalóide”. O efeito alucinógeno provocado pela DMT só poderia ser liberado se
esta substância oralmente ingerida fosse acompanhada da ingestão de “algo que contenha

17
inibidores da MAO como as β-carbolinas, permitindo assim a ação da N, N-
dimetiltriptamina”. Para Souza (ibid) ainda seguindo estudos de Corbett, (ibid) e Callaway,
(1994), existe uma hipótese a ser confirmada de que os efeitos de natureza euforística
relatados em algumas experiências com jurema (M. tenuiflora), podem ser explicados pelo
fato de que

“As β-carbolinas podem ser formadas endogenamente a partir de triptaminas


básicas como a 5-hidroxi-triptamina (serotonina), presente na M. tenuiflora. Com isso, pode
ocorrer inibição da MAO, acarretando num aumento de depósitos de catecolaminas (estas
constituem a MAO e são por ela ‘protegidas’ de sua ação oxidativa, na ausência de
inibidores) no Sistema Nervoso Central e no coração, o que provoca os efeitos euforísticos.”

Grünewald (2002:99-100), discute sobre a possibilidade do DMT ser liberado


com a utilização de outras plantas na beberagem feita com a jurema. Cita como exemplos o
manacá (Brunfelsia uniflora), o maracujá silvestre (Passiflora sp.), o tabaco, e outras -
todos podendo conter inibidores da monoaminoxidase.

Histórico
O uso da jurema tem sido relato desde há muito tempo no Brasil. As variações
dos dados são muitas. Não existe um trabalho, que eu saiba, sobre o uso ancestral da planta.
Os cronistas que estiveram no Brasil em inícios do século XVI não relataram seu uso. Os
dados mais antigos sobre o uso ritual da jurema podem ser indicados nesta ordem.
Os primeiros relatos do uso da jurema parecem ser do século XVIII. Porém,
Andrade e Anthony (1999:104) citam o conhecimento da jurema já no século XVI. A
referencia destes autores é Huehve, que no seu Botânica e Agricultura no Brasil, de 1932,
dá a seguinte descrição, “Geremari é a mesma coisa que Jurema e Juremari e Record nos dá
como tais nomes Pithecolobium tortum Mart. (...) Na Fl. Br. encontramos registrado
Jurema como aplicado a Mimosa verruca Benth”. Nascimento (s/d:10), citando Leite
(1949), afirma que grupos de índios fugiam “de um aldeamento para um outro a fim de
participar de festividades anuais pagãs”. Provavelmente onde a jurema estava presente, isso
ainda no século XVII. Também Andrade e Anthony (1999:104) citam a presença da jurema
no século XVII, porém na referencia que dão, Lima (1946), não encontrei citação deste

18
referente ao uso da jurema na Amazônia nessa época (séc. XVII), apenas a indicação de
que ela possivelmente era usada já nessa época.
Os relatos mais seguros então, marcam a presença do uso ritual da jurema a
partir do século XVIII. Eles são vários, o primeiro é o de Gonçalves Fernandes datado de
1740. Ele é citado por Bastide (s/d:244), sem qualquer referencia mais significativa do que
a indicação de Fernandes sobre o tema e o nome do livro onde ela aparece, O Folclore
Mágico do Nordeste, à página 07. O outro bastante conhecido e também citado é o caso
narrado por Câmara Cascudo em vários ensaios e obras suas. Cascudo (1937:89) cita o caso
de um índio preso por fazer magia com a jurema:

“Aos dois de junho de mil setecentos e cincoenta e oito falleceu da vida presente
Antonio índio preso na cadeia desta cidade por razão do summario que fez contra os índios do
Mopibû, os quais FIZERAM ADJUNTO DE JUREMA, QUE SE DIZ SUPERSTICIOSO, de
idade de vinte e dois annos a julgar...” (grifos no original).

Este mesmo trecho é citado por Sangirardi (1983:200), só que de uma outra obra
de Cascudo (Tradição, ciência do povo) e por Andrade e Anthony (1999:104), também
citado de outras obras de Cascudo (Meleagro, 1951; e Dicionário do Folclore Brasileiro,
1954). Sangirardi afirma que antigamente as reuniões rituais onde se bebia jurema eram
chamadas de adjunto de jurema, eram proibidas pelo governo e por isso a nota de Cascudo
dá a prisão do índio por ter participado de uma delas.
Tanto Lima (1946:59), quanto Sangirardi (1983:201) e Andrade e Anthony
(1999:105) citando Lima (ibid), dão referencia do uso da jurema no século XVIII. A citação
de todos é retirada de José Monteiro de Noronha, vigário geral do rio Negro, que no seu
Roteiro da viagem da cidade do Pará até as últimas colônias do sertão da província, dá a
conhecer a jurema por este relato:

“Os índios da nação Amanajoz (...), não são antropófagos, nem idólatras. A sua
religião é nenhuma. Há porém entre elles ‘Pithões’, ou feiticeiros que só o são no nome,
fingimento e errata persuasão a quem consultarão para predição de sucessos futuros, (...). Nas
cerimônias, ritos, bailes, adornos de pennas na rusticidade e cóstumes, não diferem da
Província do Amazonas. Nas suas festividades maiores uzão os que são mais habeis para a

19
guerra da bebida que fazem da raiz de certo páo chamado – Jurema – cuja virtude é
nimiamente narcotica.”

Monteiro Baena, em comentário a obra de João Daniel, O Thesouro Descoberto


no Rio Amazonas, de 1843, citado por Lima (1946:60), cita o uso da jurema, segundo ele,
“os janumás, tamuanas, jauanás, tupivás, achouarís, manaós, curutús, serven-se da jurema
para passar a noite navegando altos pélagos do sonho, e do ipadú para gozar com ameno
deleitamento”. Segundo Lima (1946:65), Estevão de Oliveira questionado por este nega
que em alguma parte da Amazônia ter-se-ia usado alguma vez a jurema, acredita que Baena
deve ter confundido a jurema com o cipó caapi. Lima, entretanto continua acreditando que
se pode realmente tratar-se da jurema nordestina levada por vários fluxos migratórios até a
Amazônia.
Sangirardi (1983:196) narra, partindo do trabalho de Pereira da Costa, intitulado
Folk-lore Pernambucano, de 1907, o mais impressionante movimento messiânico
brasileiro. Em 1836, em Pernambuco, um grupo de pessoas se juntou a João Antonio dos
Santos que passara a pregar que Dom Sebastião o havia guiado até uma lagoa encantada
onde começa a se erguer duas torres de um templo. Dom Sebastião instituiria um reino
onde todos seriam felizes, ricos e poderosos. Foram chegando muitas pessoas ao lugar
seguindo a crença inspirada por João Antonio dos Santos. Com a intervenção de um
missionário, João Antonio dos Santos renunciou a seu postulado, deixando no seu lugar
João Ferreira. Este se tornou monarca e santo. Aparecia vestindo uma coroa de japecanga.
Era chamado de sua magestade el-rei. Reuniam-se em um sito chamado de Pedra Bonita ou
Reino Encantado, localizado na comarca de Vila Bela, sertão de Pernambuco.
Pela beleza do lugar recebeu o nome de Pedra Bonita, mais tarde pedra do
Reino. Existiam vários locais sagrados na pedra. O santuário, o púlpito ou trono, a pedra
do sacrifício, onde se executavam pessoas. Por último, a casa santa, local onde era servido
o “vinho encantado de jurema e manacá”. Em 14 de maio de 1838 as matanças começam a
se tornar mais drásticas por um suposto pedido de Dom Sebastião. Em três dias 30 crianças,
12 homens, 11 mulheres e 14 cães foram sacrificados de forma violenta e torturante. Em 17
de maio, Pedro Antonio dos Santos, irmão do primeiro rei, resolve iniciar o seu reinado.
Pedro Antonio dos Santos torna-se rei. Um dos sebastianistas foge e denuncia todos à

20
polícia. Um destacamento do governo vai até Pedra Bonita (Reino Encantado) “onde o rei e
seus súditos são esmagados”.12
Em 1849, Henry Koster, citado por Lima (1946:56), Aquino (1980:157)- deste
último retirada a citação que segue - e Sangirardi (1983:200), viajando por Pernambuco a
procura de indígenas para trabalharem em suas terras, estadia em Jaguaribe, um povoado ao
norte de Olinda. Lá tem a oportunidade de descobrir índios praticando antigos costumes:

“Ouvi casualmente, conversando com pessoas das classes mais humildes da


sociedade, que os indígenas continuam fiéis aos seus costumes. Uma família, que tinha muita
amizade com os indígenas, habitava uma plantação nos arredores. (...) uma mocinha indígena
levou uma das suas visitas para a cabana em que morava com seus pais, e como essa
companheira tudo perguntasse..., sobre as várias cabaças que estavam penduradas no quarto, a
indígena muito assustada disse: Não é bom olhar para esse lado. (...) Tempos depois algumas
mulatas resolveram espionar alguns índios, sabendo que eles dançavam em suas cabanas. (...)
Pouco tempo depois uma jovem indígena disse, em grande segredo, a uma companheira, de
classe diversa da sua, que fora mandada dormir, dias antes numa cabana das vizinhanças
porque seu pai e sua mãe iam beber jurema. Essa bebida é feita de uma erva comum, mas
nunca pude persuadir um indígena para que m’a indicasse, e quando algum assevera
desconhecê-la positivamente, seu rosto desmentia as palavras.”

Sangirardi (1983:201), indica a presença da jurema em diversos escritores do


século XIX. Arruda Câmara em 1863 “diz que a jurema (Acácia jurema Mart.), espécie
das caatingas e dos sertões, ‘os caboclos faziam uma beberagem, com que se encantam e se
transportam ao céu’”. Capanema, citado por Caminhoá em 1871, diz: “‘Dizem que a
embriagues da jurema traz sonhos fantásticos e agradáveis’. E acrescenta: ‘ os efeitos são
semelhantes ao do haxixe’.” José de Alencar também teria descrito a jurema no seu
conhecido romance Iracema: “Árvore mãe, de folhagem espessa; dá um fruto amargo, de
cheiro acre, do qual juntamente com as folhas e outros ingredientes preparam os selvagens
uma bebida, que tinha o efeito do haxixe”.
Andrade e Anthony (1999:105) citam que Pereira de Alencastre em suas
Memórias, de 1857, confirma o uso da jurema por indígenas do nordeste brasileiro. Lima
12
Ariano Suassuna tem um romance chamado A Pedra do Reino, no qual me parece que esta história ganha
contornos literários.

21
(1946:53) cita Melo Morais (que era alagoano) que em sua Phytografia ou Botânica
Brasileira, de 1881, descreve características da jurema (Mimosa jurema), “Os sertanejos
curam o cansaço e a caqueixa com a casca desta árvore. Os índios extraem da jurema certa
espécie de vinho que embriaga com transporte delicioso”. E em 1900, Nina Rodrigues no
seu L’animisme fetichiste dês negres de Bahia, citado por Lima (1946:55) fala da árvore
jurema usada em cultos africanos na Bahia, ali a árvore “ou era verdadeiro fetiche animado
ou ao contrário representava simplesmente a morada ou altar de um Santo”. Também Lima
(ibid), seguindo Nina Rodrigues outra vez, Os Africanos no Brasil, de 1932, afirmaria que
“pelos seus efeitos narcóticos e alucinógenos evidentes, cedo tomou a jurema um lugar
proeminente mesmo nos cultos de mais pura índole africana.”
Artur Ramos, citado por Lima (1946:55) e Sangirardi (1983:201), afirma no seu
livro O Negro Brasileiro, de 1931, afirma “A embriaguez da jurema, muito próxima das
ricas alucinações visuais da maconha e do haxixe, fazia com que os índios vissem ‘o
mistério ou o segredo da jurema’”. Carlos Estevão de Oliveira no seu livro O Ossuário da
Gruta do Padre, (1938-41), narra pela primeira vez de modo preciso a festa do anjucá entre
os Pankararu. Ele é citado por todos aqueles que passaram a fazer estudos contemporâneos
sobre o uso da jurema. Suas descrições são clássicas e influenciaram muitos pesquisadores
na investigação do uso indígena da jurema. Bastide (sem data: 245), Sangirardi (1983:193)
e Lima (1946:46) citam a famosa passagem em que Estevão de Oliveira conhece a festa do
anjucá, da jurema: “esta é a bebida milagrosa feita com a raiz da jurema”. Todo o
depoimento segue as indicações clássicas do preparo da jurema para a beberagem, da festa
com danças e cantos ao encantados ao som dos maracás. Tudo praticamente igual ao
observado em minha pesquisa de campo entre os índios nordestinos (ver cap. um).

Complexo da jurema
A jurema pode ser compreendida de várias maneiras. Este trabalho enfatiza o
elemento enteogênico associado ao uso e simbolização da jurema. Enteógeno é um termo
cunhado por Gordon Wasson e equipe, apud Mota e Albuquerque (2002:11), que pretende
enfatizar com ele a idéia de que existem plantas usadas como “inebriantes xamânicos e que
são consideradas pelos que as usam como sacramentos ou plantas-mestre”. Grünewald
(2002:102) entende enteógeno como “o advento de Deus no homem”. Ao contrário de

22
alucinógeno que produziria apenas alteração de percepção ou consciência, o enteógeno
produziria “comunhão e êxtases”. Enteógeno significa En: dentro; Téo: Deus; Geno de
Gênese: nascimento. Assim daria o nascimento/advento de Deus no homem. É isto o que a
jurema provoca de acordo com os relatos registrados neste texto.
O complexo da jurema é um termo/conceito cunhado por Mota e Barros em
1995, apud Mota e Albuquerque (2002:19), que pretende estabelecer em seu círculo a idéia
de “um conjunto de representações que envolvem concretamente plantas chamadas Jurema
e as concepções que sobre elas recaem. Este complexo é uma demonstração da mescla e
troca entre sistemas de crença, sistemas de classificação botânica, representações e
epistemologia”. Para estes autores, o complexo da jurema seria o elemento eficaz de
identificação do uso de uma planta por populações marginalizadas no contato de pretensão
hegemônica da cultura branca e ocidental frente ao encontro com populações indígenas e
posteriormente a população afro-descendente. A jurema seria um símbolo de resistência e
atualização cultural diferenciada daquela produzida pelos brancos, o europeu. Este
complexo da jurema seria finalmente o elemento instrumental de investigação para detectar
os elementos simbólicos e representativos da jurema como símbolo de resistência e
adaptação cultural. Resistência porque as culturas indígenas e afro-descendentes
manipulando e reinterpretando a jurema conseguiram manter vivas suas distinções
culturais. E adaptação porque este mesmo movimento teve de encontrar-se com um
sincretismo branco/europeu.
Para este trabalho, o complexo da jurema se restringe como um conceito que
tenta abarcar apenas os sentidos simbólicos atribuídos à planta. Como os sujeitos narrados
aqui ultrapassam inclusive o contexto indígena e afro-descendente, já que nele estão
presentes os usos metropolitanos contemporâneos, o movimento de resistência incorporado
ao conceito de complexo da jurema pode ser mais bem identificado em outra ocasião, o que
não impede dizer que o uso metropolitano contemporâneo da jurema também é um uso
contra-hegemônico (ver adiante no cap. três). Para este trabalho, o complexo da jurema
interessa em primeiro lugar porque ele permite colocar sob um mesmo ponto de vista as
várias representações da jurema, com isso se pode elaborar um impressionante testemunho
da variabilidade e apropriação social de elementos da natureza, com seus intercâmbios
culturais e suas criações particulares e coletivas.

23
CAPÍTULO I – A Jurema Indígena13

Lá nas matas tem um pau


Ele se chama de jurema
Quando eu chego lá
Eu vou beber jurema
Vamos meus caboclo
Lá pras bandas da jurema.

(linha de Toré Kapinawá)

A jurema no contexto indígena é assunto de muito esforço por parte da


antropologia contemporânea. A maior importância da jurema neste contexto deve-se aos
processos de emergências étnicas. A jurema é um dos elementos diferenciadores entre o
índio e o branco, por isso seu uso ritual é apresentado como o elemento de distinvidade
legitimidador da etnia como grupo diferenciado. Em quase todo o nordeste indígena, a
jurema é o centro das práticas rituais. O sagrado se faz assumindo a jurema como o veículo
que leva o índio ao encontro dos espíritos ou “encantados”. A planta é por isso mesmo
resguarda pelos grupos em segredo, ou menos que isso, por um sigilo preventivo.
Existem alguns tipos de rituais nos quais a jurema assume junto a eles a
principal expressão do ser índio. Estes rituais demonstram ao branco e também ao próprio
indígena o que é o índio. Eles legitimam e reforçam a identidade étnica indígena ao
promover uma representação da cultura. O Toré é o principal destes rituais. Caracteriza-se
por uma dança em forma circular em volta de um cruzeiro ou pelo centro de um terreiro.
Com a dança são cantadas linhas ritmadas ao som dos maracás e dos passos fortes. Quando
o toré é forte e faz-se necessário, a beberagem feita com a jurema é colocada no centro e
em determinadas horas distribuída para a assembléia. O gentio é uma espécie de toré feito
em local fechado e normalmente particular. No centro da casa de gentio encontra-se uma
toalha sobre a qual repousam objetos rituais e o aribé, a bacia que contém o anjucá, a
beberagem feita com as cascas da raiz da jurema. O Ouricuri é o lugar sagrado de alguns
grupos indígenas. O ritual feito nestes locais também é chamado de Ouricuri. Como se

13
Todas as fotos deste capítulo são de Rodrigo A. Grünewald.

24
verá, nos trabalhos de Ouricuri, a presença de brancos é minimizada, sendo bastante
incomum algum branco ter conhecimento de como são feitos estes trabalhos. Parece,
contudo que no Ouricuri se fazem rituais tipo toré. Há uma separação entre os gêneros e a
permanência no local segue uma data mais extensa do que apenas um dia. Em alguns
grupos chegando a quinze dias de permanência no local de culto. Por fim, há os trabalhos
de particular que tendem a ser compreendidos como trabalhos de mesa. Neste tipo de
trabalho, o pajé faz consultas e atende a pessoas que procuram alguma cura ou até mesmo
consolo espiritual. Costuma-se atender também a comunidade branca, externa.
Os grupos visitados foram quatro. A cada um, uma característica mais
significativa vai ser destacada. Através de depoimentos, entrevistas e participação nos
cultos, procuro reunir informações que possam dar uma idéia de como a jurema é
representada e simbolizada em contexto indígena. Os grupos assumem diferenças
significativas com relação à jurema. Deve-se por isso prestar atenção no modo como a
planta é entendida em cada contexto. Em cada lugar também, um sujeito será o “porta-voz”
da comunidade sobre o assunto. Nisto deve-se entender a presença tanto da coletividade,
como também da criatividade particular de cada um, o que do mesmo modo não
desautoriza a entender estas representações ainda como sociais.

ATIKUM
Dona Ana, ex-cacique Atikum, narrou um mito de origem da jurema bastante
interessante. Segundo ela, os índios antigos viviam no tempo do Pai. Neste tempo a vida
era muito mais difícil do que a de hoje. Viviam os índios na mata comendo a caça que
conseguiam, fazendo a comida daquilo mais imediato que atingiam. Era um estilo de vida
no qual a culinária não tinha descoberto o sal, o fogo, a carne era comida crua. Estes índios
viviam nas pedras, fugindo dos bichos e caçando-os. Um dia, o 1º índio desertou. Foi o
primeiro índio que veio ao mundo. Vir ao mundo é passar a conhecê-lo. Este índio saiu do
convívio com os outros e se arriscou a conhecer o deserto (caatinga). O mundo era muito
grande, quase infinito, e ele queria conhecer o mundo, mas estava aturdido e com medo.
Andando pelo deserto (caatinga), este índio ouviu uma voz debaixo de um pé
de jurema, ela perguntava: tu quereis a minha sombra junto de ti? “Quero”, ele respondeu.
Quando chegou perto da árvore de jurema, deu-lhe um sono fortíssimo, ele se encostou e

25
dormiu. Acordou com a presença de uma mulher, era uma índia, uma santa, era a cabocla
Jurema. Suas vestes eram os cabelos, da cabeça aos pés, cobrindo todo o corpo. Ele
perguntou: como ireis pra’qui? Ela falou “na idioma”, “na língua”: Deus me mandou pra eu
vir ser a sua companhia até o final. O índio não sabia “a idioma”, ele ficou calado. Ela
então disse “na idioma”: Se eu não veio, o bicho ia devorar você. Eles ficaram juntos. O
índio passou a conviver com a santa, mas sem pecado. Da parte dele ele era como um padre
que vive sem pecado. Foi quando inexplicavelmente, “sem pru que pru que não,
aumentaram a geração. Toda a geração indígena veio por aí”.
Chegamos ao tempo do Filho. Um dia, o índio tinha saído, a cabocla jurema
preparava o café. Neste tempo o café era colocado, depois de amassado no pilão, num copo
com água quente. Quando ela botou a água no copo, não ficou o café, ficou sangue! Mas
também era outra coisa, era jurema! “A jurema foi transformada por isso aí, a jurema é o
sangue de Jesus”. A cabocla ficou assustada e disse que iria jogar fora. Ele falou pela
primeira vez “na idioma”: Te cala mulher, aí é segredo. Por aí é que nós vamos receber a
força, a força dada do divino. É pecado jogar fora. É pecado Jesus dar um objetivo à
criatura e a criatura abrir as mãos e deixar cair. A jurema é o vinho, é o sangue de Jesus.
“Se jogasse no mato, o índio ia ficar louco, sem salvação”, complementa D. Ana.
O tempo do Espírito Santo... Este ainda virá!
Este mito é extremamente interessante. Ela aponta para o surgimento da
comunidade indígena atual contrapondo-a a uma comunidade indígena ancestral. É como se
pudéssemos ter um povo índio ainda “selvagem”, e num outro momento um povo indígena
consciente. O mito narra esta passagem de um povo a outro no momento em que Jesus se
faz presente no sangue transformado em jurema. Está claro aqui a presença do mito de
origem cristão narrado no Gênesis. Lá como aqui um homem vaga pela imensidão solitária
quando Deus (o Pai) concede uma mulher para ser-lhe companhia. O tempo do Pai some da
narrativa quando então inexplicavelmente o estilo de vida celibatário concede espaço a
convivência marital e conseqüente aumento de geração que ocorrecionará na criação da
população índia atual.
O tempo do Filho (Jesus) assume papel quando este concede ao casal a graça de
comungar-lhe o sangue na jurema. Aturdida, é a mulher, ainda que santa, que tenta livrar-se
da jurema. Neste momento irrompe no índio, até então ingênuo “da idioma”, o

26
conhecimento da língua indígena secreta, patrimônio anterior exclusivo da cabocla, e fala
em defesa do fenômeno, indicando assim a presença de Cristo entre a comunidade indígena
que ambos (o casal) haviam fundado.
Para D. Ana, Jesus haveria de ter andado por todo lugar onde houvesse gente,
índio ou não. A jurema seria descoberta de dois mil anos pra cá. Deus haveria de dar a
jurema como ciência do índio porque o branco14 se aventurara nos domínios da razão e do
dinheiro. Ficando para o índio o conhecimento dos mistérios da natureza, dentre os quais a
jurema mostraria de forma mais clara quais seriam estes mistérios. Era este índio que
continuava tendo a vida no sofrido clima seco, na qual a qualidade de vida era mais
precária. Assim, o branco até teria a “diplomação”, mas não a ciência, não “entendendo a
organização, o direito secreto de conviver”. O índio já nasceria “diplomado pela natureza”.
A jurema não apenas teria o papel aqui de contrapor um conhecimento indígena
(ciência dos mistérios) a um conhecimento branco (ciência/racionalismo ocidental),
destituindo assim dos tipos de conhecimento sua preocupação hierárquica, mas também
legitimar a emergência étnica nordestina indígena. Pensando o momento em que Jesus
assume o cuidado do índio, protegendo-o com a entrega dos mistérios do mundo através da
jurema, concedendo assim um conhecimento distinto para ele. É também a jurema que
entra como fator distinto entre o índio e o branco quando da reivindicação por direitos
indígenas. A jurema será o elemento de caráter religioso mais presente nas emergências
étnicas indígenas nordestinas. Junto a ela será também importante o Toré. Mas é na jurema
que serão compreendidas as maneiras do ser índio, isso porque ela vai ensinar, mostrar o
índio tal como ele era, como deve ser. É por isso que no mito, o homem só passa a falar “na
idioma”, quando Jesus concede sua graça. Através da jurema ele aprende a língua secreta
que a cabocla Jurema conhecia como santa que era, e que até aquele momento ele
aparentemente não havia aprendido. Este é o momento do conhecimento. Este é o momento
em que o índio se torna forte. É o momento de reivindicar um direito, um espaço. E a
jurema ensina a ser corajoso como os antigos pra lutar.
Se metaforicamente o mito cosmogônico será interpretado também como
relevante para o afirmar-se índio neste novo renascimento, não é sem a ciência que Deus,

14
Branco aqui é categoria nativa e indica aquela pessoa que não é índia, isso inclui todas as pessoas não índia,
não importando a cor dela. Para daqui em diante toda vez que for usado esta palavra será neste sentido.

27
passando aos cuidados uma segunda vez para seu filho (Jesus), tornará os índios tão irmãos
quanto qualquer cristão, mas sendo, porém diferenciado nos domínios do acesso ao
desconhecido. Dando assim aos índios a oportunidade de guardarem como herdeiros
eternos de algo incrível, as chaves de aceso ao mundo fantástico de Deus e da jurema.
D. Ana narra trechos do mito “na idioma”. Quando na oportunidade da
entrevista, muitos índios a assistiam falar sem, contudo darem opinião alguma. Como a
comunidade Atikum não fala uma língua diferenciada do português falado por camponeses
nordestinos, “a idioma” funciona como recurso retórico extremamente rico. Perguntada que
língua era aquela, D. Ana se limitou a responder que não aprendera “com gente humana, fui
buscar em outro lugar. Foi no ritual com a jurema que fui buscar o idioma”. Assim, parece
ser a única que sabe trechos de um possível idioma nativo, não sendo visto outro qualquer
falar deste tal idioma nativo. Se D. Ana transmite informações num idioma diferenciado,
que ela mesma traduz para nós e para os outros índios, o que nos deve ocupar é o
entendimento de que a partir do uso da jurema, não só o reconhecimento do discurso índio
ganhou força e
expressão apelando
para os mistérios da
jurema, como ainda
estes mistérios
aparentemente fizeram
renascer um idioma
índio. Como os
mistérios se fazem
difíceis de explicar,
O autor no momento em que fazia entrevista com Dona Ana. uma língua distinta
surge como prova e evidência, surge como marca, é o sinal externo e legitimitador. Para o
branco que quiser saber dos mistérios, basta tomar a jurema com os índios, “porque ela
mostra tudo”.
Este mito de origem da jurema só foi encontrado nesta narrativa de dona Ana.
Em todos os lugares pesquisados (conferir bibliografia deste trabalho) não se detectou outro
mito parecido. Todos os mitos indígenas de origem da jurema têm como tópico comum a

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história de que Jesus estaria fugindo da perseguição romana quando cansado e ferido
encostou-se num pé de jurema, seu sangue escorreu pelo tronco da planta alojando-se na
raiz. Por este motivo teria a planta tornado-se sagrada, seria ela aquela que abrigou o Cristo
e recebeu-lhe o sangue. Note-se que este mito não contradiz aquilo narrado por dona Ana,
perece mais evidente que o narrado acima seja um desdobramento deste mito primeiro, a
sacralização da planta. Dona Ana nos daria assim a história do modo como os índios
recebem então a “ciência” vinda de Deus através da árvore que abrigou seu Filho. Para
todos os grupos indígenas citados em seguida neste capítulo, este mito de origem da
sacralidade da jurema pelo contato com o corpo e sangue de Cristo é narrado de maneiras
semelhantes. Existem pequenas modificações no mito a depender do lugar em que ele for
colhido, como aquele que afirma ter sido Cristo enterrado debaixo de um pé de jurema, ou a
de que “quando mataram Jesus, \um dos seus apóstolos apanhou o sangue dele e mandou
botar no pé da juremeira, era pra ficar a ciência para os índios. Aí o civilizado não tem nada
com a jurema, porque não tem o sangue” Grünewald (2002:118), colhido em Atikum a
cerca de doze anos.

Os usos da jurema Atikum


Temos para nosso registro em Atikum dois sujeitos da jurema. Preocupou-se
basicamente em demarcar sujeitos em espaços sociais, contextos sociais, específicos nos
quais o uso da jurema é referendado pela comunidade. Assim é que tanto D. Ana como Seu
Augusto, são expressão e exemplo do modo como a comunidade Atikum reverencia a
jurema e seus “encantos”.
Estivemos preocupados em entender o mito de origem narrado por D. Ana
dentro da idéia de que mesmo aparentemente individualizado este conhecimento do mito,
na ocasião narrado apenas por ela, é resultado de esforço coletivo na busca por um
entendimento do que é ser índio. Os trabalhos com a jurema têm muitas vezes esta
característica individual. A força daquele que leva o trabalho é fundamental para o bom
andamento deste. É por isso que não está se fazendo nenhuma extravagância em narrar os
ritos de acordo com a impressão que temos daquele que leva o trabalho.
D. Ana cozinha a jurema três vezes. Coisa muito pouco vista em rituais
indígenas. Nossa primeira impressão no campo já veio transformada por um elemento novo

29
que se surpreende. Este cozimento da jurema não faz parte de muitos feitios indígenas.
Segundo D. Ana, ela sempre fez deste modo, porque assim a jurema fica mais forte. Dado
interessante porque em quase todas as obras consultadas sobre o uso da jurema por índios,
os mesmo relatam que para os grupos indígenas, demarcar o uso da jurema como elemento
ancestral se clarifica na não aceitação de qualquer cozimento, fazendo a jurema como se
acredita que os antigos índios faziam, ou seja macerada a raiz, colocada na água, espremida
e do suco final apenas peneira-lo um pouco. Em todo o caso, D. Ana se demonstrou
satisfeita em ter-nos dado a entender que tinha colocado no preparo uma característica sua,
coisa que veremos ser recorrente no trato com a jurema.
Cozinhada a raiz da jurema por três vezes (sempre a jurema preta “que é a mais
forte”). Ela é coada, encruzada, ou seja, com um cachimbo (na maior parte das vezes feito
da madeira da raiz da jurema) ao contrário (a brasa virada para a boca), faz-se uma
defumação na bacia (aribé) que contém a jurema (anjucá se na mesma estiver misturado o
jucá pra trabalho de cura). A defumação consiste em fazer o sinal da cruz com a fumaça do
cachimbo sobre a jurema no aribé de modo a deixar marcado o sinal de uma cruz sobre o
líquido. Nesta “encruzação” a jurema se transforma. Esta transformação é a nós vetada, só
quem dirige o trabalho sabe no que ela se transforma. Segundo esta transformação, sabe-se
quem terá condições de tomar a jurema. “Ela não é pra qualquer um”. A jurema usada é a
preta com espinhos, “é a forte mesmo, a da ciência, a Mãe Jurema”. Junto ao preparo final
podem ser colocadas raspas de limão e de maracujá. Segundo D. Ana antigamente era
usado no ritual o manacá fumado. Tomava-se a jurema e depois fumava o manacá15,
“ajudava a subir, viajar”.
Não foi possível assistir a um trabalho de D. Ana, as informações são assim
aquelas que ela narrou. O seu trabalho é principalmente com os guias de luz, “a nossa
jurema é dos encantados de luz”. Os encantados de luz são as forças, as entidades que
humanas uma vez, simplesmente tornaram-se luz, não morreram, mas encantaram-se. Estas
vivem nas matas, são os seus encantos, seus mistérios. Tomada a jurema, todos se
concentram e começa-se a cantar as linhas que trazem os encantos, circulando-se em volta
do aribé (posto no centro do terreiro, no chão) ornamentado com velas e uns poucos objetos

15
O manacá possui princípios psicoativos comprovados Brunfelsia hopeana Benth., altamente tóxico. Ver por
exemplo Sangirardi (1983:200).

30
significativos. “Eu me concentro e fico em outros cantos, é lindo, vejo muitas coisas. É
como se estivesse dormindo... êta sonho bom! Não posso contar, tanto porque sinto aqui na
mente”. Se for pertinente o depoimento de D. Ana, é porque nele ela deixa claro que a
jurema tende a levar a atenção daquele que a toma para conhecer lugares desconhecidos.
Parecendo estar em um sonho, aquele que ingere da jurema vai percorrer lugares mágicos
de sonhos, lares paradisíacos.
É deste tipo de fenômeno que os mistérios da jurema farão jus. Quando D. Ana
narra seu trabalho, é exatamente o momento em que aquele que da jurema não conhece
parece mais apartado da narrativa. A parte em que o branco não tem voz, não conhece. É
dos mistérios que a jurema mostra ao índio que demarca um limite, este campo já não pode
ser narrado, além de vetado, ele não tem tradução. Se a língua falada por D. Ana
reconhecida nos trabalhos com a jurema pode ser traduzida, o fenômeno em si é
ininteligível, não podendo ser recuperado em sentido por aquele que da jurema não conhece
os mistérios.
O trabalho ao qual foi possível acesso se deveu ao empenho de Seu Augusto,
ex-pajé Atikum. Através dele o pajé atual, Seu José (filho de D. Ana acima citada) também
tomou parte dos preparos dos trabalhos. Junto com os dois, fomos a uma área muito
fechada de mata na qual alguns
pés altos de jurema se
encontravam. A jurema é
sempre retirada de lugares de
difícil acesso. Locais onde o
tráfego humano é bastante raro.
Ao chegar aos pés da árvore
jurema (uma jurema preta,
sempre se usa a preta que é a
mais forte), seu José começa a
cavar com uma enxada, pelo lado em que o sol nasce. Procura uma raiz que seja forte e
grande. Enquanto isso seu Augusto trata de preparar um cachimbo e sua farda de índio.
Achando a raiz, ela toda é limpa da terra que a cerca antes de ser cortada. Seu Augusto trata

31
de cantar umas linhas tocando um maracá nas quais seu José o acompanha em intervalos
aleatórios, exemplo de algumas:

Eu vim da juremeira, vim com a juremá


Oi meus caboclo índio, oi do centro do mar.

Outra:

Tava sentado em pedra Fina


Rei dos índio mando me chamar
Sou rei dos índio, caboclo africano, caboclo Adriano
Rei do juremá
Com uma mão peguei na flecha,
Com a outra retirei.

Seu Augusto defuma (com o cachimbo invertido, soprando pelo lado das brasas)
a raiz nua da terra, bem como a própria árvore da jurema. Após isso, seu José corta com
uma faca a raiz exposta. Coberto o espaço ocupado até então pela raiz, a casca desta é
retirada com uma faca e
macerada numa pedra ali
mesmo.
Na casa humilde de
seu Augusto, um cômodo
pequeno nos fundos serve de
Gentio. Ali a jurema vai ser
espremida numa bacia de
plástico com água. Vai ser
cruzada do mesmo modo que
foi narrado para D. Ana, deixando impressa uma cruz de fumaça na jurema. O líquido
resultante é já a bebida, mais um tempo ela deve ficar descansando para encorpar.
Chegando a noite, um grupo de pessoas, muitos com farda de índio, estão esperando o
inicio do trabalho. Sentados todos em volta do aribé da jurema, colocada sobre uma toalha

32
branca estendida no chão, junto a pequenas imagens dos santos protetores, de relíquias
encontradas na área pertencentes aos artefatos arqueológicos, e algumas velas acesas, além
claro dos maracás. Todos sentados então em volta da jurema, seu Augusto começa a puxar
a linha de abertura do trabalho:

Eu vou abrir minha corrente de jurema


Traga as tuas forma de licença
Iê, iê, eira, traga as tuas formas de licença.

O ritmo das linhas é dado pelos passos, entonação das vozes e principalmente
pelo som dos maracás. Esta primeira invocação é para a jurema, seguida então por uma a
Virgem Maria e por fim a Atikum16. Uma espécie de “viva” (salvas) é feita a todos os
presentes, aos guias de luz, mestres, santos, à caboclada, e a quem for lembrado, sendo
estes “vivas” ilustrados por quem quiser fazer qualquer homenagem. Bebe-se então a
jurema. A jurema é servida por seu Augusto, tendo ao seu lado direito o pajé seu José, uma
pequena quantidade numa cuia de coco. A cada um é dada uma quantidade definida na hora
pelo ex-pajé. Começando da direita para a esquerda. Toma quem quiser, incluindo aí
crianças que tomam quantidade menor. Neste momento em que se bebe, canta-se uma linha
que fala do beber da jurema:

Vamo berber nosso anjucá


Nosso anjucá das mãozinhas de Jusus
Quem bebe, bebe bebendo
Aonde está a ciência dos meus índio.

Após todos beberem, todos se levantam às ordens de seu Augusto. Este começa
a puxar uma linha que acha forte e todos passam a dançar o toré em volta da jurema,
fazendo este movimento circular da direita para a esquerda:

16
Atikum seria filho de Umã. Umã é a entidade fundadora da comunidade indígena Atikum. A serra onde o
grupo mora é chamada de Serra do Umã, serra pertencente a esta entidade. Quando da emergência étnica do
grupo nos anos quarenta, num dos trabalhos, Atikum se faz conhecer como filho de Umã. Assim passou-se a
se considerar todos da tribo como Atikum, pois todos seriam filhos de Atikum-Umã. O etnômio do grupo foi
pois encontrado num trabalho de toré com a jurema. Para maiores detalhes ver Grünewald (2002:110).

33
Vamô alevanta, bota em pé
Oi na mesa, oi do velho anjucá.

Com o correr do tempo, alguns passam a manifestar os encantados que


encostam. As incorporações com os encantados são bastante sutis, não chagando a ter um
diálogo com aqueles que estão presentes. Enquanto estão “irradiados”, estes continuam a
dançar no movimento do grupo. Em determinado momento toma-se mais da jurema, toma
quem quiser, oferecida apenas por seu Augusto. Sem maiores atrapalhos o ritual culmina
após umas três horas, podendo ser muito mais que isso, passando por amanhecer o dia num
ritual. Canta-se uma linha para fechar na qual o grupo se despede dos presentes, deste
campo visível como também do campo invisível. Agradece-se a todos que vierem, inclusive
do invisível. Saúda-se a todos os guias, mestre, santos, caboclos e a quem mais for
lembrado. Encerra-se o trabalho.
Cabe aqui destacar que durante o trabalho no seu Augusto, uma das
incorporações se distinguiu das demais. Dona Naninha incorporou o mestre Zé Pilintra. Zé
Pilintra é figura fácil em todos os trabalhos chamados de catimbó e afro-brasileiros tipo
umbanda principalmente (ver adiante capítulo 2). Mas em trabalhos indígenas, esta
presença parece ser coisa bastante nova, ou até muito singular do local. Quando Zé Pilintra
incorporou, diferentemente das outras incorporações, a música foi parada tal como a dança.
Zé pilintra fala com bastante dificuldade, entre sussurros faz piada jocosa com um dos
presentes que mantinha atitude mais informal17. Seu Augusto pergunta se Zé Pilintra quer
alguma coisa, este responde: não tem nada aqui pra mim, vou embora. Augusto responde
que tem uma jureminha pra tomar, Zé Pilintra responde: não sou caboclo pra tomar jurema,
vou tirar a minha linha e ir embora. Começa a linha dizendo “com nego José Pilintra...”.
Esta linha tem uma cadencia diferente das linhas para os encantados. Ela apresenta uma
velocidade e melodia muito mais tranqüilas, os maracás tocam com pouca intensidade,
quase numa espécie de surdina. O grupo não circula, não dança até a linha terminar, o que
imediatamente faz Zé Pilintra sair do trabalho.

17
Ao fazer uma piada boba com Zé Pilintra, um dos índios tem como resposta a bronca “cala-te cabeça seca”.
Cabeça seca é o termo nativo, pejorativo, para os não índios. Parece que este termo é bastante difundido no
nordeste indígena.

34
Esta parte da sessão pareceu bastante significativa porque demonstra que a
cultura Atikum não está separada. Há inovações tremendas e rápidas, em poucos estudos a
presença de Zé Pilintra é narrada, (Grünewald, 2002:115)18. A presença de incorporações
como esta em trabalhos indígenas é significativo da transformação das culturas. Mais
significativo, porém, é que mesmo estando presente no trabalho índio, o mestre Zé pilintra
é aceito sob certas circunstâncias. Não se dança, os maracás são tocados em surdina, o
mestre Zé Pilintra é quem puxa sua linha e não há a cachaça, típica para trabalhos com este
mestre. O próprio mestre se sente em ambiente estranho, mesmo sendo um convidado bem
vindo. Há então limites para a inovação, mas estes limites são fluídos, não são bem
delimitados. Há no grupo uma certa concordância com o que se pode e não se pode fazer
num trabalho,embora estas regras não sejam ditas nem escritas, são assim regras muito
flexíveis, e que só a pertinência dos vários casos particulares é que dará seu grau de
legitimidade ou não. Quem escolhe seu padrão de cultura é sempre o nativo.
Dentro da cultura Atikum, a Pedra do Gentio é um dos locais sagrados do
grupo. Localiza-se na Serra do Umã, na aldeia chamada Jatobá. Neste local são dançados
torés e reverenciados os antepassados. Dentro da pedra, numa entrada estreita, um altar com
imagens e velas improvisa-se entre as dobras do mineral. Quando pudemos visitar a pedra,
seu Augusto nos fez acompanhar com o pajé, seu José, com o cacique Jovassir (Vassi), e
mais um grupo de algumas pessoas da área indígena. Antes de sair de casa, seu Augusto
tomou um pouco da jurema. Durante o ritual na pedra, não foi servida jurema, mas as
incorporações dos encantados se realizaram do mesmo modo que no trabalho de gentio.
Não sendo, entretanto incorporados mestres como narrado acima. As linhas cantadas, o
toque dos maracás e as danças em círculo anti-horário seguiram a linha do trabalho
anteriormente narrado. Os trabalhos espirituais também se fazem em terreiros, junto a
cruzeiros nos quais na maioria das vezes se toma jurema coletivamente. Tem um mestre de
toré que leva o trabalho, há incorporações e as semelhanças com os tipos de trabalho
relacionados acima são as mesmas.

18
Este autor ainda informa que segundo dizem os índios, Zé Pilintra não faz parte da tradição do índio, é o
único que pode baixar no serviço, isso porque ele baixa em qualquer tipo de trabalho.

35
KAPINAWÁ
O uso da jurema em Kapinawá tem suas diferenças com as práticas Atikum.
Passa-se a narrar a preparação de um ritual. Com o cacique José Bernardo e o pajé José
Moisés, parte-se para encontrar uma jurema boa para o trabalho. Na estrada que dá acesso a
área indígena, em sua margem uma jurema frondosa dá o ar de sua graça. Diferente do
grupo anterior, aqui não se faz
questão de coletar a jurema em
beira de estrada, mesmo porque,
esta estrada é muito pouco
transitada, já que se localiza
dentro da área indígena. De
qualquer forma, a jurema estava
num terreno meio arenoso o que
facilita sua retirada.
Pede-se aos “donos da jurema” para que ela possa ser retirada. Uma prece
engrandecendo estes donos e pedindo a licença deles é realizada. Acende-se três velas
representando a trindade cristã (para o Pai, o Filho e o Espírito Santo), colocam-nas sob um
dos trancos da jurema e faz-se uma prece silenciosa, no começo com uns Pais-nossos e
algumas Ave-marias. Preocupa-se em retirar a raiz pelo lado em que o sol nasce, “o sol
quando nasce traz ciência, quando ele se
põe leva o mal”. Encontrada uma raiz
boa, grande e grossa, ela é cortada. O
pajé se ocupa de lavá-la num riacho
próximo. Raspa-se a casca da raiz com
uma faca sobre uma bacia. Às vezes esta
parte é feita no cruzeiro do terreiro.
Escolhe-se uma boa jurema porque ela
“tem de ser forte como vinho, nada de coisa fraca, toma logo quatro e fica todo arrepiado”
diz o cacique José Bernardo.
Misturam-se as raspas da raiz da jurema com raspas do caule do jatobá, ás
vezes jucá. O jatobá é usado para “problemas de nervos”. Há reis ligados à cosmologia do

36
jucá, mestres no jatobá e reis de novo na jurema. A todos estes domínios se pede força e
proteção. Traze-se água para espremer a jurema com o jatobá. A água corrida não é
benzida, acredita-se que esta água já foi batizada por São João Batista quando este batizou
tudo na natureza. Cruza-se a bacia que contém a jurema espremida com o jatobá na água
usando uma vela acesa (em pé com a chama para cima) fazendo o sinal da cruz cristã com
ela, canta-se uma linha:

Este pé de pau é bento


Foi Jesus que abençoou
Deus que salve o calo (cálice) santo
E a hóstia consagrada.

Faz-se uma prece, repete-se e pedem bênçãos. A vela que foi usada para benzer
a bebida jurema fica colocada sob um dos trancos da árvore. A bebida é então coada e
despejada num caldeirão.
Os Kapinawá acreditam que cozinhando a jurema estariam cometendo um
grave erro. Além dos índios antigos não usarem o fogo, e com isso não poderem cozinhar a
jurema, acredita-se que “tudo que foi queimado não tem força”. Assim , somente espremem
a jurema com o jucá ou jatobá e a coam. Raspas secas de raiz da jurema são usadas no guia
(o cachimbo dos trabalhos), e as folhas secas da jurema são colocadas nos defumatórios dos
trabalhos.
A jurema descansou o dia todo e pela noite um toré com jurema foi organizado
dentro das instalações da escola indígena na área. O toré Kapinawá pode ser caracterizado
como um trabalho bastante lúdico. A presença de muitas crianças é significativa. Não há
aqui um dirigente maior que leva o trabalho. A característica de todo o toré é que o mesmo
é bastante livre. Inicia-se o ritual com uma linha:

Vamô, vamô minha gente


Que uma noite não é nada
Aqui chegou Kapinawá
No romper da madrugada
Oi vamô vê se nos acaba

37
Com o resto da empeleitada.

Ao som dos maracás e das batidas com os pés no chão, o grupo, em


movimento circular em volta daqueles que puxam as linhas, faz movimentos circulares no
sentido anti-horário. O pajé incensa o ambiente com seu cachimbo virado ao avesso. O
trabalho consiste então em levar várias linhas de mestres, encantados, santos, caboclos e
outros. Dançando e tocando o maracá.

Foi a cabocla Dalila


Que chegou pra leriá
Ela é cabocla, ela é flechera
É faceira no andar
Por cima de pau e pedra
Só baixa pra trabalhar.

Uma outra:

Eu tava sentado no pé do juremá


Ô senhor mestre pra que mando me chamar?
E eu mandei chamar
Meus índios
Oi, pra baixar pra trabalhar.

A jurema, então posta num canto da sala sobre uma mesa velha, começa a ser
servida após o início do ritual um pouco. Todos tomam da jurema, crianças inclusive. Uma
parte é servida pelo pajé em xícaras de
plástico, outra parte se serve pessoalmente
por outra xícara de plástico. Canta-se uma
pequena linha:

Vamo beber jurema preta


Flurôres brancas da jurema preta

38
Após todos tomarem, o ritual recomeça do mesmo modo. As mulheres mais
novas têm o costume de dançar o toré em grupos. De mãos dadas ou abraçadas de duas, três
ou quatro, circulam na roda do toré. Há incorporações bastante sutis, lembrando as
incorporações dos encantados de luz já narrada para Atikum. Estes encantados costumar
puxar algumas linhas, ou seja, eles cantam aquelas linhas que lhes pertencem ou acham
devido para o momento, eis um exemplo:

Eu ando pelo mundo andando


Foi sina que Deus me deu
Em todas as aldeias que eu ando
Em todas deixei ciência.

Um outro pequeno exemplo:

Lá no pé do cruzeiro jurema
Eu to com o meu maracá na mão
Pedindo a Jesus Cristo
Conforto no meu coração.

Todo o ritual a seguir corre na maior festa pelas crianças e adultos. A jurema é
bebida por qualquer um, quantas vezes se quiser. Aqueles que mais se destacam em puxar
as linhas ficam por muito tempo cantando e dançando no centro da roda. O pajé ou o
cacique são importantes, mas não os principais puxadores de linhas, homens ou mulheres
do grupo se revezam nesta tarefa de contornos mais lúdicos do que qualquer outro. Já mais
pro fim do trabalho, muitas músicas de samba-de-coco são cantadas enquanto a forma ritual
não se altera, ou seja, continua-se a dançar e tocar os maracás com afinco. Parecendo que
quanto mais pra noite se entra, mais satisfeitos ficam nossos anfitriões índios. Chegando ao
fim do ritual apenas quando o cansaço ou as obrigações do dia seguinte se faz sentir. “Sem
maiores cerimônias”.
O lugar mais sagrado para o grupo são as furnas. Estes espaços abertos pela
natureza na grande pedra que ornamenta a paisagem do local são considerados os lares dos
antigos índios. Lá um cruzeiro demarca o local como sagrado. Assistiu-se a um toré neste

39
lugar. Com diferença do uso da jurema e das incorporações, tudo se deu do mesmo modo
do toré narrado acima. Incluindo aí o samba-de-coco nos trechos finais do ritual. Junto ao
cruzeiro foram dispostas velas, coisa que no trabalho acima citado não ocorreu. O local
também foi incensado pelo pajé do mesmo modo. Mesmo estas diferenças não deixam de
demarcar este trabalho nas furnas como trabalho sagrado. A jurema não foi bebida, mas as
linhas da jurema foram, como sempre se dá, as mais cantadas. Outro lugar de se realizar um
toré é no terreiro da aldeia principal, a do posto da FUNAI (Fundação Nacional do Índio).
Trabalhos iguais aos narrados no toré na escola.
A grande preciosidade e característica dos Kapinawá, é que o grupo parece
realizar tudo com um misto de satisfação e empenho. O lúdico é a singularidade destes
torés. A jurema por mais rica que seja em toda sua proteção espiritual e política (o ser índio
se dá no controle e uso da jurema), assume papel também lúdico nos torés. É ela posta não
no centro do trabalho (como em Atikum), mas num canto da sala, não há entrada especial
para toma-la, não se proíbe toma-la o quanto se quiser. A jurema servida é também uma
jurema mais leve do que a citada para Atikum.
Os trabalhos espirituais particulares são aparentemente assumidos por
rezadeiras, não sendo o uso da jurema narrado19. A jurema parece estar presente mais como
símbolo e nome do que propriamente a bebida ou a árvore. O cotidiano da vida deste grupo
assume singularidades tão confortadoras que abrir caminhos com a jurema preta é enfrentar
desafios que contradiriam o esforço coletivo de vivenciar os mistérios propostos pelo lado
lúdico da vida, e quem sabe da própria jurema.

KARIRI-XOCÓ
Para os Kariri-Xocó, a jurema é parte do conjunto de segredos dos quais somente o
índio sabe direito. Preservar a cultura do índio é preservar o segredo da jurema. Se para
Atikum e Kapinawá a jurema só guarda segredos no plano astral, tendo o conhecimento dos
mistérios da jurema sendo permitidos aqueles que a tomam, e sendo os índios aqueles que

19
O cacique José Bernardo assume que faz trabalhos espirituais de cunho próprio, diferente daquele
organizado pelo grupo. Aparentemente seu pai passou o modo de realiza-lo, sem contudo ensinar a fazer a
beberagem com a jurema. São linhas e termos próprios que caracterizam o seus trabalhos. Não foi possível
assistir a nenhum destes trabalhos. Fica-se assim sabendo-se muito pouco da forma como este ritual realmente
é e de que forma ele se dá. O interessante é novamente notar que a criatividade individual tem espaço e
legitimidade social muito maior do que recorrentemente se pensa.

40
souberam usar a jurema. Para os Kariri-Xocó, os brancos serão sempre “cabeça-seca”,
serão sempre ignorantes dos mistérios da jurema, mesmo que façam uso dela. Cabe
somente ao índio o conhecimento de acesso ao plano espiritual que a planta concede. Para a
curiosidade do branco, a jurema será sempre algo não compreendido, os caminhos pelos
quais a planta fala àquele que a toma só são discerníveis por herança e linhagem indígena.
O pajé Kariri dos Kariri-Xocó20 chama-se Júlio Queirós Suíra, ele está a mais de 30
anos no cargo. Seu pai Francisco Queirós Suíra foi pajé também por longo tempo21. Dentro
do modo de vida Kariri-Xocó, a descendência espiritual, ou seja, a descendência dos pajés
se dá por linhagem, parentesco direto, de pai pra filho de preferência. Para o grupo, o ideal
é que a segurança espiritual do pajé seja ministrada de pai pra filho, já que para o grupo, o
pajé seria um doutrinador, um guardião das tradições, e pelo que se pode verificar, seria até
mais respeitado do que o cacique. Foi exatamente seu Júlio Suíra a nós apresentado
primeiro do que todos. Segundo o mesmo, ele seria o responsável por dar a todos a
segurança necessária para viver em paz, “a função do pajé é doutrinar, considerar todos da
tribo22 como seus filhos. Sou chefe de todas as famílias. Pela origem, pela doutrina têm que
me obedecer. Esta doutrina diz como ser índio, e conservar o ser índio, sua origem”. Seu
Júlio não só tem funções espirituais para com a coletividade, com ainda se responsabiliza
por ter todos como filhos, sendo respeitado por suas posições e atendido com o respeito
dirigido ao sábio na figura de um pai.
O lugar sagrado dos Kariri-Xocó chama-se Ouricuri. O Ouricuri é uma área de terra
nativa não utilizável para nenhuma outra coisa a não ser como espaço de retiro espiritual do
grupo. Localiza-se na área extensa as aldeias de Sementeira e Colônia, tem cerca de 200
hectares. Lugar privilegiado por uma natureza “virgem”, no qual pelo menos duas vezes
por mês (e uma vez por ano durante quinze dias reclusos, isto a partir do dia 15 de Janeiro

20
Os Kariri-Xocó são um grupo étnico formado pela junção de dois grupos diferentes, os Kariri e os Xocó.
Quando da retomada de terra pertencente aos Kariri em meados de1978, muitos Xocó já viviam junto aos
Kariri na cidade de Porto Real do Colégio vizinha da área indígena. Existem e existiram muitos casamentos
entre Kariri e Xocó, resultando numa geração Kariri-Xocó. Na configuração política então da área ficou
acertado que se teriam um cacique e um pajé de cada grupo. Assim, temos um cacique e um pajé Kariri e um
cacique e um pajé Xocó. Aparentemente, embora não se registre conflito, o pajé e o cacique Kariri tem uma
certa preponderância com relação aos outros dois.
21
O ex-pajé Kariri dos Kariri-Xocó Francisco Queirós Suíra foi tema de um artigo de Mota (1996).
22
Tribo aqui é usada como um termo nativo, a antropologia no Brasil considerou o termo pejorativo, mas ele
vem sendo usado pelos grupos indígenas do nordeste para designar o conjunto de elementos de sua etnia
(humanos, culturais, ecológicos, etc.)

41
até o dia 30 do mesmo mês) o grupo realiza trabalhos espirituais. No Ouricuri foram
construídas casas bastante simples para abrigar o grupo durante estes períodos. Este espaço
sagrado permite ao grupo realizar seus trabalhos espirituais com a jurema afastados da
curiosidade dos regionais ou quaisquer outros23.
No Ouricuri Kariri-Xocó não entra branco de forma alguma. Os brancos somente
podem visitar a área em alguns domingos festivos isso até não começar o ritual
propriamente dito. Os brancos casados com índios também não podem freqüentar o
Ouricuri. Somente filhos de tais casamentos têm acesso, tanto por pai ou mãe índia. Para o
grupo, um branco que tentasse “bisbilhotar” o trabalho no Ouricuri seria repudiado,
incluindo aí castigos físicos em primeiro lugar e espirituais num segundo. Segundo o pajé
Júlio Suíra, “a civilização suja o índio, e o Ouricuri é o lugar pra gente se limpar”. Há
recorrência no discurso à idéia de que o branco com a civilização suja a fé o os costumes
dos índios, abrigar-se contra este mal é algo fundamental para a permanência do grupo
como um todo coerente. O Ouricuri seria o momento fundamental da identidade Kariri-
Xocó porque lá todos estariam reverenciando o criador e se limpando da sujeira adquirida
com o contato ininterrupto com os brancos. Para o grupo, somente aquelas etnias que
conseguiram manter seu espaço ritual sagrado foram as que mantiveram as tradições dos
antigos.24
O pajé Júlio Suíra faz questão de deixar claro que as tradições dos Kariri-Xocó não
podem ser inventadas, são elas as mesmas dos mais antigos índios. O Ouricuri foi algo que
sempre tiveram, mesmo sendo todos católicos, a prática ritual com a jurema no Ouricuri
nunca foi abandonada. “Sou católico, mas tenho o Ouricuri como minha Igreja25”, disse seu
Júlio, complementando “lá vou buscar a minha paz, minha saúde, minha riqueza e minha
vida. Conservado pelos mais velhos, os principais, desde a origem. Eu tenho ela (a área
Ouricuri) como um Deus”. Percebe-se como este espaço é fundamental para delimitar o
lugar do índio e o do branco, instaurando uma divisão que parte do ponto de vista do índio,
no qual o branco não chega nem a ser um mero espectador, nem isso ele poderia cumprir

23
Além da população Kariri-Xocó, são aceitos no seu Ouricuri membros de outras etnias que moram na área
ou não, são elas as principais: Karapotó (S. Sebastião- AL), Fulni-ô (Águas Belas- PE) e Tingui-Botó (Feira
Grande –AL).
24
O Ouricuri Kariri, posteriormente Kariri-Xocó, era a única faixa de terra que o grupo conseguiu manter
antes de ter definitivamente toda a terra reivindicada de volta.
25
Não há igreja construída na área, embora a maioria seja católica. Há índios protestantes, com grupos de
reza, principalmente jovens. E há ainda índios que se dedicaram a trabalhar com a Fé’ Bahahi.

42
com honestidade. “Eu não posso criar mais nada. O branco cria muita coisa, as nossas
tradições não podem ser criadas. Eu tenho que conservar para não enfraquecer a tribo. Só
quem perdeu algo é que cria, nós não perdemos nada. Os índios que perderam parte de suas
tradições criam algo novo, nós não”.
A criação do mundo e do índio tem na figura de Sonsé a autoridade máxima26.
Sonsé seria o espírito criador, a iluminação e o protetor da tribo e do índio. Mas isso com a
condição de se acreditar em Sonsé, “pra quem respeita e acredita. Porque o índio tem mais
intimidade porque era o único conhecimento que o índio tinha quando vivia sozinho. Só se
conhecia ele. Era quem garantia o índio”. Mais que isso, Sonsé passava por um ser mítico
que vivendo junto aos índios, não era como eles, não era nem um humano, nem um espírito,
“não tinha ele (Sonsé) como um espírito, tinha ele como uma pessoa viva no meio deles. A
civilização acabou com isso, mas o índio não perdeu a fé”. Por mais confuso que pareça,
Sonsé parece ser um espírito que vivia vivo no meio dos índios antigos e que pelo contato
destes com os brancos teve que se proteger da “sujeira dos brancos”, protegendo-se como
espírito vivível aos índios aqueles que nele confiam e acreditam. “Quando vamos ao outro
setor (lê-se Ouricuri), é para receber força, se limpar, porque na civilização nós tamo se
sujando, nós temos que ir para esse canto para se limpar, receber esse poder”. É Sonsé que
alivia o índio da confusão do mundo do branco, das implicações econômicas e morais do
contato que se estende por séculos. Sonsé saído do mundo natural em que vivia com os
antigos, restaurado no Ouricuri, protege e dá força ao índio para continuar a seguir com as
tradições por mais que o mundo lá fora pareça lutar contra.
Chegamos finalmente a jurema. A jurema usada pelos Kariri-Xocó é a branca ou
a vermelha (ou roxa). Não se usa a preta para nada, “a preta tem uma força descomunal,
agente tem ela como perigosa. Ela pode até dar destruição”. A jurema preta normalmente
está associada a trabalhos para o mal, “a preta pra quem usa e sabe pra ofensa é muito forte.
A preta faz o mesmo efeito que a maconha, uma droga”. Mas a droga aí não é entendida por
sua toxidade, “não toma que nem a droga, é pela parte espiritual. Não atrai espírito bom, só
mau espírito. A outra (a jurema branca) só atrai o bom, essa é mais poderosa, porque o bom
supera o mau. A preta não se controla”. Parece que a maconha, (cannabis sativa)27 tal como

26
Sonsé foi inquerido ao pajé por indicação de Mota (1996).
27
Uma visão diferente da cannabis sativa é expressa pelo pajé Karapotó (ver adiante neste capítulo).

43
a jurema preta atrai espíritos maus, é sobre o descontrole que estes espíritos maus fazem
nos homens que as ingerem que seu Júlio fala. Para ela a jurema preta é dona de uma força
descomunal, que agindo sobre o homem o “endoida” e leva este a ter contato com o lado
escuro da vida, o lugar dos espíritos maus.
Existem vários tipos de jurema, a depender do clima da região. Na área Kariri-
Xocó apesar de existiram juremas pretas, a predominância é de brancas ou vermelhas. Mas
não é só uma questão do clima que dá a característica da força da planta. Seu Júlio faz
questão de deixar claro que a força da jurema vem da tribo, “o poder que eu chamo tem de
ser daqui, é essa a diferença que existe”. Não importa portanto o tipo de jurema que dá na
região ou o lugar da onde a jurema veio, o que é relevante é a força que o pajé traz pra
jurema, e essa força é da origem da tribo, do conhecimento dos antigos e da proteção dos
mestres da jurema. É preciso saber chamar o poder dela, fazer o preparo original, pra
chamar as forças mais fortes. Faz-se a jurema pura, sem misturar com nada. Do mesmo
modo como narrado para os grupos anteriores, a casca da raiz é retirada (todas as linhas pra
retirar a jurema, para o preparo e para se abrir e fechar o trabalho, fazem parte essencial do
segredo e não são nem comentadas), espremida junto com água pura e depois de coada está
pronta.
A jurema dá conhecimento. A jurema ensina. A jurema é uma grande
professora. Através do uso da bebida jurema, os Kariri-Xocó tem uma experiência direta
com o invisível. A parte oculta da realidade se apresenta em toda sua grandeza sobre
humana. Permitindo a quem a usa desfrutar das sensações singularíssimas que penetram a
consciência fazendo-a tornar-se parte de um mundo muito maior que o reconhecido
normalmente. Este mundo que se apresenta permite que a leitura da realidade cotidiana seja
interpretada à luz das experiências extáticas que Sonsé dirige em viva voz àquele que aceita
e confia nos ensinamentos promovidos pela mudança de estado de consciência. Quando a
jurema diz é preciso ouvi-la com atenção. Só se ouve a voz que vem de Sonsé se o coração
estiver aberto, “tudo carece de amor, amor e fé, naquele que tem amor e fé ela dá mais”. A
jurema traz Sonsé, a jurema fala, mas pra quem confia, quem acredita que ela fala pela luz
que trás, é preciso procurar por esta luz. A jurema tem um caminho, um segredo. “Tem
muito conhecimento dela que ela a nem todo mundo dá. Depende da pessoa, tem pessoa
que ela dá conhecimento mais forte do que a outro”.

44
As visões são narradas apenas pelo pajé, ele parece ser o responsável pelo
conhecimento do mundo invisível. Foi ele que trabalhou a sensibilidade a ponto de
conseguir abrir o caminho para Sonsé ser ouvido através da jurema. É preciso ser
doutrinado, ensinado. O papel do pajé seria assim reconhecido como aquele do xamã28. É o
pajé que viajará para outros mundos e conhecerá outras realidades. É ele o desbravador, o
corajoso e o estudioso, aquele que teve paciência para aprender29. Ele é o curador, ele sabe
fazer a jurema curar, ele a ouve, lhe invoca as forças, sabe seus mistérios. O pajé sabe onde
estão seus filhos da tribo, ele vê pelo invisível, viaja através dele a São Paulo, Rio de
Janeiro, onde quer que sua atenção e proteção se façam necessários30. “Nem todos tem o
poder de ver. Pra ter o direito de ver tem de se concentrar, fazer dieta, ter limites, tem que
se preparar para poder rezar”.
Seu Júlio Suíra cura usando a jurema branca. Faz trabalhos em sua residência
atendendo às pessoas da tribo, ou de fora dela, incluindo aí índios de outras etnias como
também população não índia, os regionais. O pajé Júlio Suíra é muito procurado para este
tipo de trabalho. Tomando a jurema branca ou dando àquele que dela necessita, seu Júlio
viaja pelo invisível à procura do mal que prejudica seu consulente. A jurema mostra o mau
e ajuda a curar. “A jurema tem diversos espíritos que ela domina, através dela ela
encaminha os mensageiros, os espíritos pra cura”. Para que a jurema cure antes de tudo é
preciso ter fé. Acreditar que ela possa curar é o primeiro passo, “depende da pessoa pedir e
ter fé, é um merecimento. É pedir uma coisa tendo certeza que vai conseguir”. Faz-se a
cura a distância também, o mensageiro da planta “toma o seu lugar aqui e vai levar a cura
pra você lá. É dela espiritualmente”, o pajé consegue encaminhar um mensageiro da planta
até a pessoa necessitada, se a pessoa pedir, é claro, há sempre a intenção de curar, e há o
querer. “Eu consigo ver a pessoa lá curada. Quando tomo a jurema, eu vejo”.
Toda erva é poderosa. Toda planta e todo animal tem mistério, tem poder. É
preciso conhecê-lo, saber usá-lo, diz Júlio Suíra. A jurema é a mais poderosa de todas. Nos
trabalhos coletivos no Ouricuri a jurema usada normalmente é a vermelha. São rituais

28
É por isso que no texto de Mota (1996) se dá ênfase à categoria xamã para o pajé Francisco Suíra. Eliade
(1998) também conceitua o xamã como aquele que “viaja”, Langdon (1996) também acentua o mesmo
aspecto.
29
O pajé Júlio Suíra foi um importante jogador de futebol na região, com o tempo se afastou da profissão para
substituir o pai. Seu Júlio afirma que no começo relutou a assumir esta responsabilidade, mas que isto não
passa por uma questão de escolha, nasce-se destinado a ela.
30
Conferir Mota (1996) para o mesmo sobre seu pai, Francisco Suíra.

45
secretos, fechados à curiosidade do branco, inclusive deste curioso que escreve. Não se
sabe exatamente o que se passa, mas o mais provável é que um toré com toma de jurema
seja realizado à noite, havendo incorporações de encantos da mata e dos antigos. Conselhos
de Sonsé e conhecimento da invisível são pra poucos, mas a legitimidade destas viagens é
auferida pela confiança do grupo nos ensinamentos colhidos pelo pajé durante estas
viagens, e quem toma da jurema sabe quão longe ela pode levar.
Outros tipos de planta são usados nestes trabalhos de Ouricuri. São
extremamente secretos e quase ninguém ousa falar delas. Mota (1996:283) dá a indicação
de uma bebida chamada Kraunan, mas não dá detalhes sobre uso ou de que planta se trata.
Seu Júlio desconversou o quanto pode e não deu nenhuma atenção à pergunta, e quando
finalmente resolveu falar, disse que era “somente uma planta que a gente usa”. Em
conversas informais com índios locais estes riam a esta pergunta sobre Kraunan,
conseguindo por resposta de um deles apenas a frase “é o nome de uma pessoa”. Foi numa
parte de nossa conversa não gravada com o índio Tekainã31 que conseguimos saber que
Kraunan é uma bebida feita com quase todas as partes do vegetal conhecido popularmente
como gravatazinho. Segundo o mesmo Tekainã, gravatazinho provoca sensações
semelhantes a da jurema porém é bem mais fraco. Devem existir muitas outras plantas não
nomeadas para nós e que são usadas nos trabalhos do grupo. Este sigilo é compreensível na
medida em que preservando um conhecimento deste tipo, o grupo não só se resguarda dos

31
Tekainã é um índio da etnia Kariri-Xocó que promove no Rio de Janeiro, São Paulo e em outras capitais
brasileiras workshops sobre as tradições de seu povo, normalmente todos que participam destes eventos tem
como principal motivação a oportunidade de participar de um toré e tomar a jurema feita pelos índios.
Tekainã é mestre de toré, presidente do “Instituto Txhidjio de cultura e desenvolvimento Kariri-Xocó”, uma
ong. Fundada por seu pai e que recebe o nome deste. É membro respeitado na área e acredita ser considerado
por todos como um “índio rebelde”.
O toré nas grandes cidades “é feito como se fosse um ritual. Só que o processo dela (da jurema) é só
dos índios. Você já recebe pronto, as pessoas só bebem. Agente ensina a ter reverencia com a jurema”. Para
Tekainã o segredo da jurema, o fundamental do segredo para os índios, passa pelo controle do seu feitio, pelo
saber manipular as forças que ela pode trazer, faze-la forte é saber chamar os mestres dela. É por isso que
Tekainã assistindo a um ritual no Rio de Janeiro, realizado por Philippe Bandeira na sua Arca da Montanha
Azul (ver adiante cap.3), afirmou “se for fazer feito o Philippe no Rio, ele não alcança nada. O Philippe entrou
com reserva com a jurema. Ele não alcançou a dimensão que a jurema pode mandar. A jurema veio pronta
para ele, ninguém participa da preparação.” É o não conhecimento do modo de fazer a bebida a partir da
planta que mantém o segredo em segurança. Como Tekainã acredita que Philippe já recebe a jurema pronta (o
que não é bem assim como veremos, cap.3), afirma que este não tem acesso aos mistérios completos que a
planta pode trazer. Curioso é que o mesmo Tekainã afirmou que a jurema não lhe trazia visões, pois “isso é
muito difícil”, o que inversamente narra Philippe, como veremos (cap.3). O importante aqui é destacar que
estes trabalhos de toré fora da área indígena e do Ouricuri são bastante criticados pelas lideranças Kariri-
Xocó, pois temem que a super exposição da cultura religiosa do grupo traga mais prejuízos que benesses.

46
comentários pejorativos e preconceituosos da sociedade envolvente (com sua preocupação
em controlar e administrar o uso plantas psicoativas), como também insere entre o curioso
branco e a cultura índia uma barreira que dispondo destes bens culturais do lado do índio,
instaura uma mudança de hierarquia na qual o saber é uma qualidade do nativo tributário do
conhecimento ancestral.
Compreende-se que os Kariri-Xocó guardem segredo sobre suas práticas, seus
rituais. Uma população indígena como esta teve muita experiência com a sociedade
nacional. Tendo perdido as suas terras, morando por tanto tempo na rua dos Caboclos na
cidade de Porto Real do Colégio, esta população sabe muito bem que preservar a cultura
em grande parte começa por envolve-la em um segredo. O acesso aos bens culturais de
populações estigmatizadas é um meio de domina-las, a história da colonização destas terras
brasileiras já deu muita lição neste sentido. Os Kariri-Xocó, diferentemente dos grupos
citados anteriormente, são uma população basicamente urbana. Apesar de viverem numa
área própria, esta é mais uma extensão
de Porto Real do Colégio do que uma
área silvestre, ou melhor puramente
camponesa. Foi a manutenção da área
Ouricuri (como mata pura, virgem) que
os manteve unidos por tanto tempo.
Eles sabem que quando falam do
sagrado estão narrando sua própria
odisséia de sobrevivência, e que para se viver com dignidade a primeira coisa a fazer é
manter sua identidade indígena. Eles não teriam porque admitir ao branco o acesso ao
conhecimento que por tanto tempo a sociedade nacional tentou liquidar. Agora que estão
“por cima”, regozijemo-nos por eles terem conseguido chegar até aqui inventando sempre
novas tradições, “mantendo as tradições dos ancestrais” ainda tão vivas.

KARAPOTÓ
O grupo indígena Karapotó guarda muitas semelhanças com os Kariri-Xocó.
Tal como este os Karapotó mantém um lugar sagrado chamado de Ouricuri. Este seu
Ouricuri não tem porém nenhuma construção residencial, vão viver este período de retiro

47
espiritual junto aos Kariri-Xocó no Ouricuri destes. A forma de seu espaço sagrado
Ouricuri é simplesmente uma área de mata virgem um pouco afastada da área populacional
com um enorme terreiro aberto no centro. Para este grupo, narrado pelo pajé Auro32 e seu
irmão José, a área Ouricuri deve ser “livre de alma, totalmente afastada de gente,
principalmente branco”. Para o grupo, a área dos trabalhos sagrados deve estar limpa de
influencias mundanas, de preocupações externas ao sentido sagrado entregue ao lugar. Para
se ir ao Ouricuri deve-se “estar de alma limpa”.
No Ouricuri Karapotó não são aceitos brancos curiosos, do mesmo modo que
em Kariri-Xocó. São aceitos brancos convidados em ocasiões especiais. Aqui parece haver
maior abertura para não índios assistirem a representações ou até apresentações rituais. Os
brancos que se intrometem sem a permissão do grupo são “castigados por uma loucura que
dá, isso quando não morrem”, pois “coisa que não é pra você ver, você não pode ver,
acabou-se, você vai morrer naquilo”. São permitidas presenças de outras etnias como os
Kariri-Xocó, Kariri, Pankararu, Fulni-ô, Tingui-Botó e Xucuru-Kariri. Estas etnias têm
representantes na área e muitas delas foram fundamentais na retomada da área original do
grupo33. Ha uma pintura ritual mais marcada do que a “farda” Kariri-Xocó. Uma pintura
que cobre quase todo o corpo (o tórax é quase todo pintado, bem como os braços, pernas,
costas e rosto). As cores são significativas do estado de alma do grupo. Branco e preto são
as cores da paz, as cores para os trabalhos espirituais no Ouricuri. Preto e vermelho são as
cores da guerra, pra enfrentar o branco na conquista dos direitos do grupo.
Para os Karapotó, a tradição dos antepassados não foi perdida. É ela mantida
nos mesmos termos de antigamente. Manter estas tradições foi e é fundamental para a
permanência do grupo e sua identidade indígena. O branco vive querendo saber os segredos
dos índios. Para os Karapotó, manter os segredos de seus trabalhos rituais e da algumas
características de seu modo de vida é fundamental para preservar toda a comunidade da
ambição do branco. “Não podemos deixar o branco se aproximar de nossas crenças. Não
32
Curiosidade; o pajé Auro é um homem bastante novo (nos seus trinta e poucos anos de idade) que ocupa
um cargo normalmente entregue a homens ou mulheres mais velhos, parece, contudo ser bastante respeitado,
ele mesmo brinca com a pouca idade aliada a cargo tão importante.
33
A área indígena Karapotó se localiza próxima ao município de São Sebastião no estado de Alagoas,
nordeste brasileiro. Os Karapotó foram expulsos da área no século XIX, pelo Barão de Penedo. Um grupo
dirigiu-se para Porto Real do Colégio, junto aos Kariri-Xocó e outra parte ficou trabalhando nas fazendas da
região e morando no povoado de Terra Nova, vizinho á área atualmente demarcada. O início do movimento
de emergência étnica dos Karapotó é do começo da década de 1980 e as terras só foram demarcadas no
começo da década de 1990, graças as pressões e retomadas dos índios.

48
comemos a isca”. O problema do acesso ao conhecimento “ancestral” é importantíssimo
para este grupo.
O pajé Auro foi taxativo ao não nos dar a oportunidade de conhecer detalhes do
uso da jurema. Sobre a pergunta se a jurema era feita exatamente como os antigos faziam a
resposta foi bastante convincente, “a jurema é uma erva que nós temos, serve pra muita
coisa”. Não parecia disposto a dar muitas explicações. “Temos muitas coisas além da
jurema no trabalho espiritual”. Que tipo de coisas? - “Não posso dizer”. De maiores
informações sobre a jurema somente afirmou que usava a branca e a preta. Marcadamente a
branca para trabalhos de cura em atendimento individual, nos termos dos trabalhos feitos
por seu Júlio Suíra, pajé dos Kariri-Xocó. Incluindo aí atendimento à população regional.
Usa-se a jurema dos dois tipos citadas no trabalho de Ouricuri. Também aí será preservada
a saúde do grupo, tanto física quanto espiritual. E a jurema tem papel importantíssimo nesta
manutenção da saúde coletiva. Sua forma de ação porém também não pode ser revelada. A
jurema faz comunicar o índio com o Deus, com Tupã. A deidade é indicada pelo nome de
Tupã. A jurema seria a responsável por trazer a voz de Tupã. Toda a comunidade em
princípio seria engrandecida pela presença de Tupã ao tomar da jurema.
A jurema é misturada com muitas outras ervas, mas estas também estão vetadas
ao conhecimento dos não índios. Estas misturas também são indicadas como de
conhecimento ancestral do grupo. Sem ser questionado, mas tendo apontado para o fato, o
pajé Auro afirmou que o uso da maconha se fazia pelos antigos como forma de cura. “A
maconha é uma grande medicina”. No tempo dos antigos, a maconha seria usada para
realizar curas, tratamentos, “a maconha é uma erva muito forte para curar doença”. Ela não
permitiria conhecer o invisível, ou seja, não teria a carga sagrada que tem a jurema de fazer
levar ao mundo do invisível, seria apenas uma grande medicina34.
O uso da jurema entre os Karapotó ficará assim marcado por sua forte
necessidade de continuar sendo um segredo. As informações disponibilizadas dão apenas
34
A prática do Ouricuri parece ter sido disseminada para alguns grupos indígenas do nordeste a partir dos
Fulni-ô. Nos momentos de resgate étnico, muitos grupos se encontraram com lideranças Fulni-ô ou foram
conhecer as práticas rituais na própria área Fulni-ô. Há uma indicação de Carlos Estevão, apud Nascimento
(1994:106) e Andrade e Anthony (1999:109), sobre o uso da maconha pelos Fulni-ô nos rituais com jurema
em tempos antigos (o texto é de 1956). Talvez a recorrência em falar sobre a maconha, mesmo que com
diferentes pontos de vista, tanto em Kariri-Xocó quanto em Karapotó possa referendar a indicação feita por
Carlos Estevão, já que Kariri-Xocó e Karapotó criaram seu Ouricuri nos moldes Fulni-ô. Apesar de que
Nascimento (ibid) duvida muito de um uso antigo e muito menos moderno da maconha em Fulni-ô. Contudo
não poderia deixar de passar esta curiosidade em branco.

49
uma pequena idéia de seu uso. Mas deve-se conservar este relado sintético que é,
exatamente porque ele revela uma das características essenciais do falar sobre a jurema. A
plêiade de segredos que a envolve é um dos mistérios que a faz ser tão recorrente. Cada um
afirma participar de um mistério sobre a planta que poucos tem acesso. No trato com a
jurema, cada grupo desenvolve seus mistérios, suas não narrativas, o não falar primordial
da boa convivência com os segredos nunca revelados. Se algo gratificante conseguiu-se na
conversa com o jovem pajé Auro, foi no sentido de reafirmar que a jurema mantém com
aqueles que a usam a singularidade de propiciar tantos segredos quanto forem aqueles seus
corajosos desbravadores35.

35
Lanternari (1974:72-140) narra a construção do culto do Peyote – Lophophora Williamsii (Lem.) -
(existem nove alcalóides neste cacto, o principal deles é a mescalina) por populações indígenas do México e
dos Estados Unidos a partir da reivindicação dos direitos a terras a por uma política que respeite e preserve as
culturas indígenas. Tal como o processo de reermegências étnicas do nordeste brasileiro, o culto do Peyote foi
fundamental para a instauração de consciência de luta e da identidade indígena. Também nesta situação o
culto ao Peyote foi mantido cercado de segredos evitando assim a curiosidade destrutiva do branco. Para a
população consumidora do cacto Peyote, este significa o corpo (quando comido) e /ou o sangue (quando
bebido) de Cristo. Acredita-se que ao branco Deus deu a bíblia e Jesus, para o índio Ele deu o Peyote.
Construiu-se posteriormente por algumas populações índias um culto sincrético índio-cristão do Peyote que
deu origem a famosíssima Native American Church. A Igreja nativista norte-americana tem como regra do
culto religioso a consagração do Peyote como sacramento e na sua liturgia um sincretismo católico e indígena.

50
CAPÍTULO I I –
Os Juremeiros de Alhandra, a Umbanda e o Maracatu

“Já fiz cada coisa com a jurema. É porque é dela mesmo. Na jurema tem.”
Dona Biu em entrevista para este trabalho.

Neste capítulo pretende-se demonstrar a jurema dentro do contexto afro-


descendente, passando antes pelo movimento histórico-cultural que adquiriu o
conhecimento da jurema do meio indígena. Assim, será relatado o exemplo dos juremeiros
de Alhandra, local singular onde o culto da jurema passou da população indígena para a
regional, tendo assim se produzido uma diferenciação que se constituiu numa das mais
significativas expressões religiosas do nordeste brasileiro. O exemplo da umbanda demarca
bem o momento em que o culto da jurema também é adquirido por uma corrente religiosa
de cunho nacionalista. Por último o exemplo da jurema no maracatu rural de Pernambuco
onde parece que seu culto conseguiu unir mais uma vez um sincretismo singular, no qual o
chamado juremeiro, também é umbandista. Veremos tudo isso com mais calma daqui pra
frente.

A jurema em Alhandra
Memória

Maria das Dores da Silva Guimarães, conhecida Dona Dora ou Dorinha, mora
na localidade chamada de Acais (no Acais de baixo) no município de Alhandra, litoral sul
da Paraíba. Ela e sua irmã Sula moram juntas e são as descendentes mais diretas dos
primeiros juremeiros de Alhandra. Esta cidade ficou conhecida pelo número de pessoas que
faziam trabalhos com a jurema. Estes trabalhos ficaram conhecidos mais popularmente
como catimbó. A população de Alhandra encontrou enorme difusão de seus trabalhos a
partir de prodigiosa propaganda que se fez sobre a singularidade da produção religiosa da
região. O primeiro trabalho acadêmico sobre o assunto Vandezande (1975), possibilitou
que o modo religioso de ser em Alhandra pudesse ter uma expressão bem mais precisa.

51
Antes deste trabalho muitos outros abordaram o tema do catimbó36, sem contudo indicarem
Alhandra como produtora singular desta forma de culto religioso.
O catimbó é uma forma de expressão religiosa difundida em praticamente todo o
nordeste. Entende-se que este tipo de produção religiosa deva ser compreendida como uma
forma sistematizada de produção do sagrado. Sendo uma religião totalmente popular, sem
elaboração de hierarquias, códigos escritos e nem dirigentes responsáveis pela manutenção
das formas do culto, o catimbó se estendeu aparentemente37 de Alhandra para todo o
nordeste mantendo suas características iniciais bastante imune a mudanças. O que hoje
temos a partir do que nos fala Dona Dora é um retrato exemplar daquilo que nos narra
Cascudo (1937), Carline (1938) e Bastide (1945). Aparentemente a forma dos cultos não se
transformou de maneira drástica, manteve em seus aspectos gerais as qualidades que lhe
proporcionaram tanta atenção por parte de tantos estudiosos da cultura e religião populares.
Aqui, os chamados catimbozeiros serão nomeados como juremeiros, já que catimbó e
catimbozeiro são expressões pejorativas, e se distanciam dos juremeiros porque são termos
ligados à magia na umbanda38. Por isso, o nome como este tipo de trabalho mediúnico e
espiritual ficou conhecido, não é exatamente aquele usado por seus realizadores.
Dona Dora (que tem a idade de sessenta e quatro anos) é então uma informante
privilegiada. Foi seu esmero que conservou as linhas cantadas nos trabalhos, a memória
guardou a melodia e cadência das músicas. Os objetos de uso nas sessões estão todos
guardados num quarto da casa. Ajudava a mãe nos serviços religiosos. Sua irmã Sula estava
sendo preparada para assumir as funções da mãe no serviço religioso, quando esta morreu
antes de conseguir passa à filha tudo o que sabia, esta (a mãe) foi a última a realizar
trabalho no Acais. Hoje no local não se realizam mais trabalhos com jurema, e em
Alhandra, os antigos juremeiros e seus cultos particularíssimos também não são mais
encontrados. O culto singular que se fazia com a jurema no Acais/Alhandra parece pois,
infelizmente hoje ser apenas uma rigorosa consagração de sonhos na memória. Tudo que se
narra a seguir foi retirado de entrevista que realizei com dona Dora

36
Como por exemplo: Cascudo (1937), Carline (1938), Bastide (1945).
37
Digo aparentemente porque Alhandra parece ser o único lugar em que se tem registro documental sobre a
passagem da tradição religiosa indígena para o domínio sincrético da população branca regional. Conferir
Vandezande (1975).
38
Agradeço aqui a indicação deste ponto ao colega Estêvão Palitot.

52
Dona Dora é neta da segunda Maria do Acais39. A primeira Maria do Acais
aprendeu tudo com Mestre Inácio, regente dos índios de Alhandra. Mestre Inácio
Gonçalves de Barros era irmão da primeira Maria do Acais e pai da segunda Maria do
Acais. Segundo conta dona Dora, já partindo daquilo narrado por sua avó por parte de mãe,
dona Cassemira, Mestre Inácio viveu “no outro século” (lê-se séc. XIX). Era “o pajé dos
índios, fazia a festa dele em frente a Igreja (a Igreja matriz de Alhandra, construída em
1749), no cruzeiro que ainda existe”. A primeira Maria do Acais veio para a localidade de
seu codinome em 1910, viveu até os 110 anos e morreu em 1937. A segunda Maria do
Acais veio de Recife onde morava para a localidade do Acais em 1916. Foi com seu
esforço que se construiu em 1932 a pequena igreja do Acais.
A feitura da jurema guarda inúmeras semelhanças com o dos índios. Retirava-se
a casca da raiz da jurema depois de “salvar os mestres”, ou seja, cantava-se a linha para o
mestre daquela jurema que se iria usar40. Normalmente também ocorria alguma
manifestação mediúnica41. Trazia para casa as cascas da raiz somente de cinco da tarde,
quando o sol se fazia mais ameno. Espremia-se com força as casca da raiz junto com água,
até formar um suco. Coava-se com um pano fino. Estando pronta a jurema descansava e
normalmente era guardada, engarrafada42.
O modo como era realizado o trabalho era basicamente do mesmo modo como o
feito pelos índios, só que com modificações sutis que vão dando os contornos próprios dos
trabalhos do Acais. Tinha-se uma princesa, que era uma bacia de porcelana onde se
colocava a bebida jurema. Os copos para servir a bebida eram chamados de príncipes, mas

39
A presença indígena em Alhandra data desde o séc. XVI. Mestre Inácio parece ter sido o último pajé da
população indígena que ali vivia (Potiguaras misturados a Tabajaras). A localidade principal onde viviam
estes era chamada de Estiva, até recentemente propriedade de D. Dora. Maria do Acais (a primeira) foi a mais
conhecida Mestra de jurema do nordeste. Após contato intermitente, parece que a população indígena original
desmembrou os laços identitários que a distinguiam dos regionais, passando assim a conviver sem distinção
étnica com a população local.
40
Ainda hoje no Acais se encontram três jurema plantadas, cada uma tem o nome de um mestre, “Mestre
Desembraçador” (Mestre Desembaraçador) e “o Bom Menino” , o nome da terceira não se registrou.
41
A manifestação mediúnica durante a coleta da jurema não foi narrada ou registrada por nós em nenhuma
área indígena em que estivemos. Também em nenhum texto sobre o assunto.
42
Esta jurema guardada em garrafas durava até três anos, isso se fossem mantidas certas precauções. Um
homem que tivesse tido relações sexuais na véspera não podia tocar na jurema, se isso ocorresse “estragava,
cheirava que nem carniça”. Observe que para as áreas indígenas que registramos a jurema deve ser usada
apenas para aquele trabalho, não se guarda jurema de um trabalho para usa-lo em outro; apesar de se
registrarem exceções.

53
também se servia a bebida em cuias de coco. Usavam-se cachimbos e maracás43.
Antigamente o trabalho era feito num casebre de barro coberto com palha, “feito os índios”.
Colocava-se uma toalha branca no chão. Todos então faziam o ritual em volta da toalha
posta no chão. A segunda Maria do Acais, avó de dona Dora foi que retirou a toalha do
chão e a colocou sobre uma mesa grande de madeira.
Abria-se o trabalho com linhas específicas para isso “nas horas de Deus amém, e
nas horas de Deus amém”. Cantava-se depois alguma linha de mestre e tomava-se a jurema,
“era uma obrigação tomar a jurema no início do trabalho”. Partia-se então para o toque dos
maracás e a dança em volta da mesa partindo da direita para a esquerda. Ocorriam
possessões, “manifestações”. É interessante notar o fato de que as linhas cantadas por dona
Dora têm uma melodia e uma cadencia muitos mais leves e tranqüilas do que aquelas
levadas pelos índios. A cadencia corre mais devagar e a melodia é mais pausada, dando
tempo para que cada palavra assuma papel significativo. Não tem por isso a velocidade das
frases nos índios, muitas vezes cantadas tão velozmente que não conseguimos
compreender. Pode-se marcar aqui um primeiro movimento de individualização do culto, já
que parece ser possível tornar as canções das linhas mais tranqüilas à medida que o
dirigente do trabalho assume o puxar das linhas sendo acompanhando por aqueles que lhe
são submetidos, muitos discípulos do mestre. Colocando a atenção de todos naquilo que
dizia, cantava, o mestre de jurema produziu um artifício que lhe concedia assim uma
superioridade durante e, conseqüentemente, após o culto.
Trabalhava-se com mestres desde o Mestre Inácio, regente dos índios: “Mestre
Inácio já trabalhava com mestres. Ele era o pajé dos índios”. Os mestres que “baixavam”
são considerados espíritos de pessoas que em vida trabalhavam com a jurema e após
morrerem continuam trabalhando na linha da jurema, através do culto mediúnico. Parece
que já existiam mestres sendo usados nos trabalhos indígenas. Com o contato e a
reelaboração do culto indígena, começam a aparecer nos trabalhos dos juremeiros brancos
figuras de mestres como a de Zé Pilintra. Junto a este a inclusão da cachaça, da bebida

43
Estão preservados na casa de dona Dora os objetos rituais pertencentes ainda ao tempo das duas Marias do
Acais. São: uma princesa, dois príncipes, dois ou três cachimbos e um belíssimo maracá todo trabalhado
artesanalmente e que possui sementes de jurema como guizo. A casa pobre usada nos rituais antigos também
continua de pé no terreno do Acais e, reformada, hoje abriga uma família de rendeiros.

54
alcoólica até então, e ainda hoje, ausente da maioria dos trabalhos indígenas com jurema.
Para muitos índios, aonde tem jurema não tem cachaça.
Mestres de jurema também podem ser chamados àqueles que trabalham com a
jurema neste plano e tem a destreza necessária para serem reconhecidos como mestres no
ofício. Assim é que Mestre Inácio, regente dos índios já era em vida reconhecido como
mestre. Após morrer, este continuou trabalhando “no espiritual” tendo, portanto continuado
a ser reconhecido como um mestre. Um dos mestres mais conhecidos no nordeste
brasileiro, que está presente em quase todos os trabalhos de jurema indígena, de “catimbó”
a umbanda, seja nas linhas que se cantam pra ele, seja na sua própria forma de “baixar” e
atuar é o Mestre Carlos. Mestre Carlos tem uma história singular que muda de poucos
contornos a depender do contexto onde ela é narrada44, ele foi o único mestre que
“aprendeu sem ser ensinado”.45
Nos trabalhos que dona Dora participava, Mestre Carlos estava sempre presente.
Para ele, fazia-se necessário um pouco de cachaça. Para o Mestre Zé Pilintra, a cachaça era
obrigatória e em quantidade. Quando este baixava todos tinham que tomar um pouco dela.
A cachaça neste contexto só era servida quando um mestre seu apreciador baixava no
trabalho, aí todos tomavam um pouco. Cachaça, porém nunca era misturada com a jurema,
sendo tomadas em separado, o que na umbanda será completamente diferente como
veremos adiante (neste capítulo). Os índios ainda hoje trabalham com Mestre Carlos,
principalmente em Atikum46, mas para eles não se tem de modo algum a presença do
álcool. Lembrando o que foi narrado no capítulo anterior, quando Zé Pilintra baixou no

44
A versão mais conhecida e mais simples é aquela que narra ter sido Mestre Carlos filho de um grande
mestre de jurema. Curioso, jogador, beberrão e malandro que era, esperou um dia em que o pai estava fora e
tomou os materiais de trabalho do pai. Abriu um trabalho num pé de jurema e não soube fecha-lo. Três dias
passou em agonia sob a jurema quando veio a falecer. Passou imediatamente a trabalhar do além “baixando”
nas mesas de jurema. Foi assim tornado mestre sem ser ensinado.
45
Cascudo (1937:103) cita Mestre Carlos como filho de Mestre Inácio, “feiticeiro célebre”. Nisto é seguido
por Ribeiro (1992:26) e Bastide (s/d::251). Dona Dora afirmou de forma categórica que tal parentesco não é
real.
46
Há uma linha para Mestre Carlos cantada em Atikum que diz: “Ô Mestre Carlos da jurema, não ta vendo eu
lhe chamar/ passou três dias sem fala debaixo do juremal/da raiz eu faço o guia, da casca faço o anjucá/a folha
boto no guia pra Mestre Carlos fumar.”

55
trabalho Atikum (Gentio de seu Augusto) foi-lhe oferecida jurema com a qual deveu-se
uma resposta zangada e após cantar uma linha sua imediatamente se retirou do trabalho47.
Deve-se notar que o uso de bebida alcoólica seja tão significativo nos trabalhos
que os juremeiros em Alhandra começam a fazer. Talvez este seja o elemento inovador que
mais tenha dado as características de influencia branca nos trabalhos com jurema até então
de cunho indígena. Junto a presença da cachaça, os encantados parecem ter saído do hall de
entidades juremeiras a partir desta influencia urbana nos trabalhos com jurema.
Vandezande (1975) já apontava o fato de que a individualização do culto da jurema no
“catimbó” se devia a perda do referencial étnico e da urbanização que colocou este grupo
indígena juremeiro em contexto bastante diverso daquele vivido em uma área separada de
população branca48. Para Bastide (1945) o nascimento do “catimbó” é um processo de
individualização, afastando os aspectos de culto coletivo da jurema para cultos fechados e
com preocupação econômica, familiar, sentimental e de saúde individual, não mais coletiva
como fora com os índios. Tudo isso seria motivado então pelo enorme desenvolvimento
urbano e dissolução dos laços étnicos que ligavam a população indígena.
A relação com o econômico também foi citada por dona Dora. Faziam-se
trabalhos para arranjar emprego, trazer de volta ou conquistar algum amor, tirar espírito
mal, curar doenças, conseguir sucesso em alguma tarefa, basicamente os trabalhos
assumiam o papel de dar conta daquilo que prejudicava ou entristecia a vida de alguém.
Cobrava-se então daqueles que procuravam este tipo de serviço. A consulta era realizada
com o mestre ou a mestre de jurema, combinava-se o preço e depois de pago realizava-se o
trabalho. Fazia-se banhos, “limpeza” com o suco das folhas e do pau da jurema, além do
trabalho de mesa. Nisto também se identificam os trabalhos feitos para “as esquerdas”.
Estes tipos de trabalhos são aqueles realizados para fazer o mal. Segundo dona Dora, este
tipo de trabalho realizava-se no Acais mais como resposta do que provocação, “quem
manda carta quer resposta”. Assim parece que mais imediatamente as esquerdas eram
47
Grünewald (2002:115) também indica que a presença da cachaça, o “caxixi”, usada por Zé Pilintra em
alguns trabalhos em Atikum é vista pela maioria do grupo como uma coisa negativa, “uma parte civilizada”
não indígena.
48
Nascimento (1994) explica que para os Kiriri (população indígena do nordeste brasileiro), a produção dos
trabalhos espirituais particulares, cujo aspecto se identifica com este que narramos, tiveram que ser aos
poucos eliminados como forma de conceder à área que reivindicava reconhecimento étnico indígena uma
possibilidade de dar ao Toré a expressão máxima e substantiva do cunho espiritual de crença da coletividade.
Assim, o trabalho de particular teve que se adaptar ao trabalho de toré quando da reemergencia do ritual toré
como símbolo diacrítico interno e externo. Isto ocorreu, destaca o autor não sem profundos conflitos.

56
acionadas quando um trabalho era feito por alguém mal intencionado querendo prejudicar
um outro, nisto consistia de uma resposta via trabalho espiritual de mesma altura e sentido,
ou seja, o mal com o mal: “Se pisar nos meus calo eu fazia a mesma coisa”.
Os trabalhos no Acais foram nomeados por dona Dora como de “mesa branca”.
Catimbó seria a feitiçaria na umbanda, “catimbó é feitiço, aqui era diferente”. Não se fazia
então nada como o catimbó, que é “do lado esquerdo só”. Para dona Dora, os trabalhos no
Acais eram preponderantemente para o bem, sendo as esquerdas usadas na especificidade
narrada acima. Procurava-se homenagear os índios, mas não se dançava o toré, faziam-se
trabalhos somente de mestres. Tinha-se consciência muito clara da total particularidade
indígena original dos cultos ali realizados, mas concomitantemente é óbvio que houve uma
transformação do contexto religioso original. Apresenta-se assim uma forma totalmente
nova de culto religioso que homenageando os ancestrais da crença, não manteve contudo
inalterada a forma primeira. É uma espécie de culto na forma indígena original só que um
pouco mais requintada. Com modificações suficientes para dar como evidente que se
passou a fazer algo novo, próprio e original.
Detalhe curioso é que este tipo de trabalho religioso não tem, segundo dona
Dora, uma identificação precisa além daquela de trabalho. Como catimbó está relacionado
à feitiçaria na umbanda, para ela sempre se chamou aquilo que faziam simplesmente de
trabalho. O curioso ainda se faz pelo sincretismo de crenças que animavam o Acais. Já foi
dito que a segunda Maria do Acais, avó de dona Dora, havia construído uma pequena igreja
na propriedade em 1932, onde hoje o padre de Alhandra faz missa mensalmente. Sempre se
separou muito bem os lugares sagrados. Não se fala de caboclo ou mestre na Igreja. Não se
faz trabalho na igreja. Neste lugar apenas os domínios do catolicismo oficial se fazem
presentes. Na igreja se canta e se reza para os santos católicos. As imagens são dos santos
da igreja e para lá só se dirige pensando neles. O trabalho tem contexto e hora própria para
ser realizado, e todos sabem onde, como e quando ela tem o privilégio das atenções. Tem-
se assim um típico exemplo da flexibilidade de culto e crença que no nordeste brasileiro
assume característica tão peculiar.
Talvez a questão mais intrigante seja aquela que nos coloca de volta aos
mistérios da jurema. Dona Dora diz que segundo sua avó materna, a primeira Maria do
Acais “colocava qualquer pessoa no encanto”. Essas pessoas neste estado ficavam “uma

57
hora, uma hora e meia no encanto, depois ela cantava a linha e trazia a pessoa de volta”.
Estar no encanto assim era entrar nos mistérios da jurema, ver o mundo maravilhoso que a
jurema mostra, era ver o paraíso celeste. Maria do Acais usava a jurema pra botar no
encanto durante o trabalho. Tomava-se uma xícara pequena “porque a jurema é muito
forte”. Para aqueles que duvidavam da força da jurema, Maria do Acais desafiava pra ver se
não botava o descrente no encanto, “e ela sempre conseguia”. Também conseguia colocar
os mais fiéis no encanto sem nem tocar na jurema, só pela força da planta que já se tinha
conhecimento. A jurema ensinara Maria do Acais o caminho do encanto, do céu. Bastava
chamar as forças e ter fé. Mas a consagração do rito devia ter jurema como homenagem a
ela, então o comum era sempre tomá-la, a jurema não podia nunca ser coadjuvante, ela era
a grande mestra. Por isso sempre se comungava com a jurema e cada um tomava um pouco,
e pela força que Maria do Acais aprendera a trazer, podia-se visitar o mundo invisível.
Sentado de olhos fechados e circunspeto, a pessoa que estava no encanto49
“parecia que tava dormindo”. Dizia-se que era “uma coisa muito bonita. Não conseguia
nem ver filme no cinema. Via aquelas coisas bonitas, paisagens, ficava assustada, era as
paisagens da jurema”50. A jurema assim deixava aberta para o individuo as portas do céu,
deixando à mostra as lindas paisagens do paraíso. Quando um filme de cinema exibia lindas
paisagens, Maria do Acais se assustava sentindo que a força da jurema lhe poderia pegar no
meio da sessão cinematográfica. Deixou até de ver estas coisas, pois ver tudo isso na
jurema já estava de bom tamanho.
Esta cultura religiosa da jurema, tal com narrado por dona Dora, começou a
perdeu estas características à medida que a umbanda estendia seu domínio sobre os rituais
afro-indígenas51. A constituição da Federação Brasileira da Umbanda permitiu que o culto
umbandista, como religião nacional que se proclamava, começasse a incluir todas as
práticas religiosas nacionais não índias e não brancas, ou de cunho popular negro ou
caboclo dentro de seu domínio religioso. Como também a polícia reprimia o culto

49
Ribeiro (1992:08) dá a seguinte descrição: O presidente, o acólito e demais membros do Toré, do sexo
masculino, afirmam não manter contato sexual com mulher nos dias que antecedem às reuniões. Isto deve ser
observado, afirma, para poder pegar o encanto. Também, nesse dia, não se pode beber bebida alcoólica, e é
preciso tomar banho. (grifo meu).
50
Também Bastide (1945:248) escreve: A jurema faz morrer para a vida presente, ela introduz o indivíduo
num mundo alucinatório, que se desenrola como um filme de cinema e que, assim, faz os crentes penetrarem
no reino misterioso dos “encantados”. (grifo meu).
51
Para detalhes desta parte, ver Vandezande (1975).

58
juremeiro52, muitos juremistas passaram a pagar como associados da Federação
Umbandista, como forma de escapar às repressões policiais. Neste desenvolvimento, os
antigos juremeiros foram aos poucos incorporando práticas rituais da umbanda, ao mesmo
tempo que a umbanda trazia para o seu hall de entidades a figura sagrada da jurema.
Metamorfoseando o culto juremista até chegar a produção cultural afro-indígena de culto à
jurema umbandista.
Foi neste movimento que dona Dora recentemente vendeu o último pedaço que
sobrara da Estiva para a federação da umbanda. Deixando lá plantadas as juremas que por
tanto tempo foram as principais plantas da cultura religiosa local. Trouxe porém delas
mudas que hoje são as três juremas que tem plantado no Acais. E que por desses fatores da
vida, são as únicas que ela tem acesso, já que aquelas que estavam na Estiva foram então
cortadas. Ainda hoje dona Dra tem muitas reservas a umbanda ou “coisas de xangô”. Para
ela, homenagear os índios nos seus trabalhos era a regra, mas nunca negros, já que estes
tinham sua própria religião, o xangô. Quando lhe roubaram da igreja uma “santa
belíssima”, uma “bela toalha bordada” e alguns castiçais, ela imaginou que só poderia ter
sido coisa do “povo de xangô, pra botar no peji”. Talvez a desconfiança de dona Dora seja
real, mas para nós o que ela mais deixa claro é que o trabalho que se fazia no Acais não era
de índio e muito menos de negro, ele era o exemplo máximo da criatividade religiosa da
população que nasceu destes vários encontros culturais. Foi único e original, foi mais um
exemplo dos incríveis movimentos da sensibilidade destes tão variados sujeitos da
jurema53.

52
Ver em Cascudo (1937:89) nota sobre repressão aos juremeiros. Também aqui no cap. um.
53
Sangirardi (1983:123) dá indicação e compara o uso da jurema no Brasil com o do San Pedro (Trichocereus
pachanoi), que tem alta concentração de mescalina, por populações brancas descendentes dos indígenas das
regiões do Equador, norte do Peru e da Bolívia. Tal como parece ter ocorrido com a jurema no nordeste
brasileiro, ali o culto indígena da planta sofreu a influencia cristã e passou a fazer parte de um culto específico
destas populações, culto esse que marca uma distinvidade com os cultos católicos e com os próprios cultos
indígenas. Assemelha-se consideravelmente com o “catimbó” narrado acima. Também neste “catimbó dos
Andes” o brujo ou curandeiro também é chamado de maestro (mestre), nos dois casos se trabalha com a
mesa. O mal é simbolizado como a esquerda, o bem como direita. As sessões de cura são realizadas à noite,
ao ar livre, tendo a mesa como centro do trabalho. A sessão consiste em orações, invocações e cantos ou
tarjos (como as linhas do catimbó), que são ritmados pelo “chocalho xamanístico” tal como os maracás
daqui.

59
A jurema na umbanda
Terreiro de Umbanda Oxum Talademi
Na umbanda há uma representação sagrada da jurema muito importante. A
jurema é a parte na umbanda onde estão incluídas inúmeras entidades que trabalham nos
terreiros. O exemplo de casa de culto que foi escolhido, pretende dar uma amostra de como
a umbanda reverencia a jurema e de como esta é representada neste contexto religioso. Foi
feita entrevista no terreiro de umbanda Oxum Talademi (localizado na cidade de Campina
Grande- PB) com a “dona”, a mãe de santo do terreiro Roberta. Parte-se desta entrevista
para descrever como a jurema é representada nesta casa de culto.
“A jurema é o pau sagrado onde Jesus descansou, é nesse pau que agente
54
envulta espíritos”. Jesus teria se encostado ferido num pé de jurema quando fugia da
perseguição romana, seu sangue molhou o pé da árvore. A jurema teria dado a Cristo a
sombra e proteção necessária àquela hora, o sangue deste, ao escorrer e penetrar na raiz da
jurema dotou a planta do poder sagrado de comunhão com Deus e seu
Filho. A árvore teria abrigado ferido o Cristo, o sangue deste correu-lhe as entranhas
tornando-a sagrada. É para esta árvore que se deve “envultar” os espíritos que trabalharão
na casa. Envultar aqui significa dar ao espírito um lugar na casa, no altar. Espaço só dele, o
espírito passa a coabitar no terreiro, passa a ter um lugar no espaço sagrado do altar. Cada
tronco de jurema exposto no altar pertence a apenas um espírito e os pertences deste
espírito, principalmente seu Obé, a faca ritual da entidade (ver adiante), ficam junto a este
tronco. Foi a árvore jurema que protegeu Cristo, é a jurema que abriga os espíritos
protetores da casa.
Existem no espaço do terreiro de umbanda dois locais sagrados principais. O
primeiro é o da jurema, mais inferior na hierarquia evolutiva da espiritualidade do que o
segundo, o local dos santos. O altar para a jurema é exposto na entrada do terreiro,
enquanto o segundo, dos Santos, encontra-se numa sala anexa ao terreiro sempre com a
porta fechada. No altar da jurema cultuam-se os Mestres, os Caboclos e os Canindé, as
crianças índias. Estes de frente para o público, no espaço principal do altar. Neste altar
ainda, só que colocado do lado direito de quem olha de frente, encontra-se altar baixo

54
Às vezes se diz envultar e às vezes embutar, usa-se aqui aquela expressão que ocorreu a maioria da vezes,
envultar.

60
(altura de três degraus) dedicado aos pretos (as)-velhos (as). E do lado esquerdo de quem
olha de frente, encontra-se altar embutido meio encoberto por pequena cortina avermelhada
dedicado às pombas-gira.
O altar da jurema altar consiste de vários pequenos troncos de jurema (as
tronqueiras). Estas tronqueiras podem ser também de outras árvores sagradas como de
angico ou jucá (no momento da entrevista, só uma das cerca de dez tronqueiras não era de
jurema, e sim de angico). Cada tronco descansa em pé apoiado numa pequena base de barro
ou um pote deste material. Além de flores e velas, têm-se os obés, as facas rituais fincadas
uma em cada tronco, uma de cada entidade. No centro do altar está a tronqueira da entidade
que a mãe de santo da casa, Roberta, recebe, chama-se Zé da Pinga, e é uma tronqueira de
jurema. Apesar de a jurema ser a principal tronqueira nos trabalhos, as outras têm quase a
mesma posição, o que importa “é a força da entidade da tronqueira”.
Na parte dedicada aos pretos (as)-velhos (as) também existe quase a mesma
ornamentação. As tronqueiras são dispostas do mesmo jeito que para a parte principal do
altar e tem imagens de pretos (as)-velhos (as) todos trabalhando algemados. Há objetos que
representam estes pretos (as)-velhos (as), principalmente enfatizando a escravidão que
sofreram. Na parte das pombas-gira existe uma ornamentação mais rica, tentando dar a este
espaço uma característica mais nobre. Não existe tronqueira neste espaço. A cor
predominante é o vermelho e nela estão os objetos usados pelas pombas-gira. A parte dos
santos é fechada por uma porta como se disse acima. Dentro deste local estão imagens de
santos católicos e sincréticos, muitas imagens de Jesus principalmente. É todo ornamentado
com flores e objetos reluzentes. É neste local que se fazem as feituras de santos, depositam-
se os despachos destas feituras e onde dorme aquele médium que foi feito (ver adiante e
notas).
Cada tronqueira então irá receber uma entidade que “baixa na jurema”. Todas as
entidades que estão no altar da jurema vêm com ela, e isso inclui aquelas que estão no
angico ou jucá. Cada tronqueira passou por um feitio, onde lhe foi envultado um espírito.
Este espírito trabalha na casa e existe apenas um médium que o recebe. Para se fazer o
feitio de uma tronqueira, ou de um médium de casa que trabalhará na jurema, o que dá no
mesmo, realiza-se um ritual bastante complexo.

61
Vai-se na mata para retirar os troncos de jurema55. Para se retirar um tronco
deve-se pagar a Ossanha, a deusa da folha, “tudo que for pego a respeito da folhagem deve
ser pago a ela”. Da natureza nada deve ser pego de graça. O pagamento é feito em dinheiro,
em notas. “Quando se vai pegar o tronco pede licença pras entidades da mata. Paga o
tronco, paga ao tempo”. É Ossanha que toma conta, “é ela que nos dá a oportunidade de
encontrar a madeira”. É Ossanha que indica onde está a melhor tronqueira, ela é quem toma
conta das matas. Quando se tira um tronco de jurema paga-se às entidades da mata dentre
as quais é Ossanha a mais importante. É Ossanha que permitirá que o pagamento seja
recolhido pelo tempo. Como o pagamento é em dinheiro, o tempo deverá consumir este
pagamento, e é para Ossanha que o tempo leva o dinheiro.
Trazido então este tronco para o terreiro, procede-se ao amacio. O amacio é um
preparo ritual feito com bebidas e ervas diversas. Esta “lavagem” do tronco é a primeira
regra ritual para se conceder a tronqueira o envultamento de um espírito. As ervas
medicinais usadas no amacio são, por exemplo: colônia, manjericão, arruda, tipi, hortelã,
aroeira, são mais de cem tipos de ervas usadas. Para se fazer um mestre ou outra entidade
na jurema se usa de 14 a 21 tipos de ervas56. As bebidas usadas são cachaça, vinho branco e
vinho tinto. Também se coloca azeite e mel57.
O próximo passo do amacio é cortar as caças, ou fazer a outra lavagem da
tronqueira. Esta segunda lavagem é feita no salão do terreiro com a oferenda de vários tipos
de caça e de comida. Podem ser usados bode, frango, guiné, ou outros animais do mesmo
porte58. No momento em que são sacrificados estes animais e lavado com seu sangue e
vísceras a tronqueira, é envultado o espírito nela. O filho de jurema entrará em transe nessa
hora, “aí ele vai dar o nome do espírito que morreu e como gostaria de ser chamado a partir
de agora”. Este filho que está sendo feito tomará uma bebida chamada Axé de Fala. “É um
preparo com bebidas, mel, e dá pra pessoa manifestada (em transe); a partir daí ela bota o
que tem pra fora. Nos diz quem é, pra que veio, e o que vai fazer”. Após tomar esta bebida
e ter sua tronqueira lavada neste amacio, o filho feito na jurema entrará em transe e

55
Roberta enumera três tipos de jurema, a preta, a branca e a roxa. Usa-se somente a jurema preta.
56
Só quando se faz coisa pra Orixá (Santo) é que este número de ervas aumenta drasticamente, mas aqui o
amacio não é para a tronqueira, mas sim para a “cabeça do filho”.
57
Estes também no amacio do Santo, do filho.
58
Para se fazer um Orixá (Santo) além desses um garrote pode ser sacrificado. Para espectadores externos,
somente o feitio de tronqueira pode ser visto. Quando se faz um Santo, somente aqueles já feitos podem
assistir.

62
receberá a entidade com a qual trabalhará no terreiro onde foi feito. Esta entidade então
explicará o que quer fazer para ajudar os outros, como será recebida nos trabalhos, tudo
aquilo que lhe caracterizará na sua evolução espiritual durante o tempo que trabalhar no
terreiro. Há a idéia de que estas entidades são espíritos de pessoas mortas que têm uma
missão a cumprir ajudando os outros como forma de evolução espiritual. Um dos motivos
de se conclamar a que as entidades espirituais freqüentem a casa é o de unir a necessidade
dos viventes para com ajuda específica (espiritual), com a necessidade destas entidades de
ajudarem os outros de modo a evoluírem no caminho de uma espiritualidade cada vez mais
pura, (veremos mais adiante).
O próximo passo do feitio de filho na jurema é a oberização. Os oborés são
cortes rituais feitos neste filho para o implante da uma semente de jurema. Esta semente
“plantada” naquele que se torna filho entra por um dos vários cortes que são feitos na altura
do tórax da pessoa. Quando se faz para pomba-gira, corta-se no pé. Esta oberização
somente é realizada quando da primeira feitura da tronqueira e do filho. A semente de
jurema plantada no filho serve para “abrir os caminhos para que as entidades venham e
você possa se manifestar é a jurema que abre os caminhos pras entidades”. As facas usadas
para realizar os cortes são chamadas de obé. Elas são depois colocadas junto à tronqueira
daquela entidade, normalmente fincadas no tronco numa expressão de austeridade. Os obés
são também as facas rituais usadas para sacrificar os animais para o amacio. Elas serão
usadas para tudo aquilo que se fizer para aquela entidade a partir deste dia, e serão de
exclusividade dela, cada uma tendo seu obé.
As partes internas dos animais, a cabeça e as patas ficam ofertadas no próprio
terreiro por três, cinco ou até sete dias. Ocorre então um ritual para retirá-las. O despacho
destes restos de animais é chamado de Ebó. “Vai-se levar toda a comida, todo o Ebó na
mata, num lugar de difícil acesso, de modo que ninguém mexa”59, de preferência à noite.
Depois de todos esses ritos, aquele que se torna filho da casa tem de passar sete
dias e sete noites dormindo no terreiro sobre uma esteira de piperi60. A partir deste período
este novo filho poderá incorporar a entidade dele e terá no altar da jurema a tronqueira de

59
Aqui também ocorre o mesmo quando se faz um Santo, o despacho do Ebó segue o mesmo caminho ritual
para Santo ou para tronqueira/jurema.
60
Quando este filho é um trabalhador urbano, o que representa a maioria deles, e não pode se ausentar do
serviço mundano, tem de cumprir horário de firma, indústria, comércio ou outro, joga-se (búzios?) e pede-se
para um Santo dispensá-lo após três dias.

63
sua entidade. Esta entidade fará curas e atendimentos espirituais, os mesmo tempo em que
será doutrinada e ensinada por aqueles que fazem o terreiro. Será um período muito longo
de preparação espiritual no sentido de construir uma consciência cada vez mais próxima do
puro ser espiritual e cada vez mais longe do ser carnal. Esta evolução será assim um
exercício que tanto a entidade quanto o filho terão como desafio. O papel do terreiro será
administrar o trabalho de evolução espiritual daqueles que fazem o terreiro tanto na terra
quanto no céu.
Quando ao feitio de Santo, Orixá, este é mais rigoroso e necessita de uma maior
preparação espiritual61. Além das indicações que seguiram ao feitio de jurema indicando as
contraposições do feitio de Santo, este deve terminar com uma estadia de trinta dias no
terreiro e o filho de santo deverá ter a cabeça raspada. Já foi dito que o altar para os Santos
tem uma importância hierárquica mais significativa, “o santo-de-cabeça é o Orixá que é
dado a você pra você ter força de ficar de pé. O Orixá é que sustenta. Se eu não for uma
pessoa forte, meus filhos caem comigo”. O santo da casa é aquele que a mãe de santo dona
do terreiro recebe. Ela tem de ter um santo forte porque é ele que deverá segurar tudo que
ocorrer no terreiro. Este santo de cabeça de Roberta é a entidade principal do terreiro. Ela
só pôde abrir este terreiro quando se firmou com seu Santo. O santo que segura a casa como
um todo, tanto a parte de santos quanto de jurema, é aquele que a mãe do terreiro recebe. O
mestre que segura a parte na jurema é também o recebido por Roberta. É preciso que este
seja firme, é ele que segura os feitios na jurema.62
No terreiro, “o lugar onde estão os Santos é mais puro”. As entidades da jurema
são entidades menos evoluídas. A altar que as contempla não precisa ficar escondido como
o dos Santos. Pela disposição dos elementos no altar, mestres viriam primeiro, caboclos e
canindés depois seguidos por preto (as)- velhos (as). Por último as pombas-gira. Não se
deve dar muito crédito à relação hierarquia/disposição no altar. Mas é relevante atentar para
um elemento diferenciador, mesmo que este elemento diferenciador não comprometa a
61
Aqui se dará apenas uma descrição sumária do feitio de Santo, tende-se com isso a construir uma
comparação entre a jurema e os Orixás na umbanda. Os detalhes com relação aos Orixás ficarão assim
submetidos à preocupação central que é demarcar o lugar da jurema no culto umbandista realizado no terreiro
de Umbanda Oxum Talademi.
62
Existe no terreiro de Roberta um padrinho e uma madrinha de jurema. São os responsáveis na ausência da
mãe de santo pelo cuidado com os filho e filhas de jurema, como também pelo espaço sagrado da jurema no
terreiro. Também ocorrem o Pai (iaô masculino) e a Mãe (iaô feminino), que são pai e mãe de santo
respectivamente e que tem a obrigação de zelar pelos filhos e filhas de santos da casa quando da ausência da
mãe de santo dona do terreiro.

64
credibilidade destas entidades representadas como inferiores. Quando da festa em
homenagem aos pretos – velhos63, a seqüência de “batida” seguiu a seguinte lógica:
primeiro para exus e pombas-gira, depois caboclos e canindés, para os homenageados do
dia os pretos-velhos, e por fim para os mestres. Demonstra que a seqüência de entrada das
entidades deve ter assumido a categoria das menos evoluídas até as mais evoluídas.
Pretos-velhos e caboclos parecem estar quase no mesmo grau de evolução
espiritual, eles teriam vivido até na mesma época, fugindo cada qual a seu modo da
perseguição branca. O grau de evolução por vezes pode ser medido pelo nível de
articulação vocal e de linguagem que expressam as entidades. Segundo Roberta, para se
ouvi os pretos-velhos, é preciso muita atenção, porque eles falam baixinho, quase inaudível
devido à idade avançada (cem, cento e trinta, cento e sessenta anos). Os caboclos falariam o
orubá, “que é uma língua muito antiga”. Falariam uma linguagem incompreensível, muitas
vezes trocam esta linguagem grotesca por apenas uns ruídos bastante guturais, isso
basicamente durante a incorporação no terreiro em dia de festa. As pombas-gira falariam a
linguagem da rua, do povo do porto, dos cabarés. Os mestres teriam o modo de falar e o
comportamento do branco médio urbano. Há uma representação da evolução espiritual pela
articulação da linguagem. Aqueles mais evoluídos teriam uma linguagem mais próxima a
do branco, urbano, nós. Mas este também pode ser um elemento enganoso, já que outros
elementos estariam implicados na classificação de posição espiritual. Assim, pombas-gira
teriam linguagem urbana, falariam o bom português, mas devido ao estilo de vida que
levavam, estariam numa posição inferior aos caboclos de linguagem ininteligível. Os
Santos nem precisam se pronunciar, são raros os momentos em que descem, sua linguagem
é puramente espiritual. A linguagem seria um elemento importante do nível de evolução
espiritual, mas não o único, ligado a ela ter-se-iam vários outros elementos classificatórios.
O modo como as entidades incorporam é também significativo do nível de
desenvolvimento espiritual delas. São representados os caboclos com incorporações
frenéticas, sons guturais e muita correria. Os olhos tendem a se manterem fechados ou
extáticos, concentrados numa abstração invisível. São pintados ao modo da representação
esteriotipada do que é um índio. Eles parecem atirar flechas para o alto, em alvos invisíveis.

63
Em 26/05/02 foi realizada uma festa em homenagem aos pretos-velhos da casa. Eles eram os
homenageados, mas junto a eles, todas as entidades da jurema tiveram que ser contempladas. Na ocasião
encontravam-nos presentes coletando dados para esta pesquisa.

65
Não se comunicam com ninguém por mais do que simples grunhidos. São os mais
frenéticos64. As pombas-gira são representadas como distintas damas de bordéis. São
lascivas. Exprimem uma libertinagem nos gestos e no modo de falar. Fumam com
cigarrilha os mais baratos cigarros e tomam as bebidas mais baratas em copos que imitam
taças de vinho ou outras mais elegantes. São representadas como inferiores porque estão
mais presas à sexualidade, símbolo máximo da negação de uma espiritualidade elevada. Os
pretos-velhos seriam a representação de antigos escravos e teriam idade muito avançada, o
que os fariam andar e falar com extrema dificuldade. Somente os mestres apareceriam
como aqueles mais evoluídos na linha da jurema. São os conselheiros e aqueles que mais
fazem trabalho junto à assembléia. Andam e falam com extrema liberdade. A depender do
mestre usam um tipo de roupa que caracterize de forma simples mas no essencial aquilo
que ele era em vida, sua profissão ou o seu modo de ser.
Existe pois uma doutrina de educação espiritual que contempla as entidades da
jurema, e só elas. Parece haver no terreiro de Roberta algo semelhante à doutrina da
evolução espiritual promulgada pelo espiritismo kardecista. Quando um filho faz seu guia
na jurema, este guia passa a incorporar nos trabalhos e aí “ele vai ser doutrinado, em todas
as sessões que se cantam para caboclo ou canindé ele desce, vem trabalhar, fazer limpeza e
ajudar as pessoas. Durante o tempo que ele vai descendo, a gente vai doutrinando,
domesticando. Eles vão se domesticando, identificando o ambiente e a gente com eles”.
Está claro que a “domesticação” encontra-se com alguma coisa relacionada à caridade. Este
elemento caridoso do atendimento às entidades é significativo em templos espíritas ou que
mexem com a espiritualidade.
Importante verificar para nosso trabalho que a jurema é quem traz estes espíritos
que precisam ser “doutrinados”. Os Santos representam os elementos da cultura luso-
africana. É o lugar dos santos católicos entendidos com os Orixás da África. Este
sincretismo que entende uns pelos outros, coloca no mesmo nível a posição da África e da
Europa. Quando os santos católicos são relacionados a entidades, os Orixás africanos,
procede-se a uma identificação vis-à-vis. Não comprometendo a importância nem de uns

64
Os canindés que seriam próximos aos caboclos não “baixaram” neste dia (26/05/02 –festa dos pretos-
velhos). Parece contudo que sua incorporação assemelha-se ao dos caboclos sendo contudo menos frenéticas
ou violentas. São representados como índios crianças, além da pintura já referida para os caboclos, estes
índios crianças estariam quando incorporados apenas interessados em brinquedos e “bagunça”.

66
nem de outros. Colocam-se África e Europa num mesmo patamar. Quando a umbanda
começa a elaborar um culto em que os elementos brasileiros, principalmente os
identificados com a cultura nordestina, têm de assumir um papel na representação religiosa,
eles não são identificados com os santos, católicos ou de origem africana. São entidades
inferiores, são caboclos, pretos-velhos, pombas-gira, os mestres. Não são santos, são
pessoas. A umbanda passa a trabalhar com espíritos de pessoas mortas. A umbanda passa
assim a ter no seu sistema religioso uma parte dedicada ao atendimento e trabalho espiritual
com seres e entidades mais baixas, ou seja, humanos. “É a jurema que abre os caminhos
pras entidades”, a jurema está antes dos santos, mas é ela contudo que permite que eles
venham, ela deve vir primeiro. Ela nos está mais próxima, ascender até os santos/orixás
deve ter por primeiro passo o encontro com os seres da jurema.
São os espíritos dos homens que recebem na umbanda o atendimento de uma
casa que tem por missão, segurada pelos santos, de trazer conforto e paz aos espíritos dos
homens, daqui e da lá. A umbanda encontra no culto da jurema o lugar dos índios, dos
pretos-velhos, do povo em si. É a jurema cultuada pelos índios brabos, pelos escravos e
pelo povo caboclo das primeiras cidades. São estes personagens que trazem a jurema para a
umbanda. São estes os seres que a umbanda reconhece como fundadores do elemento
brasileiro específico da crença, a jurema. A jurema é a brasilidade do culto, é ela que
recebe os primeiros habitantes do país. Todos os seres, os espíritos que a jurema traz estão
em processo de evolução espiritual, a jurema trabalha com os seres mais inclinados às
coisas mundanas. São ainda participantes dos desejos humanos, da carne, do conforto, da
briga, do conflito, do amor desmedido, são amantes das beberagens, da embriaguês, da
alteração de consciência, são finalmente aqueles que trazem como obrigação a beberagem
da jurema, o momento mais dionisíaco do culto umbandista, a distribuição ritual da bebida
jurema.
No terreiro, a jurema seria a bebida feita pela “mistura de várias bebidas
alcoólicas com ervas dentro. Aqui agente chama de xerequeté. Xerequeté é um nome
indígena”65. Nesta bebida se misturam uísque, vinho tinto e branco, cachaça, champanhe,

65
É interessante que a jurema tenha como sinonímia um outro nome indígena. E relevante que o altar, o culto,
tenham a jurema como significado e símbolo. A jurema assume posição no altar e deixa de aparecer como
bebida ritual em detrimento de outro nome à primeira vista bastante incompreensível etimologicamente.
Embora ambos os nomes da bebida sejam indígenas, o nome jurema sendo substituído por outro apresenta

67
refrigerante, Malzembeer (cerveja preta), rapadura derretida, mel, erva-doce, canela, cravo,
casca da madeira do cajueiro roxo e por fim sendo às vezes colocada casca de raiz ou de
tronco de jurema preta. A presença porém da jurema, de pedaços da árvore, no preparo do
xerequeté é bastante inconstante. Roberta afirma que muita jurema na bebida provoca um
gosto muito amargo que torna tomá-la algo desagradável. “Quando eu preparo não canto
nada, não tem reza”, a preparação da bebida xerequeté não disponibiliza nenhum tipo de
ação ritual. Não se canta ou se reza, parece que esta beberagem assume aspectos bastante
mundanos. A jurema “é um oferecimento tradicional da casa, todos tomam porque acham
bom. O único perigo é você ficar embriagado”. A preparação da bebida é feita pela própria
Roberta, é dela também a advertência direcionada à assembléia para ter cuidado com a
embriagues descontrolada. Todo aquele que se embriaga ao ponto “de dar trabalho”, já sabe
que será levado “a um quarto pra se curar”.
Quando todos se preparam para “bater pros mestres”, Roberta aparece
empunhando um grande pote de barro. É ela que conscientiza a audiência para tomarem
cuidado com o excesso de bebida. Fala sobre a necessidade de disciplina no terreiro, mas
também de como aproveitar ao máximo a festa. Dirige-se para de frente ao altar da jurema,
exclama após as últimas considerações: “Saravá Jurema!”. Todos tomam da jurema
oferecida por ela do pote de barro em cuias feitas de coco. Um por um aqueles que estão na
roda vão tomando das mãos de Roberta a bebida xerequeté. Quando todos tomam66, a
bebida passa a ser distribuída à assembléia por Roberta e ajudantes. Para Roberta, seu
terreiro tem a característica de “puxar pela origem. Sirvo num pote de barro. A origem da
jurema, da umbanda e do candomblé vem do barro.” O barro e sua cor característica, o bege
e as inúmeras variações desta cor, são os elementos decorativos mais fortes no terreiro
Oxum Talademi.
Esta predominância do barro no terreiro dá uma impressão bastante
confortadora de algo artesanal, de rusticidade. Uma decoração simples que é na verdade
uma proposta: “Eu procuro fazer tudo dentro da origem. Não gosto de modernizar. Por isso
é tudo da origem, daquela época em que não tinha louça”. A preocupação em demonstrar

uma relevância essencial. Demonstra que a jurema é incorporada na umbanda no momento em que a bebida
que se fazia com ela se tornava cada vez mais rara e desconhecida, passando a sobreviver apenas o culto às
entidades que ela apresenta.
66
Não se é obrigado a tomar, mas “todos tomam porque acham bom”.

68
que aqui neste terreiro tudo se concebe como numa origem de algo pode até parecer um
recurso de legitimidade do culto. Porém, o mais significativo para nós é que esta
preocupação com a origem guarda aquela preocupação de origem reivindicada pelos índios
ao fazerem seu gentio ou toré. Aqui como lá, antes de qualquer legitimidade pública,
representa-se um passado que é poderoso em seu estado ancestral. É o lugar de origem das
forças, do modo como elas se conceberam na natureza e na vida dos homens. Foi através do
barro que se reconheceu a força da jurema, da umbanda, é ainda o barro que deve trazê-la
de volta. Quando se preocupa em afirmar o estado de origem do culto, impõem-se àquele
que interpreta a necessidade de reconhecer que por traz de uma legitimidade pública
relacionada a recorrência de elementos originais, tem-se na cosmologia do próprio culto
religioso o reconhecimento de que quanto mais próximo se está da origem do contato
humano com aquela força, a jurema, mais próximo conseqüentemente se estará da força,
será maior a probabilidade de que as experiências místicas e religiosas ocorram como
sempre houveram de ocorrer nos homens que desenvolveram o conhecimento de acesso a
elas.
Vale aqui lembrar indicação de Simmel e sua proposta de investigação estética
em sociologia67. Também aqui o barro nos apresenta uma natureza modificada pelo
homem, mas de forma sutil. Quando o barro vira o pote que carrega a jurema, ele permite
que a natureza seja reconhecida por de trás daquele objeto. O homem aparece
condicionando a natureza e sendo condicionado por ela. Este pote é uma forma humana,
mas ainda também é a da natureza. Quando o pote de barro é o escolhido para carregar a
jurema e a jurema é representada como vindo do barro, assim como a umbanda e o
candomblé, temos uma metáfora, um símbolo da relação dos homens com a divindade e
com a natureza. A jurema é a planta, a força, o lugar, o símbolo de uma espiritualidade
ainda bastante humana, muito próxima aos desafios dos homens comuns. Mas é ela também
já presente de Deus, sombra para Cristo, aquela que recebeu seu sangue. A jurema é assim
parte de uma natureza espiritual. Quando o homem revela a divindade, a natureza superior,
ele se encontra com ela através da jurema.
A jurema é o barro. A jurema revela a natureza superior da vida, da
espiritualidade, exatamente quando o homem intervém. É a manobra cultural que utilizará a

67
SIMMEL, ensaios de estética IN: Simmel e a modernidade. Conferir especialmente o ensaio “A Ruína”.

69
natureza para chegar a Natureza. O barro ao ser pote continua sendo natureza, a jurema ao
ser a planta/bebida revela a natureza superior da espiritualidade. A jurema está em situação
quase ambígua. Ela é mundana porque está com os homens em seus desafios e já é natureza
ao mesmo tempo, porque revela para os homens a realidade divina, espiritual. A jurema
está próxima do homem porque é planta, está próxima de Deus porque é bebida, ela está
junto ao homem enquanto este é um passageiro de seus transportes espirituais. A jurema é
origem porque é barro, a jurema é o pote de barro do homem.
Existem no terreiro de Roberta inúmeras linhas ou mais precisamente pontos
de jurema que são cantados e tocados ao longo dos trabalhos nos terreiros. Aqui se tocam
basicamente os tambores, chamados de Alê, mas também triângulos e ganzás. Todo o ritual
é marcado pela música cantada pela audiência, em especial por aqueles mais veteranos que
formam a roda da dança no meio do salão. As batidas dos tambores e demais instrumentos
complementam a riqueza sonora e musical do culto. São sempre no mínimo dois tocadores
de Alê, podendo aparecer um terceiro ou mais. A roda da dança se caracteriza por ser
formada por ambos os gêneros. Todos rodam em conjunto um atrás do outro fazendo
performances dirigidas ao centro da roda. São recorrentes as incorporações entre o público
que forma esta roda, mas não exclusivas deles, porém são estas pessoas da roda as mais
experientes no terreiro, e por isso as incorporações tendem a ser mais ricas entre esta parte
da audiência.
Passo então para a descrição dos pontos de jurema registrados no trabalho do dia
26/05/02 – festa dos pretos-velhos. Nesta ocasião como já relatado, os homenageados eram
os preto-velhos, mas cantou-se para toda a jurema. Quando o trabalho começa existe um
ponto de abertura da jurema onde se canta:

Vou abrir minha jurema. Vou abrir meu juremá.


É com a licença de meu pai xangô.
E da mamãe Iemanjá.

Depois um outro o seguiu:

Ô Josie, meu São Sebastião


Ô Josie caboclero do sertão

70
Arreia, arreia, arreia, caboclero, caboclero da jurema
Arreia, arreia, arreia, caboclero da jurema e do juremá

Quando se começa a “chamar” os caboclos o ponto é o seguinte:

Ô juremê, ô juremá,
A folha caiu serena ô jurema, aqui nesse conga.
Salve São Jorge guerreiro, salve São Sebastião
Salve o tronco da jurema que nos dá a proteção.

Este ponto é muito forte, com ele as incorporações que contavam com duas
aumentaram em mais quatro.
Antes de os mestres serem chamados, faz-se uma abertura cantando-se para a
jurema (infelizmente este ponto ficou ininteligível para nós, mas no ponto pede-se a jurema
que “clareire” o terreiro a e assembléia). Neste momento é feita uma concentração com
todos aqueles que fazem a roda agachados no centro do terreiro, como narrado acima.
Roberta ao fim conclama um “Saravá jurema!”, após o qual se começa a chamar os mestres
com este ponto:

Ô mestre, aqui tem caminho, aqui tem caminho para caminhar,


Caminhar por cima de pau, por cima de pedra, por cima do mar
Ô me abre esse caminho no tronco do juremá.

No momento em que Roberta oferece de frente ao altar da jurema a bebida xerequeté para
aqueles que estão na roda toda a audiência canta:

Jurema preta plantada à meia noite


Ela fulora e dá cachos no terreiro.
Eu quero ver os grandes mestres da jurema,
Fazendo macumba e ensinando os macumbero.

Também se segue este ponto:

71
Ô jurema preta, senhora rainha,
Ela é da cidade, paz a Xavelinha (esta última “xavelinha” está imprecisa)
Ela é de pererepê, ela é de pererepá.
Salve os mestres da jurema, vamos todos saravá.

Para o resto do ritual mais dois pontos se seguiram até o encerramento do trabalho:

Quem nunca bebeu jurema


Não sabe que gosto tem
Ô, só tem gosto amargo,
Nunca fez mal a ninguém.
(...)

E mais este por último:

(...)
Eu perguntei a jurema se é pecado fumar
A jurema me respondeu, só é pecado matar
(...)
A jurema é minha madrinha
Jesus é meu protetor
A jurema é um pau sagrado
Ô, foi Jesus que planto.

Estamos assim mais informados sobre mais um dos usos e cultos da jurema. A
umbanda traz a jurema colocando-a como dona de um reino onde os filhos mais sofridos do
Brasil se encontram. São os ancestrais dos brancos, dos negros e dos índios. São estes no
contexto brasileiro. Trazendo um período passado, rememorando-o, o terreiro de Roberta
instaura uma forma de protesto, no qual a memória da escravidão, dos índios que
morreram, que não sabiam falar o português. No branco dionisíaco representado pelos
mestres que se vêm marginalizados na sociedade. Todos estes são na jurema e no terreiro os
personagens principais das festas na umbanda. Eles são trazidos para tornar vivo a cena de
conflito do teatro brasileiro. São as personagens discriminadas, as populações

72
discriminadas. Não se evitam-nos, pelo contrário, eles são trazidos para o tempo presente,
eles são presentificados. Eles têm sabedoria para dar, eles tem muito a aprender também.
Quando a jurema começa a desaparecer como bebida ritual e enteógeno, ela
sobrevive como mistério de mundos sobrenaturais. A jurema evoca os mundos dos
encantos, dos espíritos. Se a bebida feita da planta tem “gosto amargo, mas nunca fez mal a
ninguém”, a umbanda o sabe muito bem, e é experimentando a divinização de seus
mistérios que ela trará, para convencer a todos, aqueles seus maiores discípulos, aqueles
que primeiro tomaram da bebida sagrada. É por isso que a origem deve ser mantida como
barro que é, “do pó ao pó”, porque a jurema cantada na umbanda faz com que todos se
sintam mais próximos uns dos outros, parte de um todo coletivo, onde as idéias se
transformam no ritmo dos tambores. Voltamos assim à origem primeira, aquilo que nos faz
todos iguais. Quando já não se procede às elaborações mesquinhas do Ego. Quando tocha
divina carboniza o barro em pote milagroso de bebida amarga que traz os seres da vida na
morte tão pouco humana e tão natural. Quando a jurema traz representados ainda que
esteriotipadamente aqueles santos personagens que a moralidade do branco colonizador e
genocida não deixou escapar à criatividade de um povo festivo, que ousou comungar com a
jurema os mais profundos mistérios da vida e da morte.

O Maracatu Rural Cambinda Brasileira.

Fundado em 1918, o Maracatu Rural Cambinda Brasileira é considerado um


dos maracatus mais antigos da zona da mata norte de Pernambuco. É o único que hoje
mantém sua sede em um engenho de cana-de-açúcar. Localizado na cidade de Nazaré da
Mata em Pernambuco, o Cambinda é uma brincadeira que trás no seu mito de origem a
jurema branca como dádiva espiritual. Como todos os maracatus, o Cambinda também tem
seus segredos. Os segredos sobre a ritualística dos maracatus mantêm a rivalidade entre
eles. Existe uma rivalidade entre os grupos de maracatus que se exerce na constituição das
indumentárias, nas apresentações públicas, no vigor dos membros, na vitalidade da
brincadeira. Esta rivalidade no campo público, também se exerce no privado, no simbólico
e no espiritual. O laço espiritual tem de ser forte para fazer com que o maracatu não caia.

73
Cada grupo procura manter a energia de sua brincadeira mantendo uma ligação apoiada
numa relação de proteção com as forças espirituais. Em Nazaré da Mata já são mais de dez
maracatus, em todo o Pernambuco eles são mais de oitenta. Isso os maracatus rurais,
existem ainda os Maracatus Nação, os urbanos, principalmente em Recife e Olinda.
A madrinha espiritual do Maracatu Rural Cambinda Brasileira é Severina Maria
da Silva, conhecida por Dona Biu. Dona Biu recebeu o ofício de madrinha de forma
hereditária. Depois de aprender os “preparos do maracatu”, dona Biu começou a introduzir
as suas próprias “partes da coisa”, isso significa mais precisamente a introdução da jurema
preta. Dona Biu falou do uso da jurema, dos trabalhos espirituais que faz e como tudo isso
se revela na energia do maracatu Cambinda em entrevista realizada em sua casa na cidade
de Nazaré da Mata- PE. É a partir, principalmente, desta entrevista que se relatará o uso da
jurema no maracatu. Toma-se então como exemplo o Cambinda no sentido de explorar a
extensão do uso da jurema. Existem muitos outros maracatus, tanto urbanos quanto rurais,
que usam a jurema. Para o presente momento gostaria que o Cambinda fosse já um
exemplo bastante revelador destes mistérios que carregam a jurema, que a fazem estar em
tantos lugares, explorada e cultuada por tantos sujeitos.68
O trabalho com a jurema faz parte do segredo do maracatu. Dona Biu se dispôs
a falar sobre a jurema contanto que não fossem revelados os segredos mais importantes.
Não se poderia neste trabalho expor estes segredos, e isso porque eles não o foram
expostos. Dona Biu articulou muito bem seu discurso de modo a preservar todo o
conhecimento mágico no trato com a planta. Aquilo que foi narrado porém cumpre seu
papel para os propósitos deste trabalho. Está-se interessado em demonstrar o culto da
jurema em vários contextos por seus inúmeros sujeitos. Se a entrevista que dona Biu
concedeu é relevante, isso se demonstra no seu discurso quando se concede à jurema uma
produção simbólica riquíssima. Ela aponta a planta como depositária de forças
sobrenaturais, que para serem descobertas, se é preciso uma destreza e sensibilidade de
mãe, de mãe educadora. Esta produção simbólica relacionada à planta e transferida para

68
Devo aqui agradecer a Sévia Sumaia Vieira por ter disponibilizado seu tempo e esforço para permitir que se
entrasse em contato com seus informantes em seu campo de estudo. Desde 1997 ela trabalha em Nazaré da
Mata com os grupos de maracatus locais e Dona Biu é a sua principal informante. Sumaia forneceu os dados
introdutórios que foram apresentados nos parágrafos acima, através dela a entrevista com dona Biu pode ser
realizada. Sévia Sumaia Vieira desenvolve dissertação de mestrado na UFPE sobre o maracatu rural em
Nazaré da Mata.

74
práticas rituais relacionadas à brincadeira, por si só já teriam valido a pena destacar, mas se
fará um pouco mais.
Dona Biu trabalha tanto com a jurema branca quanto com a preta. Para ela
existe uma diferença muito forte entre uma e outra, “pra trazer luz é mais a branca. A
branca sem a preta é muito fraca, é uma coisa mais calma. O juremeiro vem da preta.
Depois de Deus é a preta”. A branca seria uma jurema da maior tranqüilidade, paz. A preta
seria a do fogo, do movimento, aquela que teria força, a força dos caboclos, energia da
terra. A branca traria Deus interpretado em sua luz, a preta O traria em sua força. Somente a
preta estaria próxima do recheio humano em energia, em vitalidade, a preta é a da euforia
controlada, a chamada força espiritual. Esta jurema é a principal para os usos em trabalhos
espirituais. A branca e a preta têm então usos diferenciados, vejamos quais são eles.
“A jurema é um preparo muito delicado. Ela tá na mata. A mata é o lugar do
índio, do caboclo”. Dona Biu enfatiza que a jurema branca deve ser salva antes de retirada.
Salvar a jurema aqui também é demonstrar gratidão e respeito por aqueles que são seus
donos, os donos das matas, os índios, representados como caboclos. A eles deve-se pedir
licença para retirar a jurema. Salvar a jurema é então realizar uma série de orações e cantos
de linhas para estes caboclos das matas. Após isto a raiz da jurema é retirada. Retiram-se
também folhas, casca do caule ou qualquer outra parte dependendo do que for fazer.
A jurema branca é usada como remédio, pra limpeza e defesa espiritual, também
para se ajudar pessoas que estão precisando, “mas ela só serve se você souber fazer o
preparo dela”. O preparo da jurema branca não foi narrado. Não se dá a conhecer a prática
ritual de algo sem que aquele que ouve ou aprende não for usar aquele conhecimento dentro
daquilo que se ensina. Ou seja, não se dirá nada da jurema àquele que não for um discípulo
sincero daquele que ensina. Aquilo que a jurema mostra é preciso ter bons olhos e boca
serena pra ver. Fumam-se partes da planta como também se defuma com elas nos trabalhos.
O banho é a principal utilização da jurema branca. O banho limpará a alma e a defenderá,
aquele que tomar do banho “descarregará todos os carrego que traz”, a jurema branca
tranqüiliza e deixa de alma lavada o sujeito. Se a pessoa que tomar o banho for médium da
jurema, a força dela se abrirá pra ele e ele terá como reconhecer a força da espiritualidade.
Da jurema branca se faz uma bebida. Esta bebida é feita principalmente da casca
da raiz. Depois de retirada a raiz da jurema após esta ser salva, retira-lhe da raiz a casca e

75
esta é espremida com água até virar um suco, “um vinho”. Côa-se e guarda-se em um
recipiente fechado. Esta bebida é então tomada em trabalhos espirituais, cuja linha vai
numa direção onde se cruzam a umbanda e o “catimbó”. Parece mais direcionado,
entretanto para práticas típicas daquelas narradas entre a população de Alhandra
(principalmente no Acais), mais característica daquilo que intitulamos de trabalho de
juremeiros. Nos trabalhos que dona Biu faz, parecem ser recorrentes os apelos aos mestres
como também aos Orixás. Na cosmologia estão presentes estes dois mundos, dos mestres e
caboclos dos “catimbós”, e dos Orixás da umbanda. Teria-se desenvolvido um culto na
forma dos trabalhos de jurema convencional, o “catimbó”, mas que reuniu elementos
religiosos vindos de outra tradição, da umbanda.
Voltando à jurema branca, dona Biu quando realiza os trabalhos com ela nos
moldes gerais descritos acima, chega-se num momento ainda inicial do culto em que é
ingerida a bebida feita com a casca da raiz da jurema branca. “Eu me cruzo com a minha
jurema e vou viajar. Salve a Deus e a jurema sagrada”. A jurema transporta aquele que a
ingere para mundos desconhecidos, mas em viagens do conhecimento. Aquilo que a jurema
faz descobrir é divino e é sagrado, ela mostra o lugar dos espíritos. “A jurema branca é o
amor”. A jurema branca mostra aos sentimentos que existe amor e plenitude no amar, “tem
gente que põe pra chorar”. A jurema branca “pega matéria de Ogum, tipo de mestre calmo.
Se fala de Jesus, chora”. A jurema branca traz assim sentimentos de conforto, de alívio, “a
jurema branca não tem força, tem conforto”. Para dona Biu a jurema branca está
relacionada aos sentimentos calmos, ela alivia, por isso é remédio pra dor de cabeça, “corpo
mole” e “mau olhado”. Ela leva a alma para o alívio, para os sentimentos de paz e de amor,
põe pra chorar os mais sensíveis. Por isso limpa e defende a alma e conseqüentemente o
corpo daquele que a toma. A jurema branca protege porque ensina à sensibilidade
diretamente. Faz ver coisas boas, descarrega o orgulho e as vaidades, retira o mau olhado
na viagem aos sentimentos de paz, “é pra ficar parado ali chorando”.
A jurema preta é diferente. Com ela se faz o vinho forte. “Vai pra mata pegar
jurema, vai ter de salvar a jurema. Pede licença pra jurema e canta ela”; aqui também
quando se vai retirar uma jurema da mata deve-se salvá-la, repete-se os mesmos preceitos
narrados na coleta da branca, cantam-se as linhas da jurema, dos mestres e caboclos da
mata. A principal utilização da jurema é a da casca de sua raiz. Com ela é feita a bebida

76
sagrada. Depois de retirada a casca da raiz, esta é esfregada com água e forma-se o “vinho”.
Depois de coado, a jurema pode então ser guardada em recipiente fechado69. Muitas vezes a
jurema é misturada com folhas de pinhão roxo, manjeriana roxa, liamba roxa70 e
manjericão. “Com o manjericão, rei das ervas na jurema, a jurema fica mais forte. Fica
com dois guias, um da jurema outro do manjericão”. Este “vinho” com estas ervas
misturadas serve também para o banho. Para bebê-lo, uma colher já basta. “Já fiz cada coisa
com a jurema. È porque é dela mesmo. Na jurema tem!”
É esta a jurema que tem a força dos caboclos. É ela a usada nos trabalhos mais
sérios, fortes. A jurema que vem das matas, vem com a força dos caboclos, dos índios. O
maracatu precisa deste tipo de força. É a jurema preta quem dá. É ela que será usada para se
fazer a proteção espiritual da brincadeira do Cambinda.
O maracatu então será o grande alvo do uso da jurema preta por dona Biu. Ela
protegerá e dará força. A jurema preta será por isso de uma importância superior à branca,
“pro caboclo que pula três dias a branca não presta. Ele precisa de força, de quentura, ela dá
fogo”. O trabalho com a jurema preta no maracatu começa com uma abstinência sexual de
quinze a oito dias. Todos aqueles que vão brincar o maracatu devem recolher com dona Biu
um cravo branco. “Pego os cravo tudinho, boto lá na minha jurema, e benzo todos os
cravos”. Todos desfilam nos dias de carnaval com seu cravo a tira colo, isso quando não é
este cravo levado pela boca. “Hoje é sábado de Zé Pereira, chega meus caboclo pra buscar
os cravo. ‘Que horas você vai sair de casa?’ ‘Vou sair de sete horas’. Anoto, ‘toma teu
cravo’. Na hora dele sair eu mando a cabocla sair tal hora, ‘Vá minha jurema’”. Os cravos
que dona Biu entrega àqueles que irão brincar o carnaval representando o Cambinda entre
os maracatus, estão todos protegidos na jurema.
É a jurema que espiritualmente dá a força e a proteção para que todos brinquem
os três dias intensos de carnaval sem se cansarem. Ela também dá vitalidade, entusiasma. É
a jurema que fortalecendo os brincantes do maracatu faz com que estes sejam bem
69
A jurema feita pode ser guardada por anos se bem acomoda. O feitio da bebida é normalmente feito antes
do carnaval ou no final do ano, mas depende também das necessidades dos trabalhos, quando ela é então feita
sob demanda.
70
Vandezande (1975:139) informa que em Alhandra os juremeiros usavam antigamente “de forma ingênua” a
cannabis sativa contra dor, tendo sido esta substituída pela Liamba (Verbenaceae agnus-castus L.).
Interessante notar que Liamba também é sinônimo da cannabis sativa como indicado por LUZ (s/d:03), nome
de origem africana para a erva, popularizado no Brasil quando do período escravocrata. Também
Pernambucano (1937:187) afirma que Liamba é sinônimo de cannabis sativa. Este sinônimo para a erva seria
de uso mais comum em Pernambuco e Alagoas, seria originário também de termos africanos.

77
sucedidos na brincadeira. “Brinca os três dias, não sente cansaço, dor de cabeça”. A jurema
segura o sujeito no maracatu, ele está protegido por sua força, nenhum inimigo o derrubará.
É preciso porém respeitar a jurema, ter em conta as suas regras. “Se ele procedeu mal aí ele
arreia, passa três dias de cama, não brinca mais. Porque não respeitou a jurema. Não
respeitou o cravo e o mestre que foi acompanhá-lo três dias”. Proceder mal é agir de forma
violenta, agressiva, não respeitas as pessoas nas ruas em dia de festa, beber cachaça além da
conta, tudo aquilo que possa prejudicar a segurança espiritual que ele recebeu.
A jurema traz para os dias de festa do maracatu a intimidade de um conforto
espiritual. O espaço público é valorizado pela festa multicolorida proporcionada pelos
vários grupos de maracatu envolvidos na festa. Quando o caboclo de dona Biu sai para
representar o Cambinda nas ruas, ela espera que a jurema, sendo força que é, o proteja para
que sua apresentação seja a mais bem sucedida possível. A jurema vai então proporcionar
proteção no momento em que mais o sujeito se expõe. Ela age de forma privada mas
atendendo a um preceito que é de uma coletividade. É ao maracatu que a jurema deverá
proteger na pessoa que o representa. a jurema passa a ser uma força espiritual que agindo
sobre indivíduos determinados membros de um mesmo grupo, passará a agir sobre o grupo,
ela protege os sujeitos porque estes sujeitos têm como missão fazer o Maracatu Rural
Cambinda brasileira ser o mais belo de todos.
Sentem todos aqueles que fazem o maracatu que a jurema os está protegendo
porque a madrinha espiritual do grupo assim pediu. Foi ela que chamou a força da jurema.
Ela é que teve o esforço de ordenar o conhecimento de acesso à jurema. É dona Biu que
sente a força espiritual da jurema e pode então passá-la para os outros. Todos sabem.
“Depois do carnaval eles vem me entregar os cravos. Aí eu retiro tudo que dei nos cravo, e
tiro pra mim. ‘Não foi eu que dei?’.” As benesses da jurema, a força e o entusiasmo dados
para brincar o carnaval estão todos disponíveis de volta para dona Biu. Quando o carnaval
acaba e os cravos são devolvidos, é dona Biu que vai trabalhar com a jurema de modo a
reverenciá-la por tudo que esta deu. Dona Biu se esforçará para que sua força continue
dando a energia espiritual que o grupo necessita. O grupo reconhece o fato, e por isso
devolve os cravos, porque com a força, é dona Biu que sabe se entender.
Todos os maracatus têm a proteção da jurema. Todos têm aquilo que entre eles
se chama de calço. É este calço a proteção que vem se falando. O calço, porém é secreto, é

78
um segredo, dele não se fala. Não se sabe como ele age, como funciona. Cada maracatu tem
o seu, cada participante tem um71. É este o mistério que a jurema preta reserva para os
praticantes da brincadeira. É este o conhecimento que dona Biu sabe muito bem
administrar. Se algum maracatu souber os detalhes de suas práticas rituais ela pode ser
“derrotada”. Os maracatus rivais tendem a fazer trabalhos espirituais pra derrotar os outros,
é contra esta prática dona Biu tenta se proteger, “eu sou filho de jurema, mas não sou
catimbozeira. Amo meus Orixás, minha jurema. Catimbozeiro faz mal pras pessoas. Cada
qual trabalhe pra si, pro bem”. Está aí explícita que a atuação da jurema faz-se para o bem.
Pretende-se ganhar o carnaval, mas não prejudicando os outros, e sim fortalecendo o grupo.
É por isso que dona Biu fala que cada um trabalhe por si. Proteger o maracatu na jurema é
livrar-lhe das intromissões das forças dos inimigos, não que a jurema se livre deles. Se o
calço do Cambinda é feito na jurema? Dona Biu responde “não falo, não posso. Só digo
que começo e termino na jurema”. Retórica ou jogo de palavras, dona Biu no entanto
apenas vivifica a relação que faz com o Cambinda da qual é madrinha espiritual com a
jurema preta da qual é devota.
Se para todos que fazem o maracatu é natural que a jurema seja a protetora
espiritual, isso parece ser algo aprendido com o tempo, “desde o tempo que começou o
maracatu todos iam se preparar na jurema. Aqueles que não estavam preparados ficavam
doentes, caíam, tinham cansaço. Aqueles que estavam na jurema brincavam os três dias
sem sentir nada”. Assim o segredo da proteção da jurema parece que foi tornado algo muito
valorizado, e por isso mantido em segredo. A opinião geral segundo dona Biu foi a de que o
maracatu que ganhava era aquele protegido na jurema. O calço dos ganhadores deveria ser
na jurema. Por isso passou-se a disponibilizar o conhecimento do uso da jurema somente
dentro da tradição de cada grupo de maracatu. Se a jurema branca era a mais comum até
então, dona Biu achou que precisava de muito mais força no trabalho, ela trouxe a preta.
Pros seus caboclos dançarem os três dias é a preta. A tradição assim é algo renovável,
aprimora-se aquilo que se deseja conservar. O Cambinda é contemporâneo porque é

71
Sumaia em correspondência declara o seguinte sobre alguns calços coletivos e individuais que conseguiu
coletar até agora entre vários maracatus de Nazaré da Mata. “A abstinência sexual em número de dias impar
(antes e durante o carnaval; os banhos de descarrego (sal grosso) e limpeza (a base de ervas); o cravo na boca
preparado pela madrinha espiritual do próprio maracatu, mas há brincantes que procuram outra mãe ou pai de
santo; charuto preparado para as baforadas, preparo levado no bolso dos brincantes (espécie da patuá feito
com ervas), ‘firmações’ (orações) e velas acesas”.

79
tradicional, porque soube inventar dentro da sua tradição, soube fazer com que a jurema
branca, que trazia conforto, fosse substituída pela jurema preta, que dá força de caboclo
pular três dias sem se cansar.
Importante destacar que a bebida feita com a casca da raiz da jurema somente é
ingerida por dona Biu. “Não dou jurema pra beber no maracatu, senão vai ser perigo. Só eu
bebo, bebo os três dias. Jurema é uma coisa muito fina. Não pode beber jurema e querer dar
uma bicada de uma bebida, cana, cerveja”. Apenas dona Biu ingere da força que distribui, é
ela que faz o trabalho com a jurema: “Aquele que não bebe (bebida alcoólica), pode tomar
a jurema só se for já iniciado na jurema. Quem tem tradição toma a jurema”. Só os filhos de
jurema como dona Biu tem a possibilidade de tomar da planta como ela. Estes já
reconhecem seus efeitos, seus mistérios. Para aquele que toma da jurema e na rua toma
cachaça, “ele pode errar. Quando vejo dá problema. Se tomar jurema ele ta juremado. Se
tomar bebida em cima pode dar problema, dar dor de cabeça, entrevar, ficar sem fala”.
Dona Biu então prepara os caboclos do maracatu “só por fora, por dentro nada.
Eles não tomam”. A jurema é ciência, é de um trato fino. Beber jurema é uma
responsabilidade, só os iniciados nela podem tomá-la. Dona Biu como madrinha do
Cambinda sabe bem as responsabilidades que tem com seu grupo, ela foi a indicada para
isso, tem o poder. Se esse poder for vulgarizado, se a jurema for bebida de fanfarra ela terá
seu reconhecimento fragilizado. Ela deve preservar pelo respeito e conhecimento da planta
sagrada, porque se assim não for a tradição que lhe permitiu reconhecer os mistérios da
jurema será pra sempre perdida ante a dúvida e imperícia daqueles que não conhecem nem
temem a força da jurema.
Podemos ver como a jurema consegue estar presente nos mais variados
contextos e administrada pelos mais diversos sujeitos. O Maracatu Rural Cambinda
Brasileira é um exemplo bastante rico do universo religioso que abriga a jurema. Aqui na
figura de sua madrinha espiritual e mãe de santo, a jurema protege e dá força. É ela a
agenciadora dos entusiasmos, da energia. Sob o conhecimento espiritual de dona Biu e a
proteção da jurema, o Cambinda tem as vias da rua abertas ao seu esplendor. É com a
sutileza da jurema que dona Biu cobre seus caboclos do maracatu. É com a força da jurema
que ela se embriaga. Eles estão com a jurema por fora e ela por dentro. Ela arregimenta as
energias e as transfere através de seus cravos benzidos na jurema. O maracatu aqui

80
apresentado através de sua madrinha espiritual coloca mais uma vez o frescor criativo da
religiosidade popular. São eles que respeitam sua vitalidade, sua força, para que ela exista.
São eles que se encontram com a espiritualidade na jurema e constroem junto a ela os mais
significativos ritos religiosos.
Aqui a experiência dos chamados “catimbós” foi ampliada com a da umbanda.
O modo como dona Biu trata a jurema é bastante significativo destes encontros sincréticos
que ao invés de diminuir e descriminar, amplia. É o exemplo da aceitação dos diferentes.
Lugar possível de tantos e variados encontros. É o respeito pelo que há de comum no
diverso. Uma regra tão produtiva na antropologia, que tanto inspirou-nos nesta pesquisa,
formulada de forma monumental nesta preciosa narrativa místico/religiosa. A jurema nos
fará dar tantos encontros quanto expectativas, achando que o sincretismo narrado por dona
Biu é aquele que deveríamos fazer com nossas inseguranças, quando o chamado da razão
deixar de ser vilão pra se tornar humilde e tributário das possibilidades de tantas novas
experiências. Pensando que nós também, como dona Biu, deveríamos ser originais em tudo
aquilo que fazemos.
Há uma produção original de um sistema religioso com o maracatu rural em
Nazaré da Mata. Dona Biu é também única naquilo que faz, e é valorizada por isso. Este
exemplo é redentor das possibilidades. Ele é fruto de paixões bem direcionadas. É exemplo
de que o original é também uma tradição. De que um sistema religioso é aquilo que
engendra, é aquilo pelo que se faz acreditar, não importando da onde veio, nem se tem um
nome próprio. Muitas vezes os trabalhos não tem nem nome, mas é exatamente aí que a
força de seus mistérios mais se fazem sentir, quando o não nomeado é a força mais
poderosa. Quando tudo está em segredo, é quando a mais discreta das forças se torna a mais
forte.
Dei um grito na mata
Jô Vieira apareceu
Salve a sapucaia
Salve a samambaia
Salve a Jô Vieira
Em nome de Deus.72

72
Uma linha usada nos trabalhos, cantada por Dana Biu dando por encerrada nossa entrevista.

81
CAPÍTULO I I I –
A jurema no contexto metropolitano contemporâneo

“Tenho uma teoria sobre isso. A jurema rompe a sua


estrutura psíquica. Ela é uma planta muito forte. Não é a
toa que tem gente que tem medo. Ela é Ela.”.

Leonor Chaves em entrevista para este trabalho.

Pretende-se neste capítulo demonstrar como são alguns tipos de uso da jurema
em contexto urbano por sujeitos pós-modernos73. Eles são assim chamados porque
trabalham com a jurema em contexto simbólico totalmente diferente de expressões rituais
de populações regionais ou indígenas. Estes sujeitos assumem a jurema e seu uso dentro de
contexto místico, religioso e de psiconautismo74. Este último bastante singular quer
condensar o tipo de experiência com enteógenos que fazem alguns sujeitos dentro daquilo
que já foi chamado de experimentalismo (conferir nota anterior). Para o grupo de sujeitos
abordados neste capítulo, a jurema apareceu recentemente e começam a se elaborar grandes
narrativas simbólicas acerca de seu uso e de seus mistérios. São sujeitos novos, que na
criatividade concernente à jurema formam mais uma de suas inúmeras e sempre diferentes
tradições75.

73
Pós-moderno aqui é entendido de forma alegórica como expresso por Santos (2000:70) na versão positiva
do termo: “uma praga boa e saudável. Abala preconceitos, põe abaixo o muro entre arte culta e cultura de
massa, rompe as barreiras entre os gêneros, traz de volta o passado (os modernos só queriam o novo).
Democratizando a produção ele diz: que venham a diferença, a dispersão. A desordem é fértil. Pluralista, ele
propõem a convivência de todos os estilos, de todas as épodas, sem hierarquias, num vale tudo que acredita no
seguinte: sendo o mercado um cardápio variado, e não havendo mais regras absolutas, cada um escolhe o
prato que mais lhe agrada. Morte ou renovação.”
74
O termo é apresentado em Labate (2000:340): “Os psiconautas são um grupo de pesquisadores e estudiosos
das plantas que engloba pessoas de formações diversas (...) possuem forte conexão pessoal com o universo
dos psicoativos. Tais sujeitos defendem o conhecimento direto e insubstituível da vivencia pessoal da
experiência. (...) Os psiconeutas são acima de tudo experimentalistas, conhecem profundamente enorme
quantidade de substancias.”
75
Tradição aqui pensada como construção de narrativas simbólicas associadas ao uso e reverência de plantas
sagradas ou psicoativas.

82
A “Arca da Montanha Azul”
De Philippe Bandeira

Philippe Bandeira de Mello é o dirigente da casa a Arca da Montanha Azul76.


Neste espaço de culto religioso ele dirige trabalhos espirituais feitos a partir da ingestão de
enteógenos. Ele e sua ex-esposa dirigiram no mesmo local por cerca de seis anos, há quatro
ou cinco anos atrás, a Barquinha77. Foi com a dissolução desta casa religiosa que Philippe
começou a instaurar a Arca78. A idéia da Arca parece ter vindo por uma mensagem
espiritual que em momentos distintos Philippe recebeu. Ele deu depoimento em sua
residência poucas horas antes de começar mais um trabalho na Arca, o qual foi registrado.
Porém deve-se começar a entender o universo que Philippe construiu a partir daquilo que
ele mesmo achou preciso falar antes de tudo. Talvez para isso, a transcrição desta parte do
depoimento de Philippe seja um bom começo.

“Há muito tempo atrás (meados de 1989) eu estava num trabalho na floresta
amazônica com outra bebida sagrada, o Santo Daime79. Eu tive uma visão. Estavam assim
numa grande corrente vários homens, vários espiritualistas de mãos dadas. Gurus, mestres,
yogues, pais-de-santo, xamãs, monges. Sacerdotes de várias tradições diferentes todos de
mãos dadas formando uma grande corrente no plano invisível, como se fosse uma grande
roda. Esse foi o primeiro chamado que recebi para esta missão. Na cabeceira desta corrente
estava um índio pele-vermelha norte-americano com um cocar até o chão. Depois me deu o
nome de Leão de Fogo. É como se esse ser trabalhasse em prol dessa causa, de dar as mãos
das várias tradições diferentes. Mantendo as diferenças, mas trabalhando junto no mesmo
propósito.

76
Philippe é citado em Labate (2000:337) de forma rápida, lá o local é referido por A Montanha do Arco Azul.
77
O Santo Daime e a Barquinha são religiões acreanas baseadas no uso da bebida sagrada ayahuasca. Suas
cosmologias giram em torno de um cristianismo sincrético popular norte-nordestino. Sendo mais forte este
aspecto na Barquinha, enquanto no Santo Daime juntam-se ainda alguns elementos esotéricos.
78
O local onde funcionava a Barquinha e onde hoje funciona a Arca é também residência e consultório
psiquiátrico de Philippe.
79
Refere-se a trabalho espiritual feito na Barquinha, onde a bebida ayahuasca também é chamada de Santo
Daime.

83
Depois recebi um chamado para aprofundar esses trabalhos com o Santo Daime.
Veio uma entidade completamente diferente do que eu estava acostumado80. Eu conhecia
fenômenos mediúnicos, mas quando recebi essa entidade era uma coisa diferente do que eu já
havia visto. Era um ser meio homem meio leão, ele me trouxe um hino imenso, de quase meio
hora. Também me trouxe esse chamado pra trabalhar pela aproximação das diferentes
tradições”.

É aí que Philippe começa narrando o início da Arca da Montanha Azul. Quando


estava procurando na Amazônia uma casa religiosa que usasse a bebida ayahuasca e
seguisse outra linha daquela usada pela Igreja do Santo Daime, na qual Philippe tinha
conhecido a bebida ayahuasca. Philippe se depara com a igreja da Barquinha. É nesta casa
que momentaneamente ele se encontra. Junto com sua esposa na época consegue
autorização para abrir um ponto da Barquinha no Rio de Janeiro81. Quando o dirigente da
igreja original no Acre visita o Rio de Janeiro e a igreja aberta por Philippe e sua ex-esposa,
fica surpreso em ver que o sincretismo daquela “filial” estava muito além daquilo que ele
podia aceitar. O esoterismo e todas as formas de cunho místico a ele vinculadas estavam
representadas pelas paredes e no altar da igreja. O dirigente da matriz no Acre achou
melhor que a filial no Rio passasse por uma reforma porque aquele tipo de sincretismo não
compunha a doutrina da igreja. A Barquinha é então transferida para a casa de outros
fardados.
Philippe sente desde muito que a procura de uma espiritualidade passa em sua
pessoa por uma inquietante transformação. É sempre o novo e o inesperado. A quebra das
certezas e dos absolutismos. As entidades que revelam a ele o modo de operar sua procura
espiritual lhe dão a certeza de que é no movimento inter-religioso que ele poderá descobrir
a máxima expressão da busca espiritual. “Esses hinos que recebi na ocasião, também o hino
chamado Hino ao mestre interior, falava que a grande missão era ajudar as pessoas a
entrarem em contato com o seu mestre interior”. Um mestre interior que falasse uma
linguagem universal respondendo pela procura humana como um só objetivo, que

80
Philippe explica neste ponto que foi criado no espiritismo, começando dentro de uma ordem iniciática,
“mesa do oriente com bio-ocidente”, depois passou pelo centro espírita Ramatis, posteriormente por uma
ordem esotérica na qual passou sete anos se consagrando sacerdote.
81
A Barquinha é a mais austera das igrejas que usam a bebida ayahuasca. Existem apenas três no Acre, uma
em Rondônia e uma no Rio de Janeiro.

84
escapasse às doutrinas de um modo geral era a missão que Philippe acabara de tomar-se
consciência. Neste sentido, precisava por em prática estas indicações:

“Menos de um mês depois a jurema chegou, e eu senti que havia chegado o


momento de começar o trabalho da Arca. Em 1997 a Arca começou a funcionar. Nesse
período vivia-se um momento muito difícil sem muitas perspectivas. Nesse momento veio
parar na minha mão a jurema, o feitio e uma quantidade suficiente para eu trabalhar durante
um ano. Me veio pela querida Yatra, ela passou o feitio. Foi uma madrinha, uma mestre, ela
nos ajudou...82Tendo a autonomia de ter essa bebida sagrada, como não havia Daime83, a
jurema foi a planta sagrada que iniciou e abençoou esse local de trabalho.”

A jurema aparece de forma inesperada e veio ocupar o lugar da ayahuasca como


enteógeno. Yatra ensina a Philippe como fazer o preparo com as cascas da raiz da jurema e
com as sementes de Peganum Harmala84. A partir daí ele consegue uma quantidade
suficiente de jurema pra fazer trabalho por durante um ano. Chegara a hora de levar a idéia
da Arca adiante. A entidade que reconhecera em Philippe uma pessoa capaz de seguir com

82
Yatra W.M. da Silveira Barbosa, ex-fardada do Santo Daime, ajudou a fundar três Igrejas do grupo na
Europa. Usava a ayahuasca no tratamento de viciados em álcool e drogas pesadas na Holanda. A sede da
Igreja no Acre passou a criar obstáculos para o uso não religioso que era feito da bebida na Holanda por
Yatra. Desenvolve junto a pesquisadores a jurema com o peganum harmala, como substituto da ayahuasca.
Em 95, Yatra pediu autorização à Igreja no Acre para utilizar a Jurema também nos cultos da casa, não obteve
autorização da matriz e decidiu fundar um novo grupo, o Friends of the Forest, que também se autodenomina
Povo da Jurema, do qual é líder espiritual e presidente. Os hinários próprios misturam elementos indígenas,
afro-brasileiros, mantras, Chiva, Buda e elementos da floresta se juntam, seguindo porém a linha daimista dos
cultos. Veio ao Brasil em inícios de 1998 para conhecer o trabalho de jurema feito pelos índios nordestinos.
No caminho passou o feitio da jurema (com o peganum harmala) a alguns enteogenistas cariocas. Possui uma
espécie de filial do grupo holandês em Brasília-DF. info@friends-of.the.forest.nl; http://www.friends-of-the-
forest.nl. Yatra também é citada de forma rápida em Labate (2000:334).
83
O Daime, ou ayahuasca possui as mesmas substâncias químicas presentes na jurema fornecida na Arca.
Esta jurema tal como a ayahuasca é feita pela mistura de duas plantas. Sendo simbolicamente considerada
uma delas a feminina e a outra a masculina. Na ayahuasca,a feminina seria a “folha”, a chacrona ( rica no
alcalóide N-dimetiltriptamina - DMT), e a masculina o cipó, ou caapi (Banisteriopsis caapi- rica em harmina
e harmalina). A jurema que tem na casca de sua raiz alta concentração de N-dimetiltriptamina - DMT, foi
misturada a sementes de Peganum Harmala que possui altíssima concentração de harmina e harmalina.
Assim a jurema seria a planta feminina da mistura onde o Peganum Harmala seria o masculino. Ver por
exemplo Sangirardi (1983:182) para a ayahuasca e p.204 para a jurema. Sobre a mistura da jurema com o
Peganum Harmala ver Grünewald (2002:99-101).
84
O preparo da jurema com Peganum Harmala é diferente daquele narrado pelos índios. Quimicamente
falando, a jurema só é ativa (DMT) por via oral se ministrada com algum inibidor de monoaminoxidase, ver
Grünewald (2002:100) e também Souza (2002) cap.5. Um destes inibidores é a harmina e a harmalina,
encontrados nas sementes de Peganum Harmala.

85
a missão de espiritualizar através do preceito inter-religioso e trans-pessoal, trouxe-lhe
instruções de como organizar a “metodologia” dos trabalhos que se fariam na Arca.

“Essa metodologia era muito difícil para o ocidente, porque ela é muito
meditativa, o esvaziar a mente. Era difícil para as pessoas se livrarem das coisas antigas.
Faziam o ritual como estavam acostumadas. Esse trabalho implica uma espécie de suspensão,
renunciar ao passado, entrar no vazio, usar as suas ferramentas de maneira nova”.

A instrução que Philippe recebera era bastante provocativa. Naqueles trabalhos


que se fariam na Arca o objetivo seria alcançar o vazio que a mente guarda. Livra-se dos
costumes e crenças trazidos no contato com as mais variadas tradições religiosas. A Arca
concentraria os mais variados sujeitos das mais variadas tradições espirituais, ali todos
tentariam se livrar dos preceitos religiosos tradicionais. Doutrinas orientais entravam nos
trabalhos espirituais até então feitos na linha do mais puro cristianismo popular. Estes
modos de entendimento das doutrinas orientais tornavam mais relevante o
autoconhecimento do que a pura caridade cristã (o franciscanismo caridoso da Barquinha
por exemplo). Olhar para o interior e alí encontrar uma nova pessoa, ver que por de trás de
cada sistema religioso há uma só intenção.
Foi usando estes preceitos que a idéia da Arca começou a se radicalizar.
Philippe entendeu um dos mecanismos mais significativos que iriam marcar a identidade e
singularidade dos trabalhos feitos naquela casa. “Quando comecei a usar essa metodologia
trazida por esse ser, comecei a perceber que era possível uma coisa que imaginava ser
impossível. Isto é, ter no mesmo trabalho linhas e formas de trabalho diferentes. Tudo no
mesmo trabalho”85. A partir daí, a fisionomia dos trabalhos na Arca ganharam a
singularidade do mais radical dos sincretismos. Ter ao mesmo tempo linhas de várias
tradições religiosas, cantadas e louvadas em seqüência aleatória. Ter ainda mais de um
enteógeno, usar a jurema mas também o Daime ou outra que aparecer. Philippe encontrara
o caminho do mais radical e inesperado compartilhamento das tradições religiosas. Ele
trazia para seus trabalhos a confiança de que usando estes elementos religiosos difusos, eles
iriam ser guiados por uma força superior que os organizariam como um conjunto. Por mais

85
Philippe conta que em 15/07/89 já teria realizado um trabalho na linha da futura Arca usando Daime do
Santo Daime e Daime da Barquinha. Usando também linhas de um e de outro.

86
difusas que fossem as linhas, elas acabariam funcionando como uma coisa só no conjunto
final do trabalho. “No trabalho há como se fosse uma mão guiando, ela é quem escolhe o
que usar agora ou depois. Todos os elementos díspares vão sendo utilizados e no final você
vê que existiu um fio de ensinamentos. Uma técnica de cura, ou trabalho mediúnico, ou
meditativo”. Por mais díspares que pareciam as chamadas religiosas, elas eram guiadas por
esta “mão”, indicando o que cantar agora, depois, e assim por diante. Ao final sabia-se que
o trabalho tinha sido dirigido para uma só necessidade, ele teria funcionado para uma só
necessidade coletiva.
Para Philippe, estava-se conseguindo dar conta daquilo que o hino recebido por
ele em 89 falava, “redimir a Torre de Babel”. Redimir o erro primeiro que fez com que
todos passassem a falar línguas estranhas uns aos outros, interrompendo assim a
comunicação até então livre e direta entre todos os seres humanos. Para Philippe foi a
tentativa de alcançar o céu de forma materialista e racionalista que dividiu os homens em
várias línguas. “Esse mito representa essa dispersão das tradições espirituais, gerando o
desentendimento entre elas”. A Arca se coloca então como a possibilidade de experimentar
o encontro com aquela forma de compreensão mais antiga, que o homem havia perdido. Se
isso fosse conseguido, a Arca estaria demonstrando que há uma possibilidade de
compreensão mútua entre os homens. Haveria uma linguagem comum que nos aliviaria das
guerras e conflitos, demonstrando que existe um elemento comum que nos liga mais do que
os elementos diferentes nos separam, “a desunião mina as forças de todos”.
Por tudo isso, a Arca coloca como princípio geral para todos a idéia de que “é
importante quando você abraça um caminho, veste a camisa daquele caminho. Mas como é
importante um espaço onde você possa tirar a camisa e ver seu caminho espiritual de fora,
com o olhar de quem tem um outro referencial”. A Arca se constituiria num lugar em que
se livrar das preferências religiosas seria a primeira coisa a fazer. Se desindentificar com o
caminho escolhido até então, vê-lo por isso de forma diferenciada.
A filosofia do trabalho da Arca Philippe encontrou num texto de tradição oral
atribuído a Lao-Tsé: “uma das coisas que ele fala (Lao-Tsé), que depois de ter já ter servido
a muitos mestres, ele naquele momento se perguntava até que ponto a religião havia
ajudado ou atrapalhado no seu caminho espiritual”. Philippe também se colocara esta
questão. Para ele então haveria chegado o momento de fazer todos os preconceitos e todas

87
as dúvidas caírem por terra, permitindo que todas as tradições religiosas até então negadas
ou nunca conhecidas tivessem espaço na Arca. Ele pesquisou, estudou e se entregou à
procura por sistemas religiosos os mais variados possíveis. Todos eles estão na Arca, fazem
parte na ornamentação, nas preces, no altar, na roupa branca de todos, branco neutro,
branco que é cheio ao mesmo tempo que vazio, o branco como a cor que se dá pela mistura
de todas as outras.
O elemento que faz a grande libertação da consciência é definitivamente o
enteógeno. É através dele que as experiências místicas e de êxtase podem se realizar. Ele é
o elemento que junto ao sincretismo radical da Arca dá a peculiaridade da casa. Mas o
enteógeno também ele já é algo sincrético. Na Arca, a jurema ministrada junto com o
Peganum Harmala ocupou o lugar do Daime nos primeiros tempos enquanto este último
não era acessível. Com o passar do tempo, e com a radicalidade do sincretismo, o Daime
também começa a ser utilizado86. A comunhão com o enteógeno passou também a ser
sincrética. A jurema foi misturada ao Daime, passando a fornecer aos freqüentadores da
casa a opção de comungar com um dos três tipos de enteógenos presentes na casa. Ou seja,
a jurema com o Peganum Harmala, o Daime ou o vegetal da UDV87, e por último a mistura
da jurema com a ayahuasca.
Philippe considera algumas diferenças entra a jurema (sempre aqui com o
Peganum Harmala) e a ayahuasca. Tanto uma quanto a outra teriam os princípios
masculino e feminino (já citado na nota 82). Mas o Daime (ayahuasca) teria uma “força de
trabalho mais vertical, puxa mais para o espiritual. Trabalho meditativo. Ele é mais Pai. A
jurema tem uma força de Mãe, uma energia feminina. Força mais mediúnica”. Talvez
porque o Daime esteja relacionado aos contextos doutrinários das igrejas da qual ele é a
bebida sagrada. A jurema seria dada em outro contexto, não doutrinário, sem igreja, apenas
uma planta sagrada cultuada por populações as mais variadas possíveis. Talvez porque
Daime seja “O” Daime e a jurema seja “A” jurema. Ou ainda porque “ela tem um mistério,
não há argumento racional para isso”. Deve-se aí tentar mais do que em outro lugar
identificar a relação construída entre a jurema e o Daime. Não se pode à primeira vista

86
Philippe: “recebemos a ordem superior (do astral) para trabalhar com outras plantas além da jurema”.
87
Todos estes são a bebida conhecida de forma mais geral por ayahuasca, há entretanto pequenas diferenças
que são próprias das diferentes espécies de cipós utilizadas e ainda do feitio da bebida que cada tradição
religiosa guarda suas distinvidades.

88
entender esta relação Pai e Mãe construída entre Daime e jurema se quimicamente
carregam os mesmos princípios ativos. Esta construção é cultural mas também é sentida de
forma espiritual. Por isso ao discurso de Philippe, como a outros que serão vistos mais
adiante, deve-se dar o crédito da dúvida, pelo menos por enquanto.
O trabalho fundamental da Arca no entanto é para aquilo designado como
Escola do Espírito Santo:
“A experiência direta com Deus, com o seu mestre interior, com seu anjo da
guarda, seu guia, Buda, seja lá o que for. Conforme diziam os cavalistas, a Tora (a relação de
Moisés), ela tem a roupa, um corpo, uma alma e a alma da alma. Assim como não podemos
julgar um homem pela sua roupa (seu corpo), é preciso ir a alma da alma daquele homem e
também é preciso ir a alma da alma dos ensinamentos. A busca do trabalho espiritual é ir à
dimensão interior dos ensinamentos sagrados, não ficar preso a forma. Na forma há muitas
diferenças, mas no interior é tudo a mesma coisa.
Quando a força do Espírito Santo veio aos apóstolos (de Cristo, é claro), eles
começaram a falar línguas estranhas, os homens dentro de suas diferenças voltaram a se
compreender e trabalhar juntos”.

É finalmente no encontro com o Espírito Santo que a Arca tem sua principal
missão. É este espírito comum a todos os homens, que o fazem respeitar e entender todos os
outros, uns pelos outros. É a força que igualou os discípulos de Cristo como iguais. É a
“redenção da Torre de Babel” através do mais absoluto autoconhecimento. A interioridade
dos ensinamentos de todas as religiões que fundamentalmente falam de uma coisa só.
Perceber que algo único é esse, começa procurando-se no mais íntimo de cada um. Dentro
de nós está a resposta tão procurada, estão também as dúvidas mais atrozes e as certezas
mais ambíguas. Ver que a procura pode em si constituir já sua resposta. Encontrar-se no
procurar-se. Ver finalmente que dentro de cada um de nós falam inúmeras vozes. Que um
sopro originário nos criou. Criou todo que nos cerca e que por isso também somos parte
deste todo. O enteógeno coloca cada um de nós para fora e para dentro. Mostra o infinito
que recobre a alma por dentro, mostra o infinito que supera nosso entendimento, e por
causa disso passamos a entender.
O trabalho na Arca da Montanha Azul é espiritual antes de tudo. Ele tem uma
proposta política (a inter-religiosidade como manifesto em favor da paz mundial) e uma

89
terapeutica. “Os efeitos terapêuticos são inúmeros, melhora a vida, diminui complexos,
equilibra estados maníacos, acaba com a depressão, livra das drogas, promove o
desenvolvimento psicológico, há casos de curas de males físicos também”. Ainda não são
compreendidas exatamente como estas transformações podem ocorrer. Sabe-se entretanto
que elas ocorrem, são eficazes. O uso de enteógenos em terapias é algo bastante
pesquisado, mas ainda é um grande mistério como ele consegue produzir tantas prodigiosas
benesses. A relação espiritualista da casa não compromete sua terapêutica, o consultório de
Philippe não se distingue em termos decorativos daqueles expostos na igreja, na Arca. Se
for auferir alguma legitimidade aos resultados de tais terapias, eles com certeza devem
abrigar entre sua metodologia aqueles princípios que Philippe coloca como sendo a base
dos trabalhos na Arca. Estes princípios metodológicos são eles já princípios espiritualistas,
são mentores de um autoconhecimento, são encontro e por isso mesmo terapêuticos.
Assistiu-se a um trabalho da Arca da Montanha Azul poucas horas depois de
feita a entrevista com Philippe. Aqui se dará uma descrição sintética do trabalho realizado
na Arca da Montanha Azul registrado no dia 14/06/02. Na parte debaixo da casa e
consultório de psiquiatria de Philippe, um grande salão apresenta numa das paredes um
belo altar com imagens e quadros das mais impressionantes religiões e sistemas de crenças.
Entidades e santos das mais conhecidas, como Jesus, Nossa Senhora, Iemanjá, pretos-
velhos, passando por Buda, Khrisna, tudo o arcabouço místico/religioso hindu, africano,
norte-americano, sul-americano, pré-colombiano, mítico europeu e muitas outras. Não cabe
aqui e nem se poderia dar o nome de todas as entidades que são representadas neste salão
através de imagens, pinturas, quadros, esculturas, etc. Ao lado do altar estão dispostos sobre
um tapete vários instrumentos musicais, de violões, passando por atabaques, gongos,
maracás, bongos, uma especialidade de instrumentos de percussão, chegando à incrível e
bela cítara. Um aparelho de som mais encostado na parede grava as músicas recebidas nos
trabalhos e toca um som tipo new age antes de começar a sessão. Do outro lado do altar um
pequeno bar funciona como o local para a distribuição da bebida ritual. Uma luz
vermelho/verde bastante agradável recobre este bar. Uma luz mais fraca e branca acolhe
todo o salão. Sofás, tapetes, cadeiras e uma mesa com lápis de cores e papéis, para quem
quiser desenhar durante a sessão, completa o salão. Uma bela e enorme varanda com vista
pra mata que desce um morro completa a estrutura da Arca.

90
As pessoas que freqüentam a casa são em sua maioria profissionais liberais bem
sucedidos ou estudantes de faculdade, ou pós-graduação. Há certamente uma freqüência de
pessoas com distintividade social que preservam pela discrição com relação a sua
freqüência na casa. Ocorre sempre um número considerável de novatos nas sessões, neste
dia eles ultrapassavam o número de quinze. A maioria normalmente veste o branco.
Antes de começar o trabalho Philippe organiza tudo com seus ajudantes. Prepara
os instrumentos que vai usar e cada um faz o mesmo com aqueles que usará. Todos
encontram um lugar pra se sentar e Philippe fala à audiência. Principalmente aos novatos.
Explica-lhes o funcionamento da casa e dá a conhecer o modo de utilização das bebidas
sagradas. O vômito é recorrente após a ingestão da bebida, principalmente quando se tem
pouca experiência com estes tipos de enteógenos. Há baldes para isso espalhados no salão
caso a necessidade seja mais rápida do que a perícia em se chegar ao banheiro. Recomenda
a ingestão do Daime aos iniciantes, “escolham pelo que disser a voz de seu mestre interior”.
Há várias medidas para as doses distribuídas, cada um escolhe o quanto tomar, aqui
também uma orientação com “seu mestre interior” faz-se aconselhável. Aconselha também
a todos a entrarem na luz do vazio interior e aproveitarem as instruções que as músicas
cantadas e tocadas na sessão trazem. Caso a indisposição, ou coisa maior seja muito difícil
de suportar, que este chame por um dos mais experientes que estiverem próximos para
auxiliá-lo.
Uma prece inicial com todos de pé é feita. Nesta prece um incontável número de
seres, espíritos, entidades, santos e tudo o mais é chamada. Pede-se a proteção de todas elas
e que todas possam estar presentes no local aquela noite. Começando por Oshua, Jesus,
passando por tudo quanto é de entidade, incluindo aí os mestres e guias da jurema, citando
o mestre Carlos, a prece inicial dá espaço para a oração do Rio Jordão. Abre-se para a
distribuição ritual das bebidas. Canta-se concomitante esta distribuição. Toca-se de leve os
instrumentos. Quando todos já tomaram, Philippe começa o trabalho com uma música da
Barquinha. As músicas seguem sendo cantadas coisas do Santo Daime, da umbanda, coisas
indígenas, uma canção em inglês, um mantra indiano foi recebido e tocado em português na
cítara por Philippe, até Imagine de Jonh Lenon foi tocada no final por voz e violão. Na
maior parte em que pessoas incorporaram entidades discretas, músicas da umbanda foram
tocadas. O objetivo do nosso trabalho é caracterizar os símbolos e usos ligados à jurema.

91
Por isso se passará a dar prioridade apenas a jurema a partir de agora. Alguns exemplos de
pontos ou linhas cantadas para a jurema na Arca da Montanha Azul.

Meu cachimbo é um segredo


Pra quem me deseja o mal
Ô heina, heina, heina, ôa,
Ô, heina, heina, heina, hôa.

Sessenta anos eu passei lá na jurema (2x)


Se eu me zangar eu boto fogo no rochedo
Meu cachimbo é um segredo
Par quem me deseja o mal (2x)
Ô heina, heina, heina, ôa,
Ô, heina, heina, heina, hôa.

Esta linha foi cantada por Philippe e repetida em coro discreto, foi tocada
somente por maracás. Uma outra.

Ô juremê, ô juremá
Sua folha caiu serena ô jurema dentro desse congá
Sua folha caiu serena jurema dentro desse congá.
Eu chamo os caboclinho da jurema para trabalhar.

Salve São Jorge guerreiro, salve São Sebastião,


Salve a cabocla Jurema que nos dá a proteção.

Já esta foi tocada com mais vigor por tambores (dois no máximo um terceiro) e
violões. Aqui uma outra.

Nossa jurema é direita


Nossa jurema é ciência
Quem bebe dessa jurema
Desperta a consciência

92
Nossa jurema é Rainha
Que conforta o coração
Ela nos abençoa
E nos dá a salvação

Nossa Mãe, nossa jurema


É a voz do coração
Vamos ouvir esta Mãe
É a voz da proteção
(repete 1º parte)

Esta aqui foi tocada com vilão e tambores. Philippe estava em pé tocando um
tambor. Haviam pessoas incorporadas dando passes em outras no salão. Esta agora
acompanhou a anterior, também haviam pessoas ainda incorporadas, ela foi tocada ainda
por tambores e violões, é nosso último exemplo.

Jurema é cabocla da mata


Dono da mata é Pai Oxosse
Mamãe Oxum tá na cachoeira
Pai Oxalá é dono do terreiro

Eu sou caboclo, eu sou flechero


Sou caçador de feiticeiro
Na minha mão eu trago uma vela
No meu pescoço colar de pena
A minha espada é de aroeira
E quem me deu foi a jurema.

93
Terapias e Independência de
Leonor Chaves

Leonor Ramos Chaves é psicóloga trans-pessoal, ela é uma das principais


divulgadoras e experimentadoras de enteógenos no país. Tem trabalhos regulares usando a
jurema misturada ao Daime, aquilo que chama de JuDaime. Freqüentou a Igreja do Santo
Daime (pela primeira vez em 15/10/95) e fardou-se nela88 no dia dezoito para dezenove de
março de 1996. Depois passou também a freqüentar a Barquinha no Rio de Janeiro. Lá
descobriu pessoas que souberam do uso da jurema, uma planta parecida e diferente do
Daime. Teve oportunidade de fazer um trabalho com a planta nova (jurema e peganum
harmala) na casa de conhecidos, “foi para mim uma experiência maravilhosa,
completamente diferente do Daime num nível”. Passou a freqüentar depois trabalhos na
casa de Philippe no começo da Arca da Montanha Azul, narrada anteriormente. Foi sobre as
experiências dela com a jurema e outros enteógenos que conversamos em seu apartamento
em Laranjeiras no Rio de Janeiro. Seu depoimento é significativo daquilo que podemos
chamar dos novos usos de enteógenos no meio urbano feito por independentes, ou seja,
pessoas não ligadas a igrejas. Seu uso terapêutico também foi relatado, será essa a
preocupação a registrar agora.
Leonor passou a acompanhar vários trabalhos com jurema após tomá-la pela
primeira vez. Acompanhou Philippe quando resolveram misturar a jurema com o Daime.
Depois de muitos trabalhos com jurema e peganum harmala, com jurema sem peganum,
com jurema branca com ou sem peganum harmala e com jurema e Daime finalmente,
Leonor sentia que precisava fazer trabalhos próprios, uma coisa sua. Conseguia jurema de
amigos do nordeste, aprendeu o feitio dela o do peganum harmala. Tinha muito Daime
feito por ela com amigos em sítios de conhecidos no próprio Rio de Janeiro onde a
chacrona e o cipó são plantados. Pessoas começaram a procurá-la para fazerem trabalho
junto com ela. Leonor as recebia e começou a se formar um grupo com encontros regulares.
“Em agosto de 2001 retomei os trabalhos de forma regular passando a tomar com algumas
pessoas”.

88
Um “fardado” do Daime é aquela pessoa que se torna um fiel da Igreja e passa a ter obrigações espirituais e
também de cunho estrutural com a igreja. Este passa a usar nos trabalhos uma roupa que o distinguirá dos não
fardados e tomará maior participação na realização dos trabalhos.

94
O trabalho que Leonor realiza é sempre feito com jurema junto ao Daime
(judaime).
“Tem uma abertura chamando os elementais. Uso coisas da Grande
Fraternidade Branca, mestres funcionados, alguns atenos. Abro com alguns hinos da jurema,
agente comunga o enteógeno e faz uma meditação. Nessa concentração coloca mantra ou
versos, sempre numa única linha, pode ser hinduísta, sufista ou nova era, é um trabalho
eclético. Pode abrir missa, hinário de cura (Santo Daime) e aí podemos estar fardados com a
farda do Daime, todos somos fardados de lá. Pode cantar hinário do Daime, coisas da jurema,
os hinos da Yatra, hinos recebidos aqui (eu já recebi dois). Fazemos concentração, abre-se
corrente de cura e fecha-se o trabalho” .

Os trabalhos não têm dia certo, mas são realizados sempre dependendo das
necessidades do grupo ou melhor opção de data. São realizados numa pequena sala de seu
consultório de psicologia. Muitos clientes dela tomam o enteógeno nestas oportunidades.
O enteógeno que Leonor serve nestes trabalhos é feito com o cozimento em conjunto da
jurema, do cipó ou jagube e da folha ou chacrona. É um preparo muito específico, também
bastante sigiloso, é-se preciso ter o conhecimento bem específico de seu feitio. Antes
cozinhava a jurema separada do cozimento do Daime, mas depois se passou a se fazer tudo
junto. Acabando-se por deixar de usar o peganum harmala, já que o mesmo, segundo
Leonor, é altamente tóxico.
O uso terapêutico do enteógeno é a característica central do trabalho de Leonor,
ela reconhece a eficiência do enteógeno como inigualável em qualquer tratamento
psicológico. O limite entre um uso terapêutico e espiritual é aqui também bastante vago,
sendo mesmo imperceptível. A resposta que ela deu quando perguntada sobre os usos
terapêuticos com a bebida é revelador dos locais onde o enteógeno rege regras tão
impressionantes. Eis a resposta de Leonor sobre o uso terapêutico do “judaime” : “trabalho
espiritual é diferente do terapêutico, mas o que vem no espiritual é tecnologia de ponta em
psicoterapia. Nada é igual, nem tão rápido, nem tão transformador. Nem hipnose, nem
holotrópico, nem LSD, nem o que você imaginar. Nem renascimento, nem yoga, nada é tão
transformador!” Leonor percebe que a jurema ao comunicar à psiquê um conjunto de
percepções, transforma a consciência de tal maneira que as mais desenvolvidas técnicas de
psicoterapia não conseguem atingir o local do problema tratado numa terapia convencional.

95
Não se sabe exatamente porque a jurema, ou o “judaime” são tão ricos como eliminadores
de complexos e traumas. Os estudos são muitos incidentais para se chegar a qualquer
conclusão. As informações são muito pouco sistematizadas. Sabe-se apenas que o
enteógeno produz os efeitos esperados. Repercute na vida daqueles que fazem sessões com
ele a ponto de devolver ao niilismo desolador da depressão a autoconfiança contemplativa
do sonhador.
Leonor tem uma teoria, ainda em estudo, acerca destes elementos terapêuticos
encontrados no uso de enteógenos89. A jurema assume papel mais impressionante que o
Daime neste contexto.

“Tenho uma teoria sobre isso. A jurema rompe a sua estrutura psíquica. Ela é
uma planta muito forte. Não é a toa que tem gente que tem medo. Ela é Ela. O Daime respeita
a sua estrutura psíquica. A jurema não, ela puxa pro seu Eu interior mesmo. É por isso que
tem gente que não agüenta. A jurema dá umas quebradas mesmo, desfragmenta.

Romper a estrutura psíquica é algo que deve levar a muitos para uma
curiosidade excepcional. Desvendar os limites, encontrá-los parece ser a maior das
implicações do uso destas substancias. Mas a jurema vence qualquer um, “Ela é Ela”, a
jurema toma conta da consciência a ponto de ampliá-la até tomá-la de vez daquele que
ingeriu a planta, quando ela faz isso não faz por covardia, faz por redenção, a jurema
redime e conforta, ela leva a consciência ao ponto perdido da coragem e do querer. Depois
de passar por experiência com planta de tamanho poder, as pessoas repousam a consciência
num espectro muito maior do que aquele vivenciado cotidianamente. A jurema ao
transportar para mundos de razão e desrazão codificados pelas sensações de
maravilhamento e êxtase, colocar a vida e as atitudes diante dela como as coisas mais
significativas e saborosas da experiência humana.
Um não ser encontrado nestas luzes da jurema traz a tona um novo ser, até que
ele se destrua e se conserve na insidiosa violência do querer apaixonado, aquele
instrumento mais da vida do que da morte. Mais feliz que preocupado, nunca indiferente,
atento, consciente e oportuno, a jurema reconstitui uma maneira de viver. Ela enfim traz

89
O trabalho de graduação de Leonor em psicologia foi sobre o uso terapêutico de enteógenos.

96
algo construtivo, rompe e constrói. Ensina e maravilha, e nisto ela é mãe, ela é a idealização
do bem, do conforto. Mas ela já o é, Leonor o diz bem: “Ela não bate, o Daime bate, coisa
do cristianismo, da igreja. Ela te faz em mil pedaços, mas quando você vê, você já está em
mil pedaços. Sem apanhar propriamente dito. Realmente não é pra qualquer um”. E mais:
“auto confiança foi uma coisa que eu aprendi na jurema, no Daime nunca”. A jurema é o
sonho tornado hiper-realidade. A jurema é viver o imprescindível como quase impossível.
Não se narra o que se entende pela metade, o que a linguagem não exprime, mas não se cala
sobre o que comove. E a jurema nos continua fazendo falar, como cantam sossegadas vozes
de divas etéreas.
O uso do Daime e da jurema assume características próprias no trabalho de
Leonor. Ela faz experiências com os dois enteógenos adequando a quantidade de cada um a
depender do modo como gostaria de trabalhar a psique. “Às vezes uso mais Daime pra
concertar o que a jurema fez (abriu). Quando ta muito fragmentado, com muito conteúdo, é
mais Daime e menos jurema. Quando ta muito estabilizado, aí é mais jurema. A jurema é
mais curadora”. A jurema aparece mais uma vez como a grande ousadia do trabalho. É ela
que desequilibra, desqualifica e reconsidera. Ela desmonta pra fazer crescer, ela tem
“muito conteúdo”, “fragmenta”, a jurema neste desfazer total permite uma sensação de
realização fenomenal que leva o indivíduo a querer construir aquilo que temia, vence o
medo. “Aprendi a confiar no enteógeno com a jurema. A história é em você, não a bebida,
essa é um trampolim, mas a história é em você. A música quem vai tocar é a sua Arca
interna”. Se há um porquê a jurema nos deixa próximos de uma resposta, mas chegamos tão
próximos que já não sabemos exprimir nossa admiração, ficamos mudos e para o resto de
tudo quase se soam palavras ilegítimas, quando só são sopro da pequena parte daquilo que
nos cativou.
A maior preocupação de Leonor consta da manutenção do uso dos enteógenos.
Como trabalha de modo privado, separado e independente de igrejas, ela teme que a busca
avançada por experiências de êxtase venha a determinar um controle extremado das
instituições religiosas sobre as bebidas enteogênicas. As igrejas se responsabilizando pelo
acesso e controle dos enteógenos, restringindo assim seu uso em contexto religioso
institucional. A controvérsia supera o debate sobre a legalidade do uso religioso por igrejas
para o papel dos “psiconautas”, dos independentes e experimentadores. Daqueles que usam

97
os enteógenos como experiência terapêutica e mística, assumindo a aposta de encontros
com mistérios indeterminados, sem assumir a doutrina de qualquer lugar, permitindo que o
saber saiba nascer do desafio. “As igrejas fizeram uma espécie de ‘direitos autorais’ sobre o
enteógeno. Isso é um patrimônio da humanidade”. Respeitar o uso consciente do enteógeno
por pessoas experientes, reunir pesquisadores e experimentadores (devotos?) num grupo
institucionalizado para os proteger, proteger seu acesso e uso de plantas enteogênicas.
“O problema maior não são as leis, estas até nos protegem. O problema maior
são as igrejas que podem querer manipular com essa história”. Proteger os independentes
das igrejas, enquanto o estado cristaliza uma discussão real acerca dos usos de enteógenos.
Se o apelo das igrejas for pelo controle do enteógeno, a jurema será a única a escapar deste
controle? Se a jurema é o grande diferenciador nesta história, é porque ela surge separada
de qualquer contexto de igreja.
“Vamos fazer uma associação. Vamos fazer um registro. Procuramos um nome
tipo ‘associação dos enteogenistas independentes’”90. Conhecer e procurar. Uma busca, um
saber, um privilégio. Tudo se soma nesta inacreditável originalidade pós-moderna. Assumir
os desgastes e confortos de trabalhos baseados na ingestão de enteógenos constitui marca
destes personagens urbanos que assumem seu privilégio com graça, merecimento. Fazendo
do uso destas substancias exemplo de respeito e tolerância. Assumir com eles a
responsabilidade e a confiança de suas práticas nos autoriza a convocar o dinamismo e a
originalidade das feições mais comuns que construíram o ser urbano. Deve ele agora tomar
de todo crédito seu pioneirismo, não há voz que possa dizer o contrário, um pioneiro sabe
melhor que ninguém onde está pisando, qual o melhor caminho, deve-se seguí-lo os passos,
se o quiser fazer acompanhar. O caminho das pedras é reconhecido como mistério, deve ser
este mistério o acompanhar nosso respeito e confiança. Fazer como estes fizeram tantas
vezes, conhecer o terreno, consagrá-lo a partir para outro, como fazem os desbravadores de
novos mundos, aqueles que conhecem, aqueles que fazem valer o desejo e o saber.

90
Em comunicação posterior a esta entrevista, Leonor afirmou que a associação está pronta e chama-se
Centro de Comunhão Enteogênica Flor de Jurema. Localiza-se num sítio em Piabetá, próximo a Magé,
região metropolitana do Rio de Janeiro.

98
A jurema no contexto mundial

O psiconautismo de Ali Zeitoun

Ali Zeitoun é um egípcio engenheiro de navegação marítima que mora em Santa


Fé, Novo México, nos Estados Unidos. Ele é o que se poderia chamar de um psiconauta.
Ali faz várias experiências com enteógenos de todo o mundo. Viaja o planeta a procura de
experiências extáticas. Ele tem uma enorme curiosidade pelo conhecimento indígena acerca
do controle da consciência através do uso de plantas psicoativas. Busca aquilo que se
chama de “conhecimento ancestral”, a magia do misticismo xamânico. De todas as plantas
xamânicas que Ali encontrou nesta sua busca e pesquisa pelo mundo, a jurema é uma das
mais significativas, “uma das mais poderosas que já conheci”. A partir do uso de plantas
enteogênicas, Ali passou a se ocupar também de uma exploração espiritual, “fazemos
pesquisas espirituais, a planta ensina como viver, como aprender, corrigir a vida”.
Foi em entrevista realizada no Rio de Janeiro e posteriormente num segundo
encontro em Campina Grande que se recolheram as informações acerca de suas
experiências e impressões sobre o uso da jurema. Sua forma de conhecer o uso da planta é
significativa de como a jurema já está popularizada fora do Brasil. “Um amigo meu de
origem indígena norte-americano me apresentou a jurema misturada com o peganum
harmala. Este amigo meu esteve no Brasil, outros lugares também, pesquisava. A jurema é
muito conhecida nos E.U.A.”. Ali já conhecia a ayahuasca desde a muito tempo. A havia
tomado pela primeira vez em igreja no Brasil, depois inúmeras vezes tanto em igrejas como
em comunidades indígenas no Brasil e fora dele. Conhecia a região da Amazônia e estados
vizinhos aonde se encontram as famosas igrejas cristãs ayahuasqueiras brasileiras.
Conhecia o uso religioso da ayahuasca por estas igrejas também no resto do país e fora dele
incluindo aí a cidade norte-americana de Santa Fé onde mora91.
Interessado em conhecer o uso ritual da jurema, passou a procurar pessoas que o
faziam. Ouviu falar de Yatra, uma brasileira radicada na Holanda que a utilizava em

91
Revista Época de oito de setembro de 2002 trás matéria sobre a legalização do chá ayahuasca para a
comunidade religiosa da União do Vegetal (UDV) nos Estados Unidos, que já conta com três casas e cerca de
cento e oito freqüentadores. A petição legal partiu da comunidade da UDV localizada na cidade de Santa Fé,
Novo México (E.U.A.).

99
trabalhos espirituais e terapêuticos. Viajou até aquele país procurando experimentar a
jurema de que tinha ouvido falar nos E.U.A. “Trabalho em silêncio, todo mundo calado só
com uma música ambiente, foi a minha primeira experiência com jurema. Depois participei
de trabalho com hinário da Yatra, todo mundo cantando e tocando”. A partir destas
experiências, Ali passou a se interessar em aprofundar o estudo com a jurema. Voltou da
Holanda junto com um grupo e a própria Yatra para conhecer o trabalho que esta faz no
Alto Paraíso, em Brasília. Ali descobriu muitas pessoas que tomavam a jurema, conheciam
outros enteógenos principalmente a ayahuasca. O trabalho da Yatra no Brasil também
segue o estilo daquele feito na Holanda, sendo trabalhos temáticos nos quais se fará mais
direcionado ao espiritual ou ao terapêutico. No espiritual segue-se a linha de trabalho do
Santo Daime com hinário, música e canto. Nos trabalhos terapêuticos varia-se muito indo
do puro relaxamento e autoconhecimento, todos em silencio com música ambiente,
passando pelo mesmo só que agora todos nus, até trabalhos em que se canta e movimenta-
se.
Ali voltou aos Estados Unidos onde encontrou mais pessoas que conheciam a
jurema e seu uso enteogênico. “Um amigo meu dono de uma empresa que vende material
indígena, a Native Sends, me ensinou sobre a jurema. Nós a usávamos num grupo pequeno,
meditando, sem ritual”. Continuou a usar a jurema junto com amigos nos Estados Unidos.
Faziam trabalhos meditativos e de autoconhecimento. Grupos pequenos em que se prezava
pela discrição e pelo sentido experimentalista do uso, sendo contudo a vivência da
espiritualidade encaminhada pelo uso do enteógeno. A pesquisa experimentalista de Ali
casa-se com aquela que desenvolve acerca da espiritualidade. O autoconhecimento que
identifica no uso da planta é também uma investigação mística, espiritual. Foi a partir desta
vivencia espiritual com a jurema que Ali continuou a viajar em busca de mais informações
sobre o uso da jurema e também do peganum harmala.
Viajou até seu país de origem, o Egito, onde procurou os beduínos do deserto no
Monte Sinai, “eles me ensinaram a usar o peganum e outros tipos de mimosa parecida com
a jurema”. O peganum harmala é uma planta de origem dos desertos da Palestina, Oriente
Médio, Egito e região. Ali se interessava em ver como era o uso e conhecimento ancestral
do peganum harmala. Queria descobrir a origem do uso e assim tornar mais clara a relação
deste com a espiritualidade. Neste sentido também organiza uma visita ao Brasil apenas

100
para conhecer o trabalho dos índios do nordeste com a jurema. Para Ali, “a jurema é uma
planta mais indígena que a ayahuasca”. Como conhecera em primeiro lugar a ayahuasca no
contexto de igreja e via na jurema uma planta de uso apenas indígena e no peganum
harmala a mesma coisa, um uso próprio dos beduínos, se identificara com a planta que
tinha tamanho poder e era muito menos conhecida do que a ayahuasca, ou o Daime.
Em diferentes partes do mundo descobriu pessoas usando e os mais variados
usos da jurema. “Tem grupos de uso na Austrália, nos E.U.A. ex-membros do Santo Daime
usam a jurema agora. Eu plantei uma jurema-preta no Egito, ela está crescendo. Tem muita
gente tomando jurema no Egito”. Na Europa, mas em outros lugares também, “tem gente
que aprende sobre botânica e farmacologia. Aprende a fazer cristais concentrados da planta
que podem ser fumados”92. Grupos na Europa, nos Estados Unidos, no Brasil, na Austrália,
no Egito,no México, na Holanda, em tantos lugares diferentes e distantes a jurema passa a
ser conhecida e utilizada. Em todos estes lugares ela apresenta um uso basicamente similar.
São pessoas experientes, muitas com passagem por enteógenos outros, que querem ter
contato com uma nova alternativa de experiências extáticas mais diluídas, ou seja, fora do
contexto de igreja, da rigidez delas. São pessoas que como o Ali tem interesse em conhecer
os mistérios da mente e da espiritualidade através do uso de plantas enteogênicas, que se
encantam com a idéia de ancestralidade e originalidade indígena ligada ao conhecimento da
planta. Pessoas interessadas em conhecer o segredo dos índios e seus mistérios. Interesse
em xamanismo e aquilo que guarda de mistério.
Algumas dessas pessoas tem a extrema sensibilidade que Ali demonstra. Para
ele a jurema é a mais indígena das plantas sagradas. O Brasil é o país onde a jurema-preta é
a mais forte, mais que no México ou Egito. Os índios do nordeste brasileiro guardariam os
maiores segredos dos mistérios da planta. Eles teriam o conhecimento mais ancestral, Ali
os quer conhecer, “vou conhecer os Torés dos índios e aprender com os pajés, sua história,
sua mitologia”. É do nordeste brasileiro que Ali prefere levar as casca de raízes de jurema-
92
A jurema transformada em cristais é fumada usando-se uma espécie de “cachimbo”. Quando aspirada com
força provoca cerca de quinze minutos de mirações fortíssimas, as chamadas visões. Não se usa o peganum
harmala, já que o consumo da planta se faz via respiratória e não oral. (esta informação é do próprio Ali). O
Daime também tem um uso deste tipo principalmente na Europa por pessoas fora de contexto de igreja ou
sagrado. Ele é fumado por jovens em discotecas ou algo parecido. Dele se faz um preparado em pó, chamado
de Daime Nescafé, envolve-se numa seda como num “baseado” e então se dá uma ou duas tragadas que serão
o bastante para quinze a vinte minutos de efeitos fortíssimos. Também se relatam usos do Daime em
comprimidos, tendo o mesmo efeito que o chá sem causar enjôos e sem ter o mau gosto da bebida. Há poucos
dados sobre o assunto, muitos boatos e quem sabe até algumas invenções.

101
preta para fazer a bebida nos Estados Unidos. Para ele é surpreendente o desconhecimento
da população brasileira em geral sobre a jurema. Quando pergunta às pessoas sobre a
jurema poucos podem lhe contar algo legítimo, “ela é quase desconhecida aqui (Brasil)”.
“Os indígenas são o valor do conhecimento das plantas sagradas. O mundo todo
está curioso”. Ali sabe que uma grande valorização é dada ao conhecimento indígena por
parte extensa da população dos grandes centros urbanos. As pessoas têm interesse em saber
quando fazem, pra que fazem e principalmente como fazem os indígenas os trabalhos com
plantas deste tipo. As pessoas interessadas neste tipo de conhecimento permitido por
enteógenos, também procuram inspiração e descobrimento em lugares outros além daqueles
propostos até então pela produção cultural do ocidente. A aventura do conhecimento que a
jurema como outros enteógenos permitem é fundamental para o estilo de vida de grande
parte da população ocidental que achou no uso destas plantas o caminho para a paz e a vida
tranqüila imprescindível para a qualidade dos esforços intelectuais, econômicos e claro
emocionais.
“Ela é que guia nossa vida, assim como para os Kariri-Xocó de que fala
Clarice93. A jurema vai ser sempre um segredo. O ocidental quer roubar este segredo, por
isso temos de preservar os índios que são os conhecedores do segredo”. Ali sabe o que a
jurema transforma, sabe porque ela é tão importante. O conhecimento produzido hoje no
mundo ocidental, ou em quase todo ele é já bastante dirigido para estas interpretações não
totalitárias presentes na cosmologia e entendimento indígena acerca do mundo, das pessoas
e sobre si mesmos. A jurema teve e tem um papel fundamental neste novo esforço do
entendimento humano. Está-se pronto para se produzir uma nova postura cultural na tão
mal falada civilização. Deve-se começar por entender que o uso de enteógenos apenas
prescreve uma infinidade de linhas de conhecimento, mas antes de tudo é preciso acreditar
ser possível, é preciso saber fazer como, ter paciência para entender e respeito para usar,

93
Cita aqui Clarice Novais da Mota, antropóloga que trabalha aspectos etnobotânicos junto a grupos
indígenas do nordeste e com os Kariri-Xocó principalmente. Tem publicado sua tese de doutoramento na
University of Texas de Austin intitulada ‘As jurema told us: Kariri-Shoco and Shoco mode of utilization of
medicinal plants in the context of modern Northeastern Brazil. De 1987. Além de outros artigos e livros em
inglês e português sobre o assunto. Para maiores detalhes ver o capítulo um e a bibliografia no final deste
trabalho. Para a bibliografia em inglês de Clarice N. da Mota, conferir em MOTA, C.N. da e Albuquerque,
V.P de (org.). As muitas faces da Jurema: de espécie botânica à divindade afro-indígena. Recife: Bagaço,
2002.

102
porque aqui também concordo com Ali “a jurema vai ser mais famosa que a ayahuasca. Ela
tem mistérios diferentes, mais profundos. É uma pesquisa sem fim”.

A jurema navega na rede - apropriações e mercado na internet.

O mercado de enteógenos e plantas psicoativas da internet, parece ter


encontrado a jurema a pouco tempo. Em alguns deles, a jurema é anunciada como new, ou
seja, um novo produto à disposição dos psiconautas. Na internet, existe um grande mercado
de plantas psicoativas. Pela rede se compram desde sementes de maconha até ayahuasca,
San Pedro, as mais incríveis e também desconhecidas plantas psicoativas. A jurema
aparece nesse mercado concorrendo com estas muitas espécies de plantas. Pesquisei alguns
destes sites na internet para demonstrar como a jurema está sendo absorvida de forma
rápida por populações as mais diversas do mundo através da rede. A contemporaneidade
não apenas motiva o uso de plantas psicoativas, como já falei, mas também pela suas
características capitalistas, construiu sistemas de comunicação e mercado que facilitaram ao
homem das grandes cidades nos mais diferentes países a aquisição de plantas/substâncias as
mais diversas.
A jurema tem um preço alto neste mercado. Ela é anunciada como novidade, o
que é raro em termos de plantas psicoativas. Os sites que vendem estes tipos de plantas têm
algumas estratégias para não correrem o risco de atrito com autoridades do governo.
Governo do país onde o site está hospedado e em menor grau daquele país para onde se
vendem estes produtos. A maioria dos sites especializados neste campo, vendem qualquer
planta para qualquer país. A preocupação maior sobre conflitos com governo ou polícia
deve, na maioria dos casos, ser de responsabilidade do comprador. A maior parte destes
sites usa a estratégia de vender plantas psicoativas como se fossem plantas exóticas para
ornamentação. Muitos deles vendem estas plantas in natura. Outros vendem as sementes
para plantio. Muitos vendem no atacado, mas a maioria no varejo. Por maior que seja a
indicação de que se vendem plantas ornamentais, nestes sites, o pequeno espaço explicativo
sobre cada uma das plantas deixa bem claro que a proposta é outra. A venda é proibida para
menores, com indicação clara em quase todos os sites. Os preços são normalmente dados

103
em EURO, ou em menor quantidade em peseta, estes sempre espanhóis. O interesse nestes
locais é demonstrar quais as características psicoativas das plantas anunciadas, para isso, se
discriminam as sustâncias psicoativas mais importantes presentes nelas.
Vou expor alguns dados referentes a sites que vendem a jurema como
enteógeno. A jurema nestes locais é vendida tanto in natura, a planta em si, como apenas
suas sementes, cascas de sua raiz, ou ainda estas cascas transformadas em pó (cristais) para
serem fumadas. Vejamos um primeiro exemplo.
O site http://www.seekershop.com, vende jurema preta brasileira. Seus preços
como os da maioria são dados em EURO ou Dolar. Ele dá informações sobre a jurema
brasileira que vende, “Brazilian Mimosa Hostilis Root Bark. The Brazilian stock is a native
strain known as canelinha. The root bark of this stock is extremely thick from mature
specimens. This Brazilian crop is freshly harvested and dried”. A parte mais significativa
parece ser esta, “This plant has been used in the cosmetics and perfumery industry in recent
times however it's traditional use was in the Jurema Cults of Brazil”. O uso tradicional da
jurema nos cultos religiosos brasileiros é o que chama a atenção para a planta, ela é
conhecida nestes meios pelo seu uso ritual e conseqüentemente como muitas outras
apresenta por causa disso propriedades psicoativas, o que de fato importa àquele comprador
destes sites.
Uma tabela informa os preços de cascas de jurema preta brasileira:
Brazilian M Hostilis Root Bark: 30g. (app. 1 oz.) - $25
Brazilian M Hostilis Root Bark: 100g. (over 3 oz.) - $60
Brazilian M Hostilis Root Bark: 250g. (app. 1/2 lb.) - $125

O comprador faz o pedido clicando num dos quadros indicativos do valor da


compra. O pagamento pode ser feito de várias maneiras, “We now accept payment from
MC/Visa through Authorize.net. If also interested in paying by money order or PayPal
simply use the use the shopping cart and select your payment method and an invoice will be
generated. You may also pay by mail with your credit card”. A tecnologia da internet e
também aquela usado no site, permite compras on line.

104
O site também oferece o Peganum
harmala94, o ingrediente indispensável para o
composto associado da jurema. “Whole Syrian
Rue Seed (Peganum Harmala), a common
substitute for B. Caapi as well as an interesting
plant that has had a long history of use as an
incense, tea, and to produce a red dye. This plant
has Monoamine Oxidase Inhibitor properties and
like all of our products it is not sold for human consumption”. A informação deixa claro
que o Peganum harmala é inibidor da monoaminooxidase, é o substituto para o cipó da
ayahuasca. As características relacionadas os Peganum, são indicativas de seus usos, como
chá, incenso, e para uma tintura vermelha. A informação importante é porém para a mistura
com a jurema como inibidor da MAO. O Peganum é
conhecido nestes meios como Arruda da Síria, aqui a
qualidade dela é indicada pela sua procedência, vindo da
Síria via Emirados Árabes, o peganum vendido aqui tem
maior quantidade de alcalóides do que o que vem do
México, o dobro. Os preços dados são os seguintes:

Peganum Harmala Seeds - 30g. (app. 1 oz.) - $5


Peganum Harmala Seeds - 100g. (over 3 oz.) - $12
Peganum Harmala Seeds - 500g. (app. 1 lb.) - $35
Peganum Harmala Seeds - 1000g. (app. 2 lb.) - $55

Um outro site que vende jurema preta é o http://ethnobotanicals.org. Neste


site, a jurema pode ser comprada até por telefone, “If you do not want to order over the
Internet, you may call your order in Toll-Free at 1-888-274-6824. This number is for orders
only. If you have questions you may call us at 1-502-459-7401”. Além da compra normal
pela internet, o cliente pode comprar via telefone como também tirar suas dúvidas sobre o

94
Fotos do Peganum harmala. 1ª, a planta. In: http://www.seekershop.com. 2ª, sementes, a parte usada. In:
http://www.ethnoplanet.dk/prvcgi/www_ethnoplanet_com/Varer.asp?Kategori=21.

105
negócio ou a planta que deseja comprar. Saber como se usa, mas mais ainda saber das
garantias de qualidade da mercadoria. Este site mantém também um texto sobre a jurema
para alguns esclarecimentos acerca de suas substâncias psicoativas, “Latin Name: Mimosa
Hostilis. Common Name: Jurema Negra (Mimosa Hostilis). Uses: Hallucinogen.
Comments: Mimosa hostilis contains 0.57% N,N dimethyltryptamin (DMT). M.pudica has
the lowest tryptamine concentration. Low amounts of tryptamines and DMT has been
found in Mimosa somnians "Jonathan Ott: Pharmacoteon s.174-175 1993". A citação do
autor famoso coloca alguma legitimidade na substância oferecida. Preste atenção na
indicação usos: Alucinógeno. Para garantir que a jurema provoque interesse ainda maior o
site continua, “M. hostilis, M. niagra and M. verruosa were used as the basis of the
entheogenic brew ‘Vinho de jurema’ in Brazil. According to Legendary Etnobotanical
Resources M.tenuiflora has a very high tryptamine concentration in roots and stems”. A
jurema está garantida como uma planta que tem alta concentração de triptamina, uma de
suas substancias psicoativas. Um texto de Yatra retirado de sua página na internet reforça
os aspectos rituais do uso da planta no Brasil e suas características psicoativas. O preço
aqui é:

30 grams
Rootbark $18.99
c/s
(Mimosa hostilis)

Mais um exemplo interessante. O site http://www.salvialight.com, começa sua


descrição do produto jurema com uma narrativa sobre seu uso ancestral no nordeste
brasileiro, usa para isso o trabalho antigo do Gonçalves de Lima (citado na bibliografia
deste trabalho), “Historically: In northeastern Brazil, Mimosa hostilis, a common flowering
leguminous tree. ‘In the eighteenth and nineteenth centuries, there were a number of reports
from northeastern Brasil of the use of an inebriating beverage called Vinho da Jurema’
(Goncalves de Lima 1946)”. O Vinho da jurema não é traduzido, somente indicado como a
bebida feita a partir da árvore jurema. Seu uso seria ancestral, datando do entre séculos
XVIII e XIX, conforme indica Gonçalves de Lima. A bebida inebriante feita da árvore é o
detalhe mais interessante, mas o site ainda encontrou mais um forte argumento para atrair a
curiosidade de seus clientes. Continua o texto, “a use said to be extinct today (Schultes and

106
Hofmann 1980) but evidently continuing underground (Da Mota 1987)”. O uso
underground que se refere o texto não é explicitado, nem existe uma bibliografia para
consulta, apenas a citação de referencia no texto. Parece, entretanto que o uso dito
underground toma como referencia Da Mota, 1987, esta referência deve indicar o texto de
Clarice Novaes da Mota citado em nota de pé de página um pouco acima (nota 92).
Interessante destacar que Ali cita este mesmo texto, o texto em questão de Clarice foi um
dos primeiros que tratou a questão do uso da jurema por populações contemporâneas, no
caso indígenas, ele além de ser um dos primeiros a tratar do assunto foi publicado em inglês
no original, cuja tradução para o português não foi ainda feita.
O que parece indicar uma confusão no texto aparece como uma estratégia. Pelo
que se conhece deste texto de Clarice, e pelos outros que lhe seguiram, o chamado uso
underground refere-se ao uso da jurema em rituais secretos, no qual o branco não tem
acesso (como narrado aqui no capítulo um para Kariri-Xocó e Karapotó). Este uso secreto
seria uma condição da manutenção e identidade do grupo. Sendo mais do que “escondido”
porque proibido, ele seria proibido porque vetado. Mudando a semântica do termo
underground nos moldes em que foi empregado no texto do site. Não seria um uso extinto e
agora empregado de forma sigilosa, o uso da jurema nunca foi extinto, as práticas indígenas
com a planta são contemporâneas, mas guardam relação com práticas ancestrais, ou pelo
menos tentam caracterizar seu uso deste modo. O site leva a pensar de forma bastante
diferente, instigando o consumidor a experimentar uma planta “proibida” e quase “extinta”.
Mas o melhor segue, aquilo que de fato95
interessará sobremaneira o possível cliente, “In
1964, the botanical source of Vinho da Jurema was
identified as the roots of Mimosa Hostilis. Mimosa
belongs to the Leguminosae family as does
Anadenanthera Peregrina”. O chamado “Vinho”
ganha identificação científica relacionando
efetivamente à jurema. A árvore também aparece identificada a uma família de importantes
plantas psicoativas. O site passa na última parte do texto sobre a jurema a instigar o espírito

95
Foto, cascas de raiz de jurema preta brasileira como vendida na internet. In:
http://www.seekershop.com/images/brazilianmhrb.jpg.

107
aventureiro do já mais próximo cliente, “This plant is legal to import or posess. Not
intended for consumption. Traditional preparation and consumption of this plant has been
documented in the literature. Nowadays consumption is illegal in most countries”. A planta
é legal, porém seu consumo não. Pode-se importar à vontade contanto que se restrinja a um
uso tipo ornamental. O texto segue indicando uma possível literatura sobre o uso tradicional
da planta quem sabe nos moldes do “Vinho” inebriante da jurema. Deixa em suspenso para
o consulente do site a oportunidade de ter e quem sabe usar a planta tal como faziam (sic)
os habitantes do nordeste brasileiro. Por último apresenta uma tabela de preços de casca de
raiz da jurema preta do nordeste brasileiro, não cita o peganum harmala, apostando nos
poderes do tal “Vinho”. Os preços aqui são:
Mimosa Hostilis (tenuiflora) Root Bark
25 grams..........$12
50.grams..........$20
100.grams........$36
200.grams........$65

O site http://www.shamanshop.net, apresenta a jurema preta de forma bastante


interessante. Ela é referida como um “incenso”, assim: “'Jurema': This is exotic incense
from the plains of Mexico. Fresh, whole chunks of stem bark, hand harvested and slow
dried to retain the maximum potency”. Depois de uma operação de ressecamento, a casca
adquire sua máxima potência. Transforma-se num incenso bastante exótico. O site utiliza
dados sobre seu uso no Brasil por populações indígenas, “The preparation of the brew from
fresh Jurema bark for trance possession rituals is simple, but the ritual itself of the Atikum
tribe surrounding this preparation is complex”, onde o feitio da bebida é simples, mas o
ritual é complexo. Ganhando os Atikum (narrado no primeiro capítulo deste trabalho) uma
visibilidade internacional. O texto segue descrevendo como os Atikum fazem a bebida com
as casca da raiz da jurema, “Only those roots that face the rising sun are picked, placed in a
container filled with cold water and squeezed over and over again, until the water turns a
very deep reddish brown color. The foam that forms on the surface is discarded, along with
the coarse residue, leaving only a liquid extraction”. Do mesmo modo em geral daquilo
descrito já aqui anteriormente, dando-se porém, pouca importância aos símbolos sincréticos
cristãos deste preparo. O texto passa a narrar um pouco do ritual onde se bebe da jurema, o

108
mais impressionante e exótico é o momento em que os índios incorporam, “The Jurema
brew is now ready to be taken during rituals that beckon the spirits of the caboclos called
'Encantados de Luz' (Enchanted Beings of Light) to descend into the bodies of the mediums
to promote healing while dancing the Toré”. Uma descrição concisa sem muito
aprofundamento, apenas ilustrativa do poder da planta.

A ocorrência da planta continua sendo descrita para vários outros grupos


indígenas brasileiros, “Forming the basis of the Ajuncá ceremony of the Pankarurú Indians
and traditionally being employed by the Karirí, Tuscha, Fulnio, Guage (sic), Acora (sic),
Pimentiera (sic), Atanayá (sic) and other tribes”. Muitas destas tribos não relacionadas ao
espaço nordestino do culto da Anjucá, da jurema. Convoca o dinamismo da planta através
do uso por outras populações do Brasil, “Jurema has now entered into Afro-American
rituals in eastern Brazil”. Os usos seriam na verdade afro-brasileiros e não se concentrariam
no leste do país, mas em todo ele, ocorrendo como já descrito de forma mais numerosa no
nordeste brasileiro.

Dados históricos também são trazidos para especificar o uso inebriante da planta
desde muito tempo, “An 1881 report of the Sertões people states that they extract from
jurema a certain kind of intoxicating wine with delightful effects...they strip off the bark
and after boiling it for 24 hours, they add honey to counteract the astringency of the
inebriating drink which is kept for later use”. O vinho intoxicador feito da jurema seria
feito de cascas e deixado vinte e quatro horas de molho, misturado ao mel para retirar seu
gosto adstringente e guardado para uso. Seu uso pelo povo dos “Sertões” brasileiros teria
sido narrado desde 1881.

Uma referência de uso estrangeiro é apresentada em parágrafo tímido, “Mimosa


hostilis bark has also reportedly been smoked as a 'marijuana substitute' by central
American guerilla groups under the name 'Dormilona' (sleepy one)”. Um tipo de uso em
que a ingestão da planta seria feita pelo fumo das cascas de sua raiz. Este fumo seria
decorrente da substituição da maconha pela jurema, ganhando este tipo de uso o nome de
Dormilona, algo no tipo de sonolenta, ou coisa do gênero. Interessante é a população que
usaria este tipo de fumo, as guerrilhas da América Central. Depois de passar pelas

109
populações do Brasil com tal vinho da jurema, o texto passa a referir o uso da planta por
populações guerrilheiras, onde a planta tem a casca de sua raiz fumada para finalmente
chegar ao ponto de interesse daqueles quer visitam estes tipos de sites.96

Depois de passar o texto todo falando dos


usos inebriantes da juremá, o texto termina dizendo que
a planta é vendida apenas como incenso, não sendo
feito para a ingestão: “This rootbark is sold as magical
incense only – NOT FOR INGESTION. By buying this
product, you agree to the DISCLAIMER at the bottom of this page” (grifos no original). O
incenso mágico estaria a disposição a um toque nos teclados. Por motivos vários, muitos
sites encobrem os verdadeiros usos da jurema, principalmente quando ela é vendida em pó,
em cristais para uso particular mais característico das puras “viagens” psicodélicas. A
jurema oferecida como incenso chega a parecer piada, mas é uma forma bem “cara-de-pau”
de vender a planta neste tipo de comércio. Interessante que a tabela com o preço da jurema
é único e pelo peso. Oh, incenso caro!

Mimosa Hostilis Stem Bark: 250 grams: S


Price Weight
$39.00 9.00 ounces

Estes exemplos não dão conta dos inúmeros que a internet propõem, eles são
ínfimos se pensados nas tantas opções oferecidas nos mais diversos sites97. Tentou-se
apenas demonstrar que a jurema entra neste mercado de plantas psicoativas já existente há
algum tempo. A jurema é apenas mais uma das novidades oferecidas nestes locais. A
procura por experiências novas e o número de plantas e substâncias oferecidas em sites
como esses narrados traz sérias dúvidas com relação às apropriações hedonistas que se

96
Foto, as cascas da raiz da jurema preta transformada em pó (cristais) para ser fumada.
In: Ayahuasca herbs: http://www.ethnoplanet.dk/prvcgi/www_ethnoplanet_com/Varer.asp?Kategori=21.
97
Aqui estão alguns sites pesquisados mas não indicados no texto: http://www.botanic-art.com;
http://www.greenearth-ethnobotanicals.com; http://www.ethnobotanysource.com; http://www.azarius.net.

110
fazem com os enteógenos. Devemos por princípio questionar se os usos destas plantas
nestes contextos realmente são hedonistas ou não. Pelo princípio de que o conteúdo dos
sites e a forma como apresentam os enteógenos são bastante invocativo dos princípios
psicoativos das plantas, dando quase nenhuma importância aos elementos simbólicos
associados a estes usos, dá-se a impressão de que a preocupação que move aqueles que
fazem e utilizam este tipo de comércio é bastante diferente daquele tipo de uso que se vem
falando até agora. Mas também deve-se fazer uma autocrítica no sentido de não poder sair
da pura hipótese neste caso. Seria mais frutífero do que ficar especulando, fazer uma
investigação mais aprofundada, inclusive entrevistando um número relevante de usuários
deste comércio.

Não se pode ficar numa retaguarda assumindo a posição de alguma vítima que
vê seu elemento sagrado perambular nas mãos de qualquer um. Estes exemplos que
encontramos na rede mundial podem até soar como algo criminoso ou coisa do tipo. Uma
opinião particular minha entende que a apropriação dos enteógenos como a jurema em
comércio deste tipo está apenas no seu início. Também a ayahuasca já está neste comércio
há muito tempo e não são relatadas extravagâncias ou violências a partir de comércio deste
tipo. Se a jurema é usada de formas tão diversas como demonstram estes exemplos, indo
do “vinho” de casca de suas raízes, passando pela mistura deste com o peganum, usada
fumada, injetada, misturada com Sávia divinorum, com o cipó (Banisteriopsis caapi), com
qualquer coisa que o psiconauta corajoso desejar. Imagino que a jurema não perca nada
nestas experiências, elas apenas confirmam a extraordinária capacidade da planta em
desdobrar-se para tantos usos e sujeitos.

Sei que aqui se toca num ponto sensível. Não espero que minha opinião seja
considerada uma certeza. Imagino apenas que agora não é hora de encontrar uma
explicação ou legitimidade para usos favoráveis ou desfavoráveis. Aqueles que estão
usando a jurema em contexto hedonista e individualizado, devem estar encontrando aí,
talvez, uma possibilidade de aumentar seus horizontes e perspectivas de conhecimento. Não
se saberá exatamente em que nível até conhecer-se exatamente quem de fato são estes
sujeitos. Parece, para encerrar, que estes usos afinam-se com sensibilidades corajosas e
aventureiras. Parte do desejo de muitos europeus, principalmente, e norte-americanos, de

111
conhecer as plantas psicoativas tão relatadas e tão intrigantes que são usadas por pessoas e
em locais tão exóticos. Como tentei demonstrar nesta parte do trabalho, também na
internet, os curiosos são instigados pela idéia de que as plantas psicoativas são de uso
ancestral por populações místicas.

As formas deste mercado não assumem uma detratação dos usos originais ou
dos povos que dele fizeram uso. Muito pelo contrário, quanto mais indígena e desconhecida
a planta, ou quem sabe até “extinta”, mais interessante fica a oportunidade de experimentá-
la. É a busca pelo diferente e pela aventura que move estes sujeitos da jurema, dela e de
tantas outras. Se de fato não há em primeiro plano a preocupação com o conhecimento dos
usos originais, nem tão pouco com os usos contemporâneos, isso não nos impede de pensar
estes usos dentro da lógica da legitimidade que pede a prática do experimentalismo, da
criação contemporânea de práticas e sentidos atribuídos a estas práticas.

Se a jurema foi vista com tanto cuidado em seus elementos simbólicos, aqui não
se fez diferente. Embora uma entrevista com consumidor deste serviço não pode ser feita, a
demonstração do conteúdo destes sites pode deixar pelo menos a idéia de que estes usos são
vivenciados por uma enorme população urbana. Este tipo de gente vive em cidades em que
experimentar o êxtase ou coisa do tipo revela-se uma tarefa bastante complicada visto os
elementos culturais que marcam a produção do ocidente. Se muitos se entregam ao desafio
e ao maravilhamento das experiências enteogênicas, mesmo estando afastados de contexto
sagrado ou coisa do tipo, existe uma clara indicação de descontentamento e provocação.

Em entrevista concedida a mim no Rio de Janeiro, o antropólogo Marco


Tromboni de S. Nascimento deu algumas dicas de como pensar a jurema no contexto
urbano carioca, como um bom exemplo de assimilação cultural num mesmo país por
populações diferentes. Para ele a jurema já veio como demanda de uma população que teve
experiências com enteógenos, marcadamente o Daime, a ayahuasca, e procura na jurema
uma alternativa de enteógeno que prescinda da instituição da igreja. Também estas pessoas
querem ter a oportunidade de experimentar algo novo, diferente. Pessoas interessadas em
“experimentações”, desafios e novos caminhos espirituais e de autoconhecimento.

112
Tromboni esclarece muito bem quando informa que esta procura por enteógenos
como a jurema nos contextos urbanos se qualifica porque o uso da ayahuasca nas igrejas
cristãs, que se popularizaram nos grandes e médios centros urbanos do Brasil, vinham de
outros contextos sociais. Eram pessoas mais humildes, muitos até analfabetos, que
mantinham uma disciplina e rigidez religiosa no trabalho muito pouco conveniente a um
público urbano pouco interessado em regras rígidas, em doutrinas rigorosas. Nos centros
urbanos o Daime, A Barquinha e a UDV foram primeiro incorporadas por essa população
de classe média urbana que procurava nelas alternativa religiosa às igrejas cristãs de cunho
tradicionalista. Eram já experimentadores e curiosos. Com o tempo eles também passaram a
discordar das doutrinas e regras presentes nos cultos. Influenciados por tantas outras
experiências, inclusive políticas, estes se tornaram então dissidentes destas igrejas, e
encontraram na jurema uma planta livre do domínio de qualquer igreja, e por isso mesmo
ideal para o experimentalismo.
É assim que a jurema chega ao Rio de Janeiro em primeiro lugar via Holanda.
Na busca pelo conhecimento do uso ritual originário da jurema, Yatra, junto com outros,
vem ao Brasil para conhecer as comunidades indígenas juremeiras do nordeste do país e
pelo caminho passam pelo Rio de Janeiro onde ensinam a alguns o modo de fazer a jurema
junto ao peganum harmala.
Tromboni nos ajuda a compreender que público era esse que conheceu e passou
a usar a jurema com peganum no Brasil. “A estrutura para o consumo da jurema já estava
construída em torno do consumo de outra planta/bebida, a ayahuasca. Ela chega em
espaços que buscam recriar, reinventar o uso da ayahuasca. Por isso a sua introdução neste
espaço não causa espantos”. A jurema vem por uma demanda, no Brasil por já existirem
religiões que usam enteógeno (ayahuasca), e por isso um público experiente e também
ansioso por novidades e por maior possibilidade de liberdade e experimentação, a jurema é
extremamente adaptável.
Pode-se usar o conceito de alternativo desenvolvido por Soares (1994) para
explicar a difusão de experiências religiosas como esta na cidade do Rio de Janeiro e, por
tabela, também mundial. Para este autor, as experiências religiosas no espaço urbano do
Rio, marcam um profundo movimento de encontro e distanciamento. O espaço alternativo
caracteriza-se por utilizar uma linguagem na qual expressões tais como energia, cosmos,

113
natureza, trabalho, místico e por fim alternativo, formam um “idioma alternativo” (Soares,
1994:201). Dentre estes termos, os mais destacados são trabalho e energia, a partir destes
se difunde uma linguagem alternativa que exprime de modo geral as experiências dentro
destes contextos de religiosidade alternativa. E fazem isso porque ocultam muitas de suas
diferenças (ibid:200). Estes termos funcionam dentro de um sincretismo semântico das
experiências religiosas e místicas, criando um sistema de valores bastante homogenizador,
e por isso um local de encontro, de semelhanças.
O mais característico destas experiências é o nomadismo de seus sujeitos. Para
Soares (ibid:205), estes sujeitos seriam “andarilhos espirituais”, um público assim
entendido estaria mais disposto a aventuras espirituais do que doutrinas religiosas
rigorosas. O experimentalismo é o valor maior da busca incessante por novas posições do
conhecimento místico e religioso. Este tipo de fiel alternativo seria um “peregrino devotado
a busca de sabedoria”, (ibid:206). O valor mais respeitado neste meio é o da “criatividade”,
(ibid:207). O autor acredita que se pode identificar aí o que chama de nova consciência
religiosa: “Não é propriamente o conteúdo das práticas religiosas que é novo, mas o
conteúdo cultural mais abrangente que atribui um sentido peculiar, para o crente de tipo
novo, a sua relação com sua crença e, portanto, ao seu engajamento religioso - que é
também social” (ibid:210). E o mais importante seria a legitimidade deste fenômeno
entendido dentro da idéia de que: “A ‘nova consciência’ atualiza a experiência e a
concepção do convívio íntimo e franqueado com a pluralidade religiosa” (ibid:211),
lembrando que estes sujeitos individualizam as experiências, mas o fazem compartilhando a
possibilidade de realizá-la.
Uma população urbana que passa a procurar nos índios do nordeste brasileiro e
nos mistérios do Oriente uma alternativa legítima de experiência religiosa e mística,
encontrando de forma espantosa uma produção cultural altamente desenvolvida em torno
da jurema, é significativo disto que narra Soares (1994). Uma parte da experiência cultural
do país muito pouco conhecida passa a ser recuperada em favor do experimentalismo.
Estes grupos de pessoas passarão a fazer trabalhos com a jurema usando linhas dos antigos
“catimbós”, dos índios do nordeste brasileiro e da umbanda. Trazendo mais uma vez para o
contexto urbano a realidade místico/religiosa do povo do sertão, do povo do nordeste, (não
foi assim com a umbanda uma vez?).

114
Para Tromboni a legitimidade destes usos é indiscutível, a preocupação não
deve recair sobre a idéia de legitimidade como sinônimo de originalidade/ancestralidade,
para ele “origem é algo relativo. Não existe nada original. Tudo é criação no presente”. É
no presente que as populações indígenas usam a jurema, num presente específico o
“catimbó” também assumiu posição sincrética, a umbanda o mesmo, é no presente que a
ayahuasca se desarrola entre tantos usos indígenas brasileiros e sul-americanos, entre tantos
usos cristãos, urbanos. A jurema com o peganum harmala é legítima porque
original/criativa, faz parte de construções culturais que se desenvolvem de forma rápida, na
velocidade com que cativa.
Existe uma produção cultural e simbólica sobre a jurema e sobre seu uso no
contexto urbano que por si só lhe garante a legitimidade reivindicada. Mas ela é
responsável por tantas elaborações e significações que é despautério dizer que a jurema será
algum dia fonte de autoritarismo doutrinário ou mesmo político assim se espera. A jurema
deverá continuar sendo o instrumento da originalidade, da criatividade, sendo responsável
por viagens e experimentalismos, até onde puder ir a vontade e imaginação de seus quase
incontáveis sujeitos.

É aqui que tudo começa de novo. Como já falei, este espaço somente quer
provocar um pouco, ele não tem pretensão de dar conta do assunto. Para onde estamos, a
jurema já deu muito que falar, mas como venho dizendo, ela diz tanta coisa...Talvez nestas
experiências que se vem fazendo algo de bastante agradável possa surgir. Como também o
seu oposto. De nada disso sabemos. Por isso, parece necessário mais uma vez colocar a
sensibilidade a serviço do conhecimento, e neste ponto toca-nos a melodia do
indeterminável, porque de certezas é que não vive a sensibilidade de ninguém.

115
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enteomania S. f. Mania religiosa, em que o paciente se crê


inspirado por Deus.

(Dicionário Folha/Aurélio)

Um tempo para tecer uns últimos comentários. Depois de ter visto tanta
produção cultural relacionada a jurema será que ainda há espaço para mais alguma? Parece-
me que a proposta vem sendo ao longo deste trabalho demarcar os lugares em que a jurema
ganha enriquecimento simbólico. A jurema é assim compreendida por tantos sujeitos
diferentes porque ela possui algo misterioso. Há um mistério relacionado à planta. Este
mistério deve em grande medida ser reconhecido devido às experiências de êxtase e
comunhão que a planta proporciona. O mistério como mistério nunca pode ser
compreendido, senão ele deixa de ser o que é.
Trabalhar com um objeto desta categoria é algo extremamente sutil e profundo.
Os sujeitos que elaboram compreensões e entendimentos sobre e a partir da jurema são
personagens do campo da cultura que tendem a demonstrar a sensibilidade dos grandes
artistas. Esta sensibilidade é o fundamento da possibilidade de entrar nos mistérios da
jurema. Percorrer os caminhos inesperados da espiritualidade, da experiência mística, do
desconhecido. Tudo isso pede daquele sujeito um pouco de ousadia e muito de confiança.
Quando alguém se torna apto a falar da jurema, é porque este já caminhou muito ao longo
da estrada da experiência e por que não dizer do estudo da ciência da jurema. Como um
bom cientista ou eterno curioso, aquele que demonstra sensibilidade para falar da planta
deve ser também aquele que aprendeu a fazer. Se a jurema ensina, é porque ela tem um
modo de ser conhecida. É preciso unir à sensibilidade, um tipo de conhecimento, ou seja
uma destreza. A destreza é mais um dos fundamentos de trabalho com a jurema. Ao tempo
se dá a energia da produção do conhecimento, que nasce da ousadia como sensibilidade de

116
saber e concede a pessoa a destreza promovida pelo saber que nasce como desprendimento
do esforço.
Não fica imune nenhum mistério da jurema se apelarmos para as explicações
fortemente científicas. A ciência como tributária do pensamento religioso fundamentalista,
não abre mão de ter a voz final. Aqui, porém se dará uma oportunidade de continuarmos
assumindo nosso ambíguo, mas fraterno desvencilhamento da razão pura estruturante, para
dar crédito a imaginação e sensibilidade desta mesma razão. Porque foi assim que todos os
sujeitos aqui narrados de um modo ou de outro fizeram. Como indica Velho (1995:158):

“A dúvida desreificadora, desencantadora, desmistificadora. Ao mesmo tempo


instrumento da razão e crítica de suas pretensões totalitárias. Que capta da ciência,
como paradigma para a modernidade, o seu espírito vivo e não a mitologia cientificista
que embota a imaginação e o espírito de aventura.”

As explicações científicas da farmacologia, da química, botânica e da própria


antropologia tendem a encarar o fenômeno da alteração de consciência e da produção
cultural daí resultante de modo bastante pragmático. As opiniões mais recentes sobre o
assunto, e que frustram de certo modo as explicações anteriores, estão ainda em estágio
bastante inicial, na posição de hipóteses. Souza (2002:61) cita trabalhos recentes de
Callaway, 1994 e outros pesquisadores apontando que a N, N-dimetiltriptamina faz parte do
sistema humano naturalmente, e que esta mesma tem seus níveis aumentados durante o
sonho. Como neste estado, durante o êxtase não se poderia ter o mesmo, ou seja, aumento
relevante de DMT no organismo provocando euforia e catarse?
Em entrevista na área indígena Kariri-Xocó onde trabalha, o farmacólogo
Ângelo Roberto Antoniolle, professor de farmacologia da UFS deu a seguinte opinião sobre
a jurema e seus efeitos psicoativos:

“A jurema abre uma porta e esta sensação é agradável. No cérebro, quando você
abre uma porta, você estimula aquele neurônio. (...) Abrir uma porta no cérebro é uma
sensação boa. Depende da vontade para entrar nesta sensação. Precisa do indivíduo, do
querer. Ele preparou o cérebro para aquilo, tomando só um pouco ele consegue abrir a porta.
Quem não está preparado precisa de mais. É uma questão individual e cultural. Precisa ser

117
induzido, pronto para isso. Não é nem preciso usar a planta, mas simplesmente conviver com
ela. Elas são óleos naturais, estão liberando no ar o tempo todo suas substancias químicas. O
ambiente fica feliz”.

Como Ângelo nos explica, a jurema pode induzir ao transe porque aquele que a
toma aprendeu a usá-la, aprendeu a “abrir a porta”. Conviver com a planta é já um meio de
identificá-la, senti-la atuando. O cérebro pode ser treinado, instruído a receber a alteração
de consciência. “Abrir uma porta no cérebro é uma sensação boa”, conhecer este
mecanismo é algo bastante complexo, mas ele nos ajuda a entender como o cérebro
funciona, e como tratá-lo. Um dos trabalhos de Ângelo é identificar na jurema seus
componentes de atuação junto ao cérebro no combate a depressão e dores de cabeça fortes,
como as enxaquecas. A jurema teria elementos muito singulares em sua composição
química que seriam superiores a qualquer tipo de medicamento alopático, ou mesmo
naturais no combate a essas anomias. A jurema teria agonistas serotonínicos que atuariam
em campos específicos do cérebro aumentando o bem estar e satisfação para com a vida.
Tudo porém ainda em estudo.
A jurema tem pela frente um campo vastíssimo de estudo. Não se pode lhe
determinar limites de atuação. Em todo lugar onde a jurema ocorre como fenômeno cultural
ela tende a estender raízes. Na Serra do Arapuá, ocorre uma emergência étnica. A
população do lugar se considera Atikum, tal como a população da serra vizinha, a Serra do
Umã. Quando visitava área do Arapuá, chamou-me a atenção para o fato de que a jurema
era um dos elementos mais significativos do entendimento do ser índio. O líder local, João
Miguel, apresentou uma beberagem de jurema que nos foi oferecida. Esta jurema era
bastante forte, a mais forte encontrada em todas as áreas indígenas que percorri. A jurema
era assim porque neste momento de encontro com os antepassados e fortalecimento do
grupo, a jurema deveria ser poderosa para fazer ver a realidade que se quer construir.
Foi uma surpresa muito agradável quando descendo a Serra do Arapuá,
finalizando a pesquisa em área indígena, dando um tempinho numa casa de populares
brancos ao pé da serra, comecei conversa informal com um dos populares que me deu
informação muito importante. O nome deste senhor é Adelmo Pereira Nunes, filho de
Vardo Pereira Nunes, cangaceiro de Lampião conhecido por Moita Brava. Adelmo contou
que Moita Brava era caboclo, e como ele outros também o eram e faziam parte do bando de

118
Lampião98. O bando de Lampião usava a jurema pra guerra. Segundo Adelmo, a jurema
livra do mal e livra dos inimigos, ela também dá a coragem necessária para lutar. A
beberagem feita da jurema era a mesma usada pelos índios. Com a mesma forma de preparo
e o mesmo ritual. O interessante ainda é que Adelmo narra o uso da jurema pela população
branca da região. Segundo ele, os trabalhos dos índios emergentes do Arapuá são assistidos
por quem quiser ver, não se faz qualquer tipo de restrição. Esta mesma população que
assiste os trabalhos de jurema indígena, passou a fazê-lo de forma independente. Por isso,
uma parte dos habitantes brancos da região fazem trabalhos de jurema exatamente como os
índios, do mesmo preparo da jurema até as linhas e experiências de êxtase e de transe.
A jurema é tão ilimitada que no Rio de Janeiro, o chamado neo-xamã Rogério
Favilla traz os Kariri-Xocó de vez em quando para apresentações de toré com jurema em
um sítio de propriedade sua. Favilla cobra cerca de sessenta reais por pessoa para participar
e tomar da jurema Kariri-Xocó. O interesse da população de classe média carioca por
experiências “excêntricas” já deve ter ficado assinalado no capítulo três deste trabalho. O
sentido de trazer a própria população indígena, detentora do conhecimento sobre a jurema,
já é parte de um momento posterior ao uso de enteógenos. Momento esse em que o
interesse passa por conhecer a população e as práticas rituais destes que usam a planta
sagrada. A jurema promove um intercambio cultural que margeia o mercado de bens
simbólicos divididos entre a grande exacerbação de um simulacro da cultura moderna e a
relativa autonomização da cultura arcaica original indígena.
Se fosse dado um espaço maior, a enumeração dos locais em que a jurema é
representada encheria ainda uns dez trabalhos como este. Se num tempo relativamente
curto de pesquisa como este (de fins de abril a começos de setembro) se conseguiu
encontrar tantos sujeitos em tantos locais diversos, uma pesquisa mais profunda traria
determinações muito interessantes. Mas tudo tem um momento de encerrar-se. Aqui se faz
necessária uma pausa...

98
Gato Brabo, Serra do Umã, Miguel dos Anjos eram caboclos da Serra do Umã. Moita Brava, Zé
Marinheiro, Zé Severino também caboclos do bando de Lampião eram de outros lugares, mas vieram falecer
na área Atikum.

119
Digressão:
O uso de qualquer substância psicoativa foi proibido e discriminado no
ocidente. Os usos do álcool e do tabaco parecem ser os únicos restantes. O álcool só é
usado em situação ritual pelos freqüentadores da umbanda. No catolicismo, o álcool
continua sendo usado na comunhão, somente pelo sacerdote. O sacramento católico é feito
com o corpo (pão/hóstia) e o sangue (vinho). A presença do vinho (álcool) está presente na
missa como sacramento, ou seja, uma substancia psicoativa. Lembrando que Jesus ainda
menino concedeu a uma festa o vinho que faltava produzindo-o magicamente a partir de
água pura. Jesus ainda em seus últimos momentos concedeu a todos os apóstolos na Santa
Ceia a comunhão com ele através de seu corpo (pão) e sangue (vinho).
A missa de hoje, concede aos fiéis apenas parte do sacramento, o pão/corpo. O
sangue/vinho fica apenas simbolizado para a assembléia. Para o sacerdote, a comunhão é
total, corpo e sangue. Quem realiza o símbolo, é o sacerdote, o responsável por ingerir o
sangue/vinho de Cristo. A inclusão da classe sacerdotal inibiu as experiências diretas com
Deus. Imprimiu-se uma classe de mediadores entre os homens comuns e Deus. A esta
classe intermediária (sacerdotes), o poder divinatório está representado pelo sacramento
através do vinho99.
Este símbolo do sacramento católico pode parecer bobo do ponto de vista da
ação enteogênica do copo inocente de vinho. Mas ela representa, como símbolo, a não
ação do homem comum na experiência direta com Deus. A intermediação e cancelamento
das experiências extáticas estão relacionados ao sistema de compensações inferiores que
foram introduzidas no sistema ideológico, que quer auferir privilégios e legitimidade
superiores a pessoas distintas da maioria da sociedade. O homem contemporâneo admitiu
a necessidade de romper com a maioria das hierarquias discriminatórias. Este novo sujeito

99
Pierre Bourdieu (1989:12) aplica raciocínio semelhante ao mostrar em O Poder Simbólico que o campo
religioso foi hierarquizado para permitir um poder ideológico a uma classe privilegiada, que controlaria o
acesso ao capital simbólico das experiências religiosas. Como diz o autor: “Os ‘sistemas simbólicos’
distinguem-se fundamentalmente conforme sejam produzidos e, ao mesmo tempo, apropriados pelo conjunto
do grupo ou, pelo contrário, produzidos por um corpo de especialistas e, mais precisamente, por um campo de
produção e de circulação relativamente autônomo: a história da transformação do mito em religião (ideologia)
não se pode separar da história da constituição de um corpo de produtores especializados de discursos e ritos
religiosos, quer dizer, do progresso da divisão do trabalho religioso, que é, ele próprio, uma dimensão do
trabalho social, portanto, da divisão em classes e que conduz, entre outras conseqüências, a que se
desapossem os laicos dos instrumentos de produção simbólica.”

120
social, também sabe que pode reconhecer todos os limites no seu próprio desejo. No seu
próprio repertório cultural e aventureiro.
Depois de tomar jurema com peganum harmala algumas vezes, acredito que as
experiências com a planta são divinatórias e benéficas. Não cabe aqui tudo aquilo que
estas experiências trazem de bom. Somente uma ínfima parte pode ser narrada. Ao longo
do texto, tentei demonstrar como as experiências com jurema são legítimas. Todos os
sujeitos da jurema apresentam em seu repertório de símbolos a paz e a alegria. A jurema
concede estes sintomas. A jurema faz o homem melhor. Ela faz isso porque produz
experiências tão ricas, profundas e transformadoras, que a pessoa, depois de passar por
uma delas, começa a apostar numa possibilidade de existência mais fruitiva. As
experiências com a jurema ajudam a mostrar que na vida há um caminho simples de
felicidade e contentamento na relação entre os homens e destes com a natureza. Perceber
nossos erros, nossos preconceitos e principalmente nosso orgulho muitas vezes egoísta e
discriminatório. Quando a possibilidade de experiência com a jurema for algo não mais
enxergado dentro dos preconceitos moralistas do “não as drogas”, poderão se expor e
explorar melhor as incontáveis maravilhas que a jurema pode trazer.
Ao experimentar da luz da jurema, uma nova vida pode ser desenvolvida. Vida
iluminada e propositiva. Aguçada com o olhar paciente e tranqüilo daquele que sabe que:
Ousadia e maravilhamento são necessárias para encontros profundos com o mais belo de
cada um de nós - nós mesmos nos nossos mais abissais esconderijos. Nestes locais de amor
e medo encontram-se tantos temores e tantas paixões. É exatamente aí que a razão deve
deitar suas armas e entender que o homem, filho da natureza e dela depositário, encontra
num não-ser junto à natureza nosso mais estimável encontro, nosso destino tão misterioso
quanto a vida. A morte finalmente encanta, porque dela a jurema faz entender que viver
por si só responde a finitude.

121
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