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edição 09 / julho de 2010

04. 16. 30.


de que lado você está? vida noturna e maternidade soprada pelos vientos del sur
Em uma visita ao CAPS Prado Veppo, a FDP mos- A música das tribos incas nas praças
tra o lado de lá. do mundo.

.08 .18 .32


“mate um pai de família e seja fama&anonimato a cidade não deu certo
remunerado pelo governo” por culpa de um padre?
O preconceito que cerca o auxílio-reclusão e o A mão que realmente escreve o texto.
A FDP conta a lenda de Silveira Martins,
real objetivo do benefício. uma cidade supostamente amaldiçoada.

10. 20. 34.


a noite dos mortos vivos o que tem valor para você? a diva da colônia
FDP conhece a intimidade da estrela Lúcia Luft.

.11 .24 .38


admirável mundo do google o teatro onde tudo pode dedos leves e bem cuidados:
acontecer ladra de livros é pega no ato
A rua facilita o acesso à cultura e a circulação
de grupos de teatro independentes.

12. 26. 39.


vila bilibio, para além de identidade, violência, cul- flores da noite: pequenos
uma área de risco tura: travestis e transexuais pontos de cor na escuridão
Fomos conhecer uma das regiões de Santa Maria onde em nossa sociedade e na vida
famílias podem ser removidas.

02
Ao se considerar que os preconceitos
sociais são difusos e costumam ser reproduzidos
pela mídia, ser fora de pauta pode significar, em
algumas situações, cumprir o Código de ética
dos jornalistas brasileiros. Um dos deveres dos
jornalistas é o de combater todas as formas de
discriminação, e seu cumprimento requer a
análise minuciosa dos termos legitimadores dos
preconceitos, através da difusão de informação
ética. A prisão é um exemplo de tema que
costuma estar em pauta, mas sempre sob vieses
preconceituosos. E o auxílio-reclusão, então,
foi descoberto como novo objeto de críticas

edição 09 / julho de 2010


midiáticas, as quais repousam frequentemente na
falta de informação e em uma visão turva sobre os
direitos humanos.
Além do auxílio-reclusão, outros assuntos
tratados na edição de número nove da Fora de
Pauta são: as histórias de autores de livros que
não são seus, os ghost writers; a relatividade da
loucura; artistas que fazem das ruas o seu palco,
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
Centro de Ciências Sociais e Humanas (CCSH) seja para manter a música andina viva, seja
Curso de Comunicação Social - Jornalismo para representar peças teatrais; ainda na arte, o
Laboratório de Jornalismo Impresso III
sucesso de Lúcia Luft e o ensaio fotográfico sobre
Professora responsável: Marília Denardin Budó
DRT/RS 12238 o valor. Em um contexto localizado, apresentamos
Editora: Marília Denardin Budó a história da Vila Bilibio, cujos moradores
Revisão de texto: Felipe Viero, Gabrielli Dala Vechia,
poderão ser removidos em função dos riscos de
Hilberto Prochnow Filho, Isabel da Silveira, Milena
Jaenisch, Michelle Falcão, Murilo Matias, Nandressa desmoronamentos, e o perfil das mulheres que
Cattani, Sarah Quines e Saul Pranke passam a noite transitando pela cidade para
Diagramação: Andressa Quadro, Charles Almeida,
vender flores e doces aos casais.
Daniel Isaia, Eduardo Covalesky, Gabriela Loureiro,
Henrique Coradini, João Pedro Amaral, Manuela Ilha, A matéria sobre a lenda de Silveira Martins
Rafael Salles e Ramon Pendeza não teria sido possível sem a entrevista concedida
Revisão de diagramação: Camila da Costa, Ivan
pelo professor Luiz Eugênio Véscio. Cerca de
Lautert, Juliana Frazzon, Laura Gheller, Letícia Go-
mes, Luiz Henrique Coletto, Maiara Alvarez, Rafael duas semanas após a realização da entrevista, a
Salles e Ramon Pendeza redação da Fora de Pauta recebeu a triste notícia
Projeto gráfico: Facos Agência
de sua morte. Deixamos aqui registrados os
Imagem de capa: Marcelo de Franceschi
Imagem de contra-capa: Ramon Pendeza nossos sentimentos e o apoio à sua família nesse
Tiragem: 250 momento difícil.
Impressão: Imprensa Universitária
Com esses e outros assuntos mais,
Data de fechamento: Julho de 2010
foradepauta.facos@gmail.com desejamos uma ótima leitura!

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ora de pauta no 9 / julho de 2010
insano
Por: Ivan Lautert e Rafael Salles Foto: Rafael Salles
Ilustrações: Rafael Balbueno

O lado de lá. O lado de cá.

Casa de repouso, sanatório e hospício,


em ordem decrescente de correção política,
são formas de se referir a um centro de tra-
tamento da saúde mental. Ignoramos o que se
passa por trás dos muros de um desses estabe-
lecimentos. O contato com um paciente, ge-
ralmente, é algo perturbador, capaz de ativar
o mecanismo da indiferença no mais samari-
tano dos visitantes. Uma sensação de passivi-
dade e impotência impede a grande maioria
de ajudar, entender, interagir. O mundo de cá
ignora o de lá. O de lá, muitas vezes nos ignora
de volta. Como em O Alienista, de Machado de
Assis, os dois lados se interseccionam em mui-
tos aspectos e a pergunta que surge é: quem
de nós é normal? O significado de normal vem
de uma posição de maioria. E maioria é rela-
tiva, já que ela depende do lado em que você
se encontra.
uma frase de Prado Veppo, o patrono do centro: frente à porta do escritório e saiu - para pouco
“Lareira: rosa incandescente que nasce no cora- tempo depois voltar e fazer tudo de novo.
ção da noite”. Num canto, próximo à janelinha do Depois entrou na sala um senhor de consti-
escritório, dois sofás gastos. Ali sentamos. tuição forte, vestindo-se de forma pijamesca. Ele
olhava para as pessoas como se os olhos dos ou-
tros estivessem alguns centímetros acima do que
seria natural - como se estivessem plantados em
suas testas. Até então, parecia o mais desconec-
tado daquilo que chamamos de “realidade” – um
conceito relativo, diga-se de passagem. Parou na
nossa frente e puxou conversa:
Pouco a pouco foram chegando à sala. Pri- - Muita gente estuda e não sabe das coisas.
meiro, evitando o contato direto. Depois, exami- Eu, cultura e conhecimento, tenho! – disse repe-
nando. Mais além, aproximando-se. Só depois de tidas vezes (para falar a verdade ele pontuava
familiarizados, começaram a interagir - exata- suas frases com essa passagem). Dizia também:
mente como faríamos caso fossem eles os visitan- “Eu falo as coisas... as pessoas me chamam de
tes no nosso lado. louco... me chamam de louco! Eu agradeço”.
O primeiro a se aproximar foi um senhor de Quando falava isso, a sua expressão transparecia
O CAPS (Centro de Apoio Psicossocial) de
passos rápidos e decididos, que usava óculos de ressentimento, antevendo que faríamos tal juízo
Santa Maria fica em uma casa de fachada bucóli-
soldador e tinha certa obsessão pela isonomia no dele.
ca, fronteada por um pequeno jardim e pintada
posicionamento dos tapetes. Ele repetiu o mesmo - Por exemplo: vocês sabem o que é um
em tons amenos - de azul e branco-cal. O que
ritual pelo menos umas cinco vezes: entrou apres- quilo? – Respondemos “É uma unidade de medida,
primeiro chama a atenção é o fato de o portão
sado, ajeitou o tapete da porta, sentou-se ao nos- não?”, ao que ele emendou: “Sim, vem do latim
estar sempre aberto: talvez o medo de passar
so lado, pegou uma revista da prateleira, fez que “quilatre” que significa mil unidades”. Até então
para o “lado de lá” inocule no visitante uma no-
leu, não leu, levantou-se, ajustou o tapete em nos comportávamos evasivamente, já que não se
ção ligada ao estereótipo do hospício prisonal,
espera escutar coisas precisas de quem está sendo
onde criminosos psicopatas vivem isolados da so-
atendido lá. Mas aquela explicação nos capturou
ciedade. Porém, isso não tem nada a ver com o
a atenção. Ele seguiu, sempre na área numérica:
funcionamento do CAPS. O portão esteve sempre
- Vocês sabem o que é um ano? – pergun-
aberto enquanto estivemos lá - apenas como um
tou.
convite para a entrada, uma vez que, não sendo
Dissemos que não. Uma pergunta vaga. Um
um internato, não há qualquer restrição à saída.
ano pode significar muita coisa, certo? A resposta
Entramos. Nos apresentamos aos funcioná-
foi objetiva e mais completa do que esperáva-
rios da recepção através de uma janelinha que
mos:
comunica o escritório à sala de entrada e fomos
- Um ano é igual a 365 dias e 6 horas. É
orientados a esperar pela psicóloga que nos apre-
por isso que a cada 4 anos temos um ano bissex-
sentaria o CAPS. Na parede da sala, um mural
to. – Logo após emendou seu mantra: “Eu digo as
lista as mais diversas atividades oferecidas aos
coisas e as pessoas dizem que eu sou louco, mas
pacientes (jogos de tabuleiro, cursos profissio-
tem gente que estuda e não sabe das coisas!”
nalizantes, artesanato, e as datas dos grupos de
apoio). Na lareira (apagada) há um cartaz com
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ora de pauta no 9 / julho de 2010
Apesar de conceitos matemáticos simples, dição dos jogadores, opiniões dos comentaristas e
decorados, provavelmente, por alguma especifi- até probabilidades bem sensatas sobre as chances
cidade da sua condição, tais conhecimentos mos- de conquista do hexa. Ficamos na dúvida: ele é
tram a noção de existência que ele tem, mas que um paciente ou é um funcionário? Não é tão fácil
parece ignorar. Segundo a PROESQ, Programa de responder quando estamos do lado de lá. E vice-
Esquisofrenia da Escola Paulista de Medicina, es- versa.
quizofrenia é uma doença mental que afeta a ca-
pacidade da pessoa distinguir se as experiências
vividas são ou não reais. Afeta ainda a capacidade
de pensar logicamente, sentir emoções e senti-
mentos, e comportar-se em situações sociais. As
alucinações são a mistura dos pensamentos, dos
sonhos, com os estímulos sensoriais provenientes “Meu tio dizia: pense em dinheiro! Já a mi-
do ambiente. Essa noção de realidade externa nha tia contrariava: aproveite a vida! Então, eu
existe no esquizofrênico, mas não é permanente. fiquei assim: bipolar...”
O senhor dos números nos mostrou a lógica da É com esse cortejo e bom humor que so-
doença: a teoria está lá, a prática é que mistura mos recebidos pelo nosso entrevistado. Mãos an-
tudo. Depois da breve aula de matemática, ele se siosas nos joelhos, e já começa a falar. A con-
repetiu um pouco mais e foi embora. versa começa sem qualquer pergunta além da
Outro homem, carregado por uma senhora dele, sobre nossos nomes. Seu cabelo grisalho e
que devia ser sua mãe ou parente muito próxima, olhos profundos disfarçam uma simpatia que não
aparentava estar no mais profundo transe. Era esperávamos ao primeiro contato. Roupa batida,
quase como se habitasse naquele corpo um ser aqueles blusões de vô com botões até embaixo.
que ignorava o que acontecia ao seu redor. Mirava Mas é como dizem, gênios não gastam tempo se
um ponto perdido no horizonte e ostentava um preocupando com o que vestir.
sorriso vago no rosto. Ao se mover, usava apenas Durante a juventude, tentou carreira no
o mecanismo de um pé à frente do outro, sem exército, mas foi rejeitado por sofrer do trans-
mexer um músculo do resto do corpo. A mulher torno. Daí você pensa: o que um bipolar pode
falava sobre ele com a psicóloga Clarissa Magna- fazer então? Passar na EsSA, claro, a Escola de
go, a quem esperávamos para a entrevista, e o Sargentos das Armas, famigerada pela dificuldade
paciente parecia distante, ignorando o exterior, da prova e das questões sujas de matemática.
sorrindo de algo que nunca conheceremos. Mesmo dentro da escola de sargentos,
Durante todo esse tempo, estava esco- mais uma vez nosso personagem é rechaçado por
rado na televisão um homem de uns 40 anos, causa de seu problema. “Ele é louco, vai dar um
que usava um boné de alguma firma da cidade tiro em alguém lá dentro!”- dizia o coronel, que
e falava alto sobre os jogos do Brasil na Copa. cultivava preceitos fascistas e não ia muito com a
Comportava-se de forma excessivamente alegre, cara dele. “Eu tive certeza de que ele era racista
expansiva, dirigia-se a todos e a ninguém espe- quando o capitão, que era negro como eu, resol-
cificamente. O que impressionava era a precisão veu revidar e estragou a vida de um amigo, que
das informações: datas, horários, escalação, con- era branco”, completa.
Nosso anfitrião conta que podia se aposen- que disse que preferia perder a vida a perder a
tar como terceiro sargento do exército... “mas o lucidez? Clarissa conta que alguns parentes dizem
advogado que consegui era sujo (e branco!). Essa quando chegam ao centro: “eu só quero deixá-lo
coisa de racismo eu carrego comigo e não comen- aqui o dia inteiro”.
to nem com os psicólogos”, conta, salientando Ao fundo do pátio, um lugar com algumas
um sorriso cativante. cadeiras escuras de plástico, com suporte de fer-
E como parou em Santa Maria? Na época, ro, do tipo que colocam para aumentar os luga-
há uns quinze anos atrás, existia o SAISM (Serviço res da igreja no dia da missa de Corpus Christi.
de Atenção Integral à Saúde Mental), em Santa Sentado, o senhor de passos rápidos da sala de
Maria. Veio com sua esposa, que faleceu um tem- espera, ainda com seus óculos de soldador. Ali é o
po depois. Hoje, com 43 anos, tem uma filha de “fumódromo” do CAPS, segundo a nossa guia. Fu-
dezesseis, trabalha em um programa de rádio e mar? Quem sabe um atenuante para os sintomas
até publicou um livro! da psicose. “Muitas vezes, eles não conseguem
Linda história, não? Totalmente verdade? suportar níveis altos de estresse”, diz Clarissa.
Pode ser ou não. Alguns portadores do distúrbio Bom, provavelmente o cigarro não seja um alívio
bipolar têm o costume de fantasiar ou até mentir para o estresse de um maníaco depressivo. Não
às vezes. Mas, cá entre nós, isso importa? para eles. Talvez para nós.
A conversa foi rápida. Não fizemos muitas Uma pequena casa simpática, com tijolos
perguntas e nem foi necessário. Ganhamos uma à mostra e uma chaminé, pede nossa atenção
única frase sobre a doença: “meus tios forçaram no outro canto do pátio. É o ateliê do Centro.
a barra. Tudo em exagero vira doença”. Provavelmente, o verdadeiro desestresse para os
pacientes, seu esconderijo. Um belo esconderijo.
Como papel de parede, desenhos feitos com pas-
tas coloridas iguais às que usávamos na pré-esco-
la. As janelas do ateliê destoam do resto da peça.
Notamos alguns vidros quebrados. Estamos, final-
mente, em frente ao problema da agressividade.
“Os vidros quebrados são resultado do último sur-
Caminhamos pelo pátio do CAPS orien-
to dele”, nos conta Clarissa Magnago. Dele? Do
tados por uma guia que também é paciente do
nosso entrevistado, ex-sargento e autor de livro.
lugar. Uma parreira já abatida pelo outono con-
A vida não é tão clara nem tem tanto foco
serva poucas folhas que ainda resistem. Poucas
durante uma crise. Clarissa diz que seguidamente
famílias também são as que resistem a uma psi-
acontecem, muitas vezes violentas, já rotineiras.
cose, como são chamadas as doenças que afetam
Ficamos até surpresos, mesmo sabendo que en-
a saúde mental. “Eles são carentes, precisam de
contraríamos esses relatos. A pergunta salta:
atenção. Não existe nenhum miserável aqui. O
- Mas então, como é sua vida trabalhando
que existe é o abandono social”. Quem diz isso
com pessoas aqui e depois voltando para casa?
é Clarissa Magnago, a psicóloga que esperávamos
alguns parágrafos atrás. É difícil criticar essas fa- - Para mim, eles são normais, assim como
mílias, fazer qualquer juízo de valor. Quem será eu, assim como vocês, assim como todo mundo.

ora de pauta no 9 / julho de 2010


não é dinheiro para
vagabundo, não
Por: Arnaldo Recchia e Murilo Matias Foto: Marcelo de Franceschi

Benefício concedido a dependentes de presidiários é encarado com forte preconceito por diversos segmentos da sociedade.

Política pública é um investimento reali- ciedade, que o taxam como um incentivador da despesas do Regimento Geral de Previdência So-
zado pelo governo nas áreas social, econômica violência: “dinheiro para bandido”, “mate um pai cial (RGPS). O índice não se aproxima do dinheiro
e estrutural a fim de garantir desenvolvimento e de família e seja remunerado pelo governo” são que é encaminhado para outras categorias - pen-
igualdade de condições ao cidadão. Muitas dessas alguns dos pesados carimbos que fazem referên- sões, aposentadorias, auxílio-doença, pensões
políticas trazem consigo sérios questionamentos cia ao auxílio. por morte - o que gera um questionamento quan-
quanto a sua eficácia e razão de existir, sendo, O auxílio-reclusão foi aprovado durante o to à necessidade de seletividade do auxílio às
inclusive, classificadas de assistencialistas sob um governo de Juscelino Kubitscheck e completa 50 famílias dos condenados pelo critério da renda.
viés preconceituoso. O auxílio-reclusão é uma das anos em 2010. É baseado no conceito de que o O valor emitido para o pagamento do benefício
políticas públicas que se encaixam nessa comple- condenado - e apenas ele - pode sofrer a punição do auxílio-reclusão somou R$ 140,5 milhões em
xa trama social, que envolve políticas de Estado, por seu crime, devendo-se preservar os depen- 2008, para uma quantidade de 25.078 emissões,
interesses da sociedade civil e de minorias, carre- dentes, no caso de existirem. O benefício, que é o que significa uma média de R$ 544,32 para cada
gando consigo um forte preconceito. concedido com critério na renda do trabalhador família atendida.
Instituído em 1960 e passando por uma antes de sua condenação desde o ano de 1998, Mesmo com um percentual irrisório, o nú-
série de revisões, o auxílio-reclusão consiste em era, em sua origem, extensivo a todo e qualquer mero de auxílios-reclusão emitidos cresceu mais
um benefício concedido a dependentes de apena- preso que possuísse vínculo com a Previdência. do que qualquer outro benefício concedido pela
dos, que possuíam vínculo com a Previdência So- O principal motivo alegado para a mudança é de previdência. Entre 2000 e 2008, a elevação foi
cial antes da prisão, com salários de contribuição ordem econômica, debruçando-se sobre a pre- de 286% e, em junho de 2009, 25 mil auxílios-
iguais ou inferiores a R$ 752,12 (considerados de cariedade do sistema previdenciário brasileiro, reclusão foram lançados. O crescimento tem duas
baixa-renda), e que cumpram regime fechado ou que vem procurando enxugar seu déficit sob a causas básicas: o investimento da Previdência So-
semiaberto. Uma importante distinção se deve justificativa de resgatar o caráter contribuitivo cial na disseminação de informações relacionadas
ao fato de que o auxílio-reclusão não pode ser da Previdência Social como forma de garantir o aos direitos e deveres do segurado com o objetivo
classificado como um benefício assistencial, uma pagamento dos benefícios às próximas gerações. de preservar a proteção social a todo cidadão e
vez que o condenado deve apresentar contribui- Entretanto, essa alegação pode ser ques- o aumento no número de detentos, que passou
ção junto à previdência. Ainda assim, até hoje tionada através de um rápido exame das estatís- de 212 mil presidiários em 2000 para 423 mil em
pouco conhecido, o auxílio é visto sob um ranço ticas que se tem a respeito do auxílio-reclusão. 2008, segundo dados do Departamento Penitenci-
de preconceito por setores conservadores da so- O dispositivo é responsável por ínfimos 0,09% das ário do Ministério da Justiça.
08
As estatísticas “vivas”

Parte dessa estatística é João da Silva, que


utilizou o nome fictício para ter preservada sua
identidade. João está preso em regime fechado
desde outubro de 2009 por porte ilegal de arma.
Antes de ser preso, trabalhava como caminhonei-
ro e obtinha uma média de 2 mil a 2,5 mil reais
por mês. Com a detenção, a família, formada por
esposa e três filhos, perdeu a única renda que
a mantinha. Alertado por seu advogado, João in-
gressou com pedido para receber o auxílio-reclu-
são. Atualmente, seus quatro dependentes rece-
bem 790 reais, dinheiro utilizado para a compra
de alimentos, roupas e pagamento de luz. O valor
é considerado baixo, ao ponto de João dizer-se
humilhado, pois o dinheiro atende apenas às ne-
cessidades mais básicas da família. Com relação
ao preconceito existente, é bastante claro: “Ain-
da existe um grande preconceito com o preso, ao
invés de incentivar, apoiar, dar uma oportunida-
de, a sociedade discrimina”.
A equipe de reportagem da revista Fora
de Pauta também entrou em contato com pro-
fessores e direção de uma escola que tradicio-
nalmente atende alunos pertencentes às famílias
de apenados. A fim de não expor os alunos, a di-
Com o auxílio reclusão, os filhos dos apenados podem estudar.
reção da escola optou por não revelar os nomes
dos estudantes que se enquadram na situação de
auxílio-reclusão. Entretanto, uma professora, a mente, como se alimentar para vir à escola, ou Embora a situação possa parecer injusta a
qual pediu para não ser identificada, confirma pior, teriam que entrar para a ‘profissão’ do pai um primeiro olhar, o filho (ou dependente) de um
que inúmeros alunos que passaram por ela, são para ajudar em casa”. condenado não deve passar mais necessidades do
oriundos de famílias nas quais um apenado está Mas também existem situações dramáti- que qualquer outra pessoa, simplesmente pelo
presente na sua estrutura base, geralmente o pai cas. A professora lembra o caso de uma criança fato de um familiar seu ter cometido um crime.
ou o avô das crianças. Segundo ela, o dinheiro da que a questionou sobre a realidade que vivia: O auxílio-reclusão é, antes, uma política pública
previdência é de suma importância na vida dos “Um menino não compreendia porque ele passava das mais importantes, para evitar que a pena pas-
dependentes de prisioneiros: “Se não existisse tanta dificuldade, e o amiguinho que era filho de
se da pessoa do condenado.
esse auxílio, esses alunos não teriam, provavel- ‘homem mau’ podia comprar lanche”.
09
ora de pauta no 9 / julho de 2010
minha madrugada dos mortos
Por: Paula Pötter Ilustração: Manuela Ilha

Por forças do destino, acabei assistindo a shopping center, e conta novamente os primeiros filme da maratona: Survival, o único que realmen-
toda a saga Of The Dead de George A. Romero em dias de invasão, desta vez sob a ótica de quatro te me decepcionou. Ainda estou tentando enten-
uma única noite. Foi uma madrugada de zumbis, san- pessoas refugiadas no local. Despertar, aliás, foi o der qual é a proposta do filme. Ele conta a história
gue, tripas, luta desesperada pela sobrevivência e a que eu mais gostei dentre os seis filmes. É tenso, da briga entre dois homens em uma ilha isolada, soma-
raça humana virando-se contra si mesma. E, bem, tem personagens muito bem desenvolvidos, uma do a um grupo militar que vê um vídeo no YouTube e
o fato de eu ter me mantido acordada até às 8h da trama bem amarrada e várias formas criativas de resolve ir para o lugar. Em meio a essa história rasa, o
manhã, depois de seis filmes parecidos, diz algo a exterminar zumbis. O que mais eu poderia querer? que sobra é o já batido dilema de matar ou não amigos
favor do Sr. Romero. Confesso que Noite dos Mor- Já passava da meia-noite quando comecei e familiares ‘zumbificados’ e a sensação amarga de ter
tos demorou um pouco a me conquistar. O filme de a assistir Dia. Saem os civis e entram os militares e visto mais do mesmo.
estreia do diretor começa um pouco lento e cientistas na busca por respostas. E, como já é co- É fato que quem assiste a um filme de
centrado em uma personagem que inspira mum no cinema, discordando sobre as soluções. Só Romero espera um bom filme de zumbi, e isso
pouca simpatia. É necessário me impor- ainda não entendi o crocodilo aleatório que surgiu o diretor sabe fazer. Não consigo deixar de
tar com o que acontece com as pessoas nos primeiros minutos de filme. pensar, entretanto, que não faria mal
para o filme funcionar, e digamos que, E eis que ficam para trás os gloriosos clássicos surpreender de vez em quando e
no início, a vida de Bárbara não tinha de Romero e entram os controversos filmes dos anos inovar mais uma vez o cinema
muito valor. Mas, assim que a moça 2000, começando com Terra. Eu não tinha escutado morto-vivo. E depois de 12 horas
desmaia e os outros personagens muitas coisas boas. Ok, eu não tinha escutado nada de filme uma coisa é certa:
ganham destaque, o filme muda bom sobre o filme e minhas expectativas eram baixís- quando os zumbis in-
completamente. simas. Talvez por isso eu não tenha detestado Terra vadirem, eu esta-
A maior surpresa da mi- como muitos fãs do diretor. Ele diverte, apesar do rei pronta!
nha maratona foi ver como roteiro fraco. Aliás, muitas boas idéias acabam per-
Romero consegue contar a didas por causa do roteiro.
invasão de zumbis sob vá- Diário é um pouco melhor. O filme conse- Of The Dead
rios ângulos diferentes. gue usar bem o recurso de falso docu-
Em Despertar, ele tro- mentário, sem parecer forçado.
ca o cenário isolado Eu só dispensaria a narração 1968)
e sem informações em off da protagonista,
, 1978)
de Noite por um que é completamente
desnecessária. ,1985)
O dia estava
, 2005)
amanhecendo quando
cheguei ao derradeiro , 2007)

(2009)

Fonte: www.imdb.com
10
google não é o grande irmão
Por: Gabriela Loureiro Ilustração: Stuart McMillen

Apesar de não muito populares no Brasil, O primeiro é um software que permite a praticidade, estamos cada vez mais hipnotizados
as teorias conspiratórias a respeito de a empresa visualização de imagens reais, capturadas via sa- pela tela do computador e dependentes de uma
Google ser o Grande Irmão (personagem ditato- télite, de praticamente qualquer lugar do mundo empresa multibilionária e das distrações que ela
rial do romance futurista “1984”) pipocam nos e já coleciona acusações polêmicas, como mos- tem a oferecer.
Estados Unidos. Ironicamente, pode-se encontrar trar onde mora Fidel Castro, seu abrigo subter-
vários sites a respeito disso, através da própria râneo e seu túnel que levam ao aeroporto militar Confira:
ferramenta de busca. de Baracoa (em 2006), e de ter sido utilizado por Coluna de Michael S. Malone no site ABC
Não é para menos. A empresa multibilio- terroristas para localizar e atacar bases britâni- News sobre o Google: http://abcnews.
nária, que hoje figura entre as mais valiosas e cas no Iraque (em 2007). O Google Latitude é um go.com/Business/story?id=5727509&page=1
influentes do mundo, oferece uma gama de pro- programa de computador capaz de rastrear pes-
gramas e aplicativos tão úteis e interessantes que soas de 27 países (incluindo o Brasil) a qualquer Comparação entre “1984” e “Admirável
chegam a assustar. Começando pela ferramenta hora do dia ou da noite. Não é preciso inserir um Mundo Novo”, em quadrinhos, de Stuart
de busca, também conhecida como oráculo - já chip embaixo da pele ou tatuar um código de bar- McMillen (de onde foi retirada a ilustração
que tem resposta para tudo: toda vez que você ras na nuca: basta possuir um celular BlackBerry abaixo): http://www.recombinantrecords.
realiza uma busca, Google o direciona para pági- ou qualquer computador de mão e se cadastrar
net/docs/2009-05-Amusing-Ourselves-to-
nas relacionadas e tem capacidade para armaze- no programa.
Death.html
nar todos os dados que milhões de usuários aces- Talvez as ambições dos dirigentes da em-
sam todos os dias, especialmente se você utiliza o presa Google Inc. sejam maiores do que se possa
browser Google Chrome. Se você utiliza o Gmail, imaginar. Porém, uma delas já está clara: arma-
Google tem acesso a todos os seus e-mails e infor- zenar o maior número de dados possível. Isso leva
mações contidas neles - quem nunca se surpreen- alguns a pensar que o Google é o Grande Irmão,
deu com os anúncios patrocinados, que parecem que tem controle de todas as informações refe-
personalizados de acordo com os seus interesses, rentes ao passado, presente e futuro e manipula
no lado direito dos e-mails que recebe? as pessoas como se fossem robôs. De fato, faz al-
Se você usa Orkut ou Facebook, Google gum sentido. Porém, a empresa Google está mais
tem acesso a suas fotos, sua rede social e seus para Ford, personagem de outro clássico futuris-
interesses. Precisa poupar dinheiro e tempo e ta sobre controle e liberdade, Admirável Mundo
faz suas pesquisas através do GoogleBooks? En- Novo. Ford é o grande representante da “evo-
tão Google conhece o que e onde você estuda, e lução” de uma sociedade moderna que foge da
também como anda sua vida acadêmica. E quem realidade através dos prazeres e do consumismo
não assiste vídeos no YouTube, não é mesmo? Sem irracional. Google pode substituir a televisão pelo
contar outros programas que lembram as telete- Youtube, o diário pelo blogger, seus livros pelo
las de “1984”, como o Google Earth e o Google GoogleBooks, e até mesmo a sua convivência so-

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Latitude. cial pelo Orkut. Estimulados pelo prazer e pela

ora de pauta no 9 / julho de 2010


o recanto da bilibio
Reportagem: Charles Almeida, Hilberto Prochnow e Eduardo Covalesky Fotos: Marcelo de Franceschi e Hilberto Prochnow

A terra por cair e a possibilidade de


enchentes incluíram a Vila Bilibio na lista e
áreas de risco social de Santa Maria. Que lugar
é esse que só se ouve falar em dias de desli-
zamento de terra? É o que a FDP se propõe a
mostrar nessa matéria.

Uma íngreme subida que se acessa pela


margem direita da BR-158 no sentido Santa Maria
- Itaara, logo depois da ponte sobre a linha ferrovi-
ária. As referências para encontrar a entrada dessa
área urbana, com jeito e calma de interior, são o
barracão que comercializa artefatos de cerâmica
e o grandioso motel, encravado no sopé do morro,
que parece segurar o monte de terra à retaguarda.
Esse recanto é, antes de tudo, uma vila
afastada e tranquila que vive seus dias de temor.
As chuvas amedrontadoras e os montes de terra
formam uma combinação difícil de assimilar. Co-
tidianamente, seus moradores organizam-se em
torno da Rua Marconi Mussoi, a principal da vila,
onde ficam com a respiração ofegante na subida,
ansiosos por chegar em casa. E na descida, con-
templam a vista de parte da cidade, à qual ora
pertencem, ora não.
De uns tempos para cá, contudo, instalou-
se uma estranha sensação de efêmero pertenci-
mento nos moradores da Vila Bilibio. “Gosto daqui,
eu cresci aqui, criei meus filhos aqui, mas se nos
levarem para um lugar bom, eu vou”, conta a mo-
radora Luciane Soares Trindade.

ora de pauta no 9 / julho de 2010


Cartografia expansão. Segundo relatos dos moradores, a terra
para fazer a enorme taipa que bloqueou a água
Na vila, há mais de 100 residências às do Rio Vacacaí-Mirim foi retirada do morro onde
margens das duas únicas ruas. O acesso a elas é hoje está a vila, que na época já abrigava alguns
pela BR-158. A rua da “baixada”, Adir Miola, com moradores. Caminhões e caminhões trabalharam
suas curvas e casas coloridas, leva ao Rio Vacacaí- durante quatro anos para desconstruir um morro
Mirim e ao risco de alagamento que assola pelo e levantar outro.
menos nove moradias. A outra, Rua Marconi Mussoi, Anos após o ir e vir de caçambas, a
inicia-se em um acentuado aclive, percorre uma aparência da elevação modificou-se. No imaginário
curva, depois desce e sobe até o ponto mais alto dos moradores, conformaram-se os efeitos que a
da vila: a caixa d’água da Corsan. Nas laterais da
obra teve naquele pedaço de mundo. O morador
Rua Marconi Mussoi, espalham-se casas marcadas
Oziel diz que, após ser retirado o suficiente para
com a insígnia do desmoronamento de terra e de
a taipa, o pessoal responsável pela obra aplainou
pedras.
de qualquer jeito o montante de terra solta e
Na Rua Adir Miola, as casas, em geral de
abandonou o local. Assim, ele acredita que é esse
alvenaria, enfeitam as bordas da alameda. Das
solo remexido e mal socado que provoca o risco
mais variadas cores, elas ganham porões elevados
quando próximas ao córrego. Algumas, inclusive, de desmoronamento, perceptível na residência de
têm o jeito de palafitas, preparadas para suportar sua tia, dona Valdereza. Com o passar dos anos,
as cheias do rio que, não muito longe, à montante, a casa teve as paredes rachadas e findou com a O declive se torna um perigo a mais nos dias de chuva. Os freios dos carros,
tranquilidade da moradora. às vezes, não são suficientes, e não há guarda de proteção na via.
é seguro na barragem do DNOS.
A barragem, aliás, compõe uma das peças Seu Pedro Soares, 60 anos, se lembra da
desse mosaico colorido e desconfiado, que virou a época em que as caçambas circulavam pelo morro.
Para ele, o movimento constante não afrouxou A partir do período de construção da
Bilibio. Localizado à noroeste da vila, o reservatório
nada, pelo contrário, ajudou a compactar a Rua barragem, as habitações da vila foram se
foi construído na década de 1970 para garantir o
multiplicando. Basicamente as mesmas famílias,
suprimento d’água para uma Santa Maria em franca Marconi Mussoi e segurar o morro.
que já ocupavam o lugar, foram adquirindo terrenos
loteados e escriturados para filhos e sobrinhos
que iam casando e constituindo suas famílias. As
moradias subiram a ribanceira. E o aglomerado de
casas passou a se chamar Vila Bilibio.

Diga ao povo que saia

Cláudio Rosa, secretário de Município de


Ação Comunitária, garante que, em hipótese
alguma, a Prefeitura poderia dar autorização para
loteamento da área em que está a Vila Bilibio.
Ele explica que o antigo dono da propriedade
vendeu terrenos por preços abaixo do mercado. 
“As pessoas, devido à necessidade, acabaram
comprando esses terrenos. A Defesa Civil está
13
Vista da tranquila chácara do seu Emerick, presidente da
associação dos moradores da Vila Bilibio
histórias à margem da rua fazendo um monitoramento permanente da área,
que está cedendo”, conta o secretário.
“Quando ocorre esse problema, é falha dos
Pedro Soares, 60 anos, foi um dos primei- poderes constituídos. Eles não dão a diretriz para
ros moradores da Bilibio. Há 40 anos no local, ele a população e não há a fiscalização da Prefeitura.”
já trabalhou em olaria e com caminhão, taxista Cláudio Rosa acrescenta que o local é uma área de
e maquinista. Hoje produz artesanatos de cipó e preservação, totalmente impróprio para habitação.
garante que, desde que iniciou nessa atividade, Após a retirada dos moradores, a ideia é fazer uma
melhorou de vida. Suas obras são vendidas pela arborização que sirva de contenção natural.
esposa no centro da cidade, onde possui clientela
A intenção de tirar as famílias das casas
garantida.
Seu Pedro não tem intenções de sair da vila em maior risco não passa de intenção, por hora.
onde criou seus filhos e foi construindo aos poucos O próprio secretário afirma que “não existe ainda
sua residência de alvenaria. “Se um dia eles acha- local. Depende do plano diretor para saber quais
rem que eu tenho de sair daqui, nós vamos com o as áreas servem para regularização fundiária, ou
advogado e ver o direito que eu tenho. Tenho mais transformá-las em áreas de interesse social. É
propriedades aí. Temos 4 terrenos aqui. É meu. Eu muito difícil de trabalhar com prazo, quando se tem
pago imposto, não devo nada para eles. Se me pa- burocracia. O tema envolve diversas secretarias”.
O muro de contenção (acima) construído por
garem em dinheiro o que eu quero, eu saio. Não Alardeando a eminência de um desastre,
seu Pedro é tido por ele como a segurança
vou deixar nenhum tijolo”, conta. de que deslizamentos não acontecerão no o promotor João Marcos Adede y Castro foi quem
Quanto aos desmoronamentos, o artesão seu terreno. Sua filha Luciane (ao lado e
afirma que o risco não é tão grave assim. Para con- abaixo),em situação divergente, espera a determinou à Prefeitura de Santa Maria a retirada
ter o barranco de terra localizado nos fundos de
realocação. dos bilibenhos dessa área até o início do próximo
sua casa, ele construiu um muro de pedras. “Aqui inverno. Segundo o promotor, um levantamento
Agora que a terra socou, não tem mais perigo”, indica que 18 casas estão em situação de risco
eu fiz muro e tudo. Eu conheço a área melhor do
avalia Pedro.
que eles. É uma argilazinha com 50 cm e pouco e extremo. A soma da promotoria, contudo, chega
Ele ainda construiu casas para suas filhas
em cima uma terra preta com pedra. Com a chu- a 70 famílias, mais de 120 pessoas em situação
na vila. Uma delas, Luciane Soares Trindade, mora
va, começa a apertar a argila. Eu não vou negar: perigosa.
há 10 anos na Bilibio, junto com a filha Sabrina,
andou caindo um pouco aí, mas faz anos. Se era
de 16 anos, e dois filhos: um menor; e outro que
para cair, era no início quando a terra foi mexida.
mora em uma peça, mais abaixo, no mesmo ter- Encontrando o recanto
reno. Localizadas em um declive, no lado direito
para quem sobe a rua, o local oferece dois perigos: A Rua Marconi Mussoi é a artéria do
deslizamentos de terra provocados pela água da trânsito e da vida comunitária dos bilibenhos. Às
chuva; e a possibilidade de algum veículo escorre- margens da via, localiza-se a maioria das casas
gar da via estreita e lisa e se chocar com a casa.
e das eminências de desmoronamentos. Depois
Luciane, ao contrário de seu pai, aceita a
da primeira subida, em linha reta, a rua faz uma
mudança para outro lugar. “Estou a fim de ir em-
bora. Por baixo do porão está cedendo. Eu quero acentuada curva ainda em aclive. No local, não são
ir para um lugar bom. Não posso trabalhar, tenho raros os relatos de acidentes.
problemas de saúde nas pernas. Me criei aqui nesta Moradora exatamente desse ponto, dona
vila, casei e descasei. Meu pai não quer que eu vá Sueli conta que o medo a cerca, pela constante
embora daqui. Mas se for para o bem da gente, possibilidade de ter sua casa invadida por
fazer o quê? A gente fica sempre com medo. Um um veículo. No dia 26 de maio de 2010, uma
dia uma caçamba parou naquela pedra, chegou a caminhonete de uma empresa de materiais de
descer cascalho até o pátio”, recorda a moradora.
14
construção desgovernou-se e entrou no pátio
ora de pauta no 9 / julho de 2010
de sua casa. O veículo desmanchou o banheiro tratar de uma Area de Preservação Permanente
e ampliou o desejo de sair e a angústia de ficar (APP), não há investimentos na vila. Sem melhorias
que habitam os pensamentos de dona Sueli. Uma os riscos aumentam, com o aumento dos riscos não
característica do local é ter o lavabo no lado se investe em melhorias e assim por diante.
externo. Para acessá-lo, é necessário sair de casa. Um exemplo da necessidade de obras no
Seguindo, após descidas e subidas, chega-se local é a perigosa curva onde mora dona Sueli.
à casa do presidente da associação dos moradores Lá se observa uma rachadura que atravessa a via
da Vila Bilibio, o mineiro Dionésio Emerick. formando um degrau nos paralelepípedos. Seria um
Emerick, caminhoneiro aposentado, veio sinal de que o morro esteja rachado exatamente
para Santa Maria com a esposa Sueli, há quatro naquele ponto. Enquanto a gramínea cresce no
anos, para reestruturar uma pequena chácara leito da rua, aumentando o risco de derrapagem
adquirida pelo filho. Sua gana por transformar a dos carros, a ribanceira sente a falta de uma
propriedade em um local aconchegante o levou guarda.
a lutar por melhorias para a rua e, assim, foi O presidente Emerick relata seu apego
aclamado presidente da associação. À época, pela comunidade. O ex-caminhoneiro, que já foi
conseguiu caminhões de brita com piche para
zagueiro do Friburguense na segunda divisão do
revestir a via, após o patrolamento barganhado
Campeonato Carioca, acredita que não há melhor
junto à Prefeitura.
lugar para morar em Santa Maria. Há silêncio, paz
Emerick orgulha-se de ter trânsito na
e convivência amistosa com os vizinhos. Embora
Prefeitura para manter a iluminação pública do lugar
local urbano, passível de cobrança de IPTU, a Vila
em dia e decepciona-se com a falta de amparo em
Bilibio reserva ambiente característico de interior:
outras áreas. Os bilibenhos sofrem com a sombra
uma tranquila calmaria com nascedouros de
dos deslizamentos de terra e com o abandono da
córregos, árvores que balançam ao sabor do vento
máquina pública para melhorar sua infraestrutura.
e pássaros que gorjeiam à Gonçalves Dias.
Em virtude do risco de desmoronamento e de se

A residência de dona Sueli (acima) se sustenta em


pilares de madeira encravados na encosta do morro.
O flagrante de um beija-flor (ao lado), símbolo da forte
presença da natureza na vila.

15
filhos da noite
Por: Felipe Viero e Milena Jaenisch Ilustração: Thiago Krening

A menina de nove anos, que aqui será operadora, Suzana consegue exercer o seu papel de Amor, casamento, filhos: não lhe parece a
chamada de Patrícia, está morando com os avós mãe, solicitando relatórios diários sobre questões história de uma família perfeita? Pois com Michele
maternos em Porto Alegre desde dezembro de escolares e sobre o comportamento em casa.  foi assim. O grande amor e a gravidez tranquila e
2009. Para ela, o trabalho no setor administrativo Patrícia e Suzana sempre foram muito planejada.
de uma fábrica, empreendido pela mãe, impede unidas, o que talvez se justifique pela ausência O que não estava previsto eram as tragédias
que ambas fiquem juntas em Santa Maria, cidade de uma figura paterna. A filha conta para a mãe que abalaram a sua história. Entre um cigarro e
onde o labor desta é exercido. que Rodrigo, garoto da escola, tentou beijá-la, e outro, Michele conta que é garota de programa
Suzana concluiu o curso técnico de ela disse que isso apenas ocorreria quando eles há sete anos, um a menos que a idade de seu
contabilidade e, durante o período em que exerceu noivassem. A mãe diz para a filha que ela deve dar filho, Maurício. A cronologia entre a gravidez e a
essa profissão, ganhava um salário inferior aos um gelo no namoradinho. Ambas sentem falta de profissão não é casual.  Quando Maurício completou
cerca de seiscentos reais semanais recebidos hoje dormirem abraçadas.  sete meses, os pais dela faleceram, e, dois meses
em dia. Com intensos olhos azuis, cabelos claros e Suzana vai a Porto Alegre com frequência. A depois, o marido.  
pantufas de ursinho, ela afirma que, agora, gosta do família nunca veio para cá. Patrícia provavelmente Em meio a uma profunda depressão, e sem
trabalho que realiza e diverte-se com ele, embora virá nas férias de julho, para conhecer a casa que o apoio dos familiares remanescentes, ela passou a
não goste de mentir nem para a filha, nem para os possui um pátio ensolarado à tarde, espaçosos e prostituir-se. A grande motivação para o exercício
pais, que desconhecem as suas reais atividades.  confortáveis sofás brancos e simpáticos porta- da atividade foi evitar que algo material faltasse
Ser garota de programa não é um fardo panos de prato. A prostituição, entretanto, não novamente ao filho. “Quando adoeci, não tinha
para ela, e sim uma etapa de um processo mais atrapalhará o convívio.  “Eu pegarei uma folga na ninguém para dar um litro de leite a ele”. E, nesse
amplo. Tendo iniciado a carreira no ano passado, fábrica quando ela vier”.  aspecto, Michele tem obtido grandes conquistas:
ela pretende permanecer trabalhando no setor Suzana não pretende contar para a família adquiriu uma casa e abriu uma empresa.  
durante aproximadamente três anos, período que que as quantias enviadas a eles não provêm de A decisão de morar com uma babá e de
considera suficiente para a obtenção de três metas uma fábrica de bonecas de porcelana, mas sim de ficar com a mãe apenas aos finais de semana
principais. Uma carteira de motorista B, uma uma boate de nome curioso. Ela tem receio de que partiu de Maurício, pois Michele, que trabalhava
motocicleta e o dinheiro para construir um salão a filha e os demais familiares tenham preconceito, a noite toda, dormia durante o dia, e ele se sentia
de beleza no terreno que o pai possui na capital vergonha. Opta por contar uma diferente versão solitário. Mesmo em casas separadas, eles se falam
do estado.  dos fatos.  “Afinal de contas, é um serviço diariamente e, para ele, o sábado e o domingo com
Mais do que motivações de ordem financeira, temporário”. a mãe são sagrados. “Ele cobra atenção”.  
muitas das quais se relacionam ao futuro da filha, Aos oito anos, ele já fez perguntas sobre
Suzana encara a prostituição como uma saída para Profissão análoga, trajetórias diversas a profissão desempenhada pela mãe. Michele
superar uma decepção amorosa. “Ele foi o único explicou, de forma superficial, que trabalha em
homem que amei e talvez o único que eu vá amar”.  Além da casa onde moram, Suzana e Michele uma boate. Quando questionada se um dia contará
Para afastar-se dele, mudou de emprego têm poucas coisas em comum. Posturas diferentes ao filho que é, ou foi, garota de programa, ela
e de cidade e, consequentemente, ficou longe da e personalidades distintas, que se cruzam em afirma que sim, pois deseja que o filho valorize o
filha. Apesar disso, aliando a telefonia móvel aos pontos como a dedicação aos filhos e a decisão por seu esforço como mãe. Esforço esse que engloba
bônus concedidos para ligações entre a mesma não utilizar drogas ilícitas.   a infelicidade emocional. “Hoje eu tenho coisas

16
que nem imaginava. Mas sou,emocionalmente, anos.
frustrada porque não consigo ter um relacionamento Mesmo quando estava na
estável”.  adolescência, Jacques conta que
Os esforços não param por aí. A noite nunca se relacionou intimamente
traz válvulas de escape, especialmente a quem com nenhuma das profissionais, pois
está abalado emocionalmente. No primeiro ano, sendo o Night Club Tia Vera um
Michele consumia bebidas alcoólicas todos os dias. negócio, o profissionalismo deveria
Há três anos ela não bebe, devido ao tratamento sempre prevalecer: “Negócio
realizado com medicação controlada. Tudo para se é negócio para mim. A minha
preservar e poder cuidar melhor do filho.   mãe nem aceitaria, ela é bem
Sobre o futuro, a garota pensa em largar profissional”.
os programas em um período de aproximadamente Em meio à cumplicidade
dois anos e abrir uma loja, ou mesmo um entre a família e as
ateliê.   Pretende retomar os estudos, cursar meninas, o preconceito
Design.  Deseja um relacionamento que a complete, circunscreveu a relação. vergonha das mulheres que sempre
sempre pensando no filho: “Eu preciso mais dele “Eu sofri na pele. A respeitou. Tanto é verdade que o seu
para continuar vivendo do que ele de mim”. gente sofre até hoje e-mail de trabalho possui como nome
E é na batalha para dar um futuro melhor preconceito”, relata do usuário nightclubtiavera, revelando
a ele, que Michele continua enfrentando olhares Jacques, afirmando algo que muitas pessoas, em especial o seu
insinuantes e noites, para ela, não tão fáceis. que seu irmão mais eleitorado, já sabem.
novo, de 12 anos, Patrícia, Suzana, Maurício, Michele.
“Vereador filho da puta” acaba ouvindo mais Nomes fictícios empregados com o intuito de
comentários no ambiente preservar os indivíduos por trás deles. Nomes
Partindo de outro ponto de vista, a escolar do que ele ouvia, que representam histórias que se cruzam na
prostituição assume novos tons. Jacques Douglas atribuindo isso à popularização noite, encontram-se em apartamentos da cidade
de Oliveira sempre conviveu com as mulheres que da casa. e guardam segredos. Embora não saibam dos
ele chama de “acompanhantes”. Jacques, mais conhecido como “piá da trabalhos realizados pelas mães, as crianças estão
Administrada há 12 anos pela mãe, o Night tia Vera”, é hoje representante do legislativo diretamente ligadas a eles. Distância, saudades,
Club Tia Vera, casa noturna muito conhecida na municipal da cidade onde o Night Club se localiza. receio, angústia, ansiedade, futuro. A prostituição
cidade de Frederico Westphalen, faz parte da Ele aponta o estabelecimento familiar como sendo é, nesses casos, veladamente basilar nas relações
realidade da família. Após uma infância pobre e o o grande incentivador de sua candidatura, já que mãe-filho.
falecimento do pai, em 1998, tia Vera começou a trouxe fama, contribuindo para a sua inserção no Jacques, nome real, traz um enredo
dirigir a boate.  meio político e auxiliando no marketing de sua diferenciado. Mesmo tendo sido chamado de
As relações entre a família de tia campanha. “A convivência com elas abasteceu a “vereador filho da puta”, sua mãe nunca trabalhou
Vera e as meninas que ali trabalhavam, ou vontade de eu me eleger. Fui o 4º mais votado na como tal. Apesar disso, a boate e as atividades ali
trabalham, sempre foi muito respeitosa. “O nosso cidade e o 2º do partido”. exercidas são traços constitutivos de seu passado
relacionamento com as meninas é de irmão para O “piá da tia Vera” não tem vergonha e, mais do que marcas, trouxeram-lhe um presente
irmã. Nós nos alimentamos na boate. Almoçamos e em falar sobre o motivo que lhe fez conquistar e um futuro: a política.
jantamos junto com elas. O que as gurias comem, o carinho da comunidade, sobre a casa noturna Motivo de vergonha, ou então de orgulho, a
nós também comemos”, afirma Jacques, que na que trouxe o sustento da mãe e dos irmãos e mais antiga das profissões vai muito além do sexo
época em que a mãe assumiu o negócio tinha 13 que quitou as dívidas atrasadas. Tampouco tem pago. Relações familiares, relações afetivas.

17
ora de pauta no 9 / julho de 2010
O trecho ao lado pertence a José Costa, um

o autor
anônimo das palavras. Seu trabalho é escrever so-
bre assuntos que são solicitados por outras pessoas
sem o mérito do reconhecimento. O personagem é
o narrador do romance Budapeste (Companhia das

do (meu)
Letras, 2003), de Chico Buarque, e vive em con-
flito com sua condição de sombra em relação aos
‘verdadeiros’ autores, cujos nomes estampam as
capas de livros.

livro
Fora da ficção, outros Josés realizam a
função de ghost writer. Waldo Luís Viana, econo-
mista, escritor e jornalista, trabalha como ghost
writer há 23 anos. Angela Meili, mestre em linguís-

não
tica, atua nessa função há pouco tempo, desde
2009. Eduardo Nucci, colunista e radialista, está
no ramo desde a década de 1990. O professor M.S.
(cujo nome preferiu manter no anonimato), há

sou eu
sete anos. Todos eles têm em comum o exercício
de colocar no papel as ideias que povoam as cabe-
ças daqueles que não têm muita afinidade com a
palavra escrita. Mas, mais do que isso, o traço que
os une, de fato, é a prática diária do desapego em
relação às suas criações intelectuais.
Embora a função de ghost writer seja co-
mumente associada à produção de livros e de dis-
cursos políticos, outras modalidades também são
oferecidas, como poesia, textos para blogs e sites,
Por: Gabrielli Dalla Vechia e Sarah Quines
letras de música e, até mesmo, trabalhos acadê-
Ilustrações: Rafael Balbueno micos, como monografias, artigos e dissertações.
Aliás, o que prevalece é, justamente, a demanda
“Meu nome não aparecia, lógico, eu desde sempre por trabalhos de conclusão de curso, e os ghost são
estive destinado à sombra, mas que palavras minhas uníssonos no que tange às razões de tal procura: a
fossem atribuídas a nomes mais e mais ilustres era es- escassa e medíocre produção científica dos estu-
timulante, era como progredir de sombra”. dantes brasileiros. “Poucos são os que consideram
o valor da pesquisa hoje em dia, o que denota cada
vez mais a negligência dos futuros profissionais que
estamos formando na lógica atual”, afirma M., que
não é nem jornalista, nem historiador, nem filóso-
fo, muito menos pedagogo, mas que já criou traba-
lhos de conclusão em todas essas áreas.
No entanto, não é só de graduação que vive do grau de proximidade do cliente. M., o único que Os ghost writers, comenta Waldo Luís, tam-
o ghost. O que fazem os pós-graduandos quando não tangenciou o questionamento, cobra de R$ 350 bém atuam como “equipe de apoio” para grandes
seu curso vale mais para fazer volume no currículo a R$ 400 para monografias e R$ 500 para trabalhos escritores, os ‘gênios da raça’ nas noites de au-
lattes do que, propriamente, para promover a ci- de conclusão de pós-graduação. tógrafos. Como há muitos autores com obras es-
ência? Contratam ghost writers, é claro. M. conta tagnadas nas grandes editoras, estas contratam
que já teve a oportunidade de trabalhar conceitos “Porém aqueles senhores nunca se especialistas em letras para ler os textos originais
do filósofo francês Michel Foucault para pensar a queixaram de minhas palavras, antes, e retirar deles as ideias interessantes para serem
questão da sexualidade e já usou a teoria da arte volta e meia as recitavam como se de aproveitadas pelos autores consagrados. Desse
para traçar um panorama da cena do rock brasilei- fato fossem suas: conforme eu disse ou- modo, perpetua-se a genialidade de alguns em de-
ro dos anos 80. E em nenhuma das pesquisas teve tro dia...” trimento do anonimato de outros.
seu nome estampado na capa, afinal, negócios são
negócios. Apesar de seus nomes não aparecerem na
autoria dos trabalhos, os ghost writers experimen- “Palavras recém escritas, com a
“Naquelas horas, ver minhas obras tam uma outra forma de exultação que não aquela
mesma rapidez com que haviam sido
assinadas por estranhos me dava um pra- de ser associado a tal obra: “o meu reconhecimen-
escritas, iam deixando de me pertencer.
zer nervoso, um tipo de ciúme ao to vem através da satisfação do cliente” – afirma
(...) e as letras saíram pálidas, parecia
contrário”. Eduardo Nucci.
O prazer de escrever e de criar com as pa- que ali se esgotava minha própria
A relação que se estabelece entre o ghost lavras, enquanto auxilia alguém a ter suas ideias tinta”.
writer e o livro é incomum e temporária, já que transportadas para as páginas de um livro, é a má-
o escritor precisa ter um desprendimento da obra xima que rege a existência do ghost writer. Uma
tão logo a entrega ao autor ‘original’. O processo existência que também tem suas dificuldades. En-
funciona como uma barriga de aluguel: o bebê está tre os desafios enfrentados por estes profissionais,
ali, mas depois de algum tempo virá ao mundo e está o de entender o que o ‘autor’ realmente quer
terá uma nova mãe. Nem sempre, porém, é sim- que seja escrito. Outro problema reside na elabo-
ples se desfazer do rebento. ração de um portfólio. Afinal, como mostrar seu
Angela, que escreve letras de músicas para trabalho sem comprometer o sigilo do cliente?
artistas, afirma que “mais com relação às letras, Em se tratando das histórias que são es-
existe ciúmes porque, normalmente, o músico as critas, as variáveis são muitas. Desde uma auto-
transforma bastante”. Já Waldo Luís aposta no biografia poética na qual o autor não relata nada
desapego como forma de evitar a frustração: “o sobre sua vida, até um livro para um ateu cujo ar-
ghost writer tem que ser um despossuído, ou seja, gumento é o de que Jesus Cristo era um fascista
deve se acostumar a fazer uma obra, vender os di- muito esperto.
reitos autorais e esquecê-la em troca de dinheiro. Sobre as propostas recusadas, Eduardo Nuc-
Se ficar sofrendo, vai acumular recalques e neu- ci conta sobre os casos em que as pessoas afirmam
roses”. ter uma ficção sensacional, um novo best-seller,
Falando em dinheiro, esse é outro aspecto propondo a ele que pesquise, desenvolva a ideia,
que os ghost writers preferem manter em sigilo. escreva, prepare os originais e entregue tudo pron-
Todos recorrem à teoria da relatividade: preços de- to, sem cobrar nada. Na sequência, o autor tentará
pendem do gênero (livro, monografia, música...), publicar e, se houver lucro, “ele gentilmente me
do tamanho, do prazo, da temática proposta. E até repassa uma parte. É de emocionar, não?”.

ora de pauta no 9 / julho de 2010


o que tem valo
Por: Juliana Frazzon e Letícia Gomes Fotos: Letícia Gomes

Ao se pensar na palavra “valor”, é usual que a


ideia de “preço” venha ao imaginário do senso comum. O
significado de tal palavra, no entanto, não é único. O valor
de algo pode estar na importância que este representa
para determinado indivíduo, ou seja, quando adquire
caráter essencial e insubstituível em uma situação diversa
ou, até mesmo, adversa.
Max Weber, considerado um dos fundadores da
sociologia, conceituou que “o valor exprime uma relação
entre as necessidades do indivíduo (respirar, comer,
viver, possuir, reproduzir, ter prazer, dominar, relacionar,
comparar) e a capacidade das coisas e de seus derivados,
objetos ou serviços, em satisfazê-las”. O ‘quanto custa’
pode variar, depende do momento e da situação em que
or para você?
se encontra e é definido por valores a ele atribuídos.
Assim, o valor pode ser visto como subjetivo por muitos,
que “consideram essa situação em termos de uma posição
pessoal, adotada como uma espécie de escolha (desejo) e
imune ao argumento racional”.
Nessa ótica, se você estivesse em um deserto, sob o
sol escaldante, há horas caminhando, o que seria de suma
importância para a sua sobrevivência? Um copo d’água.
Custa pouco, mas pode significar a diferença entre a vida
e a morte. Ou ainda, se você estivesse perdido em uma
floresta ou em qualquer outro lugar, o que possibilitaria
solucionar tal problema naquele exato momento? Assim é
o valor: a fortuna de uns não é, necessariamente, o que
mais importa a outros.

ora de pauta no 9 / julho de 2010


o teatro onde tudo pode acontecer
Além de facilitar o acesso do público ao teatro, a rua também estimula a circulação dos grupos
de teatro que a escolheram como palco.

Por: Andressa Quadro e Daniel Isaia Fotos: Andressa Quadro

Santa Maria. Praça Saldanha Marinho. De- to da roda, o rapaz se mistura ao público e se depa-
zesseis horas e quinze minutos de uma segun- ra com um palhaço e seu carrinho de madeira car-
da-feira ensolarada. Um casal de idosos cami- regado de apetrechos, um buquê de rosas na mão e
nha descontraído a passos lentos em direção ao chamando, aos gritos, pela sua amada “Periquita”.
Calçadão da cidade. Indo em sentido contrário, É o palhaço Rabito quem chega à pra-
um rapaz franzino na flor dos seus prováveis ça, cheio de paixão, para um encontro românti-
18 anos. Nas pastas e envelopes que carrega co. Enquanto espera Periquita, o personagem do
nos braços, um logotipo, uma pista de que está espetáculo La Perseguida, do Teatro VagaMun-
em horário de trabalho de uma imobiliária lo- do de Santa Maria, interage com a plateia, tan-
cal. No meio da Praça, dezenas de pessoas for- to com quem foi até ali especialmente para vê-
mam um grande círculo que acompanha os qua- lo, quanto com os que por acaso ali passavam e
tro degraus da arena central, alguns em pé e viram nele um motivo para quebrar a rotina.
outros sentados. Vários rindo, às gargalhadas. Crianças, idosos, jovens e adultos. O tea-
Algumas pessoas, em pé, abrem passagem tro de rua é direcionado a todos os públicos. Um
ao casal de idosos com olhar curioso. Em outro pon- ambiente que facilita o acesso à arte e à cultura
e que interage tanto com o espaço urbano quanto
com as pessoas. “Na rua o espetáculo é muito mais
flexível, situações inesperadas passam a compor a
dramaturgia da peça porque o ator deve adaptar
suas ações e lidar com elas, construindo novas re-
lações com o público e com o lugar onde está”, ex-
plica a diretora de La Perseguida, Gabriela Amado.
Além de o teatro de rua ser aberto ao pú-
Plateia compõe o cenário e a trama do
espetáculo La Perseguida blico, é acessível também aos grupos que optam
por esse tipo de montagem. Gabriela Amado conta
que uma das motivações para que começassem a
apresentar o teatro na rua foi pela facilidade de
continuarem com o espetáculo. “Hoje em dia é
muito difícil alugar teatro. La Perseguida foi cria-

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ora de pauta no 9 / julho de 2010
do para ser exibido em espaços alternativos, o que que permitam aos artistas se conhecerem e se Viver do chapéu
facilita a circulação da peça, pois a produção dela ajudarem. Segundo o associado à RBTR, Mau-
é muito mais barata”. Elementos cruciais para ro Bruzza, da Cia. Umpédedois de Porto Alegre, MauroLauroPaulo, personagem interpretado
tornar o espetáculo compacto foram planejados “acontece uma troca entre os artistas, eu sei que por Mauro Bruzza no espetáculo O Homem Banda,
pelo VagaMundo. “O próprio cenário a gente fez o dia que eu quiser ir ao nordeste, por exemplo, chega às ruas e praças carregando uma banda intei-
pensando na mobilidade. Criamos ele para que haverá um grupo lá que me dará hospedagem se ra nas costas. O objeto multi-instrumental e a peça
coubesse em um porta-malas”, esclarece o ator eu precisar. Depois, quando esse mesmo grupo foram aos poucos sendo criados e adaptados pelo
que interpreta o palhaço Rabito, Daniel Lucas. precisar da minha ajuda em Porto Alegre, eu irei próprio músico-ator conforme via a necessidade de
Em Santa Maria, são poucos os grupos que retornar o apoio recebido”. Além do intercâmbio, prender a atenção das pessoas. “Com a ferramenta
possuem um trabalho semelhante ao do VagaMun- outra motivação para que Mauro se associasse à que criei eu ia sentindo as reações do público e
do e que conseguem sobreviver dele. “Para uma Rede foi a de enxergar nela um espaço para os ar- assim montei o espetáculo com início, meio e fim”.
peça de rua dar certo, é essencial que os grupos tistas discutirem a linguagem e a arte do teatro Entre uma música e outra, Mauro sempre explica
consigam patrocínios e apoio em leis de incentivo, de rua. No entanto, o que ele viu no 7º Encontro ao público que é um artista de rua e anuncia que
já que o teatro de rua não demanda arrecadação da RBTR, ocorrido em maio deste ano em Cano- vai passar o chapéu na esperança de que a plateia
de ingresso dos espectadores", comenta o diretor e as, Rio Grande do Sul, foi um amplo e repetiti- seja educada e deposite ali um valor justo e me-
ator Helquer Paez, da Cia. Retalhos de Teatro, gru- vo debate sobre política e ações para reivindicar recido pelo seu trabalho. O artista conta que, em
po da cidade que também apresenta peças na rua. dinheiro do Governo. “Isso me deixou um pouco viagem pela Europa a trabalho, viu que as pessoas
triste. É importante discutir esses assuntos, mas são conscientes em valorizar o teatro de rua, mas
achei o encontro muito político e pouco artístico”. que, no Brasil, a situação é diferente. “Lá as pes-
Articulação nacional do teatro de rua soas sabem que não se coloca moedinha, se colo-
ca dinheiro, como se estivesse pagando o ingresso
Em março de 2007, foi criada em Salvador, para ver uma peça dentro de um teatro ou assistir
Bahia, a Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR). a um show de uma banda, sem essa educação fica
Um espaço organizado por grupos de teatro de rua difícil fazer um teatro de rua e independente”.
com dois objetivos principais: lutar por políticas
públicas culturais com investimento direto do Es-
tado e facilitar a circulação pelo país de grupos
independentes através de encontros presenciais

rros da Silva
Foto: Alcimar Bai
MauroLauroPaulo mistura-se ao público e faz todos
cantarem juntos ao som do Homem Banda
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transfobia: as pedras na geni
Por: Laura Gheller e Luiz Henrique Coletto Ilustração: Rafael Balbueno

Eu sou o avesso do que o senhor sonhou sa, diversidade étnica, diversidade cultural, diver- ocorreu em 2008, durante uma Conferência Nacio-
para o seu filho. Eu sou a sua filha amada pelo sidade linguística, diversidade sexual... A facilida- nal, para dar mais visibilidade às lésbicas e adotar
avesso. A minha embalagem é de pedra, mas de do uso revela o estágio sociocultural em que nos o padrão internacional. Já a expressão GLS, que
meu avesso é de gesso. Toda vez que a pedra encontramos: de proteção, mesmo que teórica, se popularizou no Brasil na década de 1990, nas-
bate no gesso, me corta toda por dentro. Eu dos direitos humanos, das diversidades culturais de ceu atrelada a uma concepção mercadológica. As
mesma me corto por dentro, só eu posso, só cada povo e de seus membros. Revela, também, a famosas boates GLS consagraram o termo. O “S”
eu faço. Na carne externa, quem me corta é o dificuldade da ideia de diversidade instalar-se em dava destaque aos simpatizantes. A adoção da sigla
mesmo que admira esse meu avesso pelo lado nosso cotidiano e, principalmente, em nossos pro- LGBT demarca a fronteira entre os campos econô-
de fora. Eu sou a subversão sublime de mim cessos cognitivos – ou seja, o diferente, de tão in- mico e turístico e o campo da política (dos direitos
mesma. Sou o que derrama, o que transborda corporado que estaria à vida social, quase deixaria civis). Entretanto, a questão central não está na
da mulher. Só que essa mulher sou eu, sou o de sê-lo (diferente). sigla exatamente. Reside, de forma específica, no
que excede dela. Comecemos pelo alfabeto – o que há de que a subjaz – a tal diversidade sexual.
mais linguístico – para chegarmos ao mundo real. A filósofa norteamericana Judith Butler é
Assim começa essa espécie de “poema em LGBT. Essa sigla, que, dependendo do lugar, é uma das mais conhecidas estudiosas do feminismo
prosa”, História de todas nós, do ativista Rafael GLBTT, LGBTI ou GLBTS, e que já foi GLBT, tenta e das questões de gênero. Em seu texto clássico
Menezes. Para alguns, o assunto pode ainda não fazer a difícil reunião daquilo que, comumente, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of
estar claro, mas o texto fala das travestis. O autor chamamos de “diversidade sexual”. O rótulo, tão Identity – Problemas de Gênero: feminismo e sub-
segue narrando as agruras da vida de uma traves- genérico, não teria condições de abarcar as dife- versão da identidade – de 1990, ela problematiza
ti em nossa sociedade, sempre recheando o texto renças profundas entre uma qualidade (caracterís- profundamente a relação entre sexo (biológico) e
com qualidades como a persistência, a beleza e a tica) e outra. Mas não era GLS antes? é uma das gênero (cultural)1. Eis aí uma primeira questão: o
garra destas semimulheres – ou semi-homens? Nem recorrentes questões.Refazendo o percurso da his- que a natureza, per se, nos fornece (o corpo bio-
isso, nem aquilo. Travestis. tória, os nós mentais podem ser desfeitos. Vamos logicamente determinado) não é, nem de longe, o
ao alfabeto. produto final de nossa criação, educação e produ-
Do abecedário ao gênero LGBT: lésbicas, gays, bissexuais, travestis e ção simbólica sobre o que é ser homem e ser mu-
transexuais. Até bem pouco tempo, a sigla utili- lher. Butler, que é catedrática do Departamento de
A palavra diversidade é tão usual e forte zada de forma oficial pelo movimento LGBT civil- Retórica e Literatura Comparada da Universidade
quanto complexa e imaterial. Diversidade religio- mente organizado no país era a GLBT – a inversão de Berkeley (Califórnia), pontua na obra que “a hi-

26
pótese de um sistema binário dos gêneros encerra vidade. Assim, Luiz Henrique, do sexo masculino, com o feminino do ponto de vista de sua identida-
implicitamente a crença numa relação mimética identifica-se com o masculino do ponto de vista da de de gênero; sente-se, portanto, do gênero fe-
entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sua identidade de gênero; sente-se, portanto, do minino. Do ponto de vista da sua atração afetivo-
sexo ou é por ele restrito”. gênero masculino. Do ponto de vista da atração sexual, tem seu desejo orientado para pessoas do
Nosso problema inicial – compreender os afetivo-sexual, tem seu desejo orientado para pes- sexo oposto (objeto de desejo heterossexual).
meandros da diversidade – começa a se clarificar. soas do mesmo sexo (objeto de desejo homossexu- Duas definições consideravelmente claras
Entretanto, é preciso ir um pouco além, para de- al). Laura Gheller, do sexo feminino, identifica-se sobre os conceitos acima estão nos Princípios
pois abandonar esta inform
ação extra e, então, voltar-
mo-nos à questão do gênero,
novamente. Por que isso? Na-
turalmente, porque a noção
de diversidade sexual que
inclui gays (ou gueis), lésbi-
cas, bissexuais, travestis e
transexuais (e, mais restrita-
mente, os e as interssexuais)
“mistura”, por assim dizer,
questões de gênero, identi-
dade e orientação sexual. É
tudo diversidade, mas não é
tudo a mesma qualidade (ca-
racterística).

Identidade... de
gênero

Retoricamente, exem-
plifiquemos: nós que vos es-
crevemos, cada um perten-
cente a um sexo biológico,
apresentamos todas as di-
mensões acima mencionadas.
Para falar a verdade, todos as
temos, embora muitos (mor-
mente heterossexuais masculi-
nos) nunca cheguem a pensar
a questão – esse fato, por
sua vez, renderia outro arti-
go acerca da heteronormati-

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ora de pauta no 9 / julho de 2010
de Yogyakarta, documento elaborado em 2006 por de gênero – que não vai além da ideia que relacio- te para a sexualidade de forma mais intensa. No
especialistas em legislação sobre direitos humanos na meninos à virilidade e meninas à delicadeza – é livro Juventudes e Sexualidade, organizado pela
de 25 países2. Orientação sexual é, portanto, “a a histórica e atual exclusão social das travestis e socióloga Miriam Abromavay e outras pesquisado-
capacidade de cada pessoa de ter uma profunda transexuais. ras em parceira com a UNESCO4, temos um quadro
atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos teórico e documental (de diversas pesquisas sobre
de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais Violências e rupturas: maldita Geni, bendita discriminação no ambiente escolar) imenso sobre
de um gênero, assim como ter relações íntimas e Geni! os diversos preconceitos em torno da sexualidade
sexuais com essas pessoas”. Trocando em miúdos, dentro das escolas. Um depoimento retirado de um
temos, respectivamente, a heterossexualidade, a Sobre a questão, há dados, há números, há grupo focal com alunos de uma escola pública de
homossexualidade e a bissexualidade. Já identida- estatísticas (de óbito, muitas vezes, fato sintomá- São Paulo dá uma amostra da questão: “Tem pre-
de de gênero é “a experiência interna e individual tico por si só). Preferimos aqui o exercício simples conceito porque tem um menino que é meio afe-
do gênero de cada pessoa, que pode ou não corres- e rápido da realidade: olhe a sua volta e conte minado. Travesti. Muitos jogam ovos nele. Muitos
ponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo quantas travestis ou transexuais estão ao redor. ficam tirando sarro. Muitos não chegam perto dele.
o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por Alguma atrás do balcão da padaria? Dando aula de Parece que ele tem uma doença contagiosa. Eles
livre escolha, modificação da aparência ou função história? Na cadeira da gerência da sua empresa? julgam pela aparência e não conhecem para saber
corporal, por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e Fazendo o mesmo curso que você na universidade? o que é como ele se sente”. Como ressaltam as
outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, As respostas tendem a zero, geralmente. Veremos pesquisadoras na mesma obra, “muitas expressões
modo de falar e maneirismos”. Simples. Ou quase. algumas nos salões de beleza, muitas vezes “des- de preconceitos e discriminações em torno do se-
Para lançar luz sobre a questão da identi- montadas” (expressão que indica não identificação xual tendem a ser naturalizadas, até prestigiadas
dade de gênero é imprescindível renovar nossos ao gênero que a travesti gostaria, ou seja, ter de e não entendidas necessariamente como violên-
padrões de pensamento. Acostumados a um mo- vestir-se com roupas “masculinas” durante o tra- cias”. É justamente o oposto da possibilidade de
delo binário (como Judith Butler destaca ao longo balho ao invés de com roupas “femininas”). Vere- diversidade: ao invés de naturalizar a pluralidade,
de suas obras), nossa vontade de ver sempre dois mos outras poucas na política – exemplo ímpar é a reforçam-se padrões de comportamento quanto às
lados – e apenas dois – em quaisquer questões ofus- vereadora transexual Leo Kret (Partido da Repúbli- manifestações sexuais.
ca as complexidades inerentes (ou criadas) a nossa ca – PR), eleita com a quarta maior votação para a Quase que de forma matemática, um ciclo,
existência. Travestis e transexuais, também agru- Câmara Municipal de Salvador, BA3. Entretanto, a geralmente unilateral, é formado: marginalizadas
padas na expressão transgêneros, residem na com- identificação mais contumaz está na prostituição: nas escolas, as travestis abandonam os estudos;
plexidade que alarga a dicotomia – mulheres “so- dada como rotineira, a conexão entre prostituição sem instrução formal, não chegam ao Ensino Su-
cialmente” que nasceram homens biologicamente; e travestilidade já está instalada no imaginário so- perior (ainda: as possibilidades de galgar espaço
homens “socialmente” que nasceram mulheres cial. no mercado de trabalho formal são anuladas pela
biologicamente. Não tão simples. Mas quase. Por quê? A resposta não é simples e permite falta de estudo e o preconceito); restam, por fim,
Se tivermos claro que a identidade de gêne- diversas abordagens. A que nos parece mais clara os espaços sociais dedicados aos marginalizados:
ro é, justamente, uma construção pessoal (identi- é a que vincula a realidade a sua construção coti- o crime e a prostituição. A história toda, diária e
ficar-se), teremos maior capacidade de compreen- diana. Se observarmos as escolas, desde o primeiro tão antiga quanto a própria travestilidade, parece
der a noção de diversidade diretamente associada ciclo, encontraremos poucas ou nenhuma traves- ter sido sintetizada em versos do poema Sobre a
à questão. As maneiras de constituir nossa presen- ti. Deixando de lado a discussão sobre identidade violência, do dramaturgo Bertolt Brecht:
ça e expressão no mundo são (ou deveriam ser) di- de gênero na infância, procuremos pelas travestis
versas. Se os avanços vêm aos soluços, a vivência é no Ensino Médio – idade em que todos os jovens, A corrente impetuosa é chamada de violenta
sempre contínua – ainda que marginalizada. Fruto sejam homens ou mulheres, identificados ou não Mas o leito do rio que a contém
da incapacidade de alargar a noção de identidade com o sexo biológico, despertam fisiologicamen- Ninguém chama de violento.

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Esses versos, na tradução do cotidiano, são municipal), teríamos um reconhecimento amplo do quanto sociedade. São, entretanto, um aceno pela
como o identificar pejorativamente travestis com a direito à identidade dessas pessoas – cabe ressaltar mudança. Bendita Geni, afinal.
prostituição, ignorando o que está no entorno des- que o estado de São Paulo e o município de São
ta realidade que se constituiu. Não existem atos Paulo também já adotaram medidas idênticas. Em
isolados, nem repercussões isoladas. A sociedade é janeiro de 2009, o país teve notícia da primeira
uma rede, envolta numa teia cultural em que valo- travesti a chegar a um curso de Doutorado: Luma
res morais associam-se aos costumes, às práticas, Andrade faz Doutorado em Educação na Universi-
às rupturas e às permanências. Rupturas. Um sopro dade Federal do Ceará (UFC)7. É um dado ambíguo:
de mudança também se opera. Nas escolas. alenta e intriga. Já passada uma década deste sé-
Segundo notícia divulgada por alguns jor- culo de direitos humanos “consolidados”, a primei-
nais brasileiros, ainda que online, nove estados ra travesti a chegar ao nível máximo da titulação Notas
brasileiros passaram a adotar o uso do nome social acadêmica é motivo para comemoração, o que re-
em seus registros e chamadas5. O que significa isso? vela um atraso lamentável. Se, como revelam os 1
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminis-
Que a incompatibilidade entre corpo (e identida- dados de diversas pesquisas dos últimos anos, a mo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Edi-
de) e nome civil não será mais um dos vários de- homofobia (preconceito com homossexuais) ainda tora Civilização Brasileira, 2003. 236 p.
safios que alunas transgêneras enfrentam no meio é fortíssima nas escolas brasileiras, o que se pode
escolar. A chamada, ritual simples aos alunos, pode supor da transfobia, o preconceito com travestis e
2
Princípios de Yogyakarta: http://www.clam.org.
ser um momento diário de desrespeito às alunas transexuais? As estatísticas, as pesquisas e os rela- br/pdf/principios_de_yogyakarta.pdf
travestis e transexuais. Ao ser chamada por um tos e depoimentos das próximas décadas poderão 3
Site da vereadora Leo Kret: http://www.cms.
nome que não reconhece – e que não a reconhe- nos dizer – se forem feitos. Eis uma questão “sim- ba.gov.br/leokret
ce –, a travesti vê-se desrespeitada em seu direito ples”, dependente de vontade política.
básico de reconhecimento. Infelizmente, o estado Luma Andrade, que defende sua tese até 4
O livro Juventudes e Sexualidade em versão onli-
do Rio Grande do Sul não está incluso neste rol. 2012, pretende estudar casos de travestis que fre- ne pode ser acessado em: http://unesdoc.unesco.
Segundo nos informou Ana Clara Cordeiro, da Se- quentam escolas públicas no Brasil. Nada mais pro- org/images/0013/001339/133977por.pdf
cretaria Estadual de Educação do RS, não existem pício. Relembremos o “poema em prosa” que abre
dados sobre o número de alunas travestis e transe- este artigo:
5
Matéria do Portal G1 de 04 de abril de 2010:
xuais nas escolas do estado. Certamente elas estão http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL1549312-
5598,00-TRAVESTIS+PODEM+USAR+NOME+SOCIAL+NAS+
nas escolas, embora não se saiba em que número E assim elas vão, desviando dos tiros,
CHAMADAS+ESCOLARES+EM+ESTADOS.html
e em quê condições. Entretanto, se não existem esbarrando no preconceito, correndo da polícia.
dados específicos sobre a existência delas na rede Mas sempre com um batom nos lábios, 6
Matéria da Agência Câmara de Notícias de 18
escolar, é muito provável que o reconhecimento do um belo salto nos pés e na maioria de maio de 2010: http://www2.camara.gov.br/
nome social escolhido por elas não seja realidade das vezes um vazio no coração. agencia/noticias/DIREITOS-HUMANOS/147922-GO-
em solo gaúcho. VERNO-VAI-PERMITIR-QUE-TRAVESTI-USE-‘NOME-
Aos poucos, outras pequenas mudanças vão Quando Chico Buarque escreveu Geni e o Ze- SOCIAL’-EM-DOCUMENTOS-OFICIAIS.html
ocorrendo: em maio deste ano, o Ministério do Pla- pelim8, referenciou muito bem a realidade de muitas
nejamento publicou portaria que obriga todos os travestis e transexuais brasileiras. Fez, entretanto,
7
Matéria da Folha Online de 04 de janeiro de 2009:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/
órgãos da administração pública federal a aceita- mais: com luvas de pelica, deu um tapa na hipocrisia
ult305u485921.shtml
rem o uso do nome social de travestis e transexu- social ao alçar Geni à condição de redentora. As pou-
ais6. Se a medida fosse adotada nas três esferas cas mudanças que se operam em nosso país quanto 8
Letra e vídeo disponíveis em: http://letras.terra.
do serviço público brasileiro (federal, estadual e à transfobia não serão capazes de nos redimir en- com.br/chico-buarque/77259/
29
ora de pauta no 9 / julho de 2010
Wayra, 28, e Inti, 40, viajam pelo mundo,
assim como outros índios, apresentando a música
do povo Inca. Com flauta de pan, kena e outros
instrumentos nativos, e com o auxílio tecnológico

a música andina e a
Por: Ramon Pendeza Fotos: Ramon Pendeza
das pistas de acompanhamento e da amplifica-

sintonia das praças


ção sonora, eles encantam pessoas em diversas
praças em todos os continentes. “Tocamos para
preservar a cultura de nossos ancestrais”, diz o
jovem Wayra, que está há um ano e meio no Bra-
sil. “Nossa música é inspirada na natureza, e mui-
tas são dedicadas ao Padre Sol e à Madre Tierra”,
completa Inti, que veio ao Brasil há oito meses.
Passaram-se horas até que pudéssemos ver
sua apresentação. Em Porto Alegre, os integran-
tes do grupo Aka-Wi (que em português pode ser
traduzido como Ventos do Sul) têm autorização
para tocarem apenas das 17 às 19 horas. Nesse
entretempo, tivemos uma longa conversa com
eles numa gelada tarde porto-alegrense.
Inti e Wayra (Sol e Ar, em português, res-
pectivamente) contam que tocam juntos desde
2000. Eles já foram para muitos lugares distan-
tes, como México, França, Espanha e Alemanha
– os dois últimos países são onde os álbuns do
grupo Aka-Wi são gravados. Eles ficam, geralmen-
te, hospedados em hotéis baratos, e o pouco que
recebem durante as apresentações costuma não
ser o suficiente para sobreviverem. “Somos como
os hippies, às vezes vendemos, às vezes não”, diz
Wayra, referindo-se ao fato de dependerem do
Largo Glênio Peres, Porto Alegre, 11 horas da manhã. dinheiro depositado na cesta de vime e da venda
Em meio à turbulência da metrópole via-se grupos de de acessórios artesanais e CDs do grupo. Inti con-
tinua: “às vezes se passa bem, às vezes se passa
pessoas em volta de artistas de rua. Homens pulan- mal, é uma vida de músico”.
do através de anéis de facas, humoristas contando Mesmo com dificuldades, os dois não se
piadas velhas, músicos que não sonham mais com a imaginam levando outra vida. Eles contam que,
fama... Mas estávamos lá à procura de índios e da no Equador, também trabalham com agricultura.
música andina. Onde estariam eles? Olhando com “O homem é feito da terra”, diz Inti, “mas o que
mais atenção, vimos dois homens sentados sob uma mais gostamos de fazer é música, música da cul-
árvore nos degraus que levam ao nível mais elevado tura Inca”.
Durante a tarde que passamos juntos, vá-
da Praça XV de Novembro. Pensativos e, aparente-
rios momentos se configuraram incógnitas. O que
mente, serenos, lá estavam os incas que procuráva- estariam os dois a conversar no idioma Kechua?
mos. Isso lembra um outro depoimento deles. Rodan-
do pelo Brasil, Inti e Wayra tiveram contato com
outras tribos, como Charruas, Guaranis, Caingan- com a gente, outros músicos podem tocar
gues. Wayra comenta, rindo, que a comunica- sem problemas”, desabafa Inti. Ele ainda
ção entre eles é complicada: “ninguém entende conta que certa vez a Prefeitura pegou
nada”. todo o seu equipamento, deixando-os sem
Ao contrário de outros grupos que este- ter como tocar e sem saber o que fazer.
ticamente aderem a características dos índios Daí, “penduramos a conta no hotel onde
norte-americanos, o Aka-Wi é fiel às tradições estávamos hospedados e quando consegui-
incas. Além disso, trajes e acessórios festivos mos reaver nosso material, voltamos a to-
(penachos, plumas, cocares, chifres de animais, car para poder quitar a dívida”.
etc.), são usados, segundo Inti, apenas em oca- Os músicos dizem não entender por
siões especiais, como em junho, que é um mês que esse tipo de coisa só acontece no Bra-
de comemorações para os incas. “O público gos- sil. “Não estamos fazendo nada de mal,
ta mais das apresentações quando são feitas com apenas levando nossa cultura além das
os trajes tradicionais, mais chamativos”, explica fronteiras”, diz Wayra. Ele ainda menciona
Wayra, “mas os Incas revivem os antepassados só que no Equador os índios estão no poder, no
em junho”. Da mesma forma, eles usam apenas Brasil eles estão à margem da sociedade e
instrumentos nativos em suas apresentações, di- “isso não devia ser assim”.
ferentemente de alguns índios que usam teclado, Os problemas, no entanto, parecem
violão e outros instrumentos de outras culturas. se restringir a questões que envolvem as
autoridades brasileiras. Às 17 horas, quan-
Problemas enfrentados no Brasil do Inti e Wayra finalmente começaram
sua apresentação, vimos um público toca-
Passar tanto tempo esperando a hora da do pela música andina. Roberto, uma das
apresentação tem uma justificativa. A Prefeitura pessoas que parou para assistir aos índios,
de Porto Alegre, assim como a de muitas outras falou sobre a música: “ela te leva a uma
cidades brasileiras, dificulta o trabalho dos índios ligação com o espírito, com a alma, te dei-
equatorianos. Wayra e Inti reclamam bastante do xa em sintonia com a natureza e seus ele-
tratamento recebido no Brasil: “se encarnam só mentos, cria esse vínculo primordial para
o homem”.
Às 19 horas, os dois homens silencia-
ram novamente. Eles contam as moedas e
cédulas de real que foram depositadas na
cesta e, após guardarem os equipamentos,
voltam ao hotel para esperar o próximo
dia. Eles estão juntando dinheiro e preten-
dem voltar ao Equador. A viagem de volta
custa, em média, 800 reais para cada um
deles.

Inti (à frente) e Wayra se


Roberto, com sua filha no colo, assistindo ao Aka-Wi. apresentando no Largo Glênio Peres.

ora de pauta no 9 / julho de 2010


a cidade que não cresce por
culpa do padre
Por: Isabel da Silveira e Nandressa Cattani Fotos: Nandressa Cattani
Monumento representa a fé dos
imigrantes e também homena- As pessoas têm domínio sobre forças
geia os muitos italianos que
morreram no local.
ocultas? Seria possível alguém desejar coisas
ruins para outra e isso se tornar real? Um padre
faria isso? “Sim” é a resposta que se costuma
ouvir dos habitantes de Silveira Martins, no in-
terior do Rio Grande do Sul.

Silveira Martins é o município berço da


“Quarta Colônia de Imigração Italiana”. Uma co-
lônia criada em 1877 com o objetivo de povoar o
sul do Brasil. O nome da região se deve ao fato de
ser a quarta investida de italianos no interior do
Rio Grande do Sul. A primeira foi Caxias do Sul,
a segunda, Garibaldi, e a terceira, Bento Gonçal-
ves.
Atualmente, com pouco menos de três mil
habitantes, o desenvolvimento da cidade sede da
Quarta Colônia é muito inferior ao de suas ante-
cessoras. E qual seria o motivo para isso? A mal-
dição que pesa no crescimento do município, se-
gundo o mito da cidade. O historiador e escritor,
Luiz Eugenio Véscio, explica que um padre está
no centro dessa questão. “Cheguei aqui (Silveira
Martins) em 1991. Chegar à cidade com olhos de
paulista fez eu me perguntar por que essa cida-
de não crescia. Todos falavam que era por causa
da maldição do padre. Sem muita reflexão você
não consegue superar o ‘diz que me diz’” – conta
Véscio.
O padre em questão é Antonio Sório. Pá-
roco em Silveira Martins entre os anos de 1884
32
e 1889. As histórias populares contam que o sa- amaldiçoou Silveira”, dizem alguns moradores. nem por isso é um município atrás de seu tempo.
cerdote tinha um comportamento social bastante De fato, são várias justificativas e afirmações re- Vale a crendice e a curiosidade.
questionável. Boêmio e bom apreciador da bele- alizadas em torno de uma cidade que teve tudo
za feminina. “Muitos documentos mostram que os para dar certo e supostamente não deu.
habitantes dessas cidades (Quarta Colônia) se di- Passados mais de 100 anos, a história ain-
vidiam em relação ao padre, uns gostavam e ou- da permanece nas rodas de conversa, praças e
tros odiavam. Os que não gostavam justificavam ruas da cidade. Ela foi e ainda continua sendo
NOTA DE FALECIMENTO
com o fato de que ele era mulherengo e bêbado. complexa, no que diz respeito à causa, aos ver-
Foi com grande pesar que a equipe da
Esses documentos mostram reclamações formais dadeiros culpados do crime e à suposta maldição
Fora de Pauta soube do falecimento do
ao bispo e ao presidente da província contra o rogada à cidade. Essa, ligada ao fato do aparente
Professor Doutor Luiz Eugênio Véscio
comportamento do padre” – afirma o escritor. atraso da mesma.
no dia 12 de junho de 2010. Desejamos
Essa maneira de agir do padre Sório pode Para Luiz Eugenio Véscio, nesse evento
prestar as nossas sinceras homenagens
tê-lo levado ao encontro de sua morte emblemá- trágico do padre existem mais coisas inexplica-
a este grande pesquisador, cujos traba-
tica. Conforme a lenda, o religioso teria tido re- das. “Neste momento em que ele é derrubado do
lhos foram de fundamental importância
lações sexuais com uma menina de quinze anos, a cavalo, há uma acusação, e esta não é provada,
para o resgate histórico da região da
qual teria engravidado. Se não fosse o bastante, da estória do seu envolvimento com a menina de
Quarta Colônia.
a famíla da garota tinha origens maçônicas. Na 15 anos, e que os pais e amigos resolveram dar
época, havia um confronto velado entre a Igreja uma lição no padre. Tanto é que Antonio Sório,
Católica e a Maçonaria. Especula-se que as diver- em testemunho judicial, se recusa a dizer quem
gências eram a respeito do controle administra- foram seus agressores; então ,não há processo
tivo da colônia. crime” – revela Véscio.
O padre Sório voltava de uma capela à Ao que parece, nesse instante a paróquia
cavalo, provavelmente após ter participado de de Silveira Martins ganharia uma sina. Segundo o
alguma celebração eclesiástica para o ano novo jornalista Eduardo Fiora, o padre Sório teve que
que se aproximava. Surpreendido e derrubado do substituir o pároco Vittorio Arnoffi, um ex-fran-
cavalo, teve seus testículos esmagados a pedra- ciscano que teve morte provocada violentamente
das pelos interceptadores. O episódio inusitado em 1884, segundo uns, por trama da maçonaria,
serviu para fortalecer a especulação de que se segundo outros, em represália a seu procedimen-
tratou de uma retaliação pelo seu envolvimento to. Há quem diga que o padre Arnoffi cometeu
sexual com a menina. suicídio ao saber que a sua cozinheira havia en-
O padre Sório faleceu três dias depois de gravidado após manter relações sexuais com ele.
ter sido “abatido” do cavalo. Segundo a lenda, o O que de fato aconteceu dificilmente se
objetivo não era o de matar o aventureiro sacer- conhecerá na íntegra. Se a morte de dois padres Pe. Antonio Sório
dote, mas puni-lo com a castração. Na socieda- com envolvimento sexual realmente influenciam
de machista em que se vivia, esse castigo seria o num mau agouro para a cidade não é possível afir-
maior possível. Pouco antes de sua morte, o páro- mar. O que fica é uma boa história sobre um muni-
co teria amaldiçoado Silveira Martins: “Enquanto cípio pequeno e pacato, mas exatamente por isso
houver pedras essa cidade não se desenvolverá”. ótimo de se visitar e se conhecer. Silveira Martins
Há os que acreditam nesse mito: “Logo não tem todas as potencialidades de Caxias do
após o espancamento e a tortura, o padre Sório Sul, Garibaldi e Bento Gonçalves, isso é fato, mas
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ora de pauta no 9 / julho de 2010
Lúcia Luft e seu gato
Tigringo (Ticrinho,
como diz a cantora)
de 7,5 kilos. Ticrinho
“entende” alemão e

superstern*
português.

Por: Henrique Coradini e João Pedro Amaral Fotos: Rafael Dezorzi

Todo mundo já sonhou em ser um astro da música, tocar para multidões e aventurar-se pela estrada. Saiba como Lúcia Luft conquistou tudo isso com
suas canções que exaltam os valores da Colônia.

É praxe. Cidades do noroeste do estado do de Três de Maio conquista seu espaço com a can- realizados, em sua maioria, em feiras. Muitas ve-
Rio Grande do Sul contam com expoentes famo- tora e compositora Lúcia Luft, que vem fazendo zes atraindo mais público do que grandes nomes
sos que as enaltecem. Ijuí deu origem ao atual sucesso dentro e fora do Estado. As canções de da música nacional.
técnico da seleção brasileira de futebol, Dunga; Lúcia Luft contemplam um público típico de cida- Sozinha, Lúcia canta, toca teclado e com-
Santa Rosa responde com Xuxa, a rainha dos bai- des do interior: pessoas humildes de cidades cuja põe. A única colaboração é a de seu marido, Gui-
xinhos; Horizontina entra na disputa com Gisele economia baseia-se no setor agrário e descenden- do Luft, que além de dirigir nas viagens, atua
Bündchen. Correndo por fora, a pequena cidade tes de alemães e italianos. Os shows de Lúcia são como animador de platéia. Outras peculiaridades

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* A Super Estrela
de suas músicas são o acentuado sotaque alemão
e sua voz bastante aguda. Tal qual um Bob Dylan
de vestido alemão, Lúcia tem a voz mais marcan-
te por sua força do que pela técnica.
A despeito da sonoridade típica de bandi-
nhas alemãs, tudo tocado no teclado, Lúcia apon-
ta Roberto Carlos, Daniel e a dupla Rio Negro e
Solimões como suas principais influências. Com
essa mistura de ritmos populares e música étnica,
Lúcia rodou pelos três estados da região sul. Já
recebeu, inclusive, convites para tocar em outros
estados e até na Suíça.
Ao longo de sua carreira, Lúcia gravou oito
discos e um DVD ao vivo, nem a própria cantora
sabe dizer quantas cópias já vendeu. Mas afirma
ter superado em cinco vezes a dupla Vitor e Léo
em duas lojas de disco locais. A última conquis-
ta de Lúcia ultrapassou o cenário musical. Ela
aparece no filme “Os Famosos e os Duendes da
Morte” de Esmir filho (diretor do curta metragem
Romantismo à flor da pele: após uma rotina turbulenta de shows na região sul, os pombinhos agora priorizam o con-
“Tapa na Pantera”). forto do seu lar.

A estrada (de chão) até o sucesso semanas. “Eu sabia tocar uma, já sabia tocar to- mas diversos do cotidiano, como campeonatos de
das”, conta orgulhosa. Nesse tempo, Lúcia entrou bolão, mosquito da dengue e trabalho braçal. Mas
Nata do pequeno município gaúcho de para o conjunto musical de seu irmão, do qual a mais ilustre é, com certeza, o hit “A Fofoquei-
Flor da Serra, atual São Marinho, Lúcia tem mui- participou até os 24, quando teve seu terceiro e ra”. Canção que, como outros grandes clássicos,
to amor pelo Rio Grande do Sul, o exaltando em último filho. é rodeada de misticismo. Seu marido conta que
canções como “Elogios da Tradição”. A cantora Quando seus filhos estavam mais crescidos, não queria que ela fosse gravada, pois poderia
dividiu sua infância entre roça, escola e música. Lúcia resolveu voltar ao cenário musical, empla- causar problemas com a vizinhança. Foi em um
Última incentivada por sua família. “A gente já cando com uma forma bem curiosa. “Eu queria lampejo de última hora que Lúcia resolveu lançá-
nasce cantando e vibrando com a música”, diz fazer a banda sozinha, não me incomodar com la. Mas seus vizinhos podem ficar tranquilos, pois
ela. Aos oito anos, Lúcia já animava bailes ao lado terceiros” – fala a cantora. Por sugestão de seu ela não é de Três de Maio. Segundo a cantora,
de seu pai. Aos onze, já estava no coral da igreja. sobrinho, Lúcia trocou o acordeom por um ins- a fofoqueira existe, ou melhor, existiu, pois já
Lúcia relembra de um show de talentos de sua es- trumento que a permitia fazer tanto a percussão veio a falecer. A isso, Lúcia acrescentou histórias
cola no qual ficou em segundo lugar, “ela (a ven- quanto os arranjos. Um incrível teclado. Porém, vistas no programa do Ratinho, em que mulheres
cedora) estudava no quinto ano e eu no quarto”, não foi possível encontrar o modelo de tal tec- brigavam a ponto de se arrancar os cabelos.
justifica, deixando transparecer o rancor. nologia que a fora indicado. “Aqui na loja não se O maior contratempo de sua carreira, foi a
Somente aos quinze anos, Lúcia pode achava. Nem em Santa Rosa”. O jeito foi importar depressão causada pela morte de sua filha caçula.
aprender a tocar acordeom, já que antes disso o instrumento do exterior, direto do Paraguai. E foi através da música que Lúcia contornou a si-
não tinha o porte físico necessário. A cantora Após conseguir seu teclado, Lúcia passou a tuação. Quando questionada sobre o que seus dois
afirma que já dominava o instrumento após três compor suas próprias canções. Lúcia trata de te- filhos restantes acham da carreira da mãe,
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ora de pauta no 9 / julho de 2010
Lúcia desconversa, “eles não acham nada”. ao menos uma história para contar envolvendo a Um tresmaiense que não quis se identificar
Atualmente, Lúcia faz, em média, dois artista. É o caso do comunicador João Pedro dos é um desses. “Ela se expressa mal, tem o portu-
shows por semana. Mas sua carreira de folkstar Santos, da Rádio Comunitária Liberdade FM. Anti- guês horrível, e o show é uma porcaria”. Cáus-
já foi mais agitada. Lúcia já fez 48 apresentações gamente, quando o equipamento insistia em não tico, completa “tem que encher o c# de canha
em 48 dias. Mas a vida na estrada sempre foi dura funcionar, era o cd de Lúcia Luft que cobria o e fumar um baseado pra gostar do show dela”.
para os astros. “Não queremos ser escravos da espaço até que os reparos fossem feitos. E as mú- Porém, admite ver inteligência na artista, “pra
música, nós queremos viver também”, desabafa sicas sempre davam retorno. Pode se constatar ganhar dinheiro cantando mal desse jeito, burro
o maridão. Para as viagens, contam com uma van isso até mesmo em escolas, nas quais boa parte não é”. Com esse tipo de comentário, Lúcia nem
customizada e um ônibus que proporciona todo o das crianças tem canções como “A Fofoqueira” na se importa, confirmando a máxima, “falem bem
luxo necessário para uma estrela. ponta da língua. ou falem mal, mas falem de mim”.
Curiosamente, seus recordes de público Mas nem todo mundo aprecia o trabalho da
foram em cidades pequenas, Maravilha, Sinimbu, cantora. Provas disso se encontram na internet. O Das Schoene Fest**
e Arroio do Meio, além da própria Três de Maio, site “Desciclopédia”, uma enciclopédia online de
onde Lúcia e Guido levaram aproximadamente deboches, possuí um extenso artigo detonando a No dia 04 de junho, uma fina garoa cas-
quinze mil pessoas à loucura. O vereador Gilson cantora. Há também uma conta no Twitter com tigava os freqüentadores da I Expoterneira. Ou
Grando, presidente da Expoterneira, que conhece seu nome na qual são postadas mensagens que melhor, seus sapatos, já que o parque de expo-
Lúcia desde pequeno, justifica o frisson: “a Lúcia ironizam o sotaque e sua origem germânica. No sições virara um lamaçal. Contudo, aproximada-
é uma pessoa emblemática, em todo e qualquer Orkut, entre comunidades em prol da cantora, mente duzentas pessoas se sujaram para assistir
evento em que ela vai a população vai em peso”. encontram-se algumas nem tão lisonjeiras, como aos shows na praça de alimentação. A abertura do
De fato, é impossível falar em Três de Maio “Eu Odeio Lúcia Luft” e a satírica “Quero Lúcia show contou com o jovem artista Alex Santi. Que
sem falar em Lúcia Luft, praticamente todos têm Luft no BBB”. canta e toca guitarra, programa a bateria eletrô-
nica e, às vezes, até mesmo passeia pela praça
para regular a mesa de som.
No evento, pratos típicos alemães divi-
diam espaço com o legítimo fast-food colono,
cuca com salame acompanhado de lambari frito
com polenta. Com esse menu, o público afoito
poderia forrar bem o estômago para ter energias
nas próximas uma hora e meia de show da estrela
principal. A exaltação pelas raízes alemã e italia-
na pairavam no ar, literalmente, através das vá-
rias bandeiras de ambos os países que se espalha-
vam pelo evento. Brasilidade, apenas nas latinhas
de cerveja que exaltavam a seleção canarinho.
O show é diplomático, evitando qualquer
Enquanto Lúcia choque de gerações. Todas as faixas etárias são
se concentra na contempladas em seu setlist. Colonos, descen-
execução de suas
músicas, Guido se
dentes de alemães e italianos e, como não pode-
encarrega de ria faltar, gremistas e colorados, são “alvos” de
contagiar o público. dedicatórias durante o show. O observante aten-
to, aquele que não se deixa levar pelo êxtase do

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** A Festa Animada
concerto, nota a alegria do casal em ver o público Uma artista original, que faz sozinha o
se divertindo com suas canções. Há, na música de trabalho de uma banda inteira, cantando sem se
Lúcia e na performance de Guido, uma sincerida- importar com convenções líricas e representante
de inerente. Em nenhum momento a apresenta- dos colonos. Não é por acaso que Lúcia virou um
ção soa forçada. É tudo espontâneo. xodó de bailões e jantares dançantes no interior.
Enquanto Lúcia canta e toca teclado, sem- O trabalho de Lúcia pode ser considerado um
pre cheia de gingado, seu marido Guido empol- resgate de valores interioranos que estão se per-
ga a platéia com seu grito “ISSSSSOOOOO AÍÍÍÍÍ”, dendo. Pode-se questionar sua qualidade como
preenchendo as partes instrumentais das músi- artista, mas sua discografia comprova que ela re-
cas. Entre uma canção e outra, Guido também almente gosta do que faz, e se sente feliz com a
distribui brindes, uma exclusividade em shows de troca de energia entre ela e o público. Porém, o
Três de Maio. Os brindes eram disputados tal qual mais importante para ela é se divertir ao lado de
um buquê de casamento entre tias, pelas crian- seu marido. Compensador e mais do que mereci-
ças, por representantes de um piquete da cidade do.
Giruá e até pelos repórteres da FDP. Lúcia 1 x 0 Xuxa: desbancando o ícone de Santa Rosa, Lúcia desponta
Quando Lúcia anunciou “fofoqueira”, que como a nova rainha dos baixinhos ao distribuir brindes nos shows.
já havia tocado duas ou três vezes no sistema de
som do evento, a plateia foi à loucura. Mesmo
que a maioria das pessoas se encontrasse senta-
da, era impossível não acompanhar o ritmo do
contagiante refrão: “Fofoqueira e língua compri-
da, ela tinha o seu apelido, parecia um correio, Algumas composições de Lúcia Luft:
sempre enfiado no meio”.
“Hoje tem festa na colônia sim senhor/
Em vários momentos do show, Lúcia mos-
e vai ter mesmo de tudo o que tem lá na colônia/
tra sua geniosidade como artista. A lista de mú- “Que país é esse? (2x)
e vamos lá a pé, a cavalo, moto, charrete ou chevete/
sicas é definida estritamente por ela, com pouca por que o fritz e a frida já estão esperando lá” Acabaram com os nosso colonos/
abertura a pedidos, embora muitos insistissem (Festa na Colônia) Acabaram com a brasília amarela/
através de bilhetinhos. O único bilhete lido em E criaram a Brasília da corrupção”
voz alta foi um pedido da organização para anun- “Todo dia eu faço comidas diferentes/ (Brasília da Corrupção)
ciar um carro que estava atrapalhando o fluxo do Senão enjoa esta vida minha gente/
estacionamento. Os alemães gostam de linguiça e cuca/ “Tem mosquito por aí/
Isso eu ja tenho então já nem me preocupa” Tem, tem, tem/
Após aproximadamente uma hora e meia
(Receita da Semana) Nos pratos debaixo dos vasos com planta/
de show, Lúcia anuncia, “agora nós vamos tocar
Comunidade amiga/
as últimas três músicas, depois vamos embora”. “Experimente plantar sem veneno/ Valorize a sua vida/
Depois desse último pout-pourri, dispensando o Os alementos pro povo comer/ Colabora p’ra acabar com o mosquito da dengue”
trabalho dos roadies, o casal carrega seu próprio Água limpa e pura sem veneno/ (Chega de Mosquito)
equipamento. Rodeados por fãs, Lúcia e Guido, É muito melhor pra viver”
apesar de meio desorientados em meio a tanta (Melhor Idade e o Meio Ambiente)
gente, foram simpáticos e não recusaram autó-
grafos e fotos.

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ora de pauta no 9 / julho de 2010
balaio de gatos
Por: Marcelo de Franceschi e Maiara Alvarez Foto: Marcelo de Franceschi

Sobretudo... Ok. Salto... Ok. Bolsa Louis a professora tenta, inutilmente, colocá-los em fi- na escola. Olha só para aquelas crianças... Sempre
Vuitton... Ok. Vamos ver o que conseguirei na Fei- las. Tenho que tomar cuidado pra não tropeçar ne- que pegam um livro desejado nas mãos (normal-
ra deste ano. Dizem que o movimento diminuiu, las... Mas também, onde eu estava com a cabeça mente os mais ilustrados e coloridos, com capas
o que vai dificultar as coisas, mas creio que será ao colocar este salto! Já pensou se me desequilibro e folhas de ótima qualidade), passam uma alegria
uma boa tentar naqueles livros de tamanho médio, e caio? Pronto, era só o que me faltava. contagiante. Só que, em geral, escolhem justa-
os mesmos que peguei no ano passado. Creio que o Ai... O que me falta agora é esse... Hum, mente as obras mais caras e ficam só na vontade.
atendente ou vendedor, sabe-se lá, nem percebeu olha ele ali: O Príncipe, de Maquiavel. Sempre me Mas eu não vou ficar.
quando tirei um daqueles três volumes iguais. Foi disseram que combina comigo. Vou pegá-lo, mas Vamos lá. Pego os dois livros e com uma
fácil demais, só passar, pegar e colocar dentro do comprarei um Discurso do Método, de Descartes, mão coloco o outro dentro da bolsa. Isso. Agora
sobretudo grosso, que camuflou totalmente o pe- pra despistar. vou pagar esse aqui. “Quanto é moço?”. “Dez re-
queno volume. Uma vez dei um Foucault de presente pra
ais.” “Tá bem, vou levar” “E esse outro dentro da
Mas, dessa vez, vou experimentar outra um irmão mais novo de uma amiga minha. Ele me
bolsa, também vai levar?” Como ele viu? “Ah” -
tática. Olharei com calma cada uma das obras, chamou de “adorável ladra”. Rimos bastante, mas
pelo menos nenhum conhecido por perto “eu es-
na prateleira do lado, passando os dedos devagar na verdade não concordo com a opinião dele. Não
queci... de pagar”. Mais vinte reais. Isso sim é um
sobre os volumes. Acho que, mesmo que o movi- considero este tipo de furto de todo errado. Pri-
roubo! Pelo menos eu saí com todo o dinheiro que
mento seja pouco, se tiver alguém comprando o meiro, porque o preço é muito caro, nem todos
têm condições de adquirir um livro da forma “le- o pai me deu, ou era bem capaz de ir parar na
atendente estará ocupado e nem vai notar. Ainda
bem que neste estande só tem mais um ajudante. gal”. A maioria dos que pego, dou para quem não delegacia.
Não sou louca de tentar em um estande com três tem dinheiro para tal, no melhor estilo Robin Hood Hummm, quem sabe vou prestar vestibular
pessoas cuidando furiosamente cada respiração feminino. Gosto de pegar um livro caro e raro, mas para Direito. E me tornar uma juíza que, com cer-
dos passantes. Além de sugar os bolsos, sugam toda são os mais difíceis. teza, absolverá jovens gatunos de livros. Mesmo se
a tranquilidade de uma leitura ou possível subtra- A segunda questão é mais política. Se o co- aparecer um bando deles, acusados de promove-
ção. Vamos ver... Aqui está bem mais calmo. nhecimento é tão importante nesta sociedade (na rem um arrastão na feira do livro, um roubo livres-
Bom, mais calmo pelo menos para mim. Há qual só agora bibliotecas em escolas são obriga- co em massa feito por uma corja de ávidos leito-
pouco chegaram algumas, ou melhor, várias crian- tórias) aquele livro era meu por direito, já que o res. Pode ser que aí sim ocorra uma revolução na
ças - acredito que de uma excursão. A gritaria e os Estado tem que disponibilizar ensino gratuito e de educação. Mas até lá tenho muitos conhecimentos
passos correntes tomaram conta da praça, e agora qualidade, principalmente para os primeiro anos (e livros) a adquirir.

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com rosa, com tudo
Por: Manuela Ilha Foto: Marcelo de Franceschi

Olhos claros, marcados pelo risco preto R$2,00 vão para seu vizinho e amigo que ge-
do delineador. O rosto mostra traços de quem sem- rencia o negócio. Ele é quem dá o apoio logísti-
pre ri, formando pequenas covinhas nas laterais co para Fátima e as outras pessoas que vendem
de um sorriso persistente. Ela é Fátima Londero, rosas pela cidade, o que inclui caronas ao fi-
31 anos. Nesta noite, Fátima usa tênis, mas expli- nal da noite e o reabastecimento das flores,
ca que é exceção. Sempre trabalha usando salto. caso elas terminem antes do sol nascer.
“Saltinho?”, pergunto eu, apontando para meus Por semana, Fátima diz tirar algo en-
próprios sapatos. “Saltinho!”, diz ela, rindo e dis- tre R$250,00 e R$300,00. Mas tais valores não
tanciando os dedos para mostrar uma altura que pagam a satisfação de poder trabalhar à noi-
fizeram meus pés doerem só de pensar. Os cabe- te, estar pela cidade, conversar com as pessoas
los têm tons avermelhados, coloridos como a blu- e ajudar nas conquistas. E até de bancar cupi-
sa que usava. Nos braços, traz o balde que leva do, mandando flores de admiradores secretos.
suas pequenas e delicadas companheiras da noite. Ou de vender o balde inteiro, para aqueles que
O vermelho ganha destaque em seu colo. querem conquistar todas as damas do baile.
Rosas. Rosas vermelhas. Enroladas delicadamente Das festas, diz não sentir muita falta, afi-
em uma fina embalagem, cada uma delas carrega nal, toda semana ela está na noite. Já faz parte
uma mensagem diferente. O amor é o tema recor- dela. E dela tira seu sustento e de seus cinco filhos.
rente, e Fátima concorda com tal ideia. Talvez falte Uma escadinha que começa com nove e termina
dinheiro, mas romantismo não. Antes, o movimento com três anos – os dois mais velhos são filhos bioló-
era mais forte, mas hoje ainda é possível viver da gicos e os outros três de coração. Seu companheiro velhos a dançar, como jovens recém apaixonados.
venda das rosas. Viver e conviver com a beleza das trabalha em restaurantes, e fica com os pequenos Lá, as rosas fazem sucesso, e presenteiam damas
flores e com os encantos que a noite proporciona. enquanto Fátima está na rua. Eles moram na Chá- que retribuem o galanteio com uma dança. Ou com
Encantos vistos durante os finais de se- cara das Flores, bairro na região norte da cidade. olhares discretos, cujo brilho ainda mostra uma mo-
mana e também em datas comemorativas, como Na Avenida Presidente Vargas, próximo à cidade escondida sob as marcas deixadas pelo tem-
dia (ou noites) das mães e dos namorados. Na rua Biblioteca Municipal, um casal conversa em uma po. Fátima confessa que, se não vendesse flores,
desde as sete da noite até quando o dia já inicia, mesa instalada na calçada. Dentro do bar, dois gostaria de ser enfermeira. Ou acompanhar idosos,
às seis da madrugada. Durante todo esse tempo, músicos cantam um sertanejo qualquer. Fátima atividade que ela já exerceu antes de virar florista.
ela não para. O itinerário inicia na Avenida Rio oferece suas rosas aos dois jovens, que descon- Despedimo-nos. Eu volto para o centro,
Branco, na esquina com a Rua Ernesto Becker. versam. As rosas recebem muitos “nãos”, mas, fazendo o trajeto contrário do caminho diário – ou
De lá, ela atravessa o centro da cidade, segue em torno de 50 a 100 delas, acabam sendo pre- noturno – de Fátima. Ela segue rumo ao encontro
pela Avenida Presidente Vargas, dobra na Aveni- sentes para novas donas. Ou dono. Para vender, de novos donos para suas flores. Vermelhas, deli-
da Ângelo Bolson e fecha na Avenida Medianeira. Fátima diz ter suas técnicas, sempre tentando cadas. Cheias de cor, como o rosto de Fátima, que
Há 13 anos, a mesma função. Mesmos convencer que a dama merece ganhar a rosa. corou quando tiramos algumas fotos. Seu sorriso
lugares. Diferentes pessoas e lucros. Cada rosa Seu melhor destino são as domingueiras. solto pareceu sem jeito, talvez estranhando a com-
vendida rende R$1,00 para Fátima. Os outros “É bonito de ver”, diz ela. Lindo ver os casais mais panhia nova em sua solitária caminhada. Talvez.
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