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A PISTA DO
VINGADOR

Autor
HANS KNEIFEL

Tradução
RICHARD PAUL NETO

Revisão
ARLINDO_SAN
(De acordo, dentro do possível, com o Acordo Ortográfico válido desde 01/01/2009)
Faz mais de um ano que a catástrofe atingiu
quase todos os seres inteligentes da Galáxia. Ainda
não existe uma chance real de impedir que o
“Enxame” prossiga em seu misterioso vôo através da
Galáxia ou reverter a manipulação da constante 5D
por ele levada a efeito, que causa um retardamento
mental na maior parte dos seres.
Mas Perry Rhodan e seus companheiros imunes
fazem tudo para desvendar o segredo do “Enxame”.
Fora algumas excursões, o Administrador-Geral
permanece quase sempre perto do “Enxame”, no
interior da Good Hope II, para colher informações e
realizar pesquisas.
Perry Rhodan acaba de fazer mais uma excursão.
Contando com a ajuda de Atlan, Geoffry Waringer,
Fellmer Lloyd e vários especialistas de Quinto Center,
retirou oitenta mil cientistas do planeta-laboratório
Last Hope e levou-os ao mundo dos Cem Sóis,
pertencente aos pos-bis, que não é atingido pela onda
de deterioração mental, por ficar num lugar afastado
da Galáxia.
Oitenta mil homens e mulheres, que recuperaram
a plenitude das faculdades mentais, encontraram um
lugar em que podem ficar — e têm a chance de usar os
recursos da técnica e da ciência para alcançar
resultados definitivos contra o “Enxame”.
Sem dúvida seu trabalho trará bons frutos, mas
antes disso voltamos a Sandal Tolk. O caçador de
Exota Alfa chega ao planeta dos vulcões e deixa uma
pista fácil de ser percebida — A Pista do Vingador.

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Sandal Tolk asan Feymoaur sac Sandal-Crater —
Um jovem caçador e guerreiro do planeta Exota
Alfa.

Tahonka No, o esquelético — O novo amigo e


companheiro de lutas de Sandal Tolk.
Trecho do registro das estirpes dos Crater. Estas linhas são
escritas por Sandal Tolk asan Feymoaur sec Sandal-Crater, amigo de
Atlan, o arcônida:
Há cerca de quinze dias entrei às escondidas numa nave
estranha. Agora que penso nisso tudo parece um sonho — um desses
sonhos que eu costumava ter antes de tornar-me homem. Só consegui
entrar porque fui tão rápido que nenhum dos seres gigantescos com
aspecto de couro me viu. Será que o rápido vôo de regresso da nave
para junto do “Enxame” dura mais de quinze dias? Acho isto
impossível...
...Tenho metade da nave somente para mim. Dois dias depois da
decolagem os últimos controladores abandonaram os comandos,
apagaram a maior parte das luzes e recolheram-se à parte superior
da nave. Tive certeza de que dentro de poucos dias estaria no interior
do “Enxame”. Os dias passaram devagar, comi minha carne assada,
e assar a segunda caça tornou-se um problema.
Posso abandonar meu pequenino esconderijo e examinar a
parte inferior da nave que está vazia. Já compreendo por que Atlan e
Rhodan são muito mais inteligentes que meu avô. Eles saberiam
perfeitamente para que serve esta quantidade enorme de máquinas e
controles. Eu não sei. Só consegui ligar algumas telas de imagem,
que me mostraram as estrelas — e o “Enxame”.
Espero, espero...
A segunda peça de caça também foi consumida. Há quinze dias
alimento-me com água, uns poucos tabletes de alimentos
concentrados e carne assada fria. É um cardápio pouco variado. Mas
de repente aconteceu uma coisa que me deixou muito preocupado.
Pouco depois da decolagem a nave trepidou por um instante, certas
coisas que não sei o que são zumbiram em tons profundos e de
repente perdi os sentidos. Quando acordei e olhei para as telas senti
uma forte dor de cabeça e vi estrelas diferentes à frente da nave.
Alguma coisa aconteceu — é como se a nave tivesse dado um salto
gigantesco.
Depois disso passei a revistar sistematicamente a nave. Não me
encontrei com ninguém e muitas portas estavam bem trancadas. Fui
ficando cada vez mais descuidado, investiguei toda a parte interior da
nave. Descobri coisas muito interessantes. E a fome começou a ficar
mais angustiante, mais violenta...
1

Sandal estava parado ao lado do armário em cujas portas havia pequenos furos para
deixar entrar o ar. No canto da gaveta do armário estavam três aljavas pesadas e o
gigantesco arco em torno de cujo cabo fora enrolado novamente o registro das estirpes,
escondido embaixo de uma alça de couro à prova de água.
— Ainda escreverei muitos capítulos, ou então este foi o último, porque morri de
fome — disse Sandal.
Contrariado, guardou o estilete no bolso do casaco da jaqueta terrana. Quase todas
as bainhas duplas estavam vazias quando as examinou com os dedos polegar e indicador.
Ele comera os pequenos cubos de alimentos concentrados guardados em embalagens
brilhantes. Ainda possuía alimento para dois dias e passava fome há alguns dias, porque
passara a comer muito menos.
— E agora? — perguntou a si mesmo.
Mais uma vez ligou o rádio de pulso. O único ruído que saiu do minúsculo alto-
falante foi o chiado da eletricidade estática, interrompido por uns poucos sons que não
conseguiu identificar entre as frequências das radioestrelas. Sandal praguejou baixo e
desligou o aparelho. Atlan e Rhodan deviam ter ido embora, ou então a nave-disco na
qual se encontrava afastara-se muito da Good Hope II.
— Nada ainda. Será que acabarei morrendo de fome neste lugar? Pela grande
estrela! — resmungou Sandal e deu um pontapé violento em direção a um objeto
chamado de osso-tubo. O osso-tubo girou, disparou acima do chão e desapareceu atrás de
um feixe de cabos.
Sandal empurrou-se da chapa de aço, pegou cuidadosamente a arma energética
guardada no bolso do cinto largo e saiu devagar da pequena sala-oficina. Já não sentia
dores de cabeça, mas começou a detestar a espera e sentir-se muito mal. Será que as dores
de cabeça tinham sido sequelas do fenômeno que Atlan certa vez chamara de choque da
transição? Talvez.
Sandal não descobrira nenhum instalador do “Enxame”.
Deviam ter ficado menores e desaparecido na parte superior da nave. Até então vira
o seguinte:
Entre as duas metades dos polos da nave-disco havia paredes grossas com poucas
aberturas grandes e muitas aberturas pequenas, todas elas firmemente trancadas.
Sandal bocejou. Fazia uma hora que tinha acordado.
Olhou para a tela que ainda mostrava o “Enxame” e as estrelas. Atravessou a torre
de controle mergulhada na penumbra, examinou mais algumas telas que ele ligara e
dirigiu-se ao seu lavatório “particular”. Lavou-se devagar e com cuidado, enxugou-se e
voltou a colocar as roupas, depois de tê-las limpado. Depois comeu um dos últimos cubos
de alimento concentrado, bebeu grande quantidade de água fria e praguejou. Passou a
sentir-se um pouco melhor.
— Está na hora de eu agir de verdade. A fome, a incerteza... — disse em tom
martirizado.
Nos últimos quinze dias atravessara uma espécie de inferno. Ele, um caçador e
combatente nato, não aguentara mais ficar em seu esconderijo. Tinha muita paciência,
mas até ela chegava ao fim. Tolk sentiu uma forte tendência de ocupar-se com alguma
coisa tomar conta dele; um nervosismo que só podia ter sido causado pela longa espera e
pela oportunidade inesperada de rolar muitos pensamentos na cabeça.
Pensamentos... em meio a repentinas excursões pela parte inferior da nave. Não
encontrou um único ser vivo, só máquinas que zumbiam e uivavam de uma forma que
inspirava confiança, só painéis de controle e instalações muito esquisitas, que ele não
compreendia. Seu desespero foi crescendo — estava trancado, condenado a morrer de
fome, só entre desconhecidos que dormiam ou tinham desaparecido...?
— Preciso sair daqui! — gritou.
Pegou as três aljavas, o arco, e trancou o armário. Seu leito ficara muito mais macio,
juntara cobertores ou estranhos pedaços de tecido em várias partes da nave.
— Primeiro vamos ver as telas.
Acenou com a cabeça, como que para animar-se. Naquele momento gostaria de
conversar com um Mnesarch ou com Chelifer.
Sandal saiu da “oficina”, destravou a arma e voltou a guardá-la. A qualquer
momento podia aparecer de repente um dos instaladores do “Enxame” com seus dois
metros e meio de altura, com os membros articulados em oito juntas e os olhos grandes e
preguiçosos. Tinha de estar alerta. Primeiro entrou na sala que conhecia melhor: a sala de
comando semi-escurecida com numerosos consoles. Depois seguiu para a direita, desceu
rapidamente e meio encolhido por um plano inclinado, abriu cuidadosamente e sem fazer
barulho uma escotilha de quase três metros de altura. Procurou o botão de contato com a
palma da mão. Quando o encontrou, luzes acenderam-se em vários pontos da sala.
Sandal percebeu imediatamente que a sala era triangular, com uma superfície
arredondada. Concluiu que se encontrava em um dos setores estranhos da nave. Além
disso uma das paredes era inclinada, abaulando-se à sua frente como uma concha
gigantesca ou um pedaço de concha. Essa parte da parede estava coberta por uma rede de
telas de imagem desligadas, de cor cinza-fosco. Tinha cerca de trinta metros quadrados e
havia trinta telas. Sandal mexeu rapidamente nos numerosos controles e botões,
finalmente escolheu um botão.
— Vamos ver o que acontece — disse e segurou a arma com mais força.
Apertou o botão.
Dentro de três segundos formou-se uma imagem caracterizada por trinta imagens
parciais.
As telas acenderam-se muito depressa uma atrás da outra. Mostravam uma
gigantesca superfície escura interrompida por inúmeros pontinhos luminosos. Sandal
identificou perfeitamente a forma da Galáxia. Era um setor de uma gigantesca roda de
fogo com uma estrutura bem definida. Parecia que contemplava a roda num ângulo
oblíquo.
A Via Láctea!
Atlan e a moça de olhos verdes, Chelifer Argas, tinham-lhe falado a respeito dela.
Sandal sabia o que tudo isso significava, e sentiu um calafrio descer pela pele das costas e
dos braços.
E à frente da Galáxia... o “Enxame”!
— Malditos conquistadores! — gemeu Sandal.
Uma gigantesca ponta de lança de vidro na qual se quebrava e refletia a luz de
milhares de sóis. Uma faixa quase reta, parecida com espuma flutuando sobre a água,
composta por milhares e milhares de bolhinhas transparentes de vários tamanhos. Atrás
dela luzes coloridas brilhantes, que deviam ser do tamanho de sóis. Rivalizavam com a
luminosidade dos sóis galácticos atrás dos bancos escuros de névoa de hidrogênio e atrás
da poeira interestelar com seus nós e adensamentos característicos. Púrpura e vermelho,
branco e amarelo. O “Enxame”. Apontava que nem uma ponta de lança obliquamente
para o plano da roda de fogo.
Sandal refletiu em voz alta.
— Se vejo o “Enxame” daqui, então esta maldita nave não entrou nele. Logo, não
posso praticar minha vingança. Ainda não. Mas minha hora vai chegar.
Dali a instantes acrescentou em tom menos furioso:
— Se não morrer de fome antes disso.
A nave na qual se encontrava provavelmente parará pouco antes de chegar ao
“Enxame”, junto aos campos defensivos ex-temos. Naquele momento devia acompanhar
o vôo do “Enxame”, numa proteção dos flancos, ou então voltava a afastar-se do mundo
misterioso ao qual pertencia. Sandal não sabia por que era assim. A única coisa que podia
fazer era formular hipóteses. Enquanto o homem alto e esbelto de olhos dourados e
cabelos brancos estava de pé, imóvel, à frente das telas de imagem, contemplando o
quadro gigantesco, ele se concentrava e pesava suas chances. Isolado como estava, não
lhe restavam muitas possibilidades. Quase chegava a arrepender-se de não ter seguido o
conselho de Atlan, mas quando se lembrava dos corpos carbonizados de seus pais e de
Beareema, esse impulso desaparecia.
— Se esses seres misteriosos em forma de árvore... — disse cuidadosamente, mas
voltou a ficar calado.
Se os desconhecidos que tinham reduzido seu tamanho para um vigésimo tinham
sido incumbidos de voltar à nave-cogumelo que se transformara no monumento de um
ídolo, depois de cumprir determinada tarefa ou num certo tempo, então a nave estava
regressando a Teste Rorvic, um planeta parecido com a Terra. Lá as massas de robôs
grandes e pequenos deviam ter feito neste meio-tempo ataques ininterruptos ao gigante.
Muitos robôs morreriam e se dissolveriam, mas não havia dúvida de que as pequenas
estações de refletores tinham sido destruídas. Talvez até a nave.
— Não me entra na cabeça que eles se conformem com a perda da nave gigantesca
— disse Sandal.
Refletira sobre tudo nesses longos e sofridos quinze dias. Acreditava que voltariam
a montar a nave e avançar com ela em direção à Galáxia. Logo, havia um sistema nesse
vôo. Era que nem uma manada de animais selvagens, que sempre voltava por caminho
mais longo ao local da aguada, onde acabava sendo surpreendida pela flecha do caçador.
— É por isso que não voltam ao “Enxame”... já compreendi! — disse Sandal a si
mesmo.
Bastava que mesmo depois do estranho salto de transição a nave voasse à frente do
“Enxame” e depois de algum tempo voltasse para Rorvic.
— Estou completamente isolado, perdido, esfomeado... — disse em tom apático.
Por enquanto o plano de entrar no “Enxame” para cumprir sua vingança fracassara.
A caça fora comida.
Ele só bebera água.
Nada de pão, nenhuma gordura... somente isso. Nem sequer alguém com quem
pudesse conversar. Só não enlouquecera graças à qualidade de caçador, acostumado a
esperar pacientemente.
Sandal ergueu o braço e olhou para os algarismos móveis do relógio digital. Faltava
pouco para a meia-noite do dia 26-11-3441.
Sandal tomou uma decisão desesperada.
— Assumirei a nave e entrarei no “Enxame”! — disse em voz alta.
Virou-se. Arrancou a arma energética do bolso do casaco e saiu. Atrás dele bilhões
de pontos luminosos brilhavam nas telas, a ponta de lança do “Enxame” deslocava-se em
direção à Galáxia, confundindo-se com as estrelas ao norte do plano galáctico.
2

Sandal fechou a escotilha.


— Não tenho escolha — disse em voz clara.
Imaginou como devia ser a nave. Em sua opinião a nave-disco devia ser formada
por duas partes, separadas no centro por um conjunto de grossas camadas de metal. Ele se
encontrava na parte inferior.
— Preciso chegar em cima!
Talvez houvesse nessa nave, como na Good Hope II, um poço central pelo qual
poderia subir depressa. Quando passou por um armário embutido aberto, Sandal viu um
objeto que despertou seu interesse. Era uma esfera dividida ao meio com duas fitas
elásticas, com as quais se podia prendê-la na coxa ou no braço. A semi-esfera era
interrompida por duas pequenas aberturas de microfone — pelo menos Sandal acreditava
que os furos com uma grade protetora eram microfones — além de mais algumas
aberturas redondas. Sandal acreditava que se tratava de uma espécie de rádio, parecendo
com o que trazia no pulso. Parou e prendeu o objeto no braço direito, onde ficou firme e
seguro.
— Vamos em frente!
Sandal abriu algumas portas, acendeu e apagou luzes e finalmente viu-se numa
escada em caracol que não possuía degraus. A fita enrolava-se numa coluna à esquerda
de Sandal, que não possuía nenhuma abertura.
— Vamos subir ali!
Sandal correu pela espiral abaixado. Passou por muitas aberturas de corredores que
depois de dois metros eram fechados por portas pesadas. O bárbaro subiu correndo metro
após metro, segurando a arma energética pronta para atirar. Sabia que a arma era melhor
que o arco, pois no lugar em que estava não podia disparar uma flecha. O arco não servia
para uma luta corpo-a-corpo.
Passaram-se alguns minutos.
Sandal não encontrou nenhum ser vivo, nenhum sinal dos misteriosos
desconhecidos que encolhiam. Só máquinas, nenhum robô. Nada. Uma nave sem vida,
voando independentemente. O comportamento dos seres do “Enxame” era mais
misterioso e incompreensível que o das formigas de Exota Alfa. Ninguém podia prever o
que fariam.
A espiral terminou.
Uma grossa porta pintada de amarelo surgiu à frente de Sandal. Na porta havia uma
janela redonda. Sandal encostou o rosto ao vidro, espiou, mas a única coisa que viu foi
sua imagem refletida.
— Quer dizer que aqui é o limite — disse.
Mais uma vez sentiu-se dominado pela exaltação do caçador, a tensão de quem se
defronta com um ambiente estranho.
Sandal pôs a mão nas alavancas que se estendiam obliqua-mente para cima e
apresentavam cabos estranhos.
Puxou as alavancas. A primeira cedeu e permitiu um giro de cento e oitenta graus
antes de ficar travada. A segunda ficava um metro embaixo da primeira, num nível pouco
inferior ao dos olhos de Sandal. Ele gemeu e puxou a alavanca com força, mas ela não
cedeu. Um pouco de ar escapou chiando pela grossa faixa de vedação.
— Maldito “Enxame”! — gritou Sandal amargurado.
Abaixou-se, segurou a terceira alavanca e sacudiu-a furiosamente. Ela também não
se mexeu. Seu caminho fora barrado, e era uma coisa que ele não podia tolerar.
Sandal deu três passos para trás, reverteu a projeção da arma e apertou o gatilho.
Um raio branco ofuscante penetrou em semicírculo em tomo do ponto de apoio da
alavanca do meio. Pingos esguichavam, fumaça se levantou e um cheiro desagradável se
espalhou. Era como o casco de um animal queimando.
O raio energético foi abrindo um sulco profundo no aço, desapareceu do outro lado
da chapa, e finalmente houve um estalo duro. No mesmo instante Sandal tirou o dedo do
gatilho. O rugido surdo e penetrante que doía nos ouvidos terminou de repente.
Sandal foi para a frente, tomou impulso e deu um pontapé com toda força na chapa
semicircular. A chapa caiu para trás com a alavanca, peças de metal se rasgaram, faíscas
saltaram do outro lado do furo.
— Veja! — disse Sandal. — Mais um passo. Eles ainda não me conhecem, estes
lacaios de assassinos. Faço sua nave em pedaços.
Sandal teve o cuidado de não tocar nas bordas incandescentes do buraco. Enfiou o
braço pela abertura e tateou o metal momo embaixo do orifício irregular. Finalmente
encontrou um botão grosso, apertou-o com força e tirou o braço do furo.
Conseguiu mexer na chave de baixo. A porta abriu-se. O ruído de um pedaço de
metal que se prendera na porta rasgando o revestimento do piso soou desagradavelmente
nos ouvidos de Sandal. Uma bandeira fina de fumaça azul veio ao seu encontro
descrevendo círculos enquanto passava pela porta de arma em punho.
Sandal procurou uma chave de luz. Acabou encontrando uma placa de metal grande
e redonda perto da escotilha, que reagiu a um toque leve. Depois de apertar a chave
descobriu outra menor, instalada na parede a uns dez centímetros do chão. Sandal
agachou-se.
A luz apagou-se no mesmo instante. Sandal voltou a apertar a chave, e a claridade
espalhou-se de novo. Ao lado da chave havia uma espécie de console minúsculo
obliquamente embutido na parede. Sandal ficou agachado e viu pequenas chaves e botões
ainda menores, além de marcas luminosas. Começou a compreender.
— É uma chave para os desconhecidos que encolheram — constatou surpreso.
Era isso mesmo. Sandal resolveu experimentar. Apertou alguns dos minúsculos
botões. A escotilha voltou a fechar-se e abrir-se.
— Já compreendi!
Sandal ergueu-se surpreso. O fato de ter visto milhares de desconhecidos que
tinham encolhido entrarem na nave encontrava uma estranha explicação. A parte superior
da nave não passava de um gigantesco recipiente para milhares desses seres pequenos. Se
conservassem o tamanho natural, nunca caberiam lá. Sandal esperava um tumulto
tremendo de seres minúsculos, que poderia esmagar com os pés — mas isto era uma
coisa que um caçador não fazia. Nem mesmo um vingador enfurecido era capaz de pôr as
mãos em anões. Seria um comportamento tão condenável como pisotear um bando de
formigas ou besouros migrando. Mas será que ele, que ali era um gigante, conseguiria
chegar são e salvo à sala de comando da nave?
Sandal examinou o corredor iluminado por uma luz amarela.
Ele ia estreitando. Depois de quatro metros sua altura diminuía um metro e as
paredes se aproximavam. No fim da galeria que se estreitava de forma cônica, em
degraus, havia uma escotilha pela qual mal poderia passar rastejando. As paredes
irradiavam um frio estranho.
— Vou tentar! — disse a si mesmo, um pouco mais desanimado. A fome começava
a maltratar seus intestinos. Antes de qualquer luta era necessário fortalecer-se.
Sandal foi até o lugar do corredor em que tinha de abaixar-se, encurvou as costas e
seguiu em frente. Aos poucos as instalações foram ficando parecidas com brinquedos.
Era um mundo capaz de deixar a gente confusa, aquele em que ele andara depois da
morte do avô e da destruição do Crater. Primeiro Atlan e a nave, depois Chelifer, e
finalmente os robôs e a luta furiosa, e agora esta nave maluca com os seres do tamanho
de formigas.
Mas ele ainda não vira nenhum desconhecido de tamanho reduzido nos últimos
dias.
Sandal estendeu a mão e apalpou o pequeno console, à procura dos botões. A
escotilha-mirim foi-se abrindo aos poucos.
Não tinha mais de sessenta centímetros de altura e largura.
— Entrar rastejando! — disse Sandal a si mesmo.
Seu estômago voltou a roncar, e ele se lembrou de como descobrira uma grande
caixa de vidro. Quando colocou a mão nela — vira algumas peças de porcelana redondas
sobre fios e as atirara fora — ele a retirou bem depressa. O interior da caixa não estava
quente, mas Sandal quase queimou a mão. Aí quebrara e limpara rindo o animal e o
colocara entre os fios que havia na caixa. A carne ficou assada dentro de muito pouco
tempo.
Sandal teve muito trabalho em atravessar a escotilha. Voltou a acender as luzes e
ficou espantado ao ver-se num corredor bem maior. Além disso havia outras
modificações.
— Este caminho foi feito para anões e gigantes — disse e levantou.
O corredor tinha mais de dois metros e meio de altura. A largura era de mais ou
menos cento e cinquenta centímetros e de ambos os lados havia cerca de vinte galerias
pequenas, protegidas por corrimões ainda menores. No lugar em que Sandal estava um
dos grandes desconhecidos cuja pele era parecida com casca de árvore e cujos braços e
pernas antes pareciam raízes e galhos podia andar de pé. Os desconhecidos de treze
centímetros de altura corriam nas galerias e desapareciam nas paredes, atrás das portas de
brinquedo. Havia muitas portas. Ali também reinava um frio que Sandal sentia
perfeitamente.
Tolk virou-se.
Neste instante descobriu a massa preta larga da gigantesca faixa de vedação.
Bastaria mexer em outra chave para que a grande escotilha se levantasse e o deixasse
passar.
Um silêncio assustador reinava no lugar.
— Maldita fome! — resmungou Sandal e saiu andando. Deu dez passos; quinze. Aí
o corredor terminou de vez, mas uma corrente de ar frio descia do teto. Sandal levantou o
queixo. — Que coisa estranha! — comentou.
No fim do corredor as galerias destinadas aos seres pequenos tinham sido
reforçadas. Formavam excelentes degraus. Bem em cima dos longos cabelos brancos de
Sandal abria-se um poço amplo parecido com uma chaminé, que parecia levar a uma
altura misteriosa. Sandal semicerrou os olhos para fazer uma avaliação. O que estava
procurando mesmo? A direção da nave... mas também se deu conta de que suas chances
de saber manipular os controles e as teclas que não conheciam eram muito reduzidas.
— Atlan, meu amigo experiente, seria capaz! — disse e iniciou a escalada. Subia
passo após passo, segurando os cabides de metal. À medida que subia, a corrente de ar
frio soprava com mais força no cabelo branco preso por uma faixa de couro branco na
testa.
A subida parecia não ter fim, mas de repente uma fenda estreita abriu-se bem ao
lado de Sandal, no meio da parede cheia de escadas, portinholas e rampas. Ele mesmo foi
obrigado a espremer-se para passar, segurando-se com uma mão e deixando pendurada
uma perna. Para um dos desconhecidos grandes devia ser ainda mais difícil. Mas
conseguiu passar e viu-se numa sala cilíndrica.
Sua respiração era ofegante.
— Onde será que essas formigas guardam seus alimentos? — gritou furioso.
Ficou tudo quieto. Na escuridão que se estendia à sua frente brilhavam
misteriosamente lampadazinhas de muitas cores e retângulos luminosos trêmulos,
parecidos com os olhos de um inseto raro na noite de uma selva desconhecida. Sandal
sacudiu-se. Devia continuar e procurar, pois precisava primeiro de alguma coisa para
comer, e depois de uma informação de como dirigir a nave assassina.
Sandal apoiou-se em uma das numerosas superfícies arredondadas. Devia ter tocado
por acaso em uma das numerosas chaves, pois o teto iluminou-se de repente.
— São milhares! — gemeu. — Milhares! Devem comer alguma coisa.
Estava à procura de alimentos. A imaginação o fazia ver depósitos recheados, com
presuntos negros triangulares pendurados do teto em tendões de animais, pães
gigantescos e jarras cheias de mel fermentado. Seus intestinos voltaram a roncar. Sentiu
os efeitos dos últimos dias, em que comera cada vez menos, até extrair o tutano do último
osso. Os desconhecidos também deviam sentir fome. Logo, devia haver um depósito de
mantimentos. Se os desconhecidos respiravam o mesmo ar que ele, também deviam
comer coisas que ele podia comer — ou vice-versa.
Devia haver alimentos por perto.
Provavelmente os desconhecidos estavam dormindo — ou pelo menos muitos deles.
Quando acordassem, também sentiriam fome. Mas como encontrar algo parecido com
uma despensa nessa confusão de salas de todos os tamanhos? Não havia nenhuma
chance; Sandal poderia morrer de fome antes de encontrar alguma coisa. Acabaria sendo
encontrado por eles, morto de fome, ao lado de uma despensa cheia de apetitosos
presuntos e linguiças recheadas. Sandal ficou com a boca cheia de água, engoliu
gulosamente. Isto fez aumentar a fome. Ou era apenas a sensação da fome? Sandal
hesitou ao pensar em descer e encher o estômago de água.
— Não! Ainda não! — disse em tom resoluto. — Procurarei. Voltou a examinar os
instrumentos e controles. Descobriu muitas portinholas, muitas rampas e uma rede de
corrimões e aparelhos que se podia escalar. Era um gigante num ambiente feito para
anões.
— Preciso dar uma olhada — disse.
Começou ali mesmo. Agiu tão sistematicamente como fizera nas lutas contra os
assassinos vindos do “Enxame”. Começou num lugar à esquerda e pretendia parar na
outra extremidade, à direita. Girou ferrolhos minúsculos, abriu uma portinhola, viu que
atrás dela estava escuro, tateou à procura do interruptor ainda menor. A luz acendeu-se e
Sandal recuou ofegante e assustado.
— Não é possível! — cochichou, mais perplexo que apavorado.
Viu uma pequena sala que parecia um favo de abelhas. Estava cheia de favos
hexagonais entrelaçados. Estavam revestidos de uma massa cinzenta, que devia ser macia
e elástica. Nesses favos estavam deitados os corpos rígidos dos desconhecidos. Tinham
cerca de doze e meio centímetros.
Havia cerca de duzentos desconhecidos naquela sala minúscula. Sandal fechou a
porta, confuso, parou sem mexer-se e respirava apressadamente. Que significava isso?
Só notou a lufada forte de ar frio que saía da salinha quando já era tarde.
— São os animais... — disse depois de algum tempo. Animais hibernando. Os
desconhecidos que pertenciam ao “Enxame” também estavam lá, dormindo, rígidos e
imóveis. Por quanto tempo? Nesse estado podiam ficar seis meses ou mais, conforme
sabia Sandal, que já vira muitas vezes animais nestas condições e os caçara quando ainda
era jovem.
Continuou a refletir.
Logicamente devia haver muitas salas adaptadas ao tamanho dos seres de tamanho
reduzido. Não deviam ser somente câmaras de hibernação, mas tudo de que precisava um
ser pensante. Centros de comando, locais de refeições, instalações sanitárias, vestiários...
onde ficava tudo isso? Os depósitos de alimentos deviam ficar perto dali. Milhares destes
desconhecidos, cujo tamanho fora reduzido, precisavam de menos alimento, mas isto
mudaria quando acordassem e voltassem a crescer. Um animal grande precisa de muito
alimento, um pequeno precisa de pouco. O próprio processo de redução de tamanho e de
crescimento consumia energia subtraída das reservas da criatura. Os animais que
hibernavam emagreciam na primavera, ficavam nervosos, famintos, irritadiços... Sandal
fechava e abria portas. Só viu desconhecidos hibernando.
Nada de mantimentos.
Dentro de uma hora terminou as buscas naquele lugar. Vira milhares de
desconhecidos, todos dormindo profundamente no frio das celas parecidas com favos.
Mas não encontrara mais nada.
— Não há o que comer — disse desesperado.
Voltou a descer pendurado no poço e abriu uma portinhola atrás da outra. O quadro
com que deparava era sempre o mesmo: seres pequenos enrijecidos, deitados nas celas e
dormindo profundamente. Só isso. A fome crescia na medida em que aumentava a raiva
pela situação crítica em que se encontrava.
Como caçador e lutador estava acostumado a agir. Atacar ou recuar rastejando, lutar
ou fugir. Mas não ficar com as patas presas numa rede que nem um lobo, uivando de
fome.
Estava novamente no setor inferior, perto da parede traseira do corredor em que
havia estranhos degraus.
— E agora? — perguntou em voz alta.
Descobrira salas relativamente grandes, centros de controle “gigantescos” e muita
coisa mais, mas nada que o ajudasse em alguma coisa. Nada que pudesse comer. Nada
que de qualquer forma lembrasse comida.
— Preciso continuar a procurar — disse em voz baixa.
Saiu da parte superior da nave, correu para a sala onde numerosas telas mostravam a
imagem da Galáxia e do perigoso “Enxame”. Parou e tirou o antepenúltimo pedaço de
alimento concentrado da bainha da jaqueta. Mastigou devagar e aborrecido, bebeu uma
quantidade enorme de água e voltou às salas estranhas que ficavam atrás da eclusa.
Parecia que estas salas exerciam uma atração misteriosa sobre ele.
Finalmente, quando já não sabia o que fazer, pegou a arma, apertou o gatilho e
fundiu um buraco de cinquenta centímetros de diâmetro em uma das paredes.
“A miniaturização também tem suas vantagens”, pensou. “A espessura da chapa
diminui bastante.”
Atrás do buraco ficava uma sala vazia em cujas paredes havia recipientes de várias
cores presas em suportes especiais.
Sandal enfiou-se no buraco, entrou na sala com muita dificuldade e examinou os
recipientes que eram mais ou menos do tamanho de uma cabeça humana. Cada um deles
tinha uma cor diferente. Havia fios, torneiras e ligações. Parecia que os recipientes
continham combustível.
Sandal se encontrava no meio da sala comprida, de teto baixo, quando começou o
dia vinte e sete de novembro.
Um tremendo abalo atingiu Sandal, deixou-o inconsciente e atirou-o no meio das
esferas.
As luzes apagaram-se.
A nave-disco iniciara mais uma transição.
3

Era claro que Sandal não podia imaginar que todo o “Enxame” iniciara uma
transição para sair cerca de três mil anos-luz adiante, na Via Láctea. A pequena
espaçonave na qual Sandal se encontrava, e que voava à frente do “Enxame”, também
realizara a transição. Mas sua rota, bem como a distância e a posição em relação à massa
alongada do “Enxame”, não tinham mudado. O vôo em alta velocidade dentro da Galáxia
prosseguia sem parar.
***
Sandal piscou os olhos.
Estava deitado, com o corpo contorcido, na sala longa e estreita. A dor de cabeça
latejante passou aos poucos. Quando abriu os olhos de vez, Sandal sabia de novo onde se
encontrava. Voltou a lembrar-se imediatamente do que tinha acontecido.
— Foi... — disse em tom confuso — ...mais um salto... uma transição, como diria
Atlan.
Apoiou-se nos cotovelos e saiu rastejando meio metro para fora da sala. Viu de
novo as esferas e voltou a perguntar-se o que significavam.
As perguntas o atormentavam.
A nave afastara-se do lugar ou da rota. Quanto a isso parecia não haver dúvidas.
O que acontecera com o “Enxame”?
O que havia nas cerca de quinze esferas?
Sandal revirou o corpo, colocou o tórax numa situação mais confortável e tratou de
animar-se.
— É só experimentar... elas não se dissolverão logo em chamas!
Ainda não sabia nada — no fundo. A única coisa que podia fazer era revistar setor
por setor da misteriosa nave para ter mais certeza sobre sua finalidade e a rota que seguia.
Além disso estavam em seu programa a mudança de rota e o abastecimento de comida.
Sabia que seus planos só podiam ser realizados em parte. O mal-estar voltou a
manifestar-se e ele sentiu que estava irremediavelmente preso e isolado, que a
investigação que fizera não levara a nada, só servira para expô-lo ao perigo.
Sandal sacudiu o atordoamento. Segurou um dos tubos finos com três dedos e
dobrou-o. Arrancou o tubinho de uma conexão. Uma gota grande, amarelo-brilhante, saiu
da extremidade do tubo que nem óleo viscoso. Sandal esticou o dedo indicador da mão
direita, deixou que a gota caísse nele e tocou-a com a ponta da língua.
Não houve o choque que esperara.
Quando os nervos do olfato reagiram percebeu que experimentara um líquido
adocicado, com um forte aroma de resina. Seu sabor tinha certa semelhança com o de
certos alimentos concentrados que comera nos últimos dias e noites. Sandal lambeu o
dedo.
Estava indeciso. Devia usar o líquido como alimento?
— Esperarei até sentir fome — disse com a voz firme e saiu rastejando do aperto da
sala.
O dedo parecia gosmento. Sandal enfiou-o na boca para limpá-lo com a língua
depois que voltou a ficar de pé.
Continuou as buscas.
Dezesseis horas passaram-se devagar...
Sandal ainda não revistara mais de um quarto dos cantos e salas. Pelos seus cálculos
devia haver cerca de três mil e quinhentos ou mais desconhecidos dormindo. Fora deles a
nave estava fria, vazia, sem vida. Em toda parte reinava um frio sepulcral. O cheiro que
se sentia lembrava o da madeira úmida, ligeiramente mofenta. As máquinas e aparelhos
que funcionavam sem parar e as luzes piscando ainda reforçavam a impressão de estar
numa nave-fantasma.
— Um perigo desapareceu... — constatou Sandal.
Ele não sabia exatamente até que ponto o líquido viscoso podia saciar a fome, mas
achava que devia der pelo menos por uma semana, desde que não comesse ou bebesse
demais. Já sabia que havia alimento para as pequenas figuras encolhidas. Se por algum
motivo acordassem da hibernação, teriam de alimentar-se. O líquido devia ser muito
nutritivo, já que as poucas esferas davam para tantos desconhecidos.
— Vamos à sala de comando! — disse Sandal em tom resoluto.
Onde ficava o centro de comando principal?
Sandal voltou um pedaço e concentrou-se no fato de que dali em diante teria de
procurar seu caminho “para cima”. Até então não conseguira ir além da sala circular que
devia ser um centro secundário, um setor que ele não conseguira identificar, mas que
certamente não era a sala de comando da nave.
Afinal, ele sabia como era uma sala de comando... Voltou a lembrar-se da galeria
panorâmica da Good Hope. Também se lembrou de Chelifer e Atlan e estacou. Pôs a mão
nos botões de contato embutidos do aparelho que trazia no pulso e viu a minúscula tela se
iluminando. Mas ela não mostrou nenhuma imagem.
Um chiado leve saiu do alto-falante.
— Atlan! — gritou Sandal em tom ansioso.
A única resposta foi o chiado saído do pequeno alto-falante.
— Aqui fala Sandal, Atlan — disse o jovem bárbaro. — Responda, Atlan! Por
favor!
Não houve resposta.
Sandal bateu furiosamente com a mão na chapa de metal, mas logo controlou a
decepção.
Ele deveria saber!
Desligou o aparelho. Atlan e Chelifer, Rhodan e a Good Hope estavam cada vez
mais longe em seus pensamentos. Imaginou que talvez nunca mais os veria. Ignorou essa
ideia dolorosa e pensou na vingança contra o chefe do “Enxame”, que queria matar.
Depois tentou encontrar um caminho para a sala de comando.
***
Duas horas depois.
— Um bom caçador não deixa nenhum rastro — disse.
Deu uma risadinha e contemplou o caminho incandescente, fumegante e cheio de
destroços que deixara para trás.
Seguindo pelo caminho mais curto, voltara a abrir passagem à força em vários
lugares. Paredes de materiais finos tinham sido cortadas ou abertas a pontapés. Sempre
que possível deixara intactos os favos nos quais dormiam os desconhecidos, pois
enquanto pequenos não eram seus inimigos.
Na caminhada cortara fios, destruíra pequenos aparelhos e deixara uma trilha de
estilhaços. Subiu pavimento após pavimento, passava pelos buracos quase redondos,
escalava paredes usando tudo quanto era reentrância. No momento encontrava-se numa
sala que parecia ter sido feita para um dos desconhecidos “grandes”.
A quantidade de aparelhos trabalhando se multiplicara. Em toda parte havia
mostradores e escalas luminosas fracas. Ouvia-se um tiquetaquear, zumbidos e sussurros
vindos de todos os lados. A velha febre de caçador voltou a tomar conta de Sandal. O
segredo devia estar perto... a sala de comando, dentro da qual se tinha o domínio do
disco.
Seria realmente capaz de dominá-lo?
— Vou experimentar — disse Sandal.
Olhou em volta. Ninguém tinha acordado, ninguém crescera para alcançar o
tamanho normal e representar um perigo para ele.
— Nenhuma porta, nenhuma abertura... — cochichou Sandal.
Seus olhos dourados embaixo das sobrancelhas brancas examinaram cada
centímetro quadrado das paredes de aço de cor clara. Finalmente Sandal descobriu, quase
atrás de si, outro trecho da parede que podia ser aberto deslizando ou dobrando. Sandal
procurou a chave, encontrou-a na altura do ombro e apertou-a. Um pedaço de parede
estreito baixou que nem a ponte elevadiça do castelo de Crater e uma chapa de aço
deslizou para cima dele. Estava coberta de pequenas setas luminosas, sinais de orientação
para os desconhecidos de tamanho reduzido. Sandal avançou num salto, com a arma
energética em punho.
Mas não apareceu ninguém para enfrentá-lo.
— Cheguei! — gritou e jogou o braço para cima.
A sala de comando não era grande, mas tinha sido feita para os desconhecidos de
tamanho maior. Havia dois objetos escuros em forma de concha, perto um do outro, à
frente de uma grande tela que estava funcionando, mas não mostrava nada além das
estrelas. As conchas sem dúvida eram assentos que os desconhecidos podiam ocupar.
Sandal ficou de pé entre eles e apoiou-se com força nos encostos. Examinou o painel de
instrumentos.
Diante de seu rosto desfilaram as grossas nuvens de fumaça vindas das bordas do
material queimado. Uma trilha quase reta seguia da sala que ficava além da eclusa para a
parte inferior da nave, um rastro de destruição.
— Atlan saberia tudo! — observou Sandal com a voz triste.
Não tocaria em nenhuma chave ou alavanca enquanto não soubesse mais.
Comparava ininterruptamente os consoles de comando da Good Hope com os que estava
vendo, mas encontrou poucas semelhanças.
Ao abrir caminho destruíra máquinas e aparelhos, mas eles não pareciam ser muito
importantes. Os sentimentos do jovem bárbaro e do caçador cauteloso e experimentado
entraram em conflito dentro de Sandal. Finalmente contornou as duas poltronas num
movimento rápido e pôs a mão na alavanca geminada da direção.
Moveu-a com muito cuidado, aos trancos, para baixo... Prendeu a respiração.
A nave não saiu do lugar, as estrelas pareciam estar imóveis na tela.
— Estou cansado... — cochichou Sandal.
A procura longa e desgastante de algo para comer e o trabalho que tivera para abrir
caminho tinham-no deixado exausto sem que ele se desse conta. Agora, que chegara
aonde queria, teve de bocejar. Sentiu os membros pesados e sabia que não valeria a pena
querer praticar atos complicados, de consequências imprevisíveis, num momento destes.
Sandal precisava dormir.
Olhou para trás, inclinou cuidadosamente a poltrona pesada, modificou a inclinação
do encosto e deitou nela. A poltrona não tinha nenhum conforto, mas não era pior que a
cama de trapos lá embaixo, no esconderijo dentro do armário embutido.
Só algumas horas... — disse Sandal exausto.
Adormeceu quase no mesmo instante.
***
Sandal estava de pé à frente do depósito de água, não muito longe de seu
esconderijo, e segurava um dos tanques. A esfera grande estava morna. Ele a decepara
com um raio fino da arma energética. A substância viscosa cor de âmbar transformara-se
numa espuma branca.
Sandal encostou a esfera aos lábios, girou a mão e deixou o caldo grosso escorrer
lentamente para dentro da boca. Os restos dos suportes cortados, que Sandal
simplesmente soldara, penetraram em seus dedos. Aos poucos o líquido foi descendo pela
garganta. Quando a esfera ficou vazia pela metade — tinha pouco mais de dois litros —
Sandal afastou-a dos lábios. Engoliu várias vezes. O sabor que sentia na língua até que
não era desagradável.
— Ou eu morro, ou mato a fome — disse em voz baixa com os lábios grudentos.
Em seguida tomou água. Lavou-se cuidadosamente e verificou se a aljava e o arco
continuavam no mesmo lugar. Depois deu um salto para cima e subiu depressa de um
convés para outro. Quando chegou à sala de comando estava ofegante.
Não sabia se a posição das inúmeras estrelas tinha mudado e não viu a Good Hope
nem qualquer outra coisa entre os numerosos pontos luminosos. Nem sequer descobriu o
“Enxame”.
“Um inimigo invisível é o adversário mais terrível que se pode imaginar”, pensou e
tentou descobrir o segredo da direção.
Sentou no canto da poltrona e experimentou a direção, mas não aconteceu nada.
Nem mesmo os algarismos luminosos mudaram. A direção devia estar desligada
que nem um robô morto de Teste Rorvic.
— Onde fica a chave? — perguntou-se Sandal em voz alta.
Levou muito tempo procurando antes de descobrir uma chave cuja forma
naturalmente fora adaptada para os dedos parecidos com galhos dos desconhecidos.
Levantou a chave bem depressa e esperou. No mesmo instante uma faixa de retângulos
luminosos e escalas iluminou-se em cima do grande console de comando.
Sandal voltou a pôr a mão nas chaves. Conseguiu movê-las. Os pontos luminosos
mudaram de posição.
Dera certo!
Mexeu a direção para a esquerda, para a direita, e empurrou lentamente a ponta do
“Enxame” para dentro do campo de visão. Dirigiu a nave exatamente para as inúmeras
bolhas. Sabia que o caos absoluto estava nos seus calcanhares.
Primeiro pegou as três aljavas, atirou-as nas costas, em seguida segurou o arco e
saiu correndo. Desceu pelos corredores sinuosos, atravessou pequenas salas, passou perto
de máquinas que funcionavam com muito ruído e acabou numa eclusa. Era um dos
recintos em que estivera pela primeira vez, pouco antes que a nave-disco decolasse.
Sandal deixou a porta aberta. Olhava diretamente para uma grande sala cujas
paredes estavam cobertas por telas de imagem.
E o caos veio atrás dele, de “cima”, aproximando-se que nem uma arrasadora
avalanche de pedras.
Os seres desconhecidos começaram a mexer-se.
Acordaram da rigidez e no mesmo instante teve início seu processo de crescimento.
Aumentariam de tamanho vinte vezes. Se até então tinham doze ou treze centímetros,
alcançariam dentro de pouco tempo a altura de dois metros e meio. Dessa forma
transformavam-se automaticamente em inimigos de Sandal.
“Luta!”, pensou este e ficou encostado na parede.
Sua imaginação não foi capaz de dar uma ideia das cenas que se desenrolavam na
parte superior da nave. De qualquer maneira a parte inferior não teria lugar para milhares
desses seres. Bastariam dez ou vinte seres crescidos para encher até o último lugar. Em
toda parte começavam a crescer milhares de desconhecidos, a esticar-se. Naturalmente
compreendiam imediatamente qual era a sorte que lhes estava reservada: a morte por
asfixia ou esmagamento.
Aqueles que estavam mais próximos das saídas não se detiveram; saíram correndo
assim que foram capazes de mexer-se. Entravam em pânico e precipitavam-se pelos
minúsculos corredores, junto às galerias em cujos tetos esbarravam dentro de alguns
minutos. Espremiam-se através das eclusas, das portinholas e dos corredores mais
amplos, desciam em corrida desabalada pela espiral comprida, uns atrás dos outros, que
nem loucos. Soltavam gritos estridentes e o ruído de vidros quebrando e peças de metal e
plástico arrebentando ainda aumentava o barulho, que era cada vez mais forte até encher
completamente a nave.
Tudo isso era superado por uma voz histérica berrando ordens.
Sandal começou a tremer...
4

A reação da nave foi imediata.


As máquinas que cercavam o jovem guerreiro passaram a funcionar de repente com
o dobro do barulho. Todas as peças de metal passaram a vibrar num ritmo próprio, cada
vez mais forte. Finalmente Sandal não compreenderia suas próprias palavras, por mais
que gritasse.
— Pela estrela ardente — cochichou Tolk. — Como a vida é esquisita. Primeiro
passa-se dias sem que aconteça absolutamente nada, e de repente as aventuras se
atropelam. Falhei no trabalho de piloto desta nave estelar.
Sandal calçou as luvas devagar e firmou a proteção dos braços. Eram gestos sem
sentido num momento destes, mas eles o ajudaram a controlar os nervos. Quando
terminou, descobriu uma porção de desconhecidos fazendo movimentos nervosos e
arrancando armas estranhas de armários embutidos. Colocaram grossos trajes prateados
enquanto conversavam em voz alta. Era um verdadeiro inferno acústico e de tantos
braços finos Sandal não viu muito bem o que estava acontecendo.
De repente voltou a sentir o mesmo choque.
Era como se tivesse sido atingido em cheio por um punho invisível. Cambaleou,
bateu ruidosamente na parede, o ombro encostou na aljava cheia pela metade e antes que
seu corpo tocasse no chão recuperou os sentidos.
Sandal piscou os olhos, ergueu-se e respirou profundamente.
— Uma transição! — disse gemendo.
De repente arregalou os olhos. Viu as telas através da fresta da porta maciça. As
estrelas tinham desaparecido. Uma luminosidade leitosa fosca produzida por várias fontes
de luz flutuava no éter. O “Enxame” desaparecera, da mesma forma que as estrelas, e
uma vez Sandal viu algo parecido com um gigantesco espelho côncavo relampejante bem
ao longe.
— Estou dentro do “Enxame”! — gritou em tom estridente.
Estava dentro do “Enxame”.
Ao mesmo tempo alguns dos desconhecidos apontaram as armas para cima e
atiraram. Uma fumaça corrosiva subia no ar. Um número cada vez maior enfiava-se nos
trajes prateados brilhantes, que se pareciam com os trajes espaciais dos terranos, com a
diferença de que eram muito mais esquisitos. Sandal olhou rapidamente em volta,
descobriu uma pequena tela de imagem embutida no metal maciço da eclusa e fechou a
grossa porta interna da eclusa. Seguiu tateando junto à parede e ligou a tela. No mesmo
instante apareceu a imagem.
Mostrava um planeta se aproximando.
A cortina acústica desapareceu completamente. A única coisa que Sandal ouvia era
o ruído abatido das máquinas que trabalhavam loucamente, além do martelar produzido
pelos seres que se encontravam na parte superior da nave e tentavam libertar-se da
situação angustiante de clausura em que se encontravam. De vez em quando um tiro saía
trovejando de uma das armas pesadas dos desconhecidos.
— Que loucura! — fungou Sandal.
Aquilo já não era uma luta; eram trechos de lendas antigas, das histórias contadas
por um bardo louco. Era que nem uma batalha dos deuses em Exota Alfa. Se Atlan
presenciasse aquilo, concordaria com ele. Mas ele se encontrava no interior do
“Enxame”, dentro dos campos defensivos de que os terranos tinham falado tantas vezes.
Sandal apertou outro botão. A imagem mudou de novo. Viu a grande ante-sala da
eclusa, onde já rugia a batalha dos grandes contra aqueles que estavam crescendo.
Era uma luta sem compaixão.
Mais uma vez a comparação com certos animais ou com robôs, que só faziam certas
coisas que eram prescritas pela natureza ou pelo programa, veio à mente de Sandal. Os
desconhecidos que tinham acordado e crescido porque o despertador fora ligado agiam
conforme mandava a regra da conservação da espécie: queriam sobreviver e toda vez que
as massas dos seres em crescimento vindos de cima os acossava, ameaçando sua vida,
eles atiravam contra os companheiros da mesma espécie.
A pequena espaçonave entrara repentinamente numa transição, atravessara os
campos defensivos do “Enxame” e estava envolta numa penumbra leitosa. Sandal não
sentia mais as dores de cabeça; já se habituara ao choque da transição. A nave corria em
alta velocidade, a toda força, com as máquinas trovejantes, como se os sistemas
automáticos soubessem o que acontecia em seu interior, seguindo em direção a um
planeta branco-azulado brilhante. Sandal apertou outro botão e a tela mostrou uma
imagem de aproximação daquele mundo.
— Vou descer num planeta... lá poderei lutar de verdade — disse satisfeito.
Um pensamento expulsava o outro; tudo que fazia parte do passado mais recente de
Sandal parecia cair no esquecimento muito depressa. Menos a resolução de vingar seus
pais e a destruição do castelo de Crater. Mas sem saber dera um grande passo para a
frente na realização de seu plano.
As máquinas rugiram.
Mais uma transição. Desta vez Sandal suportou-a muito bem. Só sentiu uma dor
ligeira na parte posterior do crânio.
A pequena superfície redonda do planeta branco-azulado transformara-se de repente
numa paisagem. Sandal já conhecia o cenário. Fora com Atlan ao planeta Rorvic e vinte
minutos depois que a paisagem tivera esse aspecto — terra, uma terra misteriosa
escondida sob nuvens brancas em movimento — fora realizado o pouso. Provavelmente
os sistemas automáticos da nave tinham determinado a rota da nave para um regresso
muito rápido e um pouso ainda mais rápido. Naturalmente os aparelhos sabiam que
problema podia haver se os seres acordassem de repente da hibernação. Mais uma vez
alguns tiros energéticos pipocaram em rápida sequência do lado de fora.
Sem dúvida o sistema automático reagira com a rapidez de uma máquina para
dirigir-se ao primeiro planeta em que a nave pudesse pousar. A duração do vôo era
decisiva para a vida de muitos desconhecidos — Sandal percebeu isso claramente depois
de refletir um pouco. Lembrou-se de como aprendera depressa — e de quanto aprendera!
Mas Rhodan e Icho Tolot, Chelifer e principalmente Atlan tinham sido seus professores.
— Hei de encontrar o chefe do “Enxame”! — gritou em tom convicto.
Seu rosto era parecido com o de um lobo faminto.
Sandal mudou de novo a imagem projetada na tela. Viu um setor do ângulo do
plano de intersecção entre a parte superior e a parte inferior da esfera. Viu jovens
guerreiros, um terrível morticínio. Os braços parecidos com cascas de árvores saíam das
aberturas que nem plantas de crescimento rápido. Alguns deles, que tinham alcançado
metade do tamanho natural, pegaram armas e fizeram o que ele tivera de fazer para
chegar à sala de comando — abriram as paredes a tiro e aproximaram-se do casco de
metal.
Estavam quase loucos de medo.
As salas da parte inferior da nave estavam cada vez mais cheias. Os braços dos
seres que ainda não estavam enfiados nos trajes prateados entrelaçavam-se que nem os
galhos espinhentos dos arbustos das savanas. De vez em quando, toda vez que um grupo
de desconhecidos grandes caía da espiral, soavam tiros e alguns recém-chegados eram
mortos. Os desconhecidos recuavam para as salas secundárias, encheram a oficina em
que Sandal se escondera e saltaram para as salas de máquinas para ocupar qualquer
espaço livre. A imagem mudou de novo. Sandal viu que o planeta de cuja superfície a
nave se aproximava num ângulo de quase noventa graus era iluminado por um sol
vermelho moribundo.
A imagem confundiu-se um pouco porque as máquinas tinham criado um campo
defensivo compacto. Alguns segundos depois de descobrir isto Sandal notou uma
agitação tremenda entre os desconhecidos grandes.
Certamente surgira um vazamento no casco da nave.
Sandal já distinguia um enorme semicírculo de terra verde, atravessado por um rio
largo cujas águas corriam preguiçosamente. Campos de nuvens assinalavam o curso do
rio. A frente da nave apareceu um platô coberto por uma nuvem chata em forma de folha
impregnada por uma fumaça negra gordurosa. Sandal viu a sombra enorme nas rochas, na
areia e nas raras áreas verdes.
A nave freou fortemente e parte da aceleração negativa arremessou Sandal através
da eclusa, contra a parede oposta. Ele teve bastante presença de espírito para aparar o
impacto com os braços.
— Luta! — disse. — Um pouso de emergência! Mato os assassinos. Todos eles.
Três acontecimentos verificavam-se ao mesmo tempo.
— A nave... terá um pouso violento! — disse Sandal em voz alta.
De repente deu-se conta de que a hora da luta estava cada vez mais próxima. Lutaria
tão bem como seus antepassados, seria mais rápido e mortal que Sandal, seu avô que
tanto amava. E a luta seria travada à luz do dia, uma circunstância que exigiria o máximo
de inteligência e rapidez dos participantes. Não tinha a menor dúvida. Nessa área era
mestre, capaz de determinar o curso que tomaria a luta e o número de vítimas.
A nave...
Ela passava junto à cratera fumegante de um vulcão, rompeu as nuvens baixas de
cinza e fumaça vulcânica. O solo aproximava-se rapidamente.
Os seres em crescimento...
Estavam furiosos, desesperados, tinham entrado em pânico. Destruíam a nave por
dentro para encontrar lugar. Cortavam as paredes e o casco para poder crescer livremente.
A atmosfera já era bastante densa para que não morressem no vácuo. Em todos os lugares
do casco apareciam cortes, buracos e frestas. Até parecia que alguém inflava a nave à
força, que em seu interior fermentava uma massa fantástica formada por inúmeras células
pequenas, cuja expansão acabaria explodindo a nave.
Os desconhecidos grandes...
Viam que não escapariam à morte se os seres em crescimento forçassem passagem
de cima. Parecia que até então a grossa camada que separava as duas metades da nave
resistira às tentativas de cortá-la para criar passagens para baixo. Havia um total de cinco
pontos de ligação entre a parte superior e a parte inferior da nave. Por essas cinco eclusas,
câmaras ou portinholas comprimiam-se criaturas nas mais diversas fases de crescimento.
Por enquanto não houvera nenhum ataque à eclusa, e Sandal sabia perfeitamente que
naquele momento corria perigo de morrer sufocado, se não fosse morto antes a tiros.
Neste momento ouviu-se uma salva.
Sandal olhou para a tela e chegou a ter a sensação física da superfície do planeta
precipitando-se em direção à nave. Apontou a arma energética por um instante para o teto
da câmara da eclusa relativamente pequena, gravou na memória a posição da alavanca, e
de repente uma ideia lhe passou pela cabeça. Apertou o único botão que ficava ao lado da
porta da eclusa, na altura do ombro, e puxou as duas alavancas compridas para baixo.
Depois sentou num canto, enfiou a cabeça entre os joelhos e apertou as pernas contra o
corpo.
Alguns segundos se passaram.
Para ele eram uma pequena eternidade, pois esperava um terrível choque, um golpe
capaz de esmagar tudo. Esperou assustado, impaciente, com a cabeça cheia de
pensamentos de que mais tarde não se lembraria.
Enquanto isso:
Novos grupos de desconhecidos armados desciam pelas cinco escotilhas, abriam
fogo contra os que esperavam embaixo e encheram os recintos inferiores até o teto. Na
parte superior da nave já não havia mais lugar e em toda parte surgiam aberturas, frestas e
escotilhas redondas se abriam. Os desconhecidos enfiavam a cabeça pelas aberturas,
cresciam ininterruptamente, alguns perderam o apoio e caíram da nave. Uma série de
gritos lancinantes, misturada com o uivo e chiado do vento provocado pelo deslocamento
da nave, ressoava no ouvido. Ainda faltavam quinhentos metros para a nave tocar o solo.
Os desconhecidos esmagavam-se uns aos outros. Uma luta terrível junto às cinco
passagens era travada há algum tempo, porque os desconhecidos tinham de passar pela
maior parte das portas e eclusas antes de alcançar o tamanho natural. Salas feitas para
seres de treze centímetros de altura não podiam abrigar seres cujo tamanho era vinte
vezes maior, tanto em comprimento como em largura.
Pelos cálculos de Sandal, mil e quinhentos desconhecidos no máximo tinham
chegado à parte inferior da nave.
As paredes da nave arrebentaram.
Centenas dos seres desconhecidos foram lançados fora da nave, foram atingidos
pelo torvelinho depois de atravessar o campo defensivo e caíram soltando gritos
estridentes.
A maior parte morreu no chão, na lava quente, ou no ar sufocante dos vulcões,
depois que atingiram o tamanho natural.
Depois a nave espatifou-se no pouso.
5

O disco inferior da nave tocou o chão. No mesmo instante ela saltou vinte metros
para o alto, enquanto o campo defensivo entrou em colapso. Uma nuvem gigantesca de
cor cinza levantou-se e a porta da escotilha saiu voando com um chiado. O ruído
produzido pelas dobradiças sendo arrancadas do aço maciço do quadro penetrou no
ouvido de Sandal com a força de uma espada.
A nave voltou a bater no chão e abriu um buraco de duzentos metros de
comprimento e dezenove de profundidade. Enquanto a nave deslizava pelo chão, a eclusa
encheu-se de areia e poeira. Sandal quase morreu sufocado.
Quando a nave tombou de lado, a areia foi atirada fora da eclusa, juntamente com
Sandal. Ele foi parar numa nuvem gigantesca, dentro de uma espécie de duna de areia
vulcânica muito fina.
Foi sua salvação.
Enquanto a nave tombava, centenas de desconhecidos eram atirados de todas as
aberturas naturais e artificiais e espalhados para os lados. Máquinas e aparelhos
desprenderam-se dos suportes e romperam as paredes da nave.
Em toda parte ouvia-se o estrondo de pequenas explosões, para onde quer que se
olhasse viam-se línguas de fogo e relâmpagos matraqueando no meio da penumbra.
Partes importantes da nave foram destruídas.
A nave ergueu-se, girou em torno do eixo polar e saiu rolando pela planície que
nem uma gigantesca roda. Enquanto atravessava em alta velocidade os regatos de lava e
abria um rastro profundo na rocha incandescente, rolando no pó e na cinza, levantou uma
nuvem tremenda de pó e sujeira. As nuvens baixas romperam-se sob o efeito da sucção
causada pela rarefação do ar.
A nave continuou rolando. Depois que tinha percorrido quinhentos metros só
balançava e acabou caindo sobre a concha superior, deu mais alguns balanços e ficou
imóvel. Mais uma nuvem de lava saiu trovejando das profundezas de um vulcão esférico.
Um raio enorme atingiu o chão em algum lugar. Sandal levantou. Tremia por todo o
corpo. Não soltara o arco e agora, que estava parado, trêmulo, a cinza foi escorrendo das
aljavas. Sandal olhou para a direita, onde rugia o vulcão. Nunca vira uma montanha
cuspindo fogo, espalhando uma nuvem negra em volta dele e arremessando fragmentos
de rocha incandescentes. Olhou para a esquerda.
Viu a uns três quilômetros de distância uma faixa estreita de verde, muitas rochas e
montanhas, e uma massa de torres marcadas pelas intempéries e pontes construídas de
pedras negras, algumas das quais brilhavam sob alguns raios de sol perdidos. Os raios de
sol atravessavam a camada baixa de nuvens negras. Um cheiro desagradável e
estonteante enchia o ar. Sandal saiu correndo. Para a esquerda. As solas de suas botas
leves levantavam nuvens negras de pó e cinza. Voltando os olhos para a direita, via o
metal claro da nave-disco destacando-se contra o fundo das montanhas entrecortadas.
Sandal estava livre.
Os desconhecidos deviam ter morrido na destruição da nave — tomara que fossem
todos. Sandal continuou correndo que nem uma máquina. Quanto mais se afastava da
montanha trovejante que parecia fazer parte de um cenário de fantasmas e irradiava um
calor tremendo, melhor podia respirar e mais fácil se tomava a corrida. Sandal corria...
corria... Correu durante quinze minutos.
Começou a sentir o peso da arma pesada, das três aljavas e dos outros
equipamentos. Mas a faixa verde, que prometia água fresca e possivelmente alguma caça,
estava cada vez mais perto, e isto serviu de estímulo a Sandal. O calor diminuía. Sandal
nem se lembrou de que já poderia estar morto... mas como o planeta possuía uma camada
atmosférica respirável, não precisava pensar nisso.
— O que encontrarei lá? — perguntou-se.
Corria sem parar e as primeiras rochas encobriram a concha dupla, de cujas paredes
saíam desconhecidos em trajes de proteção e, sem estes trajes, desciam junto ao casco e
se ajudavam a descer. Eram centenas, talvez mais, que tinham sobrevivido ao pouso
forçado. Sandal não viu nada, sentia-se bem na segurança ilusória. Finalmente alcançou
os primeiros talos de capim chamuscados na beirada das massas de cinza incandescente.
Sandal carregara tudo que possuía.
A arma energética e a munição, o arco com o registro de sua estirpe, o estranho
rádio que há dias carregava no braço direito. Até os dois cubos de alimentos concentrados
na bainha da roupa, sem falar das ampolas de diversos medicamentos.
Mas não era nisto que ele estava pensando quando descia correndo uma encosta
suave e finalmente saiu da área perigosa da sombra das nuvens negras, de onde saíam
relâmpagos sem parar. Dali a dez minutos chegou a uma pequena nascente, cercada de
todos os lados por uma vegetação exuberante.
Numa grande pedra achatada via-se um grande pássaro morto com as penas das asas
queimadas.
Sandal mergulhou a cabeça na água fresca e cristalina.
Estava salvo.
6

Por alguns longos instantes pensou que estava em segurança. Os estrondos de dois
grandes vulcões que fechavam o planalto ao norte ficaram mais fracos. Só de vez em
quando algumas gotículas de lava caíam nos juncos e chiavam ao tocar a água. Sandal
fechou os olhos, respirou profundamente, abriu a camisa e lavou-se ligeiramente depois
de tirar as luvas. Fazia bastante calor, mais de trinta e cinco graus no sol. Atrás dele ficou
a sombra gigantesca, a lava em ebulição transbordando, o cheiro desagradável de
enxofre. Sandal sentia-se muito bem.
— Mas onde fui parar no pouso de emergência? — perguntou-se.
Ficou imaginando durante alguns segundos os desconhecidos saindo da nave aos
borbotões. Talvez tivessem descoberto sua pista: os ossos e o acampamento num
esconderijo. Mas ele estava na posse de um planeta inteiro dentro do “Enxame”, onde
podia escapar a qualquer investigação. Nisto era mestre.
Sandal levantou devagar e olhou em volta.
— Encontro-me numa selva colorida! — constatou.
O jovem guerreiro, que estava prendendo a faixa de couro branco na testa e
calçando as luvas, estava no limite sul de um platô. Olhando para o norte via uma
planície cinza-amarelenta sem vida, da qual sobressaíam algumas colunas de lava batidas
pelas intempéries das quais saíam vapores venenosos. O vento soprava do leste e os dois
cogumelos de fumaça que começavam a fundir-se transformaram-se num triângulo
alongado.
Sandal viu sua própria pista, que levava do lugar em que a nave tocara o chão pela
primeira vez até onde ele estava, mas só enxergava algumas centenas de metros dos
poucos quilômetros. Passou a olhar para o sul.
Para esse lado descia uma encosta leve com uma vegetação rala, com cerca de
seiscentos metros de extensão. Ao lado da encosta erguiam-se rochas sobre as quais
corria a água da pequena nascente cristalina, formando um véu líquido fino e longo.
Mais adiante, no primeiro platô em nível mais baixo, crescia uma floresta raquítica,
que parecia estar cercada por inúmeros pântanos. Algumas fontes que borbotavam
irregularmente, cercadas por depósitos multicores que pareciam ter-se formado de água
endurecida, interrompiam o fundo verde.
Em seguida vinha um arco em meia-luz de uma pequena savana, cercada de rochas
de ambos os lados, de enormes encostas de lavas que brilhavam à luz do sol em inúmeras
cores escuras. A fonte, reforçada por inúmeros afluentes, transformou-se num regato
sinuoso que atravessou a savana. Sandal imaginava mais do que podia ver. Mas crescera
na paisagem natural de Exota e conhecia todos os acidentes do terreno — com exceção
dos numerosos gêiseres e das colunas de água que esguichavam roncando em um lugar
ou outro. Sandal continuou a orientar-se.
Mais um cinturão de mata, entremeado de rochas calcárias brancas.
A distância que o separava do cinturão não ultrapassava quinhentos metros.
Seguia-se um gigantesco desfiladeiro cheio de curvas, profundamente recortado na
rocha. Em muitos lugares de sua borda Sandal viu mais uma vez as formações brancas,
vermelhas e amarelo penetrantes que pareciam ser de uma massa viscosa escorrendo. No
lugar em que começavam os córregos largos em terraços viam-se arcos brancos pontudos
de água nebulizada subindo ao ar, enchendo o ambiente de chiados e burburinhos. O
fundo do desfiladeiro — Sandal viu-o num lugar — era plano e era de rocha moída fina,
entremeada de fragmentos de rocha pontudos.
Na saída do desfiladeiro, através do qual parecia serpentear o rio, havia um cinturão
fechado de mata verde. Além do mato, a uns quinze quilômetros do lugar em que estava
Sandal, erguia-se uma montanha esquisita. Parecia a reunião de muitas centenas de
agulhas de várias alturas e espessuras fortemente comprimidas nas bases.
Finalmente Sandal viu o destino.
A cúpula.
Pouco além das rochas em forma de agulha erguia-se uma cúpula imensa, cuja face
superior brilhante se parecia um pouco com o campo defensivo que envolvia a Good
Hope. Era lá que Sandal queria chegar, tinha de chegar, pois só lá teria oportunidade de
observar seus inimigos.
— Vamos! — disse a si mesmo. — Vou para lá.
Sandal olhou para o sol. Se não estava enganado e o dia nesse lugar tivesse a
duração que ele acreditava, poderia chegar em dois dias e ainda abater alguns animais no
caminho. O mingau pegajoso que tirara das esferas da nave não era o alimento apropriado
para um jovem guerreiro...
Uma bola de fogo amarela detonou perto dele. Sandal teve bastante presença de
espírito para deixar-se cair.
Esquecera os desconhecidos.
Reagiu com uma rapidez espantosa. Atirou-se para trás e desapareceu entre os
juncos e pequenas rochas. O fogo das detonações espalhou-se com uma rapidez
tremenda, desenvolvendo muito calor e levantando uma fumaça cinza-azulada.
Os desconhecidos!
Quando voltou a levantar, com uma flecha no arco, Sandal viu uma longa coluna de
desconhecidos enfiados em seus trajes típicos cor de couro, que se aproximavam em sua
pista. Ao mesmo tempo descobriu no ar trêmulo de calor mais dois que voavam bem alto
que nem pássaros. Um deles vinha bem em sua direção, segurando uma arma de cano
longo entre as mãos.
— Vou matá-lo! — resmungou Sandal, puxou a corda do arco para junto da orelha
e fez pontaria com muito cuidado.
A flecha atravessou o ar uivando e quando atingiu o alvo o guerreiro já corria em
grandes saltos em ziguezague pela longa encosta nua. Corria que nem uma gazela, com
os pés ligeiros e seguros. Ouviu-se um grito estridente e um corpo bateu pesadamente no
chão. No mesmo instante viram-se novas explosões na areia perto de Sandal. O outro
desconhecido voador atirava sem parar. Sandal passou a correr ainda mais depressa.
Tinha que desaparecer embaixo do véu de água caindo ou esconder-se na mata rala.
Quando chegou à ponte de pedra — uma formação de pedra-sabão que tremia
ininterruptamente e fazia chover lasquinhas de pedra — Sandal parou ofegante e
acompanhou o caminho das manchas incandescentes em ebulição. Havia sete
desconhecidos voando em direção ao seu duvidoso esconderijo.
Eles o cercariam e matariam.
— E os outros estão lá em cima, perto da fonte! — observou desesperado.
Lá viu, como há três semanas, uma quantidade muito grande de desconhecidos —
deviam ser centenas! Será que eram estranhos neste planeta dentro do “Enxame” como
ele? Ou estavam em seu ambiente? Correndo não podiam alcançá-lo — ele era mais
rápido.
Mas os seres que usavam trajes voadores... começavam a tornar-se perigosos.
Sandal pôs a mão por cima do ombro e tirou uma flecha da aljava cheia pela
metade. Na nave dividira todas as flechas por três aljavas, para ter maior liberdade de
movimentos. Um grande amigo esse Icho Tolot! Graças ao presente que recebera dele
possuía projéteis em abundância. Sandal encostou-se com mais força na pedra vibrante,
fez pontaria e soltou a corda. Uma flecha percorreu duzentos metros uivando, descreveu
uma ligeira parábola e atingiu um dos seres voadores de cima, na cabeça. Mais uma
flecha saiu zumbindo, antes que a primeira atingisse o alvo. Os outros cinco inimigos
formaram uma fileira e pousaram além da barreira de rocha, mas Sandal viu outro
enxame sobre a extremidade do platô, e este logo se precipitaria sobre ele.
— Que esconderijo miserável, pela grande estrela! — fungou e saiu correndo de
novo. Tinha de chegar à mata antes que os outros desconhecidos voadores o alcançassem.
— Mais rápido!
Sandal corria com os braços formando um ângulo, passava em ziguezague entre
rochas e arbustos raquíticos, chegou perto de uma gigantesca árvore seca. Parecia uma
peça de mármore trabalhada. Sandal mergulhou na sombra de um paredão. As primeiras
árvores à sua frente foram-se tornando mais nítidas, cada vez maiores. O único ruído que
enchia o ar era o trovejar distante e o chiado dos muitos gêiseres.
— Até que enfim! — disse dali a alguns minutos. — Estou em segurança.
Alcançara a mata. Um cheiro fresco de plantas e água misturou-se ao odor de
enxofre. Quando se virou sob a proteção do primeiro tronco e examinou o ar azul acima
dele, Sandal viu uma fileira de mais de cento e cinquenta instaladores do “Enxame”
aproximando-se fora do alcance de suas flechas, ou melhor, do limite entre o fim da
encosta e o início da mata.
— Eles me perseguirão até a cúpula! — pensou Sandal em voz alta e desapareceu
entre os troncos.
Quanto mais profundamente penetrava na mata, mais juntas ficavam as árvores e
maior era a proteção.
Sandal fez uma curva e voltou para o leste. Depois de ter percorrido cem metros
sentiu um cheiro penetrante. No mesmo instante ouviu um forte chiado. Um véu de água
pulverizada cobriu-o da frente — era um gêiser irrompendo e atirando a água a cinquenta
metros de altura. Sandal tratou de proteger-se. Dali a mais de dez minutos chegou a um
pequeno pântano, do qual subiam bolhas negras pestilentas. O ar estava cheio de insetos
voadores. Sandal parou, passou cuidadosamente entre as árvores e vasculhou o céu.
Protegeu os olhos contra a luz avermelhada do sol que os ofuscava e olhou em
volta. Os desconhecidos procuravam-no sem parar — provavelmente tinham descoberto
sua pista na nave e sabiam que era indiretamente culpado por sua queda. No momento
aqueles que o perseguiam na superfície não representavam nenhum perigo.
— Mas os voadores... — disse em voz baixa.
Formavam uma fileira cujas extremidades voavam bem mais alto que o centro.
Vasculhavam sistematicamente a mata. Sandal viu que de vez em quando um dos
desconhecidos voadores se deixava cair, desaparecendo entre os galhos que cediam ou
quebravam e soltando gritos estridentes que nem uma ave de rapina.
Os desconhecidos, que já eram cerca de duzentos, tinham tido tempo para tirar
trajes voadores dos depósitos que ficavam na parte inferior da nave. Estes trajes em
muitos casos tinham sido sua salvação. Agora estavam atrás de Sandal. Como poderia
escapar?
Se arriscasse um ataque direto ou saísse do esconderijo, teria poucas chances. Os
inimigos possuíam armas energéticas e eram em número maior. Parecia que os trajes
voadores não estavam equipados com aparelhos capazes de detectar seres vivos, e por
isso os perseguidores tinham de confiar nos olhos.
Se matasse um deles, Sandal revelaria seu esconderijo.
Mas se lhes desse muito tempo, acabaria sendo descoberto de qualquer maneira.
Vinham do oeste e vasculhavam a faixa de mata estreita em direção ao leste.
— Preciso fugir mais para o sul, aí minhas chances aumentam — disse.
Se conseguisse chegar atrás das linhas dos que o procuravam, estaria fora de perigo.
Sandal esperou, escolheu o caminho com os olhos e saiu correndo devagar. Correu para o
sul, para um destino que ficava à esquerda do sol.
— Mais depressa... com menos barulho! — cochichou. Passaram-se alguns minutos.
O jovem guerreiro fugiu obliquamente em relação à linha dos atacantes, vivia se
encolhendo embaixo de arbustos, permanecia imóvel entre troncos de árvores e segurava
firmemente o cabo do arco, além de três flechas. A fome aumentou, mas no momento isto
não o preocupava. Finalmente Sandal parou.
Os caçadores estavam bem em cima dele.
Sandal estava parado na penumbra, entre folhas que balançavam devagar e galhos
pequenos. Não fez nenhum movimento e prendeu a respiração. A primeira sombra
sobrevoou-o. Ouviram-se alguns gritos, depois veio a segunda sombra. Sandal
permaneceu imóvel; tinha certeza de que não fora visto.
Dali a alguns minutos saiu correndo.
Correu em ziguezague, depressa e quase sem fazer barulho por cima de grossos
líquenes e através do capim alto balançante e da luz do sol. Quando ouviu o grito de um
perseguidor vindo de trás virou-se abruptamente, mudou de direção de repente e viu-se
na beira de uma gigantesca concha de rocha cheia de bolhas que brilhava em todas as
cores. No centro do chafariz natural, no ponto mais alto, borbulhava um grosso jato de
água e descia sussurrando por todos os lados.
— Água...
Sandal escorregou, fez movimentos de remador com os braços e saiu tropeçando da
sombra dos grandes arbustos.
Descobriram-se ao mesmo tempo — os dois perseguidores olharam para ele, e ele
os viu apontando as armas em sua direção.
Os desconhecidos estavam de pé numa peça de calcário em forma de coluna, com a
ponta arredondada, em cujos flancos descia a água.
Sandal deu um salto para a esquerda, enrolou-se embaixo de um arbusto e levantou
de um salto. Quando parou dois metros mato adentro, uma explosão esfacelava o arbusto
embaixo do qual se abrigara. Num movimento instintivo colocou uma flecha no arco, fez
pontaria e atirou uma flecha através do véu de água, acertando o olho do primeiro
perseguidor. O desconhecido tombou devagar e caiu na água. Sandal não chegou a ver se
depois de morto voltara a encolher. Colocou mais uma flecha.
O outro desconhecido estava deitado na coluna, Sandal só via a boca da arma.
Sandal olhou em volta. Parecia que ninguém percebera o incidente. Sandal
continuou no esconderijo, deslocou-se em semicírculo em tomo do chafariz e manteve a
seta apontada para o alvo enquanto se aproximava cuidadosamente.
— É agora! — fungou ofegante.
O longo projétil de plástico foi impelido pela corda, percorreu cem metros uivando
e atingiu o alvo. A força brutal levantou ligeiramente o corpo do desconhecido que
cambaleou e rolou devagar da rocha. O jovem guerreiro percorreu em vinte saltos
gigantescos as formas arredondadas das excrescências de rocha cristalina, atravessou a
água rasa e morna e passou pela fonte central. Depois disso voltou a desaparecer na mata.
— Isso está resolvido, amigo! — exclamou em tom zangado. Corria mais devagar
para poupar as forças e seguiu por uma trilha de animais que atravessava a mata em
curvas fechadas. Dentro de pouco tempo chegaria à planície em forma de meia lua, à
savana seca, que só apresentava um pouco de verde ao longo do córrego. Verde
significava vegetação, e esta era a melhor proteção para ele. Devia tentar atravessar o
deserto de noite.
Livrara-se definitivamente dos pedestres pertencentes ao “Enxame”.
Mas ainda havia cerca de duzentos voadores à sua procura.
Quando alcançou o limite da floresta estava escurecendo. Sandal entrou na savana
no lugar em que o córrego estreito cercado por plantas não muito altas saía da mata. Não
se via nenhum perseguidor por perto. O que aconteceria em seguida? Que surpresas lhe
estariam reservadas nas próximas horas?
Sandal encostou-se a um tronco robusto e esperou.
Estava faminto e exausto. Olhou bem para o sul e viu a silhueta das rochas pontudas
que ficavam à frente da cúpula gigantesca, cujos contornos abaulados não via muito bem;
o sol refletia-se na superfície arredondada e o resto confundia-se com o céu negro-
azulado.
— Talvez possa descansar algumas horas — refletiu Sandal em voz alta.
Ele tinha duas alternativas.
Podia tentar afastar-se o mais possível dos seus perseguidores. Para isso seria
melhor não parar. Ou então esperava para atravessar a savana correndo, protegido pela
escuridão. A última alternativa parecia melhor, pois nesse caso poderia ver melhor os
desconhecidos, que em seus trajes prateados representavam alvos ideais. Quanto a
Sandal, ele se confundiria com a noite, que era amiga do caçador.
— Vou esperar! — decidiu.
***
Todos os músculos doíam. Sandal bebera a água sem sentir-se mal. Era um bom
sinal — também poderia comer a carne dos animais. Que animais? Por enquanto não vira
muitos que fossem maiores que sua mão. Sandal reprimiu o sentimento de fome, passou
água pelo rosto para refrescar-se e tirou um pequeno tubo de um dos numerosos bolsos da
jaqueta. Percebeu que durante o dia o sol e o calor dos vulcões tinham queimado seu
rosto.
— A montanha trovejante... não a ouço mais! — disse de repente em tom de
espanto.
O vulcão silenciara há alguns segundos. Não se sentia mais o cheiro de enxofre.
Sandal levantou, colocou as três aljavas nas costas e, enquanto escutava, calçou as luvas.
A única coisa que ouviu foram os ruídos fracos da mata, o chiado do vento e de vez
em quando o burburinho da água saída das profundezas.
Depois, quando estava para sair — um grito estridente.
Um desconhecido!
Sandal viu a silhueta destacando-se contra o céu escuro. Sua reação foi instantânea.
Pegou uma flecha e entesou o arco. Esperou e ficou de olho no caçador que se
aproximava.
Sandal só lamentava não poder recuperar as flechas; estavam perdidas. Só se
exporia sem necessidade se procurasse os cadáveres para arrancar as flechas.
Depois... cento e cinquenta metros... cem metros...
Sandal abriu os dedos. A flecha atravessou a escuridão uivando.
O perseguidor deixou cair a arma, abriu os oito braços e caiu girando o corpo.
Sandal ouviu o estalo dos galhos no meio do silêncio. Não viu mais nenhum perseguidor.
Voltou a olhar para a silhueta da montanha formada por rochas em ponta e saiu correndo
devagar.
Tinha cerca de dois quilômetros pela frente. O caminho passava junto ao córrego
que descrevia curvas e círculos e formava meandros. Em alguns lugares podia cortar
caminho atravessando o córrego, mas em outros teria de seguir a margem do córrego.
Sandal corria devagar para não forçar a respiração e olhava para trás a cada cinquenta
passos. Por enquanto não estava sendo seguido, mas isso podia mudar. Os trajes voadores
eram muito mais rápidos que ele. Precisava de um cavalo ou de um Mnesadocer,
pensou... mas não viu nem uma coisa nem outra.
As horas foram passando.
Sandal fez três pausas de trinta minutos. Tentou uma vez entrar em contato com
Atlan pelo rádio, mas não conseguiu nem mesmo usando o hiperrádio.
Quando a primeira claridade do alvorecer apareceu no horizonte, Sandal já tinha
chegado à entrada dos desfiladeiros. Dali em diante o terreno descia suavemente. Quando
os contornos dos objetos ficaram mais nítidos, viu as numerosas cavernas abertas pela
ação da água, que começavam com muitas formações em bolha no paredão da rocha e
seguiam para o sul. O córrego transformara-se num rio estreito, com uma correnteza
forte, que parecia receber afluentes subterrâneos.
— Preciso esconder-me e dormir — disse Sandal.
Estava do lado direito, isto é, no oeste do desfiladeiro na rocha e procurava um
esconderijo. Colocou o arco sobre o ombro, pegou a arma pesada de Atlan, e regulou-a
para dar um tiro de vez. Depois disso atravessou o labirinto de cavernas, à procura de um
lugar para dormir. Finalmente encontrou um — no crepúsculo do amanhecer.
Era um nicho profundo, em lugar alto, no meio da rocha morna.
Era protegido por colunas desgastadas pela água, na qual se viam camadas rochosas
de várias cores. A luz do sol atingiria este lugar. Sandal preparou o lugar em que ia
dormir. Finalmente, quando os primeiros raios do sol atingiram o chão da caverna, o
jovem bárbaro adormeceu.
Seus perseguidores continuaram a caçada.
Procuravam sua pista e às vezes a encontravam. Puderam seguir seu caminho com
razoável precisão. Mas quando os cento e noventa caçadores chegaram à região rochosa,
não descobriram mais nenhuma pista.
Neste momento foi disparado o primeiro tiro.
7

Há milhares de anos o platô no qual os vulcões tinham entrado em atividade era


muito mais baixo. Nele crescia uma selva gigantesca, as chuvas eram frequentes e a
pequena nascente encontrada por Sandal fora um rio enorme. A queda era cada vez
menor, primeiro carregara pedras para baixo numa largura de quase cinquenta metros,
criando a encosta inclinada. Mas um dia a crosta do planeta sofreu uma ruptura —
provavelmente por causa dos abalos que o astro sofreu ao ser arrancado da órbita — e os
vulcões entraram em atividade. Sua primeira vítima foi a selva, mas somente em dois
lugares. As árvores foram morrendo durante séculos, as que ocuparam seu lugar eram
mais raquíticas, e a vazão da nascente diminuiu rapidamente.
Na mesma época o rio, que corria numa grande extensão no subsolo, através das
cavernas de pedra-sabão, escavara o gigantesco cânion com vinte quilômetros de
comprimento e perto de trezentos metros de profundidade, e criara um enorme labirinto
de cavernas, cujas partes estavam quase todas interligadas. Mas agora o rio caudaloso não
passava de um córrego, que descia em curvas entre as rochas do fundo do cânion.
A única coisa que restava do esplendor do rio primitivo era um lago natural de dez
quilômetros de comprimento, cuja superfície também apresentava um sistema de
proporções espantosas.
Tahonka No sabia tudo isso.
Também sabia que não podia haver melhor esconderijo para ele que o labirinto,
pelo menos nessa região do planeta Vetrahoon. Quando viu o primeiro verdugo temível
aproximar-se de seu esconderijo atirou imediatamente e matou-o. Isso aconteceu quando
o sol estava três palmos acima da borda do cânion, derramando seu calor vermelho sobre
Vetrahoon.
Depois apareceram outros verdugos. Quase duzentos, contou Tahonka No.
— Os verdugos temíveis... eles ou eu! — disse.
Recuou e fez pontaria com muito cuidado.
***
Um eco mil vezes repetido ressoou pelo conjunto de cavernas.
O eco enfraquecia, aumentava, foi quebrado centenas de vezes. Sandal acordou
imediatamente. Possuía a capacidade do jovem selvagem, de estar em plena forma assim
que acorda. Não levou mais de dez segundos para colocar as três aljavas nas costas, pegar
o arco e guardar a arma energética destravada no bolso da jaqueta. Saiu do nicho. O
segundo tiro deixou-o alarmado.
Será que o perseguiam? Mas por que estavam atirando?
Sandal atravessou a luz do sol e as poeiras e insetos dançantes que enchiam a
grande caverna e foi atingido pela terceira vez por uma onda acústica. Como não via
impactos ou bolas de fogo perto dele, duvidou de que o tivessem descoberto e estivessem
atirando nele.
— Será que estão lutando entre si? — perguntou-se e saiu correndo para a luz do
dia.
Saiu de trás da proteção do paredão, olhou em volta e viu obliquamente em cima
dele e à sua frente um semicírculo formado pelos forasteiros voadores. Dos canos de suas
armas saía fogo. Os forasteiros atiravam num lugar que ficava a cerca de mil e quinhentos
metros de onde estava Sandal.
— Estão atirando em outro forasteiro. Quem luta contra eles deve ser meu amigo!
— disse Sandal.
O dia começava com a luta, não com a caça. Sandal não quisera isso, mas aceitou o
desafio.
Saiu correndo a toda.
Corria com metade do corpo na luz e metade na sombra de um paredão. As solas de
suas botas pisavam em areia e pedrinhas depositadas na faixa de rocha. Sandal foi-se
aproximando dos perseguidores suspensos no ar, mas ainda não conseguiu descobrir o
alvo em que atiravam. Parou ao ver um grupo de três forasteiros perto dele. Eram
ofuscados pelo sol. Três flechas saíram do arco uma após a outra, e os três forasteiros
desceram balançando em grandes espirais. Um deles ficou deitado na água do córrego.
Sandal continuou correndo — para o sul. A faixa de rocha sobre a qual corria terminou,
Sandal voltou e desapareceu numa passagem lateral a cerca de dez metros dali. Ouviu
mais tiros e seus ecos. Correu cerca de cem metros pelas cavernas, até que uma caverna
secundária foi dar novamente na estreita faixa de rocha. Sandal encontrava-se quase na
frente do centro do semicírculo formado pelos estrangeiros e teve uma surpresa. Viu três
balas detonarem com uma violência que doía nos ouvidos, matando três caçadores.
— Um forasteiro atira com uma arma terrível — comentou. — É um futuro amigo
lutando contra o inimigo que tem a vantagem da superioridade numérica.
Sandal recuou, colocou uma flecha e fez pontaria.
Ninguém o viu; reinava um caos horrível. Os forasteiros que tinham vindo na nave
retiraram-se, desceram no fundo do vale e esconderam-se atrás das pedras. Três... quatro
deles vieram bem na direção de Sandal. Morreram antes que pudessem atingi-lo. Cada
flecha disparada era uma flecha perdida, mas todas acertavam o alvo. Mais uma vez uma
explosão despedaçou um forasteiro. O combatente solitário continuou invisível. Era um
atirador de primeira. As rochas refletiam o eco das explosões.
— Vou ajudá-lo — decidiu Sandal.
Voltou a sair da sombra, com uma flecha no arco, mas sem entesar a corda. O
espaço entre as rochas estava vazio, mas havia cento e cinquenta forasteiros agachados
nos abrigos. De vez em quando atiravam para a direita — mas o desconhecido defendeu-
se matando muitos deles. Reduzia a pó e derretia a rocha atrás da qual se tinham
abrigado.
Sandal olhou para baixo.
Havia uma dúzia de caçadores agachados atrás de uma rocha saliente, à frente da
qual se estendia uma faixa larga de pedra colorida ondulada. Sandal apoiou o pé direito,
fez pontaria e atirou. A segunda flecha... a terceira... a nona. Os forasteiros morreram em
silêncio.
— Tenho de chegar perto dele! Lutarei a seu lado — resmungou Sandal e saiu
correndo pela faixa rochosa, desviou-se de uma ponta saliente e quase despencou no
abismo.
Dois forasteiros subiram de trás do abrigo em seus trajes voadores, apoiados pelo
fogo de cerca de cinquenta companheiros. Voaram em ziguezague rente ao solo. O
combatente solitário não respondeu ao fogo; quase não teria nenhuma chance. Parecia
que fugira ou se escondera.
Finalmente, depois que as duas flechas de Sandal acertaram o alvo, ele sabia onde
estava o forasteiro. Recolhera-se atrás de uma rocha saliente, subira mais e voltara a sair
em outro lugar. No momento estava muito bem protegido; somente uma fresta estreita na
rocha deixava ver sua mão comprida e ossuda e uma arma negra pequena que disparava
sem parar.
Mais uma saraivada de explosões atingiu a rocha perto da fresta, transformando-a
numa massa líquida incandescente.
Sandal desapareceu no labirinto na rocha, depois de ter acertado mais dois
forasteiros. De repente descobriu uma pista, seguiu-a um pedaço e viu como o forasteiro
tinha fugido — os rastros subiam uma superfície inclinada antes de desaparecer.
Sandal parou.
— Forasteiro... quero ajudá-lo — gritou.
Depois lembrou-se do objeto estranho que trouxera da nave. No mesmo instante pôs
a mão no braço direito e apertou um pequeno botão. Respirou profundamente e voltou a
gritar:
— Forasteiro...!
Um rosto apareceu por um instante no paredão de rocha à sua frente, depois uma
mão ossuda que segurava uma arma. Sandal viu o que ia acontecer e reagiu
imediatamente. Antes que o desconhecido apertasse o gatilho, Sandal desapareceu atrás
de uma grossa camada de rocha. Uma bola de fogo de quase dois metros de diâmetro
detonou perto dele arrancando uma saraivada de lascas de pedra e atirando Sandal na
areia a três metros de distância.
Um cheiro estonteante de produtos químicos encheu o ar.
— Sou seu amigo — gritou enquanto estava deitado de costas, engolindo areia.
Bolas de fogo ofuscantes voltaram a detonar à sua frente e atrás dele. Sandal saiu
rolando e parou atrás de uma calha ondulada. Quando virou a cabeça, viu que o forasteiro
estava perdido.
Os caçadores atacavam de dentro da rocha do desfiladeiro. Quatro deles apareceram
no lugar em que Sandal entrara no trecho da caverna em que se encontravam. Atiraram
sem aviso. O forasteiro voltou a desaparecer. Sandal virou-se abruptamente e pôs a mão
na arma de Atlan. O trovejar das explosões ressoava na caverna e os forasteiros
morreram.
Sandal gritou pela terceira vez:
— Forasteiro... vim para ajudá-lo!
Para sua surpresa uma voz vinda de cima de seu ombro disse em voz alta e num tom
contrariado palavras numa língua desconhecida.
Sandal levantou bem devagar, sacudiu-se e olhou para os dois lados. O forasteiro
tinha desaparecido e os cadáveres dos caçadores encolhiam aos poucos.
Depois disso uma voz gritou alguma coisa do esconderijo.
O aparelho que Sandal trazia no braço disse em sua língua:
— ...não... amigo... venha!
Sandal guardou a arma, segurou o arco e subiu o plano inclinado. Saltou para baixo
e ficou de pé ao lado do forasteiro. Descobriu outra fresta da rocha, chegou perto dela e
olhou para o outro lado.
Os forasteiros estavam atacando.
O homem que estava ao lado de Sandal atirando pela fresta disse alguma coisa em
tom apressado. O aparelho de Sandal traduziu em voz alta:
— Luta... você... comigo?
Sandal sentiu o contato da corda do arco na orelha e soltou-a. A flecha saiu chiando
e atirou um atacante no chão. Sandal resmungou com a voz rouca:
— Luto a seu lado, forasteiro. Seus inimigos também são meus inimigos.
A máquina tradutora voltou a ranger.
— Amigos... inimigos... luta... — disse o desconhecido e atirou.
Sandal esquivou-se, correu uns vinte metros para a esquerda e subiu numa faixa de
rocha mais alta. Percebeu que dentro de instantes a situação se tornaria desesperadora. Os
forasteiros avançavam num ângulo morto e dentro de pouco tempo alcançariam o
paredão. A tradutora uivou e proferiu estas palavras:
— Os verdugos temíveis estão chegando!
Sandal fez pontaria e atirou. A morte silenciosa de seu poderoso arco alcançava os
desconhecidos que não o viam. Parecia que o tinham esquecido, pois concentravam seus
ataques furiosos no pequeno forasteiro ossudo, que atirava ininterruptamente pequenos
projéteis que explodiam no local de impacto transformando-se em bolas de fogo de dois
metros de diâmetro.
Sandal matou muitos atacantes até que viu que chegara o momento de retirar-se.
Jogou fora a aljava vazia, colocou outra flecha e saiu correndo em ziguezague pelas
cavernas. Parou ao lado do forasteiro e disse em voz alta:
— Temos de recuar. Estamos cercados!
A máquina rangia e soltava estrondos enquanto fazia a tradução. Uma voz a que
Sandal não estava acostumado saiu incrivelmente distorcida de cima de seu ombro. A
tradutora reproduziu o sentido das palavras:
— Recuar — círculo fechado.
O forasteiro fez um sinal e virou a cabeça redonda com os grandes olhos para
Sandal.
— Conheço estas cavernas — respondeu. — Nesta direção! Em seguida levantou a
arma, que era parecida com a arma energética de Sandal, virou-se e saiu correndo. Sandal
foi atrás dele. Olhava constantemente para trás, à procura de perseguidores. Mas não viu
ninguém. Dentro de alguns minutos saíram da parte da caverna em que estavam e
subiram um longo plano inclinado coberto de areia. Depois passaram por cima da rocha e
finalmente passaram por uma coluna trabalhada de uma maneira incrivelmente fina,
subiram correndo uma escada em caracol e viram-se numa cidade muito antiga, uma
fortaleza nas montanhas ou coisa parecida. Sandal lembrou-se logo do castelo Crater.
Suas juras de vingança ressoaram em seus ouvidos quando se virou e examinou o terreno.
— Cidade antiga! — traduziu a máquina. — Torre!
O forasteiro apontou com o braço marrom-avermelhado para uma torre feita metade
de rocha natural e metade de gigantescas pedras recortadas. Uma escada larga subia à
torre. Nos degraus da escada viam-se alguns blocos de pedra e escombros. Um dos lados
da torre era quase todo de pedra vitrificada de muitas cores, que fora trabalhada no curso
dos séculos pela água quente. Os homens correram escada acima, olhando sempre para
trás e desviando-se dos fragmentos espalhados nos degraus.
Dali a pouco estavam na plataforma superior da torre. Em cima deles havia um teto
maciço, sustentado por pelo menos trinta colunas.
— Meu nome é Sandal! — disse Sandal. — Sandal Tolk.
A máquina tradutora já não rangia com tanta insegurança. A voz mecânica disse:
— Nome: Sandal Tolk!
O forasteiro segurou a arma na mão esquerda e estendeu a direita.
— Tahonka No, também conhecido como o ossudo.
O aparelho voltou a fazer a tradução.
À medida que trabalhava, seu vocabulário aumentava e a pronúncia da máquina
melhorava.
Estavam de pé entre duas colunas redondas apoiadas em placas retangulares, com
capitéis finamente trabalhados na parte superior.
— Olhe!
Sandal apontou para o norte. Estavam a um quilômetro e meio do lugar de onde
acabavam de sair. Os forasteiros pertencentes ao “Enxame” reagrupavam-se e vinham
voando devagar em direção ao esconderijo dos homens. Não eram mais de cem.
— Arma... silenciosa! — disse o aparelho.
Sandal pôs a mão por cima do ombro esquerdo, segurou a haste e a penugem de
uma de suas numerosas flechas e puxou-a para fora da aljava. Sem tirar os olhos do
inimigo que se aproximava, disse em voz baixa e clara:
— Isto é uma arma rápida e silenciosa que não revela a posição do atirador,
Tahonka No!
A máquina fez uma tradução desajeitada.
Os verdugos temíveis voavam em três ou quatro fileiras, ocupavam quase toda a
largura do vale e procuravam os dois homens. Como estavam na sombra entre as colunas,
Tahonka No e Sandal Tolk não foram vistos. O primeiro ser voador estava a mais de
trezentos metros. Era muito para um tiro em condições favoráveis. Sandal olhou para
Tahonka No de lado e constatou que se parecia mais com ele que com os instaladores do
“Enxame”. Mas Tahonka No era bem menor, não devia ter mais de um metro e meio.
Não media mais de um metro na altura dos ombros. A parte visível da pele tinha a cor da
ferrugem.
— Atire! Mate-os, senão eles nos matarão! — disse No.
— Estão à sua procura, Tahonka No? — perguntou Sandal em tom indeciso.
— Estão. Querem matar-me.
Sandal viu que o alvo se aproximara o suficiente. Apoiou o pé esquerdo na
balaustrada, esticou a corda e fez pontaria. A corda martelou a braçadeira, a flecha
percorreu uma trajetória ligeiramente encurvada e atingiu um dos desconhecidos que
voava no grupo de cima, bem à esquerda. O corpo de muitos braços enfiado num traje
voador caiu em silêncio.
Depois Tahonka No atirou, dez vezes em seguida. Dez sóis minúsculos formaram-
se no ar trêmulo de pouco antes do meio-dia, mais claros que a luz martirizante do sol
vermelho do planeta. Os perseguidores foram atirados para os lados e um deles, que foi
atirado para a frente, na direção dos perseguidos, foi derrubado por uma flecha de Sandal.
Os minúsculos projéteis que saíam com tanta força do cano da arma eram menores
que os corais nas orelhas de Sandal. No local do impacto geravam através de uma reação
química um calor de cerca de dez mil graus. Por que os forasteiros atacavam Tahonka No
com mais raiva e obstinação do que tinham mostrado na perseguição de Sandal? O
caçador entesou a corda do arco, atirou e perguntou:
— Por que querem matar você, Tahonka No?
O homem de pele escura disse alguma coisa com a voz áspera. O aparelho fez a
tradução:
— Nesieps'cnird.
Sandal sacudiu a cabeça; não compreendera nada. Atirou mais uma flecha que
nunca mais encontraria.
— Estão fugindo — disse.
Os noventa perseguidores deixaram-se cair e apararam a queda perto do solo.
Voltaram correndo o caminho pelo qual tinham vindo. Desapareceram um após o outro
atrás da primeira curva do cânion. Tahonka No mandou uma dúzia de tiros atrás deles.
Depois baixou a arma e apoiou-se na coluna mais próxima. Levantou a mão direita, com
a palma voltada para Sandal.
— Amigo? — perguntou através do aparelho.
— Amigos! — assegurou Sandal. Só então pôde examinar melhor o homem baixo.
Nunca tivera um amigo de aspecto tão estranho, mas também era a primeira vez que
estava dentro do “Enxame”. De onde tinha vindo esse homem cor de ferrugem com a
arma pequena e desajeitada? — Fugiram! — disse Sandal.
Certamente os verdugos temíveis tinham confundido Tahonka No com Sandal Tolk
e por isso resolveram atacá-lo. O desconhecido lutara com muita coragem e uma
habilidade admirável; era um excelente lutador, apesar de ser pequeno.
— Fugiram! Você me ajudou — disse o forasteiro ossudo.
— Um bom caçador ajuda um bom guerreiro! — afirmou Sandal. Também se
apoiou numa coluna e olhou com um ar pensativo para a cidade antiga, parte da qual
estava em ruínas enquanto a outra fora coberta por cascatas de minerais endurecidos.
O forasteiro era pequeno, mas de compleição robusta. Parecia ser só pele e ossos;
não se via nenhum sinal de gorduras ou tecidos conjuntivos que pudessem ser designados
como carne. Se era rijo e resistente como parecia, então havia dois grandes combatentes
no planeta.
— Você, Sandal, bom guerreiro! Arma desconhecida! — disse Tahonka No.
— Isso mesmo.
Sandal não viu veias no desconhecido. Provavelmente os ossos firmes e redondos
eram formados por estruturas em forma de favos, em cujo interior se processava a
circulação e o metabolismo. Tahonka No possuía dois braços como Sandal, mas eram
mais curtos e grossos e cheios de tendões resistentes.
Sandal viu dois polegares em cada mão; o segundo polegar ficava no lugar em que
terminava o dedo mínimo. A cabeça era redonda e de um ponto situado pouco acima do
nariz saía uma saliência óssea que atravessava o crânio liso e pelado até a nuca.
— De onde você veio? — perguntou o jovem guerreiro em tom de curiosidade.
— Tamin Enorth — respondeu Tahonka No.
Agora que Sandal o ouvia diretamente e podia examiná-lo com calma ele percebeu
que seu novo amigo possuía uma voz áspera de contrabaixo. Os olhos grandes estavam
alojados em órbitas profundas e afuniladas, mas apesar disso pareciam grandes, apagados
e escuros... não se viam pupilas. Pareciam os olhos de um dos cegos que antigamente
costumavam aparecer no castelo de Crater para fazer as mais diversas brincadeiras a fim
de mendigar pão e carne.
— Em que mundo estamos? — perguntou Sandal.
— O nome do planeta é Vetrahoon respondeu Tahonka No.
Sandal contemplou atentamente o amigo. Inúmeros pensamentos atropelaram-se em
sua cabeça e ele sabia que também estava sendo examinado atentamente e com senso
crítico. Parecia que o corpo de seu interlocutor não possuía veias nem os órgãos que
Sandal sabia que tinha. Mais tarde receberia outras informações. Agora que a luta fora
interrompida, a fome martirizante voltou a manifestar-se.
— Por que está aqui? — perguntou o jovem guerreiro.
— Porque sou um rebelde.
— Um rebelde é alguém que despreza os costumes de seus senhores, luta contra
eles e é obrigado a fugir diante da superioridade das forças. Você é tudo isso?
Sandal sorriu ironicamente e afastou o cabelo molhado de suor da testa.
Tahonka No acenou com a cabeça. Depois deu uma gargalhada. Seu rosto anguloso,
cheio de tendões, não mudou de expressão.
Sandal viu que seu amigo tinha a boca muito larga e formada por lábios que
também eram de ossos. Não se viam dentes, mas somente duas fileiras de ossos pontudos.
Que forasteiro esquisito!
— Como você veio parar em Vetrahoon? — perguntou o forasteiro.
Sandal respondeu:
— Fugi na espaçonave com a qual esses forasteiros que fogem covardemente à luta
atacaram um planeta.
Tahonka No levantou a mão e apontou para a frente. Lá, em algum lugar em cima
do platô, continuavam suspensas as trilhas esfaceladas das nuvens vulcânicas.
— Foi lá que a nave pousou? — perguntou o forasteiro ossudo.
— Sim. Foi um pouso de emergência.
Mal acabara de pronunciar estas palavras, que foram traduzidas pela máquina,
quando uma mão invisível agarrou os dois e atirou-os entre as colunas, a alguns metros
de distância. Algumas flechas caíram das aljavas e voaram para os lados. Quando
levantou, Sandal viu que no lugar em que a nave fizera o pouso de emergência se
levantava uma gigantesca coluna de fumaça. Dali a instantes a onda acústica passou
trovejando sobre o cânion, perdendo-se entre os desfiladeiros. Uma gigantesca nuvem de
pó aproximou-se em alta velocidade e pedras caíram das partes mais elevadas da cidade
antiga.
Sandal tirou a areia do rosto e disse:
— A nave explodiu. Era o que eu esperava, Tahonka No. Foram destruídos.
— Os verdugos temíveis... — cochichou o forasteiro.
O aparelho preso ao ombro de Sandal traduziu fielmente estas palavras; possuía
cada vez mais informações para serem processadas. As traduções melhoravam.
— Eles voltarão — sua raiva é muito grande! — advertiu o ossudo.
Sandal bateu no estômago e disse:
— Estou com fome. Preciso de carne... lá embaixo há matas. Lá encontraremos
alguma coisa que nos sirva.
Virou-se antes de notar o olhar apavorado do amigo. Recolheu as flechas e saiu
devagar, sem esperar para ver se Tahonka No o seguiria. Desceu as escadas em curva da
velha torre.
Era meio-dia. O sol dardejava seus raios na vertical. O cogumelo atômico produzido
pela nave que explodira a cerca de vinte e cinco quilômetros dali subia cada vez mais e
era desmanchado e carregado pelos ventos que sopravam nas camadas superiores da
atmosfera. Do lugar em que estavam não se via a cúpula, mas Sandal conhecia o destino.
Era a saída do cânion profundamente recortado no terreno, onde o rio era mais raso
e largo e suas águas desapareciam no solo.
Lá na frente, além das florestas, subiam as rochas em ponta que formavam a
montanha, despertando a atenção de quem as via.
— Estou com uma fome danada, amigo Tahonka! — disse Sandal em tom
obstinado. — Se não arranjar uma coisa para comer dentro de algumas horas acabo
roendo você, embora não pareça ter muita substância.
Sandal desceu rindo os degraus até chegar numa pequena praça. Parecia ser uma
cidade antiga, muito antiga, e era cheia de calor, cheia de claridade e cheia de mistérios.
Como tudo nesse planeta.
Dali a três horas havia duas figuras minúsculas caminhando para o sul no fundo do
cânion, entre as rochas gigantescas e os arbustos raquíticos. Os olhos de Sandal
procuravam constantemente rastros de animais, mas não encontraram nada. Só uma vez,
depois de um pequeno lago salgado, viu as pistas de animais muito pequenos, que não
valia a pena caçar.
No fim da tarde chegaram ao monumento.
8

Vetrahoon, um planeta parecido com a Terra, parecia ser um mundo diferente dos
outros. Sandal Tolk asan Feymoaur, cuja figura esbelta ia sempre na frente, movendo-se
de forma mais rápida e ágil que a do ossudo, não conhecia estas coisas. Sabia, porque
Chelifer e Atlan lhe tinham dito, que havia muitas coisas que ele não era capaz de
compreender. Ficou espantado ao ver o fim do desfiladeiro do lado direito, ao leste, e do
lado esquerdo, ao oeste. O sol já não estava a pino, as sombras eram mais compridas e
nítidas, e de ambos os lados do cânion havia gigantescas construções. A parte superior
delas estendia-se por cima do cânion em forma de gigantescas pontes em curva.
Estupefato, Sandal apontou para o monumento e perguntou:
— Você conhece isso, Tahonka No?
O ossudo respondeu que sim e explicou:
— É um dos inúmeros templos construídos em homenagem ao ídolo Y’Xanthymr.
São encontrados em toda parte. Servem de templos e residências, pontos de orientação e
são coisas belas, artísticas.
— Isso mesmo! — respondeu Sandal e examinou o espaço aéreo à procura de
forasteiros voadores, de verdugos temíveis.
Não viu nada além de alguns pássaros grandes que estavam muito longe para um
tiro de arco e cuja carne certamente não podia ser consumida.
— Que pretende fazer agora que chegamos ao limite das florestas? — quis saber o
ossudo.
Fitou Sandal com os olhos de cego e a boca aberta. Sandal respondeu prontamente:
— Primeiro mato uma caça para comer. Depois deitamos na sombra e dormimos
meio dia. Estou muito cansado e não sinto nenhuma vontade de correr por aí sem parar
em um darcan ou um Mnesadocer.
— Acho que só compreendi metade do que você disse — comentou Tahonka No, o
ossudo.
Se fosse capaz de mudar a expressão do rosto, ele o teria feito. Assumiria uma
expressão de extrema repugnância. Mas teve de limitar-se a sacudir a cabeça num gesto
de reprovação e seguir Sandal.
O caçador seguiu devagar em direção à mata, mantendo-se perto do rio. Ouvia o
ruído produzido pela água ao desaparecer no solo algumas centenas de metros ao sul.
Prestou atenção ao vento, para evitar que levasse seu faro aos animais. Tahonka No vinha
atrás dele, descalço. As solas de seus pés ossudos, de pele fina, produziam ruídos
parecidos com o de alguma coisa caindo na água.
Tahonka trajava um conjunto justo, que chamava a atenção pelo grande número de
bolsos. Trazia dois cintos cruzados sobre o peito largo e chato, nos quais estavam presos
os cartuchos de munição da arma de longo alcance. Outros equipamentos cuja finalidade
o jovem guerreiro não conhecia estavam presos num cinto largo, que parecia ser formado
de peças de ferro quadradas com estranhos desenhos. As costas e os ombros do
combatente estavam nus e brilhavam naquele momento. Era um efeito da luz do sol
atingindo o suor.
Dali a uma hora Sandal viu os animais. Eram parecidos com os cervos de Alfa, mas
em vez dos chifres ostentavam quatro agulhas muito retas, que apontavam para a frente,
para os lados e obliquamente para trás. Um ataque deste animal provido de punhais podia
colocar em situação difícil o mais corajoso dos caçadores.
— Silêncio! — sussurrou Sandal. — Fique aqui. Vou atirar.
Sandal levantou a mão, apontou para a sombra de um arbusto triangular e saiu
correndo em silêncio. Percorreu uma trilha de animais estreita, desapareceu entre o capim
e ficou parado quando a manada de oito animais ainda estava a cem metros. Colocou uma
flecha no arco, afastou cuidadosamente os galhos e fez pontaria. A corda do arco de dois
metros e meio de comprimento quase chegou a tocar a esfera de coral vermelho que
trazia na orelha.
De repente a corda recuou batendo com força nos galhos e a flecha perfurou o corpo
do animal. Acertara o flanco do animal, que saltou para cima enquanto os sete cervos
restantes fugiam em pânico fazendo estalar os galhos e o macho jovem e robusto caía na
água. Estava morto quando os últimos pingos de água caíram na superfície.
— Não esqueci como se caça! — disse Sandal.
Saiu correndo, puxou o animal para fora da água e dentro de alguns minutos abriu
seu ventre para limpá-lo. Jogou no rio as tripas e os miúdos, menos o fígado. Queria que
os peixes também tivessem sua parte. Estendeu o couro, juntamente com a cabeça e os
chifres, por cima de um galho grosso e carregou o animal de volta para o lugar entre o
monumento e a floresta.
— O que você tem... o que posso fazer? — perguntou o ossudo.
— Arranje uma porção de galhos grossos bem secos — disse Sandal. — Parece que
não ficou contente com o assado. Tem sal ou algum condimento?
Tahonka sacudiu a cabeça.
— Não. É a primeira vez que vejo como se prepara a carne. É claro que não tenho
condimentos. Que vem a ser isso?
— Coisas gostosas — respondeu Sandal e tirou do bolso da jaqueta uma sacola de
plástico cheia de sal. — Vá buscar lenha, amigo.
Sandal formou um anel de grandes pedras entre a proteção das árvores, enfiou no
chão dois galhos bifurcados e fez um espeto com um galho quase reto e descascado. O
forasteiro trouxe lenha e quebrou-a em pedaços do mesmo tamanho seguindo as
instruções de Sandal. Foi a vez do jovem guerreiro ficar espantando. Tahonka No
quebrava galhos da grossura de um braço humano como se fossem lascas e juncos.
Sandal acendeu o fogo com um tiro da arma de Atlan e ficou satisfeito ao ver que o fogo
não fazia fumaça. Em seguida colocou a carne sobre as chamas e começou a girar o
espeto. Dentro de pouco tempo um cheiro que Sandal conhecia e adorava encheu o ar —
o cheiro de carne assando, cuja gordura caía nas chamas.
— O cheiro até que não é ruim — disse Tahonka No.
— Quando comermos a carne, você verá que o sabor ainda é melhor que o cheiro —
disse Sandal.
A única coisa de que precisaria para completar a felicidade era um caneco cheio de
vinho tinto. A fome e o esconderijo na nave tinham sido esquecidos. Mas Atlan, Chelifer
e sua vingança não foram esquecidos. Somente adiados.
Enquanto Sandal girava o espeto ele contemplava o monumento e dava busca nos
seus conhecimentos e recordações. Aquilo que via a trezentos metros de distância ele
conhecia. Era, com poucas modificações, a imagem do ídolo amarelo que um dos homens
de Rhodan vira pela primeira vez. Seu nome era Pontonac e este nome estava escrito
embaixo dos retratos que Rhodan possuía.
Mas aqui os traços diabólicos do ídolo tinham sido esculpidos em pedra-sabão
multicor. Isso devia ter sido feito há muito tempo, pois os traços diabólicos estavam meio
apagados, o que aumentava o mistério.
Sandal viu o seguinte:
Dois quadriláteros, mais ou menos do mesmo tamanho, recortados na rocha. Estes
quadriláteros dividiam-se em dez planos diferentes, cada um com mais de cinco metros
de altura. Estes planos consistiam em conjuntos de colunas atrás das quais estavam
escondidas entradas retangulares, negras e misteriosas. No centro dos dois quadriláteros
tinham sido esculpidas as carrancas diabólicas dos ídolos, de tal maneira que os olhos
eram as entradas, o nariz uma saliência enorme e a boca um grande portão. Conforme a
posição do sol, as sombras mudavam a expressão dos dois rostos.
— No momento parecem abrir-se num sorriso... de uma forma repugnante — disse
Sandal e girou o espeto. O cheiro era cada vez melhor. Tahonka No estava sentado na
sombra, recarregando a arma de aspecto tosco. Havia folhas, talos de capim e pequenas
porções de barro grudadas nas solas de seus pés grandes.
A testa, as faces e o queixo dos dois demônios também eram formados por
corredores e colunas, e a mesma estrutura continuava a estender-se para baixo. Duas
rampas triangulares compridas subiam para o queixo. Dois chifres dobrados para baixo
limitavam os rostos horríveis para o lado de cima, e o chifre esquerdo do ídolo da direita
se unia ao chifre direito do ídolo da esquerda, formando a ponte meio estragada pelas
intempéries.
— Fantástico! — disse Sandal.
À medida que o sol baixava, o sorriso dos dois rostos se tornava mais malvado. Os
dois tinham a mesma expressão. Sandal tirou do bolso uma sacolinha de plástico
transparente, abriu-a e inflou-a ligeiramente. Depois disso levantou a mão e disse,
enquanto sinalizava com a sacolinha para Tahonka No.
— Traga água do rio, que precisamos beber. Senão a carne não será gostosa, amigo
No.
O ossudo limitou-se a acenar com a cabeça. Levantou e enfiou a arma no cinto.
Depois segurou a sacola com os seis dedos e saiu andando, depois de olhar para a carne
com uma expressão que era um misto de desejo e recusa. A carne vermelha começava a
transformar-se numa crosta marrom. De vez em quando Sandal espalhava sal seco pela
crosta e no ventre aberto do animal, do qual a gordura pingava no fogo chiando. Depois
de algum tempo Tahonka No voltou, pendurou a sacola num galho abaixo que vergou
quase até o chão e sentou.
— Já podemos conversar — disse e apontou para as aljavas e o arco de Sandal,
encostados num tronco.
— Isso mesmo — disse Sandal. — Como salvei sua vida, você vai começar.
— Queria matar você, porque se aproximava de meu esconderijo — disse Tahonka.
— Mas logo vi que não é um dos verdugos temíveis. É bem diferente.
Sandal acenou com a cabeça e respondeu satisfeito:
— Sou muito mais bonito que eles. Só tenho dois braços e dois olhos, eles têm
demais. Muitos olhos, muitas impressões, um grande cansaço.
Tahonka soltou uma estrondosa gargalhada.
— Não faça tanto barulho! — exclamou Sandal. — Você expulsa nosso alimento.
Continue a contar sua história, pela estrela fulgurante!
— Quando vi que você não era nenhum deles, desviei o tiro. Sei que estavam atrás
de mim para castigar-me.
— Você está enganado! — disse Sandal num tom que quase chegava a ser alegre.
— Como?
— Estavam atrás de mim, porque provoquei a queda de sua nave. Na verdade só pus
a mão numa chave. Depois disso a nave começou a cair sem que eu fizesse mais nada. Os
instaladores do “Enxame” são criaturas esquisitas. Crescem e quando morrem ficam
menores.
O ossudo observou em tom pensativo:
— Todos seguimos este caminho, quando Y’Xanthymr chama.
— Um é chamado mais tarde, outro mais cedo. O que acontece com aqueles que
não podem ouvi-lo? — perguntou o jovem guerreiro laconicamente.
Aprendera o ceticismo que havia nesse tipo de pergunta de seu avô.
— Não sei — respondeu o ossudo. — Se tivesse matado você, não correria mais
nenhum perigo.
Numa fala que durou dez minutos Sandal desfez o mal-entendido e esclareceu os
verdadeiros motivos da perseguição. Tahonka compreendeu que só precisaria ficar
escondido para não ser perseguido... os forasteiros voadores estavam atrás de Sandal, não
queriam ele, como temera.
— Compreendi — disse Tahonka No. — Continue a ouvir-me... Este planeta se
chama Vetrahoon. Tem uma finalidade especial. É uma base de repouso, tranquilidade e
cura para todos os povos e grupos que se encontram no interior do grande comboio
sideral, da caravana cósmica.
— Não consigo acreditar nisso, amigo — disse Sandal em tom de ceticismo.
O outro indignou-se.
— Não me interprete mal. Acredito em você. Não é nenhum mentiroso, mas para
mim tudo isto é uma grande novidade que me deixa confuso. Sempre pensei que este
planeta fosse um mundo de desertos e montanhas trovejantes, que jogam fogo em forma
de mingau.
Tahonka sacudiu energicamente a cabeça redonda.
— Vetrahoon é um planeta sadio, onde podem viver muitos povos de nossa
caravana cósmica. Ele girava...
Sandal fez seus cálculos, enquanto fazia um corte profundo na crosta que cobria a
carne, para verificar seu estado. Ela estava quase assada. Por seus cálculos o planeta
levava vinte e duas horas — pelo relógio de Sandal — para completar um movimento de
rotação. A aceleração na superfície era pouquíssimo menor que a de seu mundo.
— O planeta está coberto de muitas bolhas de energia embaixo das quais reinam
condições climáticas, atmosféricas e de temperaturas diferentes. Há uma bolha para cada
povo. Lá atrás também...
Sandal fez um sinal para que ele se calasse.
— Já vi as bolhas. Dirigia-me a uma delas — disse em voz baixa. — O que há
dentro delas? Cidades, culturas estranhas, aventuras excitantes? Mulheres de pele cor de
ouro?
— Quase tudo — respondeu o ossudo. — Pelo menos muita coisa. Mais do que eu
poderia contar numa tarde.
— Se não precisarmos aproveitar a noite para dormir, você poderá continuar a
contar no escuro — disse o jovem guerreiro. — As bolhas são do mesmo tamanho ou de
tamanhos diferentes?
— São de tamanhos diferentes.
— Continue.
— Em cada cúpula existem animais e plantas diferentes. São uma espécie de museu,
mas um museu que serve para repousar e recuperar as forças. Em algumas paisagens
reina um frio glacial, em outras um calor infernal. Toda vez que chegam doentes ou seres
que precisam descansar — eles encontram o que precisam. Foi por isso que me refugiei
aqui, Sandal Tolk!
Sandal tirou o espeto do fogo. A carne estava muito quente, mas bem assada. Seria
uma festa para os dentes e o paladar.
— Por que fugiu? — perguntou Sandal.
— Por causa de Nesieps e Cnird, Sandal!
— Que é isso? Não compreendi!
— Comportei-me de forma muito inconveniente e desavergonhado em companhia
de outros.
Sandal inclinou a cabeça. Esperava ouvir o relato de um costume absurdo. Mas
Tahonka No falou em voz baixa, como se ainda estivesse envergonhado do que tinha
feito.
— Estava com fome e... comi. Deixei que alguém olhasse quando enviei um pouco
de dropeyn na boca, mastiguei demoradamente e acabei engolindo.
— Gostou, parceiro? — perguntou Sandal laconicamente. — Fiquei satisfeito. Além
disso tomei alguma coisa e estalei os lábios porque estava gostoso.
— Em muitos lugares isso é um bom e velho costume — observou Sandal. —
Muitos fazem isso, e ninguém sai prejudicado.
— Pois eu fui prejudicado. Tomei-me um rebelde.
Sandal apontou para a carne assada, que desdobrou com movimentos rápidos e
hábeis em grandes porções.
— Não gosto de comer sozinho. Você terá de acostumar-se em ver-me olhar quando
estiver comendo. Não costumo arrotar, mas você pode ficar à vontade para fazê-lo. É um
elogio para o cozinheiro.
Tahonka No fitou-o com uma expressão que revelava uma boa dose de insegurança,
confusão e indecisão.
Finalmente riu alto. Não mexeu os músculos do rosto, mas riu tão alto que Sandal
perguntou de que viveriam nos próximos dias.
Todos os animais deviam ter fugido.
9

Os pensamentos e sentimentos de Tahonka No naquele momento eram bastante


conflitantes. Enganara-se — os verdugos terríveis não tinham perseguido a ele, mas este
jovem de olhos dourados e longos cabelos brancos, seguros por uma tira de couro na
testa. Um homem estranho com uma arma ainda mais estranha, com uma arma que
atirava em silêncio e sempre acertava.
Além disso... a comida.
Tahonka No também estava com fome. Muita fome.
Apesar de não ter um coração que bombeasse sangue através de um sistema de
artérias, mas uma espécie de bomba dentro de uma câmara óssea, que girava e impelia
uma massa pastosa parecida com a medula óssea dos seres humanos através de um
sistema de condutos e câmaras, ele estava com fome. A carne assada fumegante, que
estava numa pedra à sua frente, deleitava seus olhos, o olfato estimulava os nervos do
paladar. Olhando para os pedaços de carne, a fome se tornava insuportável. Que devia
fazer7
Olhou de soslaio para o monumento e disse:
— Sou mesmo um rebelde. Aqui os padrões são diferentes.
Não era capaz de sorrir. Seu rosto era imóvel, com exceção da mandíbula cujos
movimentos eram muito reduzidos. Como rebelde violara a lei mais sagrada de seu povo
— deixara que alguém o visse ingerindo alimentos. Não comera e bebera para provocar
alguém; fora um acaso. Mas quando presenciou a terrível reação, quando soube que era
considerado um criminoso sujeito à pena de morte, a obstinação tomara conta dele.
Continuara a comer, beber, rira alto e fugira. No planeta em que estava podia viver em
segurança.
— Disse alguma coisa? —perguntou seu novo amigo de botas apertadas e calça
comprida.
— Pouca coisa — respondeu Tahonka No. — Estou refletindo.
Sandal espalhou alguns dos pequenos cristais brancos sobre a carne, fechou o
saquinho e enfiou-o no bolso. Depois tirou a braçadeira de couro, colocou a tradutora
perto do ossudo e disse:
— O que está pensando? Sirva-se enquanto estiver quente. Tahonka No deu uma
gargalhada. Sandal logo percebeu que era um sinal de que se sentia embaraçado. Apontou
para a carne e disse em tom convidativo:
— Não quer que eu o veja mexer com essas mandíbulas ossudas, amigo No? É isso?
O forasteiro acenou com a cabeça. Estendeu a mão direita, mas deteve-se pouco
antes que ela tocasse o pedaço de carne fumegante e aromática.
— Não vim de seu mundo — disse Sandal e arrancou um pedaço de carne com os
dentes. Começou a comer com muito apetite.
— Você não é. Mas eu sou um criminoso.
— Pois então aja como um criminoso — disse Sandal. — Coma! Senão acabo com
tudo enquanto você não se decidir. Você tem a escolha — continua sendo um rebelde ou
morre de fome.
Tahonka No pegou uma coxa, quebrou o osso com três dedos e abriu a boca. As
fileiras de ossos afiados ficaram à mostra. Sandal acenou amavelmente com a cabeça.
Nunca vira uma coisa dessas! Alguém não querendo saciar a fome porque outra pessoa
estava olhando.
Tahonka No disse em voz baixa, quase como quem pede desculpas:
— Transgredi uma das leis sagradas de meu povo comendo na presença de outros
indivíduos. Ingerindo alimentos. É um procedimento desavergonhado, antiético, que deve
ser punido com a morte. Fomos educados assim. Você não pode esperar que eu mude
completamente dentro de meia hora.
— O que eu sei é que não vou passear no mato enquanto você estiver comendo —
disse Sandal. — Contemplarei os rostos sorridentes de Y’Xanthymr enquanto você
estiver mordendo a carne. Acho que isso o ajudará.
— Sim. Faça isso.
Sandal virou a cabeça um pouco para o lado. Comeu depressa e em silêncio. Sentia
que suas forças retomavam, à medida em que comia.
De vez em quando olhava discretamente para o forasteiro, que parecia um tanto
inseguro enquanto comia, mas acabava mordendo a carne cada vez mais depressa,
demonstrando uma tremenda voracidade.
Finalmente Tahonka No notou o olhar do homem de cabelos brancos.
— Você me viu! — disse em tom de reprovação.
— Isso não é motivo para brigarmos — disse Sandal e fez pontaria para um galho
baixo, atirando a costela no mato.
Um passarinho levantou vôo assustado. Tahonka No baixou o osso roído pela
metade.
Deu uma risada.
Uma risada alta e estridente, que parecia libertá-lo de todos os temores. Sandal
sorriu, mas acabou rindo também. Finalmente entreolharam-se e riram juntos, alto e por
muito tempo. Um tabu fora quebrado. A lei dos ossudos, segundo a qual eles deviam
comer às escondidas e em silêncio, fora quebrada. E o rosto do ídolo de pedra não
mudara de expressão, nenhum fogo caíra do céu. Somente o sol se aproximara mais um
pouco do horizonte.
— Está satisfeito com o sabor? — perguntou Sandal curioso.
— Excelente! — disse Tahonka No. — Você é um artista, Sandal Tolk. Que
faremos depois que a carne tiver acabado?
— Estaremos tão cansados que teremos de dormir. Sugiro que nos recolhamos às
cavernas do rosto do ídolo. Lá estaremos protegidos dos verdugos temíveis.
— É possível que você tenha razão.
Continuaram a comer calmamente. Quando ficaram satisfeitos, cada um deles tinha
comido pelo menos dois quilos de carne. Ainda sobrava metade. Logo, no dia seguinte
não precisariam caçar nem assar.
Sandal recostou-se e tomou um grande gole de água. Depois ofereceu o saco de
plástico ao outro guerreiro e perguntou:
— Como seu povo foi parar no “Enxame”, na caravana cósmica que viaja entre as
estrelas?
— Não sei, amigo — respondeu o ossudo calmamente. — Existem entre nós
homens que contam lendas antiquíssimas e as cantam ao som dos instrumentos. Segundo
eles, houve uma catástrofe antes do tempo do Egktkona. Um dragão enorme, formado por
estrelas e planetas, correu para perto do sol de nosso mundo e o levou consigo com os
planetas.
— Quantos planetas? — perguntou Sandal.
O guerreiro ossudo sacudiu lentamente a cabeça redonda e brilhante.
— Só um. Seu nome é Gedynker Crocq. Isto quer dizer o mais belo dos mundos.
As lendas de seu planeta, que o avô lhe contara ao som do realejo, apareceram na
mente de Sandal. Visões antiquíssimas de tempos primitivos: um dragão, uma fera
cintilante feita de claridade, fogo e força primitiva saiu dos espaços imensos do cosmos
negro e dirigiu-se ao sol, abriu a boca e engoliu o sol juntamente com seus planetas.
Fenômenos cósmicos transformaram-se em lendas e imagens. O dragão voltou a cuspir os
astros e arrastou-se com sua longa cauda de cometa numa longa caminhada pelo espaço
desconhecido. Sandal piscou os olhos, voltou à realidade e perguntou:
— Como veio parar aqui, No?
— Em minha terra, na cidade belíssima Ta Physeter, sou considerado inteligente e
esperto. Agi muito depressa e fugi. Consegui escapar à prisão pelos verdugos temíveis e à
sentença de morte que se seguiria. Dominei um dos verdugos, tirei-lhe a arma com cinco
mil tiros de munição e entrei às escondidas, de noite, numa espaçonave de outro povo.
“A nave pousou neste planeta, perto de uma das cúpulas. Mais uma vez consegui
fugir. Depois a nave decolou; e três dias depois disso nós nos encontramos, Sandal.”
— Muito interessante — disse Sandal. — Qual é sua profissão?
— Qual é a sua? — perguntou o ossudo.
— Sou caçador e guerreiro. Descendo dos Crater, sou filho de príncipe e amigo de
Atlan e da bela Chelifer Argas com os olhos verdes.
Tahonka No acenou com a cabeça. Parecia impressionado. Examinou o arco
comprido com o grosso cabo de couro redondo e disse:
— Sou cientista. Chamam-me de Tahonka No, o regulador de alta pressão.
— Muito bem. O que é um regulador? O que ele regula?
A máquina tradutora hesitou. Não dispunha de um volume suficiente de
informações a serem comparadas para fazer uma boa tradução. Parecia que Sandal
percebera. Voltou a perguntar:
— O que você faz? Não compreendi o que é um regulador de alta pressão.
O outro explicou devagar e escolhendo cuidadosamente as palavras.
— Segundo as regras científicas de nosso povo e nossa própria natureza devo
explicar que sou algo parecido com um médico que cura tecidos e ossos. Meu trabalho
consiste em pôr novamente em ordem os sistemas de bombeamento do plasma ósseo ou
transplantá-los quando é feita uma operação. Sou um cientista.
Sandal acenou com a cabeça. Já compreendera.
— Você é capaz de dirigir uma nave? — perguntou em tom ansioso. Talvez
precisasse de alguém que quisesse ajudá-lo a conquistar o centro do “Enxame” ou da
caravana cósmica saindo do planeta em que se encontravam.
— Não. Sou capaz de ler muitas instruções, conheço a finalidade de numerosas
chaves, mas não sou piloto.
— Nem eu — disse Sandal. — Mas juntos seremos capazes. Está cansado, Tahonka
No?
— Bastante.
— Pois vamos lá adiante dormir um pouco — sugeriu Sandal. — Provavelmente os
perseguidores nos acordarão, depois que se cansarem de lamentar a explosão de sua nave.
O ossudo levantou com um único movimento, que realçava seu tamanho.
— Você tem razão — disse.
Sandal tirou uma rede minúscula, desdobrou-a e guardou o saco de plástico de água
e a carne assada. Depois desmanchou os rastros, apagou o fogo com os pés, atirou os
galhos no mato e bateu com a ponta da bota no osso roído. Apontou para a carranca dupla
e saiu andando. Tahonka No seguiu-o em silêncio. Depois de uma caminhada curta
chegaram sãos e salvos ao pé da rampa que servia de escada. Sandal ainda não parara de
espantar-se. As duas instalações eram gigantescas e pareciam estranhamente intactas.
— Para a direita ou para a esquerda, parceiro? — perguntou Sandal quase alegre.
Não viu nenhum perseguidor, saciara a fome e estava alegre porque teria um sono
prolongado e reparador, e ainda se alegrava por não ter de lutar mais sozinho. Mais tarde
tentaria conquistar Tahonka No para sua vingança. Além disso havia outras coisas para
resolver. Atlan, por exemplo, precisava saber o que estava acontecendo.
— Vamos subir aqui! — insistiu o ossudo cor de ferrugem.
— Está certo.
Tinham cerca de duzentos degraus pela frente, cada um com dois palmos de altura.
Sandal respirou profundamente, segurou as aljavas e começou a subir a escada de dois
em dois degraus. O primeiro impulso levou-o até o meio da escada. Quando virou a
cabeça para esperar por Tahonka No viu de novo as pontas das grandes rochas e atrás
delas, pouco nítidas à luz do sol entremeada pela sombra das nuvens em movimento, a
cúpula.
— Mais depressa! Ou será que ficou fraco dos pulmões? — gritou.
— A pressa é uma dádiva de Y’Xanthymr! — respondeu Tahonka No. — Vamos
com calma. Chegaremos lá.
Sandal carregava todas as suas armas enquanto o forasteiro ossudo levava o animal
e a água. Continuaram subindo e aproximaram-se do paredão embaixo do queixo do
ídolo. O ossudo bateu numa pedra pontuda que rolou com muito barulho cerca de cento e
cinquenta degraus, provocando um estranho ruído oco. Finalmente estavam na sombra
inclinada das colunas.
— Você conhece este monumento? — perguntou Sandal desconfiado.
— Não — respondeu Tahonka No. — Só sei o que representa.
— Pois então precisamos ter cuidado. É possível que ele sirva de abrigo a muitos
animais selvagens — disse Sandal, colocou uma flecha na corda e soltou cuidadosamente
a faixa que prendia a coronha de sua arma. O ossudo também sacou sua pistola de
aspecto tosco e a fez dar vários estalos.
— Vamos! — disse.
A rocha exalava o calor do dia. Raramente uma corrente de ar fresco saía das
profundezas. Sandal seguia com muito cuidado, com os nervos tensos. Soltou um chiado,
mas não houve nenhum ataque da escuridão. Depois que seus olhos se acostumaram à
penumbra o jovem guerreiro arriscou-se a entrar mais um pedaço. Descobriu um corredor
largo atrás de um par de colunas, que levava diretamente para dentro da rocha. O chão
estava coberto com pedras pulverizadas e pequenos fragmentos de rocha, as paredes e o
teto eram toscos, sem nenhum ornamento. Sandal seguiu nas pontas dos pés. Ouvia os
chiados da respiração do amigo atrás de si. O corredor chegou ao fim e uma galeria
lateral começou. A galeria ligava vários corredores do mesmo tipo. Ali não havia
segredos. Somente grande número de buracos do tamanho de um punho humano nas
paredes.
— Aqui dentro faz muito frio — disse Sandal. — Vamos deitar atrás das colunas.
Teremos uma excelente visão de todo o vale e veremos se os verdugos nos atacam.
Concorda?
Tahonka No respondeu com um tom de admiração na voz:
— Você é mesmo um grande guerreiro e um homem precavido, Sandal.
O homem de Exota Alfa respondeu com a maior naturalidade:
— Se não fosse assim não estaria mais vivo, parceiro. Você encontrará poucos
lutadores melhores que eu.
— E poucos que se orgulham tanto disso como você — disse Tahonka No em tom
irônico.
— É verdade — disse Sandal.
Em seguida enfiou o arco em um buraco na altura de seu peito e pendurou nele
aljavas e a rede com os alimentos. Depois limpou a areia numa área da rocha, examinou
cuidadosamente os arredores e voltou a guardar a arma destravada no bolso da jaqueta.
Estava tudo disposto de tal maneira que em caso de ataque podia pegar imediatamente as
armas e proteger-se ou entrar em ação. Depois deitou no ângulo formado pela parede e o
piso e esticou-se. As botas ficaram ao alcance dos raios do sol, mas o corpo estava na
sombra. Sandal desabotoou a camisa, soltou os fechos das botas e aliviou a pressão da
braçadeira. Depois viu Tahonka No deitar na parede em frente.
— Tenho um sono leve — disse o ossudo.
— Tomara — respondeu Sandal e bocejou gostosamente, o que também parecia ser
uma novidade para o outro. — É bom para nós dois.
Depois adormeceu. De repente, que nem uma criança.
Nenhum dos dois homens tão diferentes, pertencentes a duas culturas diversas,
vindos de sistemas diferentes do cosmos, sabia que estavam em perigo. O perigo já os
cercava. Na verdade, tinham entrado de sua livre vontade numa espécie de armadilha da
qual até então nenhum ser escapara com vida.
10

Sandal Tolk asan Feymoaur estava sonhando. Sonhava com Atlan e Chelifer. Em
seu sonho montava um darcan veloz numa paisagem do planeta Terra, que só conhecia
das gravuras. Chelifer Argas com seus olhos verdes cavalgava a seu lado. Em cima dele
formavam-se nuvens de trovoada, mas os dois continuaram cavalgando. Foram parar
embaixo de uma árvore gigantesca, que os protegeria da chuva.
Nos galhos da árvore estavam pendurados estranhos potes de barro parecidos com
frutas estranhas.
Enquanto Sandal segurava a moça nos braços, caiu o primeiro relâmpago. Atingiu o
tronco da árvore, passou por um de seus grossos galhos e despedaçou uma das esferas de
barro. Um jato de água atingiu a cabeça de Sandal.
Sandal acordou.
Era noite escura, um sussurro estava em toda parte. Depois levou a mão ao rosto
num gesto repentino. Quando sentiu a molhação, já estava de pé. Ao mesmo tempo sentiu
uma coisa nas costas — parecia um grande inseto. Atirou-se contra o paredão, esmagou o
animal e gritou com a voz estridente:
— No! Acorde!
O ossudo levantou de um salto, cochichou alguma coisa e compreendeu.
— Vamos sair daqui! — gritou. — Rápido.
Sandal pôs a mão no arco, arrancou-o juntamente com as aljavas e percebeu que o
saco de água estava vazio. Alguém o destruíra.
Os dois homens esbarraram um no outro quando saltaram pela entrada.
— Animais! — disse Tahonka No com a voz rouca. — Muitos animais pequenos.
Sandal tomou impulso com o braço e num movimento rápido bateu com a palma da
mão em No. Os dois animais enganchados no peito de No caíram numa grande curva
junto ao paredão.
Os dois homens puxaram-se lentamente até o topo da descida. Sandal golpeou outro
inseto que estava no ombro do companheiro e esmagou um dos besouros de pernas
compridas com o salto da bota.
Então viram o que tinha acontecido.
No chão do corredor havia uma camada de três palmos de um gás luminoso
parecido com uma névoa. Com seus movimentos os gases se desmancharam em várias
nuvens. As línguas móveis estendiam-se em sua direção. Quando Sandal respirou um
pouco do gás, percebeu que estava perdendo os sentidos. Era um gás narcotizante.
Quando pensou nisso, fixou os olhos na carne assada e viu pelo menos cinquenta
besouros, que arrancavam e devoravam a carne com as mandíbulas gigantescas. Sandal
pegou a rede, tirou-a cuidadosamente do arco... Os animais agiam que nem loucos.
Parecia que não percebiam nada. Tahonka No disparou dois tiros para dentro do corredor.
Na luz ofuscante viram que o teto e as paredes e parte do chão estavam cobertos de
besouros. Quando foram atingidos pela luz, correram de um lado para outro e enfiaram-se
bem depressa nos buracos, onde desapareceram. O ar quente que passou chiando pelos
homens lançou uma saraivada de animais para o lado de fora. Sandal bateu várias vezes
com a rede na rocha e esmagou os animais, que se desmancharam numa massa pegajosa
verde.
— Eles soltam um gás muito denso — disse Tahonka No apavorado. — O gás nos
deixaria inconscientes.
Depois de calçar as luvas, Sandal atirou o resto da carne no abismo. Voltou a
guardar a rede vazia no bolso.
— E aí eles nos devorariam como fizeram com a carne! — observou em tom seco.
Sua voz tremia um pouco.
— Por que você acordou? — perguntou Tahonka No.
Os últimos besouros desapareceram nos buracos, a camada de gás saiu do corredor
tocada pelo vento e atingiu os dois homens, que se desviaram para o lado.
— Sua gula era tamanha que roeram o saco de água, que estourou. A água caiu em
meu rosto. Foi ela que me acordou. Você conhecia estes besouros?
Sandal não esperou a resposta. Abaixou-se e examinou um dos besouros mortos
jogados a seus pés, queimado e tremendo um pouco. O corpo era quase esférico e o
animal possuía dez pés com duas articulações. Dois grandes olhos salientes e uma
mandíbula horrível com tenazes pontudas e afiadas... tinham sido centenas, no pequeno
trecho do corredor de pedra.
— Não. Não ia me deixar devorar — respondeu Tahonka No furioso. — É horrível
ser acordado no melhor do sono.
— É ainda pior ser devorado enquanto a gente está sonhando — afirmou o jovem
guerreiro. — Vamos deitar na rampa, alguns degraus para baixo. Lá não nos poderão
atacar.
Desceram a escada devagar.
— Por quê? — perguntou o ossudo.
— Porque nos revezaremos montando guarda. Eu cacei e assei a carne — você vai
começar. Quando estiver cansado, acorde-me.
— Está certo.
Pelo relógio digital que trazia no pulso e pelos cálculos de Sandal, tinha passado um
terço da noite. Deitaram, numa posição muito mais desconfortável. O ossudo apoiou as
costas na muralha da escada. Sandal conseguiu adormecer imediatamente.
Teve sonhos confusos cheios de dragões devorando estrelas e besouros que só
deixaram um delicado esqueleto branco de Chelifer...
***
O dia começou a raiar.
Teriam exatamente três horas de descanso. Sandal resolveu, num incrível acesso de
leviandade, tirar a roupa e tomar um banho. Limpou cuidadosamente o corpo e deixou
que o sol forte o secasse. Depois espalhou o resto de sua pomada no rosto e nas mãos,
vestiu-se e viu que o ossudo quase terminara de assar um pedaço de carne. Sandal
trouxera uma porção de frutas, que Tahonka No separou. Algumas foram jogadas fora —
eram venenosas.
Tahonka No soltou uma forte gargalhada e disse:
— Hoje já não me importo em comer com você. A gente se acostuma bem depressa
em ser um rebelde e um criminoso.
— Principalmente quando se é obrigado pelas circunstâncias — disse Sandal. — O
ataque dos insetos foi um sonho ou não foi?
— Estávamos mais próximos da morte que em qualquer outro momento nestes
últimos dois dias, Sandal! — observou o ossudo em tom sério. — Você nos salvou.
Estremeceram enquanto contemplavam o rosto duplo do monumento, cujas
sombras, determinadas pela posição do sol ao amanhecer, produziam uma expressão
diferente. Os rostos de Y’Xanthymr pareciam mostrar decepção porque uma vítima lhes
escapara.
Tahonka No apontou para a esfera nebulosa além da montanha formada por rochas
em ponta e disse sem parar de mastigar:
— Quer dizer que vamos atravessar a floresta para chegar à bolha energética?
— Foi o que combinamos. Durante a caminhada você me dirá tudo que sabe a
respeito do planeta Vetrahoon, parceiro! Há animais de montaria por aqui?
— Há, sim — disse Tahonka No para espanto de Sandal. — Mas não neste lugar.
Talvez nas grandes clareiras da mata.
— Capturarei alguns — prometeu Sandal em tom decidido. — Aí avançaremos
mais depressa. E de forma muito mais confortável.
— Muito bem dito! — traduziu a máquina. Os dois partiram.
Tahonka No carregava os restos da carne assada, e Sandal caminhava pouco atrás
dele. Saíram da área livre que ficava entre a saída do cânion e a floresta, onde só
cresciam alguns arbustos e um capim baixo, seguiram diretamente para a margem do rio
e descobriram uma larga trilha de animais. O sol causticante transformou o corredor
coberto formado pelas árvores, cada vez mais juntas e fechadas, numa tortura de calor,
vapor de água e insetos que incomodavam bastante. Dentro de pouco tempo os homens
começaram a suar, batiam os braços e praguejavam sem parar. Quando chegaram a um
largo banco de pedregulho que começava junto à margem e levava para o sul pelo centro
do rio largo, formando numerosas curvas e coberto de uma vegetação densa, eles
passaram a andar no meio do rio.
Sandal ia afirmar em tom tranquilo que o caminho que estavam seguindo era muito
melhor quando viu os perseguidores.
— Tahonka No! — exclamou em voz baixa. — Lá estão eles. Os verdugos.
Voltaram a perseguir-nos.
— Por Y’Xanthymr! — disse o ossudo. —A luta vai começar. Serão eles ou nós,
Sandal.
— Eles! — afirmou Sandal e tirou uma flecha.
Trinta ou trinta e cinco dos seres estranhos da caravana cósmica voavam cerca de
vinte metros acima da água. Provavelmente até então só se tinham mantido ocupados
com os restos da nave, se é que eles existiam. Ou com a sobrevivência daqueles que
tinham escapado da nave-disco.
— Vamos abatê-los — disse Tahonka No em voz alta e sacou a arma. Sandal
empurrou o cano para baixo e apontou para um grupo de arbustos e árvores de troncos
finos.
— Para lá! — disse. — Vamos esconder-nos.
Correram o mais depressa que puderam pelos seixos que eram atirados para o alto e
desapareceu no esconderijo.
— O rio... — disse Sandal. — Ele desaparece na terra. Onde?
— Meia hora rio abaixo — respondeu Tahonka e fez pontaria. Atirou três vezes e
três projéteis de alguns milímetros saíram do cano da arma, em cujo interior foram
acelerados por um forte campo magnético. Três estrondos surdos ressoaram sobre a água
e duas explosões jogaram os perseguidores de um lado para o outro. Três deles caíram na
água.
— É muito longe para uma flecha — disse Sandal. — São em número muito maior,
e nos agarrarão se não formos muito rápidos. Corra, parceiro!
— Entendido! Atrás de mim.
Usando a força dos braços ossudos redondos e dos ombros largos, Tahonka No
abriu caminho entre a vegetação rasteira. Os dois combatentes fugiam depressa. Sandal
olhava constantemente para trás. Tinham sido vistos e os perseguidores eram cada vez
mais rápidos. A distância entre eles e os dois homens diminuía. Sandal continuou
correndo até que chegaram perto das árvores maiores.
— Continue correndo, parceiro! — disse Sandal. — Deixarei que passem por mim e
atacarei de trás.
— Entendido!
Tahonka passou a correr mais depressa em ziguezague em meio aos arbustos, saltou
por cima de árvores tombadas, espantou animais. Os movimentos dos arbustos
mostravam seu caminho para quem estava em cima. Sandal esperou com uma flecha na
corda até que os perseguidores estivessem à distância de um tiro. Os cenários eram
parecidos, com a diferença de que desta vez era menor o número dos verdugos, dos seres
detestados pertencentes ao enxame ou à Mastra Xanthomana. Cento e cinquenta metros.
A corda do arco de Sandal zuniu — a flecha atingiu um dos perseguidores que voava
junto à margem do rio. O forasteiro caiu quase sem fazer nenhum ruído e bateu
pesadamente nos arbustos levantando esguichos de água. Ondas semicirculares
espalharam-se a partir da margem. A segunda flecha de Sandal atravessou o rio de lado a
lado e arrancou o forasteiro que voava mais à direita da trajetória, atirando-o no meio das
árvores verdes.
Depois disso a arma pesada do ossudo trovejou cinco vezes em seguida. Houve
numerosas explosões à frente de Sandal e em cima dele e os perseguidores foram atirados
para os lados. Sandal abateu dois deles com sua arma silenciosa.
— Vamos em frente! — disse.
Quando se virou para fugir — ainda não fora visto — só contou quinze
perseguidores que voavam numa longa fileira, um atrás do outro, e pareciam saber muito
bem onde procurar o dono da arma. Atiravam e concentravam os raios de suas armas
num ponto em que os galhos se mexiam. Sandal esperou que passassem à sua frente e
derrubou os últimos dois.
Saiu correndo.
Um grito longo e gutural soou bem à sua frente. Seria um sinal? Sandal achou que
era e deixou-se cair no chão. Foi bem na hora, pois as bolas de fogo voltaram a aparecer
no meio dos perseguidores.
Mais alguns forasteiros morreram.
O resto atirava sem parar. Comunicavam-se por meio de gritos ligeiros e agudos,
desceram e tomaram-se invisíveis para Tahonka No. Sandal correu atrás deles.
Foi uma caçada difícil, uma luta atípica. Parecia que era a primeira vez que os
forasteiros lutavam de verdade, pois comportavam-se como guerreiros jovens e
inexperientes. Não sabiam nada a respeito da tática da perseguição, nada a respeito de
truques e golpes de astúcia. Confiavam exclusivamente nos trajes voadores e no poder
destrutivo de suas armas.
Sandal chegava cada vez mais perto da parede de fogo que se estendia sobre o
banco de pedregulho.
Parou, colocou uma flecha e atirou.
Mais um dos perseguidores morreu. Os outros pareciam não ter percebido nada.
Eram que nem formigas, lutavam por lutar, sem importar-se com as perdas em suas
fileiras.
— Parecem idiotas que não enxergam! — afirmou Sandal, desviou-se lateralmente
nas costas dos verdugos e entrou na água do rio. Ficou até que ela lhe chegasse à cintura.
Depois caminhou lateralmente sob a fumaça grossa e preguiçosa, andando cada vez mais
depressa à medida que a água ficava mais rasa.
Finalmente ouviu o ruído da queda-d'água.
Pôs a mão na boca e berrou o mais alto que pôde:
— Tahonka!
A resposta veio muito fraca, superando o ruído da água caindo.
— Estou aqui!
Sandal orientou-se e seguiu adiante. Olhara ora para o caminho, ora para os
perseguidores. Só restavam nove.
Depois de alguns metros o rio ficou mais estreito.
As árvores recuaram para ambos os lados, formando a extremidade norte de um
funil. A água espumava ao quebrar-se em algumas rochas afiadas. Tahonka No estava
pendurado em uma delas, fazendo pontaria nos perseguidores. Parecia indeciso, sem
saber se devia atirar ou não.
A água do rio subiu, a correnteza ficou violenta até que o líquido se precipitou num
buraco formando um ângulo de quarenta e cinco graus. O buraco não tinha mais de vinte
metros de diâmetro. Um redemoinho girava e do abismo subia um ruído que mostrava
que um jato de água muito forte atingia uma superfície de água.
— Para o lado! — gritou o ossudo.
As aljavas de Sandal encheram-se de água, suas roupas ficaram molhadas.
Empurrou-se e nadou para perto de Tahonka No. O forasteiro atirou várias vezes, jogou
os braços para cima e deixou que a água o arrastasse. Sandal teve a impressão de que seu
coração ia parar de bater. Será que o amigo fora atingido?
O redemoinho alcançou o jovem guerreiro depois de ter sido arrastado pelas ondas
uns três ou quatro metros. Sandal girou violentamente, ficou meio atordoado e enquanto
olhava para cima para orientar-se viu o segundo grupo de perseguidores atrás do véu de
espuma.
Eram cerca de cinquenta...
Sandal caiu cinquenta metros. Respirou profundamente antes que a água o agarrasse
e apertasse para baixo. Sandal esperneava e nadava que nem um louco. Viu luz, rompeu a
superfície e viu a coluna de água descer trovejando a quinze metros do lugar em que
estava. A água levou-o muito depressa.
— No! — gritou enquanto cuspia água.
Nenhuma resposta. No fora atingido. Que pena — fora um bom amigo e um
excelente lutador. Sandal não teve tempo para entreter-se com as emoções. Tentou
afastar-se mais das ondas trovejantes. Finalmente, depois de alguns minutos, alcançou
águas mais tranquilas e pôde olhar em volta.
— Subterrâneo! Um lago subterrâneo! — disse em tom de espanto.
Suas palavras foram mutiladas pelo eco.
— No! — voltou a gritar.
— Sandal! — veio a resposta do outro lado do pavilhão subterrâneo.
— Estou aqui! — gritou Sandal, pisou na água e fez o corpo subir. Não viu sinal do
ossudo. — Para cá! Siga a luz! — gritou.
Sandal sorriu. Tahonka No escapara vivo. Olhou em volta e viu que o lago
subterrâneo era enorme.
Tinha cerca de dois mil metros de comprimento, era de formato bastante irregular, e
no lugar mais largo, que parecia ficar perto do redemoinho, tinha cem metros. Do teto,
que ficava a mais de cinquenta metros e descia à medida que se penetrava na montanha,
desciam largas trilhas de luz, raios solares nos quais dançavam partículas de pó, insetos e
pingos de água. As aberturas geralmente eram redondas, mas de vários tamanhos.
Tahonka No segurou-se numa pedra. O ossudo acenou para Sandal.
— Para cá! Aqui não corremos perigo. A água é bem rasa.
— Entendi! — gritou Sandal e nadou devagar para onde estava o amigo.
A caverna ressoava com o ruído surdo do jato de água redondo, que girava
ininterruptamente e exibia um anel de espuma na extremidade inferior. Sandal teve a
impressão de que havia vapores mais para os fundos da caverna, mas também notou que
não estavam sendo perseguidos. Não se via nenhum perseguidor, nem mesmo em cima
das entradas de luz redondas.
— Pensei que tivessem acertado você — disse Sandal em tom de recriminação,
embora no íntimo se sentisse satisfeito.
— Não. A água começou a ferver perto de mim — explicou o ossudo. — Não me
senti muito à vontade.
— Compreendi.
Sandal sentiu chão firme sob os pés, chegou mais perto e apoiou-se na rocha ao lado
do ossudo. O jovem guerreiro não se sentia nada à vontade. Tinha a impressão de que
inúmeros olhos ocultos o contemplavam das profundezas do lago subterrâneo. Olhou
cuidadosamente em volta. Viu paredes de rocha arredondadas com inúmeras paredes
escavadas pela água, algumas quedas-d'água pequenas que desciam junto às paredes,
blocos gigantescos que podiam soltar-se a qualquer momento soterrando os fugitivos.
Nos fundos da caverna realmente havia vapores, poeira ou névoa levantada pela água. O
burburinho e estrondo da queda-d'água misturava-se ao borbulhar das bolhas de ar
arrebentando.
— Por enquanto não corremos perigo — disse Tahonka No e levantou a arma.
Estava encharcada, mas parecia que funcionava. — Os verdugos só podem passar pelo
redemoinho como nós ou atravessar as entradas de luz. Se vierem pelas aberturas, eu os
mato.
Sandal, que continuava olhando as paredes e o teto, informou:
— Quando estava afundando vi mais um grupo. Eram muitos. Estão à nossa procura
de novo.
O braço ossudo apontou para a direita, para o sul.
— São cerca de três das unidades de comprimento que você chama de quilômetro,
Sandal. É o trecho que temos de andar na água e nadar. Depois chegaremos a duas
aberturas onde o rio volta à superfície. Elas ficam à esquerda e à direita do morro das
agulhas.
— Quando chegarmos lá estarão à nossa espera — disse Sandal.
— Que estejam! — respondeu o outro. — Vamos enganá-los. Dois combatentes
como nós...
— No momento não passamos de combatentes molhados! — constatou o homem de
cabelos brancos.
Andaram devagar para o sul, procurando manter-se junto às paredes. Talvez
houvesse uma possibilidade de sair da água. Mas por enquanto não se tinha esta
impressão. As horas foram passando, e a paisagem subterrânea mudava constantemente.
Finalmente, quando o vapor chegava cada vez mais perto, os estranhos capacetes dos
perseguidores apareceram em uma das entradas de luz.
— Cuidado! — gritou o ossudo e atirou.
Sandal mergulhou. Foi uma ação reflexa. Um raio de fogo branco entrou na água
chiando junto à sua cabeça, levantando uma nuvem de vapor. Uma torrente enorme de
bolhas subiu enquanto o estouro de três detonações se multiplicava na caverna.
Dois instaladores do “Enxame” caíram devagar sobre a borda do buraco e desceram
como que em câmera lenta.
Enquanto isso lascas de pedra e estalactite começaram a soltar-se junto a um
gigantesco bloco de rocha.
Sandal veio à tona, olhou para cima e gritou:
— O bloco, No! Está caindo!
No demonstrou um enorme sangue-frio. Apontou a arma para outro buraco, atirou
três vezes e mergulhou. Nadou na direção de Sandal a braçadas enormes. O guerreiro viu
que parte da estrutura óssea de Tahonka No parecia ter-se enchido de ar. A pele levantou-
se sob o efeito de bolhas ficando tensa e brilhante.
Uma saraivada de pedras desceu, assinalando o lugar em que o bloco trêmulo
despencaria dentro de instantes.
As pedras... batiam a pequena distância atrás e dos lados de Tahonka No.
Sandal berrou de medo e ansiedade:
— Mais rápido!
O tronco do amigo saiu obliquamente da água e redemoinhos de espuma
apareceram dos lados da cabeça e atrás do corpo. Tahonka disparou na direção do amigo.
Sandal estendeu a mão e agarrou o braço de Tahonka no momento em que o bloco caiu.
Girou várias vezes, os dois respiraram com dificuldade, e finalmente uma avalanche
de água espalhou-se para todos os lados e subiu quase até o teto. A onda atingiu Sandal e
Tahonka atirando-os de um lado para outro, cobrindo-os de água e afastando-os. A água
revolta voltou a acalmar-se aos poucos.
— Vivemos... perigosamente — fungou Sandal. — Que surpresas nos estarão
reservadas atrás desses vapores?
Nadaram devagar para poupar as forças. Sandal não aguentaria nadar por muito
tempo com todo o equipamento e as roupas molhadas. A máquina tradutora funcionava
perfeitamente.
Chegavam cada vez mais perto do véu de vapor que subia da superfície e girava
numa grande espiral ascendente, saindo por um conjunto de aberturas no teto como numa
chaminé. Sandal segurou o ossudo.
— De onde vêm os vapores? — quis saber. Tahonka No apontou para baixo.
— Estamos numa região vulcânica — disse. — São gases quentes saindo do chão,
atravessando a água e aquecendo-a. Não sentimos nada porque somos levados pela
correnteza.
— São gases mortais? — perguntou Sandal.
— Não sei. Só vi de cima — informou o ossudo.
Sandal tentou resistir à corrente que queria arrastá-los e olhou atentamente para os
lados. As paredes eram lisas e brilhantes. Não era possível subir nelas. Logo, teriam de
atravessar a nuvem de vapor a nado.
— Breve estaremos cozidos — disse Sandal. — Ou assados.
— Não acredito que a água seja tão quente — respondeu Tahonka No. — Aguento
mais tempo embaixo da água que você. Nade na frente, Sandal. Ponha o arco no ombro,
que ele o ajudará a nadar.
— É verdade.
Sandal respirou profundamente várias vezes e enfiou a cabeça e os ombros através
do arco. Em seguida atirou-se para a frente e mergulhou. Na terceira braçada começou a
sentir bolhas quentes subindo, mas elas não se misturavam muito bem com a água fria.
Sandal nadava o mais depressa que podia, mas ainda se encontrava na zona de água
quente. Aproximou-se cuidadosamente da superfície ao notar que suas reservas de água
estavam acabando.
A cabeça veio à tona, a boca abriu-se e com a garganta borbulhando de sofrimento
inalou o vapor morno e sufocante. Os gases que se misturavam ao vapor pareciam
narcotizantes e Sandal começou a sentir tonturas. Fez um grande esforço, reprimiu a ideia
de resistir e continuou nadando automaticamente. Registrou no subconsciente que a água
estava ficando mais fria. A mão dura e ossuda do amigo puxou-o para a frente e para
cima pelo cinto.
Tinham passado.
— Calma, calma! Respire devagar — disse Tahonka No enquanto mantinha a
cabeça de Sandal em cima da água.
Sandal obedeceu quase sem se dar conta disso.
Aos poucos foi recuperando o autocontrole. Abriu os olhos e olhou para cima.
Viu os meandros de uma grossa rede negra em cima de sua cabeça. Um funil de
cordas caiu lentamente do teto.
Sandal gemeu.
11

No lugar em que estavam, onde a água era mais rasa e estreita, as paredes da
caverna subterrânea quase se juntavam. O teto era de um material quebradiço, que
deixava entrar luz e calor por numerosos buracos pequenos. De cada saliência da rocha
desciam teias de aranha grossas e elásticas. A aranha esperava as vítimas trazidas pelas
águas do rio ou as que caíssem de cima, onde havia um grosso veio de sal incrustado na
rocha, que os animais costumavam lamber.
Sandal cochichou com a voz rouca, quase sem forças.
— Que é isso, Tahonka?
— Não sei — disse o ossudo, puxou Sandal para perto e manteve-o de pé enfiando
seu braço sob a axila do amigo. Segurava a arma na mão esquerda e olhava atentamente
para cima. — Não sei, não sei mesmo. Só vi os vapores de cima.
Sandal engoliu em seco, passou a respirar mais devagar e seus olhos clarearam.
Viu a “aranha”.
“Será que nos atacará?”, pensou preocupado. Suas flechas não serviriam para nada,
e ele não sabia se a arma energética estava funcionando.
Uma rede afunilada estendia-se sob o teto e outro funil, menor que o primeiro,
balançava lentamente de um lado para outro. Sua abertura apontava para os dois homens.
O animal, que parecia uma aranha de tamanho aumentado de Exota Alfa, estava sentado
no ponto de junção das pontas dos funis e controlava com as pernas longas e finas, que
terminavam em garras, os fios mais grossos que o pulso de Sandal.
— Atire! — cochichou Sandal. — Antes que a aranha nos ataque.
Foi a hora de Tahonka No dar uma prova de sua força e habilidade. Saiu nadando
depressa, arrastou Sandal e atirou três vezes para cima. Desfez numa tremenda explosão
o ponto de junção das duas redes. A rede inferior desceu enquanto uma segunda explosão
despedaçava o corpo do animal de rapina silencioso. O terceiro tiro rasgou a rede
superior.
Os dois estavam mergulhando por baixo da rede quando seus restos caíram na água.
— Passou! — disse Tahonka No em meio ao ruído da água que era cada vez mais
forte. — Só falta mais um banco de pedras.
Sem que se tivessem dado conta, o rio carregara-os muito depressa para o sul.
A luz ficou mais forte, a respiração tornou-se mais fácil, o rio uma bifurcação.
Finalmente voltaram a encontrar chão firme sob os pés. Só então Sandal percebeu
como estava cansado. A última fase da luta seria decidida dentro de pouco tempo. Era ao
menos o que acreditava o jovem guerreiro.
Pisaram num banco de areia molhada acumulada pela água. As solas nuas do
ossudo e as botas de Sandal deixaram rastros profundos.
— Aqui fica a saída — passa à direita do morro das agulhas. É a maior das duas
saídas, mas é bem rasa. Do outro lado seríamos mortos assim que saíssemos da caverna
cheia de água.
— Quer dizer que nos esperam lá?
Sandal e Tahonka No entreolharam-se em silêncio.
— À esquerda há uma saída menor — explicou o ossudo. — A água é mais funda e
a correnteza mais forte, passando entre numerosas árvores e rochas. Você é capaz de
disparar as pequenas lanças silenciosas assim que vier à tona? Os dois grupos certamente
se dividiram para esperar-nos em ambas as saídas.
Sandal esperou que a máquina completasse a tradução e disse:
— Posso. Vamos pela saída menor. Acabarei sentindo frio se tiver de passar mais
tempo nesta maldita caverna cheia de água.
— Será a parte mais difícil da luta — advertiu Tahonka.
— Uma parte digna de um bom guerreiro, parceiro! — respondeu Sandal. Estava na
hora de acabar com isso. Com uma vitória ou uma derrota com dignidade. — Vamos!
Andaram para a esquerda. Sandal segurou o arco e algumas flechas na mão
esquerda e jurou que atiraria mais depressa e com melhor pontaria que nunca. Foram
entrando na correnteza cada vez mais forte, a luz aumentava, já viam as rochas pontudas
da montanha e então chegou a hora.
— Desça! — pediu Tahonka No.
Empurraram-se e mergulharam. A correnteza forte arrastou-os, fê-los girar e
impeliu-os através da passagem estreita. Ficaram embaixo da água. Quando levantou a
cabeça acima da superfície, Sandal viu as paredes verdes da margem e os forasteiros que
esperavam em cima dela. Sentiu um calor tremendo quando um raio atingiu a água perto
dele. Veio à tona, pisou em chão firme e atirou de dentro da nuvem de vapor.
A primeira flecha, a segunda, e depois foi o inferno.
O ossudo apareceu dez metros abaixo. Levantou a arma e atirou sem parar. Apontou
a arma de tal maneira que uma esfera explosiva foi parar ao lado da outra, limpando
ambas as margens.
Alguns seres levantaram vôo que nem aves espantadas. Sandal pegava flecha após
flecha e atirava, apesar da correnteza que puxava suas pernas. As explosões
ensurdecedoras transformaram as margens num inferno de fogo, vapor, fumaça e barulho.
Os cadáveres dos verdugos caíam na água e eram arrastados.
Dali a alguns minutos ambas as margens estavam em fogo. Sandal mergulhou,
deixou-se arrastar e subiu à margem cem metros rio abaixo, segurando o arco com a
corda entesada.
— Não há mais nada! — disse em tom decidido.
— Vencemos — respondeu a voz grave de Tahonka No a seu lado.
Sandal atirou o arco no capim, saltou na água e conseguiu recuperar dez flechas
intactas tirando-as dos corpos dos instaladores do “Enxame” que iam encolhendo.
— Agora — disse — vou comer e dormir e pegar um animal de montaria, aconteça
o que acontecer. Pela estrela fulgurante de Crater! Estou cansado e saturado de lutar.
— Eu também! — confessou o ossudo. — Mas vencemos, Sandal Tolk!
Os dois abriram caminho pela vegetação, entraram numa floresta de árvores
grandes, e foram parar numa clareira junto a algumas rochas embaixo das quais havia
areia. Não se via rastros, mas ouviam-se os ruídos de muitos animais espantados.
— É aqui que vamos ficar! — decidiu Sandal.
Depois de escalar a rocha viram ao longe os instaladores do “Enxame” que tinham
sobrevivido à luta, os verdugos temíveis conforme dizia No, afastando-se pelo ar.
Voaram para o norte, onde estavam os destroços de sua nave.
Tahonka No virou a cabeça. Viu as primeiras rochas pontudas, que eram as
menores, erguendo-se acima dele. Parecia que queriam perfurar as grossas nuvens em
movimento.
— Silêncio! — disse o ossudo. — Sono e silêncio. E comida.
Dali a uma hora um pequeno pedaço de condimentado com muitas ervas aromáticas
e enrolado em sua própria gordura girava em cima de um fogo pequeno e sem fumaça.
Sandal estava nu da cintura para cima. Só trajava a calça terrana, que surpreendentemente
ainda não se transformara em farrapos.
***
Tinham comido e bebido e apagado o fogo. Sandal cuidou de suas escoriações e
ficou preguiçosamente deitado no sol. Suas roupas estavam penduradas num galho ao
vento, muito bem camufladas. Sandal brincava com a larga pulseira de múltiplas
finalidades. Tahonka No estava deitado na sombra, embaixo de uma pedra, dormindo. O
ruído de sua respiração soava como um apito abafado, capaz de assustar qualquer animal
selvagem. O jovem bárbaro sorriu e olhou para o calendário do relógio.
Era o dia dois de dezembro de 3.441.
Sandal experimentou o aparelho. Estava funcionando, mas não conseguiu fazer
contato. Estava aborrecido por não ter obedecido a Atlan, mas sabia que aproveitara todas
as chances para entrar no “Enxame”, que por seus membros era chamado de caravana
cósmica ou Mastra Xanthomana. Contrariado, com o rosto de Chelifer na imaginação,
voltou a desligar o aparelho e deitou de lado.
Em seguida tirou do bolso da jaqueta o binóculo dobrável e examinou os arredores.
Depois de algum tempo viu uma manada de animais de montaria com vinte cabeças.
Pastava calmamente — ali estava sua nova tarefa. Sandal recolheu-se à penumbra,
checou as armas, pôs a arma energética destravada nas mãos e adormeceu no mesmo
instante.
Sandal Tolk acordou pouco antes do amanhecer. Era a primeira vez em muito
tempo que se sentia completamente descansado, muito bem-disposto e com uma vontade
indomável de fazer alguma coisa. Refletiu um instante, pegou um pedaço de corda,
recortou-o no comprimento certo e amarrou em cada extremidade do pedaço mais
comprido uma pedra redonda do tamanho de três punhos humanos. Girou a corda sobre a
cabeça produzindo um zumbido.
— Esses animais não são darcans — disse a si mesmo. — Mas suas reações não
devem ser muito diferentes.
Calçou as botas que já tinham secado e nem sequer foi obrigado a amolecê-las.
Ficou nu da cintura para cima. Só levou a faca. Afastou-se com muito cuidado, deixando
que No continuasse dormindo. Andou devagar que nem um animal selvagem na direção
em que os animais tinham pastado no dia anterior.
Ficou rastejando durante meia hora nessa direção e abriu as narinas; sentira o cheiro
dos animais. O vento soprava em direção contrária, e ele viu seus corpos na luz fraca que
parecia vir de todos os lados. O brilho de um luar ilusório parecia encher o interior do
“Enxame”. Pelo menos no lugar em que estava notado o fenômeno. Sandal aproximou-se
a cinquenta metros dos animais.
Olhou em volta, levantou, seu corpo confundiu-se com a silhueta de uma árvore.
— Quieto, esperando... — cochichou.
A floresta era mais aberta, havia uma clareira coberta de areia e capim cercada por
pedras. Se conseguisse fazer com que os animais se afastassem dele, sem dúvida
correriam para junto das rochas onde poderiam ser capturados. O segundo só seria
capturado depois de uma caçada difícil, mas Sandal não teve nenhuma dúvida de que
seria bem-sucedido. Afinal, centenas de cavans selvagens tinham passado por suas mãos.
Sandal segurou a corda na mão direita e andou abaixado, ficou de joelhos e desta
vez chegou a vinte metros dos animais até que um exemplar grande e robusto pusesse as
orelhas de pé. Sandal deu um salto, soltou um grito estridente e girou a corda por cima da
cabeça.
O grito e o ruído das pedras girando deixaram os animais quase loucos de um
instante para outro.
Sandal escolheu um animal, fez pontaria e lançou a corda.
— Ei! — gritou.
As pedras giraram, a corda esticou-se, o projétil atravessou o ar em alta velocidade
e acabou se prendendo nas pernas traseiras do quadrúpede robusto. O animal deu uma
cambalhota ao tentar fugir, ficou deitado e Sandal aproximou-se correndo. Amarrou as
pernas traseiras na altura dos tornozelos antes que a corda pudesse afrouxar, depois
enrolou a corda de atirar em torno dos pés dianteiros e amarrou as quatro pernas.
— Pronto!
Sandal deixou o animal, que se debatia violentamente, e voltou a segurar a corda.
Olhou em volta. A distância de fuga dos animais era relativamente pequena, a manada
voltara a reunir-se a duzentos metros dali e pastava calmamente. Só de vez em quando
um dos animais levantava a cabeça triangular comprida com as orelhas pontudas e
espiava para o lado em que estava Sandal.
— Só mais uma vez... — cochichou Sandal e aproximou-se com cuidado. Começou
a imaginar que o último ataque dos inimigos voadores ainda não representava o fim da
série de aventuras que teria de enfrentar. O planeta desconhecido iluminado por um sol
vermelho ainda escondia muitos segredos. No momento Sandal não via nenhuma
possibilidade de mexer-se para encontrar alguém que o levasse para junto do chefe do
Mastra Xanthomana. Só lhe restava tirar o melhor proveito possível de sua odisséia em
Vetrahoon em companhia de Tahonka No. Levantou, saltou para a frente e soltou a corda
que zunia.
A corda atravessou o ar, desceu e enrolou-se em tomo das pernas dianteiras de outro
animal robusto.
Sandal saiu correndo, atirou-se embaixo do corpo do animal caído e amarrou as
pernas. Enquanto os outros saíam num galope selvagem, Sandal levantou e examinou o
animal. A segunda parte, que era a mais difícil, ia começar.
Sandal voltou a sentar e fez uma rédea cortando pedaços de corda de tamanho igual.
Tirou os arames grossos da segunda aljava, que estava vazia, entortou-os e prendeu-os
dos lados. Depois pegou a faixa de couro que trazia na testa, amarrou-a em volta dos
grandes olhos negros do animal e prendeu a rédea na cabeça. Enfiou o bridão na boca do
animal e amarrou o que restava da corda em torno da barriga, fez um laço e deu um passo
para trás.
— Tomara que eu consiga! — cochichou. Desfez num instante o nó que prendia as
pernas. Eram compridas, e os cascos eram iguais aos de um cavam: pequenos, afiados e
negros. A pele parecia escamada e em alguns lugares viam-se pelos grossos e aveludados
de cor negra. As escamas ficavam nas juntas e cobriam parte das costas e da cabeça.
O animal levantou de um salto, sacudiu com a cabeça, soltou um grito estridente e
coiceou com as pernas traseiras. Sandal segurou o laço, deu um salto enorme para ficar
nas costas do animal e sentou pouco atrás da crina do pescoço.
O animal parou, saltitou, girava de um lado para outro, mas não correu. Sandal
pegou a rédea, puxou-a e soltou a fita que cobria os olhos. Mal acabara de enfiá-la no
cinto quando o animal se soltou num forte galope. Dava voltas em tomo da clareira,
saltava sobre troncos e raízes. Sandal estava firmemente alojado a quase dois metros de
altura, numa espécie de sela natural; em cima das pernas dianteiras do animal o
revestimento de escamas se transformava em pelos.
Sandal aumentou a pressão das rédeas e tentou conduzir o animal.
Este tentou derrubar Sandal. Corcoveou, virou-se em pleno galope, mas dentro de
meia hora Sandal conseguiu domar o animal.
Conduziu-o devagar, com o corpo dolorido e coberto de suor, ao lugar em que
estava deitado o outro.
A operação selvagem começou de novo.
Pouco depois do nascer do sol Tahonka No foi acordado por um grito. Sandal
cavalgou para junto da rocha levando mais uma montaria presa numa rédea curta. No
sentou e disse em tom de espanto:
— Acho que subestimei você, Sandal.
O aparelho que estava perto de seu pé direito fez a tradução correta. Quando
Tahonka No levantou para examinar melhor os animais, um forte trovão sacudiu a
paisagem.
Em seguida ouviram um zumbido oco, um uivo misterioso.
Os dois animais se espantaram.
12

Tahonka No atirou-se para a frente, agarrou o pescoço do animal e puxou a rédea


para baixo. Sandal estava em cima do animal assustado, que coiceava e mordia, com uma
espuma amarela nos beiços. Os dois dirigiam palavras tranquilizadoras aos animais
enquanto o barulho se quebrava no flanco da montanha das agulhas. Depois de alguns
minutos, quando o trovão ficou mais fraco perdendo-se ao longe, os animais se
acalmaram. Sandal apontou para o norte.
— E uma espaçonave pousando! — disse.
Já conhecia o cenário. A nave, que era muito menor, tinha a mesma forma da nave-
cogumelo do “Enxame” que pousara no planeta Teste Rorvic. Tinha cerca de quinhentos
metros de comprimento e voava com a ponta arredondada do chapéu do cogumelo para a
frente, em direção ao lugar em que tinha caído a nave-disco.
— Estou vendo — disse Tahonka No em tom insistente. — Depressa, Sandal!
Ficarão sabendo em que região nos encontramos e nos procurarão. Não deverão encontrar
pistas.
— Está certo. Segure os animais.
Sandal saltou das costas do animal, subiu na sombra do paredão saliente e vestiu-se
com uma pressa enorme. Voltou a amarrar a fita de couro branca na testa e colocou o
arco e a aljava nas costas.
— Está com sua arma? — perguntou em voz alta e segurou as rédeas do animal de
No.
— Vou buscá-la.
Dali a pouco saíram para a esquerda num galope ligeiro. Os animais brancos com
manchas escuras e escamas cintilantes na pele eram fáceis de dirigir. A nave pousou e
dali a instantes o ruído dos propulsores atingiu os ouvidos dos dois.
— Mais depressa! Temos de chegar à mata fechada — gritou Tahonka No.
Sandal constatou espantado que Tahonka No era um excelente cavaleiro, que ficou
calmamente sentado perto do pescoço do animal e guiava este com a pressão das coxas e
alguns movimentos das rédeas. Os dois contornaram devagar o pé da montanha
gigantesca. Atravessaram arbustos, passaram por árvores pequenas, mas a vegetação
ainda não era tão alta e fechada que pudesse escondê-los. Tinham de entrar na floresta
que ficava entre a montanha e a cúpula.
— Se formos atacados não pegue a arma, No! — gritou Sandal. — Poderiam
localizar a energia da arma de fogo. Deixe que eu atire flechas.
— Você tem razão.
Continuaram a cavalgada. Os animais empacavam cada vez menos. Sentiam que
estavam submetidos a uma vontade mais forte e geralmente obedeciam. Os dois homens
ficaram pendurados por cima dos pescoços esticados, o tamborilar dos cascos era o único
que ouviam. Atravessaram uma área coberta de lama branca, que ao secar se aglomerara
em figuras de formas variadas. Uma trilha longa de pó branco assinalava o caminho.
Uma esfera saiu da espaçonave e aproximou-se em alta velocidade. Sandal percebeu o
perigo ao olhar atentamente para trás.
— Lá vêm eles! — gritou. — Mais depressa! Vamos entrar ali.
A esfera, que era um barco espacial, aproximava-se em velocidade alucinante.
Parecia ser de vidro e apresentava numerosos orifícios, como os dois homens viram num
instante. Os animais fungavam e passaram a correr ainda mais depressa quando Sandal
bateu neles com o arco. Estavam cada vez mais perto da mata — parecia uma promessa
de segurança.
Os dois homens certamente já podiam ser vistos do barco espacial.
Eram pontinhos minúsculos movendo-se em alta velocidade pelo terreno vazio,
desaparecendo entre as sombras isoladas de pequenas árvores ou pedras, voltando a
aparecer e seguindo em direção à mata.
O barco espacial começou a atirar, mas o artilheiro parecia não ser bom. Colunas de
fogo levantaram-se do chão de ambos os lados dos cavaleiros, despejando terra e pedras
sobre eles.
Finalmente... a mata.
As primeiras árvores pegaram fogo ao serem atingidas pelo fogo do barco espacial.
Os dois animais disparavam entre os troncos delgados e entraram na luz mortiça, iam
cada vez mais devagar, e Tahonka No, que ia na frente, fez uma curva para o leste assim
que ficaram escondidos embaixo das copas das árvores.
Depois ouviram o matraquear estranho do barco espacial em cima de suas cabeças.
Permaneceu no mesmo lugar por algum tempo e voltou a afastar-se.
— Desistiram — disse o ossudo estupefato.
— Mas não nos esquecerão — objetou Sandal.
Olhou para o aparelho que trazia no pulso e viu que era o dia 3 de dezembro. O
barco espacial voltou à nave, e dali a meia hora ouviram o veículo espacial em forma de
cogumelo decolar. Os animais espantaram-se de novo ao serem atingidos pelo furacão de
ruídos.
— Pois é! — disse Sandal. — Ficamos sozinhos em Vetrahoon, amigo Tahonka.
Os dois se olharam. Tahonka soltou uma estrondosa gargalhada e apontou para o
sul.
— Escapamos aos vulcões — disse baixo e em tom pensativo. — Lutamos nas
cavernas do desfiladeiro, quase morremos afogados, escapamos por pouco de ser mortos
por vapores e gases incandescentes, passamos fome e matamos a aranha, abatemos a caça
e capturamos animais de montaria... Será que ainda existe alguma coisa capaz de
derrotar-nos?
— Um descuido nosso ou um comportamento leviano — opinou Sandal em tom
hesitante.
Cavalgavam mais devagar, orientando-se pelos raros raios do sol que passavam
entre os galhos. Seguiam para o sul, em direção à cúpula.
Sandal sabia que aquilo era apenas o começo de novas aventuras no interior da
caravana cósmica. Talvez um dia conseguissem fazer contato com Atlan e Perry
Rhodan... e rever Chelifer, a moça de olhos verdes.
Seguiram em silêncio.
Foi uma viagem para o desconhecido.

***
**
*
Enquanto Sandal Tolk e seu novo amigo procuram
novas aventuras, o rato-castor Gucky mete-se numa
aventura perigosa. Faz um contato parapsíquico — e
tenta lograr os ladrões de planetas...
Os Ladrões de Planetas — é este o título do
próximo volume da série Perry Rhodan.

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