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Vila Nova de Gaia, 28 de Março de 2009
Uma das questões discutidas, no plano da acção e da transposição didáctica bem como
da língua - e a percepção do seu estudo funcional ao nível dos usos e das situações concretas
específico não pode desconsiderar o critério da utilidade e do que se revela necessário para
multifocalizada por parte dos que trabalham o conhecimento explícito ao longo dos diferentes
1
A Gramática da Língua Portuguesa de João de Barros representa o núcleo de um projecto gramatical
e pedagógico de aprendizagem da Língua Portuguesa, no qual se contemplam: a Cartinha para Aprender a
Ler (1539); a já citada Gramática da Língua Portuguesa (1540); o Diálogo da Viciosa Vergonha (1540), numa
articulação entre o ensino não só das letras mas também das normas de boa conduta; o Diálogo em Louvor
da Nossa Linguagem (1540), conjunto de reflexões acerca das ideias linguísticas e gramaticais do autor
liberto do carácter prescritivo de que a Gramática de Língua Portuguesa se reveste.
d) a contextualização e a motivação das necessidades verbais dos alunos, naturalmente
distintas e a dar lugar a progressões diferenciadas conforme as tarefas comunicativas
requeridas e/ou planificadas convoquem determinadas situações e/ou tipos de
discurso (por exemplo, uns de carácter mais profissionalizante; outros de natureza
mais académica);
e) a articulação de dois entendimentos e finalidades distintas (ainda que complementares)
no que ao ensino da gramática diz respeito: entre a consciência da implicação e da
acção pedagógico-didáctica que releva a dimensão científica da gramática - enquanto
espaço de reflexão e de construção autónomos de conhecimento declarativo sobre
o(s) funcionamento(s) da língua - e a percepção do seu estudo funcional ao nível dos
usos e das situações concretas de produção (orais, escritos, literários e não literários),
geradores, também, de padrões de modificação e de criação linguística.
Perante esta última condicionante e pela natureza tendencialmente oficinal do
primeiro entendimento (implicando a selecção e constituição de um corpus, a
observação / comparação / construção de generalizações, a análise e
problematização, o treino e a avaliação), a progressão revela-se mais atómica e
focalizada em domínios mais ou menos particulares da gramática; do segundo
entendimento, ressalta a maior centralidade dos discursos, o que envolve uma
articulação de vários domínios, numa rede de focalizações e prismas de análise que
dificultam um pouco mais o trabalho de definição de etapas, tendendo-se quase para
uma visão mais holística na abordagem da língua. Contudo, o sentido de progressão
mantém-se exequível, se a abordagem a fazer privilegiar um trabalho de planificação
voltado para a construção de sequências pedagógicas que, por exemplo, assentem
em lógicas como as de modelos textuais (com tipos e géneros diferenciados,
apontando para características linguísticas dominantes), numa dimensão tanto
receptiva como produtiva. 2
2 A questão dos modelos textuais deve ser aqui entendida não no sentido da transposição acrítica de características
2
invariantes para textos afins, mas no da detecção não só de recorrências como ainda das singularidades que cada
texto possa trazer para o enriquecimento ou reformulação do modelo. Faz sentido que, neste tipo de trabalho, se
privilegie, por exemplo, a abordagem de actos de fala, das formas de tratamento, dos tempos verbais de referência
deíctica, dos princípios de cooperação conversacional nos textos que convocam a reprodução ou a representação de
condições de interacção dialógica (de que os textos dramáticos são dos exemplos mais comuns).
Convergente com os dois entendimentos da aula de gramática é sempre o
princípio de promoção e desenvolvimento do conhecimento explícito da língua. A
consciencialização do saber acerca da própria língua, transformando o conhecimento
intuitivo num de carácter mais sistemático, reflectido e (inter)estruturante, é objectivo
para a progressão maior, mais geral que aqui possa ser abordada relativamente ao
ensino da gramática: a que se orienta do espontâneo, do imediato e do informal para o
planificado, o mediato e o formal (a nível tanto do oral como do escrito); a que
considera as relações entre a variação / diversidade linguística e a aquisição da norma
padrão, na avaliação consistente de comportamentos sócio-comunicativos aceitáveis
em determinadas situações e inaceitáveis noutras.
A partir daqui, e num sentido mais estrito, a noção de progressão evoca sentidos
e critérios que, não raras vezes, são equacionados de forma muito diferenciada no
contexto das práticas: o de passagem do simples para o complexo; o de orientação do
familiar ou frequente para o desconhecido ou menos comum; o de transição do
domínio genérico para um mais específico. Não negando o facto de ser por vezes útil
a consideração das estruturas mais familiares e frequentes para os alunos, bem como
as que se constituem como base para outras mais complexas, certo é também que a
aprendizagem nem sempre se faz de uma forma tão linear. Por outro lado, interessará
também descodificar o que tal criteriação acarreta, procurando ultrapassar algumas
generalizações ou preconceitos herdeiros de uma tradição gramatical que tem vindo a
ser questionada por diversos estudos. Nos domínios da Morfologia e da Sintaxe bem
como no da Análise do Discurso e da Linguística Textual podem encontrar-se
exemplos que tendem para a comprovação deste posicionamento.
Começando pelo domínio da Morfologia (entendido como o que descreve e
analisa a estrutura interna das palavras bem como os processos morfológicos de
variação e da formação destas), há que reconhecer, desde já, a necessidade de
equacionar criticamente algumas práticas instituídas, a descrição gramático-pedagógica
tradicional bem como o próprio discurso didáctico a utilizar: primeiro, por, relativamente à
Nomenclatura Gramatical Portuguesa de 1967, a Morfologia se ter vindo a assumir como
domínio que se centra especificamente nas fronteiras da palavra e que não integra, por
exemplo, o da “Classe de Palavras‟3; segundo, por se ter de sublinhar a
processualidade morfológica em termos de níveis de sucessão faseada e
recursiva na formação de palavras, a ponto de identificar etapas distintas na
complexidade de algumas bases derivantes 4; terceiro, por se ter de adaptar o
discurso didáctico e a formulação de instruções / questões a uma forma mais
consentânea com a definição proposta pelo Dicionário Terminológico para o domínio (por
exemplo, a
familiar instrução “classifique morfologicamente a palavra X” deverá dar lugar a
“classifique X quanto à classe de palavras”, a menos que o cenário de resposta
contemple aspectos relacionados com os processos de formação e os constituintes
morfológicos, com a indicação dos morfemas lexicais e/ou gramaticais).
No que à progressão diz respeito, são consensuais, neste domínio, trajectórias
que se orientam das palavras simples para as complexas; da morfologia derivacional
que não implica alterações na classe da palavra-base, não interfere na posição do
acento fónico nem determina alterações categoriais (em termos de género, grau,
tempo-modo-aspecto) para a que acarreta transformações em qualquer um destes
níveis; da derivação para a composição. Todavia, há pontos críticos que podem
contribuir para a dificuldade de processamento de dados num contexto de aula, dos
quais se podem referir dois casos em concreto:
i) as regras gerais apontadas para a flexão ou variação das palavras nem sempre se
circunscrevem ao domínio morfológico, convocando interfaces com outros domínios de
análise linguística (o caso da sintaxe, para a variação em grau dos adjectivos, à
excepção do superlativo absoluto sintético - que se obtém por sufixação; o caso da
fonética e fonologia, da lexicologia, da sintaxe para os
relacional das palavras bem como a complementaridade face à sintaxe (a identificação das classes de
palavras assenta muito mais na distribuição / combinação de palavras dentro do sintagma do que na
consideração dos constituintes morfológicos– confronte-se a distinção entre os determinantes /
quantificadores e os pronomes; a recategorização dos adjectivos e verbos em nomes, situações que
requerem a distribuição das palavras no sintagma, além da consideração das palavras nucleares na
construção de grupos) no que toca às propriedades reveladas (concordância, selecção, contrastes de
género e grau não configurados morfologicamente, entre outras).
4A palavra „anticonstitucionalissimamente‟ é um bom exemplo disso: seja o advérbio
„constitucionalissimamente‟ a base derivante para o antónimo seja o superlativo sintético do adjectivo
„anticonstitucionalíssimo(a)‟ o ponto de partida para a formação do respectivo advérbio, ambos são já
termos derivados de uma processualidade multi-faseada na derivação (constitucional >
constitucionalíssimo > anticonstitucionalíssimo). A combinação da composição com a derivação é um
outro caso da complexidade implicada na sucessão faseada e recursiva dos processos morfológicos
(como em „radiofónico‟ derivado do composto „radiofonia‟: [rádio]+[fonia] > radiofonia > radiofónico).
ii) a consciência sincrónica que o utilizador comum imprime à análise intuitiva do estádio
actual da língua limita a percepção dos constituintes morfológicos àquilo que é
segmentável, ora conduzindo a generalizações falíveis ora atenuando a percepção de
relações nas próprias famílias de palavras.6
Na consciência destes pontos problemáticos, impõe-se um trabalho de
planificação e de selecção cuidada de exemplos, cabendo a definição de estratégias
que privilegiem objectivos de consulta e de pesquisa, nomeadamente de obras de
referência como gramáticas, dicionários com informação etimológica e prontuários, por
forma a adquirir-se conhecimentos implicados na análise e no processamento das
palavras (como sejam, por exemplo, os relacionados com a História da Língua) e/ou
problematizadores de generalizações que não podem ser validadas. Entre os casos
familiares que confirmam a consciência sincrónica da decomposição de palavras e os
que se afastam dessa consciência ou da possibilidade de decomposição
(nomeadamente, o caso das palavras lexicalizadas e da lexicalização) traça-se,
portanto, uma linha de progressão que, em diferentes níveis, não deixa de convocar o
propósito comum de um trabalho reflexivo, de descoberta e de pesquisa. Pelo exposto,
dir-se-ia, em síntese, que frequentemente o critério da simplicidade só o é na
aparência.
Passando ao domínio da Sintaxe, é também relativamente consensual o facto
de o trabalho da frase simples anteceder o da complexa (e dentro desta última se
equacionar a complexidade associada às estruturas binárias bem como às múltiplas);
de o da ordem directa (não marcada) se antecipar ao das ordens inversas (marcadas);
de o das frases activas preceder o das passivas. Mas, no que a estas últimas diz
respeito, outras progressões podem ser esboçadas. Segundo Inês Sim-Sim (1998), o
domínio de
5 A título de exemplo para o contraste de género, são diversos os processos utilizados: fonológicos (ex.:
avô / avó), lexicais (ex.: rei / rainha, boi / vaca), sintácticos (nos nomes epicenos - ex.: elefante-macho /
elefante-fêmea; no dos nomes comuns de dois– o estudante / a estudante); morfológicos são os que
ilustram a derivação (ex.: poeta / poetisa, sacerdote / sacerdotisa), a composição (ex.: águia-macho),
além dos já referidos no corpo do texto em termos de flexão.
6 Para o primeiro caso, está o clássico „beleza‟, comummente apontado como exemplo de derivação,
quando dicionários com informação etimológica o apontam como exemplo que registou processos de
evolução fonética a partir da base latina (bellitĭa-), numa distinção clara relativamente a „riqueza‟
(rico+eza) ou „pobreza‟ (pobre+eza); para o segundo, registe -se a série de palavras „Peixe –P esca –
Pescador– Piscatório– Piscícola - Piscina‟ (ou, num grau de maior inconsciência, „Adivinha - Ateu–
Deus– Divino– Diurno - Entusiasmo‟, todas com origem na raiz indo-europeia „*dyéu‟, que
significava „céu‟, „dia brilhante‟).
enunciados com estrutura passiva é um dos exemplos de aquisição tardia pelas
crianças, excepto no caso dos de tipo não reversível (ex.: O bolo foi comido pela menina)7.
Em contrapartida, as dificuldades de compreensão aumentam com passivas
reversíveis (ex.:
A Maria foi beijada pelo Pedro), cuja interpretação depende exclusivamente do acesso à
abordagem progressiva deste conteúdo, entre outros, atentando nos meios linguísticos
a que se deve recorrer para a sua produção. As implicações crescentes neste tipo de
construção, nomeadamente com questões de ordem sintáctica e de identificação das
funções nela representadas, são já razões suficientes para se perceber como se tem
revelado crítica a abordagem das frases passivas, de acordo com o programa de
Língua Portuguesa ainda em vigor (no qual se identifica o 8º ano de escolaridade
como período destinado ao tratamento das relações frase activa -frase passiva bem
como da função sintáctica complemento agente da passiva, não obstante a
possibilidade de se abordar frases passivas no 2º Ciclo ou as passivas não reversíveis
já no 1º Ciclo, nos termos do referencial A Língua Materna na Educação Básica –
Competências Nucleares e Níveis
de Desempenho, de 1997, para que o CNEB remete)9.
7 Exemplo de passiva na qual a criança se pode apoiar em chaves contextuais para a sua descodificação,
sem possibilidades de interpretação alternativa pela inversão de termos (na verdade, na vida real os
bolos não comem meninas).
8 Confrontarh ttp ://si tio .d gid c. mi n -ed u.p t/li ng uap o r tug u e sa/ Do cu me nt s/o r ientaco es_ d id ac ticas.p d
f, na sua
primeira versão de consulta pública; uma segunda versão foi já construída a partir dos contributos e
pareceres facultados pela Direcção Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular (DGIDC), estando
nela assinalado um conjunto de notas elucidativo dos indicadores de progressão a considerar no
tratamento do conteúdo gramatical em questão.
9 Cf. SIM-SIM, Inês et al. (1997: 53; 89) - A Língua Materna na Educação Básica – Competências
Nucleares e Níveis de Desempenho, Lisboa, Ministério da Educação– DEB.
O mesmo sucede com as subordinadas relativas, a julgar pelos contributos de
Manuela Vasconcelos (1996)10. Em síntese, a autora conclui, por um estudo levado a
cabo com crianças na faixa etária dos 3 anos e meio aos oito anos e meio, que as
subordinadas relativas colocadas à direita são melhor processadas do que as
encaixadas ao centro (ex.: Os alunos realizaram o trabalho [que o professor pediu] vs O
trabalho
[que o professor pediu] tinha um tema geral); as que apresentam foco no sujeito
sintáctico revelam-se mais fáceis do que as que implicam alteração na ordem sintáctica
da subordinada (ex.: O aluno [que participou] vai ter boa nota vs O aluno [cuja
participação foi boa] vai ter boa nota); neste último grupo, as que apresentam foco
precedido de preposição são mais difíceis do que as com foco no complemento directo
(ex.: O professor chamou o aluno [de que te falei] vs O professor chamou o aluno [que
a turma conheceu hoje]). Desta forma se justifica que haja também uma abordagem
gradual das subordinadas relativas, distribuídas ao longo do percurso escolar, não as
centrando como um todo num só ciclo ou num só ano de escolaridade. A proposta das
“Orientações Didácticas para o Trabalho sobre o Funcionamento da Língua em Sala de
Aula”11 atenta neste contributo para propor essa progressão.
No caso da Análise do Discurso e da Linguística Textual, cujas implicações
Sem entrar na questão da necessidade de explicitação dos termos, estes são dos
de escolaridade. Eles são determinantes para que se reconheça nos alunos a capacidade
informacional. Daí que, na base deles, interesse construir dispositivos estratégicos que
Com certeza não existe uma única opção para a progressão a definir neste
nível. Dependendo do léxico, das relações lógicas, da consciência da extensão e das
independências / dependências de segmentos reveladas pelas produções dos alunos,
pode o professor traçar um percurso que, por exemplo, no contexto de uma escrita
compositiva, priorize níveis de intervenção concreta e gradual, não exaustiva. Um
percurso possível de progressão pode passar pelo confronto, pela abordagem auto ou
heterocrítica, avaliativa de registos: sugerindo formas de garantir unidades de sentido
completo ao nível das frases que compõem o texto, de evitar repetições
desnecessárias, de diversificar mecanismos de continuidade / progressão temática
(progressão a tema constante, de modo linear ou derivado, com subdivisão da
informação nova, com formas combinadas de progressão temática), de explicitar
processos de articulação lógica, de limitar / ampliar a extensão frásica, de construir
formas diferenciadas de apagamento da subjectividade em contextos de maior
formalização do escrito.
Progressivo é ainda o trabalho a fazer sobre textos directamente ancorados às
condições de produção (convocando uma referencialidade dominantemente deíctica)
para os que dela se desligam ou dela se transpõem (ora criando condições de
mediação ora construindo o acesso à ficção); daqui podem ainda ser exploradas a
problematização e complexificação próprias dos textos que matizam no escrito os
sinais de oralidade,
aqueles textos que na tradição dos contadores de histórias cultivam a técnica narrativa
oral, simulando-a no suporte escrito.
Bom exemplo disto são os textos de contemporâneos como José Saramago ou
António Lobo Antunes; é ainda o de um romântico Herculano que, na sua versão
narrativa de “A Dama Pé-de-Cabra” esbate fronteiras nos contrastes que possam ser
construídos relativamente ao que é a representação de uma referencialidade deíctica e a
de uma referencialidade anafórica.
Atentar em enunciados do tipo
/1/ " Vós os que não credes em bruxas, nem em almas penadas, nem nas tropelias de
Satanás, assentai-vos aqui ao lar, bem juntos ao pé de mim, e contar-vos-ei a história
de D. Diogo Lopes, senhor de Biscaia." (Trova I - 1)
é um indicador sintomático da representação ou simulação de um discurso em
situação, em interacção, próprios de um narrador – contador– orador que se dirige a um
destinatário configurado num “vós” e institui as coordenadas de um „eu-aqui-agora‟
distintas de uma história que é anunciada e se assume pelas coordenadas do „não -Eu,
não-Aqui, não-Agora‟ (confronte Trova - 2):
/2/ “Juro-vos que, se me negais esta certíssima história, sois dez vezes
mais descridos do que S. Tomé antes de ser grande santo. E não sei se eu estarei de
ânimo de perdoar-vos, como Cristo lhe perdoou. Silêncio profundíssimo; porque vou
principiar.
2
D. Diogo Lopes era um infatigável monteiro…” (Trova I 1/2)
–
Para este narrador presente num discurso introdutório à narrativa (na qual não
participa), muitas são as possibilidades criadas, num jogo discursivo capaz de explorar
intersecções, ambiguidades como as que se evidenciam no segmento seguinte:
/3/ “«No tempo dos reis godos – bom tempo era esse! – havia em
Biscaia um conde…»” (Trova II 3)
–