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O ACIDENTE
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Ele estava diante de mim, embora ainda o visse como uma som-
bra. Sentia a cabeça anuviada, como se tivesse acordado depois de
ter bebido muito. Creio ter murmurado alguma coisa com dificul-
dade, como se naquele momento estivesse falando pela primeira vez:
“Posco reposco flagito regem o infinitivo futuro? Cujus regio ejus re-
ligio... é a paz de Augusta ou a defenestração de Praga?” e depois:
“Neblina também no trecho apenínico de Autosole, entre Ronco-
bilaccio e Barberino del Mugello...”
Sorriu-me com compreensão: “Mas agora abra bem os olhos e
tente olhar ao redor. Sabe onde estamos?” Agora eu o via melhor,
usava um jaleco – como se diz? – branco. Girei o olhar e consegui
mover a cabeça também: o quarto era sóbrio e limpo, uns poucos
móveis de metal e cores claras, eu estava na cama, com um tubo
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No dia seguinte fiz as malas. Desci com Paola. Pelo visto, o hos-
pital tinha ar condicionado, pois logo entendi, e só então, o que é o
calor do sol. A tepidez de um sol primaveril, ainda verde. E a luz:
tive que apertar os olhos. Não se pode fixar o sol: Soleil, soleil, faute
éclatante...
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“Bem, está claro que já sabe se virar com os sinais”, disse Paola,
“e aprendeu como andam rápido os carros. Pode tentar um passeio
sozinho ao redor do castelo e depois no largo Cairoli. Tem uma
sorveteria na esquina, você adora sorvete, eles vivem praticamente
à sua custa. Experimente o de sempre.”
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Recolhi de tudo. E eis King Lear (“que seja envolta na névoa que
o sol levanta dos pântanos!”). E Campana? “Da brecha dos bastiões
rubros corroídos, na neblina abrem-se silenciosamente as longas es-
tradas. O vapor maldoso da neblina imiscui-se entre os palácios ve-
lando o cimo das torres, as longas estradas silenciosas desertas como
depois do saque.”
Sibilla encantava-se com Flaubert: “Uma dia esbranquiçado pas-
sava pela janela sem cortinas, entreviam-se as copas das árvores, e
mais além a pradaria meio afogada na névoa que fumava ao luar.”
Ou com Baudelaire: “Ora um mar de neblina banhava os edifícios,
e os agonizantes no fundo dos hospitais.”
Pronunciava palavras dos outros, mas para mim era como se bro-
tassem de uma fonte. Talvez alguém te deflorasse, boca de nascente...
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