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O ser humano e seu enigma

Adolphe Gesché - belga,1928, professor em Louvain

Sem dúvida, queremos ser transparentes com nós mesmos, mas não o somos.
Talvez seja por aí que devemos começar para nos entendermos melhor. O ser humano é
esse ser sempre à procura de sua humanidade e do segredo que ela guarda. Questão em
nada acadêmica; é existencial, mexe conosco em questões de destinação. Porque
pressentimos que o fato de nos debruçarmos à beira de nosso próprio poço talvez nos
leve até ao sentido da nossa vida. Que eu não deva dizer um dia: “Será que passei ao
largo dela?”.
O desafio é incrível e atrativo, mas também terrível e ameaçador. É preciso
“aperfeiçoar o ser humano”. Não deveríamos nos enganar sobre o ser humano. Nessa
pergunta sobre nossa identidade concorrem várias coisas: a ciência, a afetividade, a arte,
a preocupação com os objetivos, a religião, a vida individual e em sociedade, a técnica
etc. E concorrem também várias mediações: a família, os outros, as Igrejas, o mundo e a
natureza, a ação etc. Todavia, se temos os fios da trama que faz o ser humano, ainda é
preciso evitar as armadilhas: tudo aquilo que pode nos deter de forma restrita a nós
mesmos, como, por exemplo, uma excessiva confiança na racionalidade ou na ação.
Ainda mais, no fundo e no recôndito de todas as coisas e de todas as mediações -
porque tudo isso não é suficiente para dizer todo o mistério -, encontra-se o reino dos
sinais: essa iniciação que nos faz de fato nascer para o mundo e que nos permite decifrar
a nós mesmos. Fomos educados (e-ducere: conduzir a partir de/para mais). Todos,
enquanto somos, fomos colocados no mundo graças a uma tradição (tra-dere, isto é,
trans-dare), que nos faz contrariar uma herança, nos propõe projetos e nos inicia à
invenção.
Ainda é preciso que tudo isso nos seja transmitido. Num verso enigmático,
magnificamente comentado por Hannah Arendt, o poeta René Cha assim se expressa:
“Nossa herança não foi precedida por nenhum testamento”. O que ele quer dizer? Que
efetivamente esta geração dispõe de uma herança, de uma tradição, de um patrimônio.
Há, portanto, alguma coisa. Não há, porém, mais testamenteiro, notificador, “escrivão”
para dar um sinal e dizer: é para ti “aquilo que recebeste de teus pais, para possuí-lo,
conquistá-lo” (Goethe). Estamos todos aí para dar um sinal ao herdeiro da humanidade e
lhe transmitir suas riquezas.
Elias Wiesel escreve que é capital hoje fazer uma “transfusão de memória. Aquilo
que também Jacques Attali expressa em seu romance La vie éternelle (A vida eterna): “Só
existe aquele a quem se deixa lembranças”. A tradição dos sinais não tem nada de uma
distração no passado; ela é a transmissão daquilo que faz nossa memória de homens e
de mulheres desta terra. “A realidade não se forma senão na memória” (Proust). Nós nos
damos sinal.
E como então não pensar no velho Heráclito, naquilo que foi chamado de o
“admirável fragmento” (A.-M. Frenkian)? “O mestre (anax) cujo oráculo está em Delfos
não o anuncia nem o esconde: ele significa (semainei)” (frag. 93). Ele também não
anuncia, como se pronunciasse palavras definitivas, que bloqueiam todo futuro e toda
liberdade. Ele não se cala, outro tipo de demissão, como se não tivesse nada a dar. Ele
significa, dá sinal, isto é, indica, mostra que já existem pistas e caminhos, e, ao mesmo
tempo, convida o “recém-chegado” a realizar a decifração de sua própria e nova estrada.
Haveria emblema mais belo do que esse de nossa missão?
Munido dessas citações, eu me pergunto o que a fé em Deus - essa é nossa
proposta - ousa trazer para a investigação comum. Esta, remetendo-se aos numerosos
testemunhos de nossos mais espontâneos discursos, assim como de nossas mais
precisas pesquisas, geralmente se apóia em três valores que, sem dúvida, devem
apresentar-se como essenciais e constitutivos. Um simples intinerário lingüístico,
mostrando listas de palavras recorrentes, impressiona pela emergência de três palavras-
chave, em torno das quais um grande número de outras se cristaliza. A palavra
racionalidade (com: ciência, profissão, verdade, transmissão do saber, técnica, formação).
A palavra sentido (com: valores, comunicação, perguntas e respostas, cultura, exigência,
desejos). A palavra destinação (com: finalidades, fé, Deus, religião, grandes questões,
referências, engajamento, Evangelho, oração, sagrado).
Aliás, a essa grade lingüística corresponde um curto ponto de referência histórico do
ensino. A época que nos antecedeu foi sobretudo (trata-se de ênfases) doutrinal, tanto no
plano profano como religioso, que corresponderia mais à racionalidade: verdades a saber
e a crer, conhecimentos. O período que estamos acabando de viver, que corresponderia
mais à palavra sentido, foi sobretudo sensível aos valores (sinceridade, justiça), à ética (o
outro, o próximo), à ação e ao engajamento. A época em que estamos entrando, e que
talvez se encontraria na palavra destinação, é antes uma época que fala de felicidade, de
ternura, de finalidades, de sentido do sentido, de pontos de referência.
Como não pensar em Kant e em suas três grandes perguntas que escondem o ser
humano e formam nele uma seqüência: “O que posso saber? O que devo fazer? O que
me é permitido esperar?” E talvez três grandes setores culturais revejam precisamente
essa antropologia e suas periodicidades históricas. A ciência não é preposta ao saber, à
verdade e à técnica? A filosofia, ao entendimento, ao sentido e aos valores? A teologia, à
salvação, à existência e à destinação? (O que explicaria que entramos de novo, em parte,
numa era “teológica”: “retorno do sagrado” etc.) As três eras de Augusto Comte
reaparecem, no fundo, mas sob a condição de compreender, acima de uma inegável
ênfase segundo as épocas, que são três estruturas fundamentais e concomitantes da
construção do ser humano.
Vamos então pegar nossas três palavras-chave, mas costurando-as uma à outra, a
fim de fazer uma análise mais longa. A meu ver, é aqui que se determina, ao menos em
parte, o engenho de nossa tarefa de seres humanos e de crentes confundidos, mas que
também se interpelam uns aos outros.
Apoiamo-nos desta vez numa citação de Thierry Maulnier: “O mundo nos envolve
com a tripla dimensão do sensível, do racional e do incompreensível”.
É evidente que o ser humano sempre terá necessidade de racionalidade. Somos
zoon logikon, “animal racional’ segundo a definição de Aristóteles. Isso já basta para
justificar nossa tarefa. E esse empreendimento de racionalidade (que não significa
racionalismo) se impõe tanto em matéria de fé como nos demais domínios. A teologia
encontra sua legitimidade e sua pertinência nesse dever de vigilância intelectual para que
fé e religião - é o risco que sempre estão correndo - não se tornem superstição,
aberração. Para evitar os desvios, prevenir os retornos sempre possíveis (não só entre os
outros, mas também em nosso meio) do obscurantismo, do fanatismo e do integrismo.
Esse dever de racionalidade, nós o temos para com todo ser humano.
Entretanto, e sob pena de um igual engano se ignorarmos isso, o ser humano não é
apenas racionalidade e luz. O ser humano é também enigma.
“Eu não sei o que sou, eu não sou o que sei” (Angelus Silesius). Há em nós algo de
indecifrável, de incompreensível, que permanecerá sempre, e que é até constitutivo de
nosso ser. E, portanto, de nossa formação. Não se constrói sem levar isso em conta.
Aprender a viver e a se estruturar com o enigmático parece-me ser, nos três níveis que
tracei (e, portanto, aí compreendido o nível religioso), um segredo para a educação do
amanhã.
Foi por isso que citei o oráculo de Delfos. O enigma é proposto a Édipo, que vai
interrogar-se ou interrogar o oráculo sobre o que ele é (“Homem, conhece-te a ti mesmo”
é o convite que está inscrito no frontispício do templo). Notemos, porém, que Édipo
“morre” querendo resolvê-lo, saturá-lo.
É no momento que responde à Esfinge que ele entra no processo mortífero que o
conduz ao assassinato do pai, ao incesto maternal e a furar os próprios olhos (ele, que já
era o homem de pés inchados, oidipous).
Não que não se deva procurar esclarecê-lo. Não, porém, querendo ou crendo que
se possa torná-lo completamente transparente. É quando Orfeu pretende ir até o fim e ver
tudo, que ele perde sua Eurídice e a perde no tenebroso inferno. É, em nossa Escritura,
quando a mulher de Ló, apesar do aviso, volta-se em direção a Sodoma e Gomorra, que
fica petrificada. Ela quis resolver tudo.
O enigma faz parte de nossa vida. Não é um resíduo miserável, que seria
conveniente abolir de vez. “Dai-nos enigmas para que nos entendamos”, assim se
expressavam jovens ao seu professor, como me foi um dia contado. Esse enigma que
habita em nós não é uma desgraça. Muito ao contrário; sem ele a racionalidade é um
engodo (um engano, um erro sobre o ser humano). Todo ser humano terá de aprender
sempre mais, para ser Humano e conviver com o enigma. Este não pode ser abolido: nem
pela racionalidade (esta não abrange toda a questão existencial), nem pela fé (falaremos
sobre isso), nem pela afetividade (mito do amor fundido), nem pela ação (ilusão das
ideologias), nem pela técnica (desespero do consumismo).
Todas essas dimensões da vida contribuem para realizar o ser humano e devem ser
buscadas sem parar. Entretanto, elas devem se inscrever de forma maior e mais
profunda, para que a pergunta persistente brilhe como uma lâmpada do santuário. Ser
humano, tu te destruirás se creres chegar ao fim do teu bem-aventurado e salutar enigma.
Há, em nós e ao nosso redor, em toda a realidade, uma parte de “noturnidade” (H. Bosco)
que nos constitui e com a qual, parte inextinguível, nós nos construímos. Por isso, será de
máxima importância reaprender a viver, e a viver sempre com (e eu sublinho: com, e não
contra ou apesar de) essa parte de enigmático que existe em nós, nos outros, no mundo e
junto de Deus.
Em nós: nenhum de nós é totalmente transparente a si mesmo. Magna quaestio
factus sum mihi, tornei-me para mim mesmo uma grande questão, dizia santo Agostinho.
E mil e quinhentos anos depois dele, um outro, bem diferente, o filósofo marxista Ernst
Bloch, dirá sobre o ser humano aquilo que a tradição profética e mística dizia a respeito
de Deus (Deus absconditus), que ele é um mistério escondido: homo absconditus, um ser
escondido a si mesmo. É também “o desconhecido de si mesmo”, como dize poeta
português Fernando Pessoa.
Nos outros: mesmo o amor mais perfeito não fornece a chave toda, nem a resposta
completa sobre nós mesmos e sobre o outro. Pensemos uma vez mais em Orfeu e em
Eurídice. Do mesmo modo que a racionalidade, a afetividade também não resolve. É o
erro, tão bem denunciado pela psicologia, o erro imaginário e mítico, que tornamos a
repetir, de um amor fundido. A esse respeito, nossa cultura, felizmente menos eriçada do
que antes nesses domínios da afetividade, não nos deve fazer crer que tudo se encontra
resolvido nela:

O século XX, que se orgulha de ter libertado a sexualidade e que gosta de zombar
dos sentimentos românticos, não soube dar à noção de amor nenhum sentido novo, é um
dos naufrágios deste século, de tal modo que um jovem europeu, quando pronuncia
mentalmente essa importante palavra, se vê transportado nas asas do encantamento,
queira ele ou não, ao ponto exato onde Werther viveu o seu amor por Lotte.
No mundo: a ciência e a sua racionalidade não abarcam toda a realidade. A
Aufklärunk, o século das Luzes, precisamente, acreditou, e isso foi a modernidade, que o
conhecimento pudesse iluminar tudo. E certamente essa tarefa foi indispensável contra
todos os obscurantismos, e ela continua em todos os lugares onde ainda nos espreitam
os mesmos demônios do fanatismo. Contudo, hoje nós já entramos na pós-modernidade,
que não acredita mais que tudo seja transparente. Já a primeira e famosa “era da
suspeita” havia feito, por meio de seus nomes ilustres (Nietzsche, Marx e Freud), uma
primeira brecha nessa segurança. Mas não sem suas próprias ilusões de que a
racionalidade estancaria toda obscuridade. Creio que entramos na era da suspeita da
suspeita (não sei bem quais nomes citar aqui: Paul Ricoeur, Julia Kristeva, Hannah
Arendt? Não é à-toa que encontramos aqui duas mulheres; sinal de que estamos
entrando numa nova era?). A realidade não é transparente de lado a lado. Mesmo na
ciência: Heisenberg, e seu princípio de incerteza; lIya Prigogine e lsabelle Stengers
dizendo-nos que a realidade é imprevisível (salvo exceções, aquelas que a ciência
clássica arrola), e que ela o é não por defeito e fraqueza de nossas possibilidades de
conhecimento, mas porque a realidade é sem previsibilidade.
Junto de Deus: Deus não deve servir para resolver nossos enigmas. Certamente
Deus e seu Cristo dão sentido; do contrário, o que ainda significaria o termo salvação? E,
a esse respeito, gosto muito do tema do “Deus gratuito”. Entendo, porém, o que esse
tema quer dizer, e lhe atribuo uma vontade de expressar, precisamente, que Deus não
está aí, mesmo que dê sentido, para dar sentido, para servir a dar sentido. Deus não está
preposto aos significados, funcionário de nossas utilidades. Senão Deus seria esse Deus
“utensílio” que Heidegger estigmatizou muito bem por meio dessa palavra, apesar de ela
não ser muito bonita. Deus não se reduz a ser o fundamento, o Grund que certa teologia
filosófica buscava. O próprio Deus habita numa coluna de nuvem (cf. Ex 33,21), numa
obscuridade, e temos de coabitar com a nossa. É mais ou menos como a “nuvem do
desconhecido”, da qual fala um místico inglês anônimo do século XIV. É preciso falar de
Deus, mas não para pô-lo a reboque, mesmo a reboque do sentido.
Não se pode, portanto, dissolver o incontível. Nem pela racionalidade, nem pela
afetividade, nem por Deus, e nem pela ação, pelo sentido ou pela moral. Nem mesmo,
portanto - insisto, porque é aí que nossa vigilância se exerce - pela fé, embora deva ser
proposta; porque há aí justamente um domínio de chaves e de signos que dão sentido,
mas que não realizam sua saturação. Se cremos em Deus, é por ele mesmo. Ele não
pode ser utilizado, sem se tornar então, e por isso mesmo, um falso deus.
E o que é um falso deus, senão aquele que nos remete a nossas idéias míticas
todo-poderosas e portentosas, totalmente transparentes? Os falsos deuses são
exatamente aqueles dos quais podemos nos apropriar, colocá-los ao nosso serviço,
porque podem resolver magicamente e sem nenhuma provação. Nosso Deus não é esse
sedutor. E seu Cristo também não quis esvaziar seus próprios enigmas. Ele gritou numa
cruz, e sem a dignidade de um Sócrates, o enigma de um abandono; ele desceu a um
inferno, ao seu inferno de morte, e é somente porque aí entrou, porque não recusou o
enigma, que ele ressuscitou e recebeu resposta (diferentemente de Orfeu e da mulher de
Ló); ele renunciou à magia da onipotência (já que sou o Filho de Deus, eu poderia apelar
a legiões de anjos) e do milagre (se és o Filho de Deus, salva-te a ti mesmo). Foi porque
ele viveu até o fim certa agonia do sentido e da evidência (O Filho do Homem não
conhece nem o dia nem a hora; ele não tem nem uma pedra onde repousar a cabeça)
que ele ganhou. Ele nos ensina que o enigma salva, constrói, pode ser salutar, que não é
preciso tentar expulsá-lo; isso seria vão e nocivo. Todos nós temos lutos a trabalhar e que
não podemos evitar.
O ser humano deve se construir com esse “insuportável” com esse indizível que
está nele. Isso que nele habita não é um desastre. “O laço que não se vê é mais forte do
que aquele que se vê” (Heráclito). Nossa educação seria, portanto, falsa e destruidora,
caso acreditasse ou deixasse acreditar que se pode dissolver o incontível por meio dos
enredos da racionalidade (as “artimanhas da razão”) ou pelos sucessos da técnica. A
técnica e a racionalidade - que são simples serviços do ser humano para metas maiores -
é que perderiam todo o seu sentido. “A única coisa certa é que eu nada encontrei no céu
[cósmico] que possa explicar a destinação” (Kepler). Há aí uma tarefa especialmente
importante de nossa civilização, que se exerce hoje, na fronteira de uma época que se
interroga sobre suas proezas e de outra que redescobre os grandes questionamentos.
Como crentes, falando a nós mesmos e propondo aos outros, temos aqui nossa
responsabilidade. Se o ser humano não está preparado para viver esse enfrentamento
com a opacidade e o mistério (aliás, essa palavra pertence ao vocabulário cristão), a vida
será de fato impossível de ser vivida. O perigo de qualquer formação é dar a ilusão de
respostas completas, seja no campo da racionalidade, da afetividade, da moral ou do
divino. “Quem procura a verdade deve estar preparado para o inesperado, porque ela é
difícil de ser encontrada e, quando encontrada, é desconcertante” (Heráclito) Não
podemos nos dispensar dessa lenta e longa marcha, a qual está distante de respostas
apressadas e imediatas, no fundo mágicas.
O ser humano, embora se construa com a racionalidade, o sentido, a afetividade,
com a ação e com Deus (se nele crê), se constrói também com esse “insuportável” que é
o indizível, o insaturável (o ser humano gostaria de sempre rasgar esse véu, mas deve
saber e poder assumi-lo). Se não está preparado para esse enfrentamento, a vida será
realmente impossível de ser vivida. Será um mal-viver. Poderá perder-se sua qualidade
de ser. O perigo é dar a ilusão de respostas completas (mesmo na afetividade, o ser
humano vive o incontível, que nunca apresentará a sua razão nem o seu coração de
forma absoluta).
A esse respeito, não se trata nem mesmo de relatos de interdito em que não haveria
lugar para restituir a importância em nossa construção de ser humano. Eles não são
essas “maldosas interdições” de uma divindade ciumenta e arbitrária. Expressam
soberanamente esse limite enigmático de nosso ser e de nosso agir, sem o qual, salvo
casos excepcionais de transgressão devida, nós nos destruímos. O que são os três
grandes interditos - incesto, assassinato e idolatria - senão a impossibilidade, que nos é
significada, de crer que podemos suprimir todo enigma?
O enigma da afetividade, por causa da ilusão que se poderia dispor numa relação
imediata e completa, sem a obscuridade e o imponderável da diferença. O enigma do
outro, como fez Caim, por causa do assassinato, gesto brutal e impaciente que quer
suprimir o mistério “insuportável” e sempre incontível do irmão. O enigma do sagrado, por
causa da idolatria que quer substituir exatamente o Deus diferente e verdadeiro pelo deus
fácil e tranqüilizador do reflexo de si mesmo no espelho. O enigma do saber, por causa da
racionalidade ou da magia, como aconteceu com Adão e Eva, ao pretenderem tudo
imediatamente e tudo conhecer (talvez porque todos os interditos protejam
fundamentalmente o enigma do conhecimento).
É por isso que devemos reler, uns para os outros e para nós mesmos, os grandes
relatos míticos e fundadores - somos “desbastados” por eles (cardeal Daneels), esses
grandes relatos que nos falam das finalidades. Precisamos progredir na busca
imprescindível de razão, de amor e de sentido, mas nunca acreditando ou fazendo
acreditar que podemos domá-los. É precisamente esse o sentido do que chamamos de
“grandes questões” e que hoje retornam com mais força. O espantoso - e é também por
isso que eu quis fazer todas essas citações - é que muitas vezes é fora do serralho cristão
que elas voltam à memória, como se tivéssemos ficado mudos - sem dúvida cristãos que
se tornaram demasiadamente sensíveis às questões seculares. Descobrimos esses
grandes questionamentos, com as quais os mais ilustres e, em todo caso nessa relação,
os menos suspeitos dentre nós se defrontaram. Como Nietzsche: “Os grandes problemas:
Deus, a alma, o sentido da vida, zomba-se muito deles neste mundo em que estamos!
Não é bonito nem de autêntica nobreza o drama de um ser humano (Nietzsche) para
quem tais questões nunca deixaram de ser capitais, e que morreu ao sentir que as estava
perdendo” (H. Guillemin).
Fazer as pazes com as grandes questões de destinação e de finalidade, e
principalmente com a questão de Deus, não é procurar um fundamento que resolva todo o
problema. É procurar Aquele que, sem nos cegar (ele não pede que o entendamos face a
face, porque, nesse sentido, “não se pode ver a Deus sem morrer” diz a antiga Escritura,
e são Paulo nos lembra de que o conhecemos somente in aenigmate: talvez seja uma
boa notícia e não um desastre) - é procurar Aquele que, sem nos cegar (ele não é o deus
do olhar), mantém em seu enigma benfazejo a lâmpada tremulante e frágil do santuário,
não o farol deslumbrante das Luzes. “Assim se tornou ainda mais firme para nós a palavra
dos profetas, que fazeis bem em ter diante dos olhos, como uma lâmpada que brilha em
lugar escuro, até clarear o dia e levantar-se a estrela da manhã em vosso coração” (2Pd
1,19).
Elogio da noturnidade em nosso questionamento sobre uma Transcendência que
não está aí para nos apagar! É preciso reencontrar a linguagem, a “retórica”: uma retórica
que “leve o Absoluto a passear pelas ruas da cidade”; é somente uma vela: “o Absoluto,
eu nunca o encontrei, mas o conheço como aquele que sofre de insônia conhece o sono;
como conhece a luz aquele que conhece a escuridão?”
Será mais necessário do que nunca saber viver com perguntas, embora sempre se
procurem e se proponham respostas - o ser humano não é feito para um questionamento
incessante; isso também seria destruidor, tão destruidor como um saber absoluto.
Todavia, diferentemente das respostas que são freqüentemente frágeis, as perguntas são
sempre inteligentes, precisamente por não serem completas. As perguntas esperam por
respostas. “As palavras são realmente lâmpadas atrás das idéias.” As perguntas
continuam vivas e, aliás, são elas que, sempre despertas, dão seu sentido às respostas -
que, senão, não são mais respostas (respostas a), mas propostas fossilizadas (que não
respondem a nada e, portanto, não são mais respostas).
No mais, as verdadeiras respostas também não são completas. Não há dúvida de
que aqui precisamos ficar atentos ao que, ao lado das famosas “grandes questões” eu
chamaria de “grandes respostas”. Em certo sentido, não somos todos nós, desde o
nascimento, precedidos e munidos de respostas? Nós não nascemos sem bagagem
(Ricoeur). As respostas não antecedem às perguntas? Não as provocam? Elas são
exatamente como enigmas, e enigmas a serem interrogados. O fato se sermos assim
precedidos não é uma oportunidade? Como começar sem ser iniciado? E o problema da
vida não pode ser outro senão saber interrogar as respostas. Esse tipo de “grandes
respostas” é a herança da qual falei no começo. Tais respostas, num certo sentido, são
perguntas: elas estão aí para nos interrogar. E, ao mesmo tempo, possibilitam as
perguntas: elas estão aí para serem interrogadas. As grandes respostas são perguntas
que interrogam e que se interrogam. Como diz Claudel a respeito da cor: “Uma produção
da coisa enquanto interrogada pelo raio de luzI”.
Não seria exatamente ai que nos encontraríamos, nós que somos enviados como
portadores de sinais? Penso na maiêutica de Sócrates, que servirá aqui de modelo para
nós. Pôr no mundo, transmitir respostas que vão ser interrogadas e escrutar enigmas
venturosos, que devem ser decifrados para aí encontrar o segredo de nosso ser. Sem
dogmatismo e sem ceticismo. “Eu não saberia dizer quem me irrita mais: os que nos
proíbem de saber seja lá o que for, ou aqueles que não nos deixam nada, nem mesmo a
ignorância” (Sêneca; note-se a espantosa semelhança dessa carta do filósofo estóico a
Lucílio com o comentário de Heráclito sobre o oráculo de Delfos). Questionar as respostas
é colocar as “grandes questões”, justamente porque há aí a parte do desconhecido à qual
nunca dizemos adeus, mas que nos faz viver.
“Como viver sem o desconhecido diante de si?” (R. Char). E essa é a resposta, seja
ela laica ou religiosa, que se dá à vida. A parte do ser humano é essa parte do
desconhecido, essa “noite talismânica” que ele deve assumir e integrar como parte de si
mesmo e do mundo Santo Tomás, pouco suspeito, nos garante que no próprio Deus,
entre as Pessoas da Trindade, há um “resto” incomunicável. Se há enigma em Deus...
A iniciação ao ser humano não pode produzir o impasse sobre a noturnidade. “Não
se deve ofender as divindades do sonho” (G. de Nerval). A esse respeito, os mitos são as
respostas-perguntas por excelência das quais necessitamos, cada um por sua vez,
sempre que encontrarmos a nós mesmos na encruzilhada de nossa Tebas. Não podemos
dispensar os mitos, dizia Platão (dei mythologein). Não podemos privar os jovens dele.
Sejamos para eles Tirésias a beira do caminho. “Ela (Golischa) congratulou-se por esse
silêncio e disse a si mesma ter sido bom que o cego não tivesse tentado reduzir o abismo
do enigma.” Os contos e os relatos são precisamente esses poços à beira dos quais
aqueles que nos seguem extrairão a sua água:
No fundo de nós, os contos são como os tesouros de uma caverna prodigiosa. Seria
insensato não levar a sério esses divertimentos aparente mente sem peso. Alguns sábios
do Oriente pensam que a história certa, dita no momento exato, é capaz de iluminar quem
a ouve, isto é, ensinar-lhe aquilo que nenhuma outra explicação, por mais inteligente que
seja, saberá dizê-lo”.
Será que tais mitos e tais relatos nos afastam de nós mesmos? Muito pelo
contrário, eles nos constroem ao nos contarem histórias “imaginárias” que nos permitem,
assim munidos de chaves e de antecipações, entrar na história “real” e decifrar a sua
experiência que, de outra forma, seria inteiramente opaca. Até perigosa, como mostrou
muito bem Bruno Bettelheim. Mais uma vez e sempre, não se pode abordar a vida
acreditando-a evidente. “A ambigüidade é a primeira garantia de eternidade. Os mitos,
porque são ambíguos, duram muito mais tempo do que os fatos. O que podemos fazer de
melhor, a não ser perpetuar de geração em geração seus “sinais e prodígios”?
Os mitos são aves de arribação que voam de memória em memória. Não somos
apenas galhos sobre os quais essas aves pousam. Há galhos sem pássaros. Há pássaros
sem galhos. Não há lembranças sem alguém para transmiti-las. Não há mitos sem
civilização para fazê-los viver. Os seres humanos, portanto, não têm valor a não ser que
transportem para mais longe do que eles mesmos os sonhos de seus ancestrais.
Pode-se dizer melhor aquilo que devemos ser?
Não estamos num mundo de evidências e de imediateza. Não nascemos como o
filhote de animal, ao qual basta uma simples aprendizagem para sobreviver. Temos
necessidade de iniciação para sermos instruídos no labirinto de nosso passado e de
nossa gênese, a fim de sermos capazes (que bonito e sublime jogo da amarelinha!) de
nosso futuro e da novidade, Ser de cultura, o ser humano é o ser que nasce para a sua
humanidade aprendendo, dizia santo Tomás. Ensinar é iniciar; e iniciar é recorrer aos
sinais e aos símbolos, ln-signare. Transumanar per verba, diz Dante (Paraíso) em seu
toscano ainda magicamente traspassado pelo latim. Fazer a criança passar para o
humano por meio de uma tradição de palavras de outro e de uma herança de símbolos.
“Eis o paraíso reencontrado, Somos envolvidos e penetrados pelo seu murmúrio latente,
por suas trevas resplandecentes”.
É por isso que recebemos sinais e chaves. Nesse sentido, é algo que temos em
comum, desde o começo do jogo, acreditando ou não: ser ensinados e ensinantes.
Ensinados e ensinantes, isto é, homens e mulheres para os quais se dá sinal e que dão
sinal. Porque essa é a etimologia dessa palavra (que se torna formidável): in-signare, isto
é, dar sinal, ser portador e doador de sinais, de chaves e de símbolos. O ensinante é todo
aquele que, tal como a insígnia em seu navio, aponta, designa aos mais jovens o
horizonte. Como também lhes transmite as lembranças e as lendas/legendas (legendum:
algo que está aí para ser lido) que nos transmitiram, e os mune de mitos e de histórias
que dão sentido e significam. Estamos aí para colocar gestos expressivos, portadores de
sentido e de vida. É o que todos nós esperamos uns dos outros:
Cada um de nós é um Atlas que carrega o universo nas costas [...]. Espera-se uma
voz que ordenará a ressurreição [...], encadeamento da profecia e de seu cumprimento
[...]. Há sempre um destinatário, ao qual nossas palavras, nossos atos, nossos
pensamentos são endereçados [...]. Aquele que, entre outras conseqüências,
reintroduzirá de maneira digna de fé elementos teológicos em nosso mundo.
Pois ainda e sempre não se deve enganar sobre o ser humano. Eis por que não
esqueceremos seu enigma e seu mistério. Não somos seres calculáveis. O crente não
precisa deixar de lado seus deveres de racionalidade, Mas temos também de dizer que o
ser humano, mesmo se ele se constrói com a racionalidade, com o sentido, com a
afetividade e com a ação, também se constrói com outra coisa. Sem o ministério da
ciência e da razão, o ser humano estaria em pouco tempo entregue ao desatino e ao
absurdo de seus falsos deuses. Soçobraria na loucura. Todavia, há também a parte do
infinito, do in-finito. Se ele não for acolhido, acabaremos no mal-viver:
A riqueza do ser humano é infinitamente superior ao que ele supõe. É uma riqueza
que nada pode tirar dele, e cuja onda ressurge sem cessar, a cada século. É isso que o
ser humano quer saber. Esse é o centro de sua inquietação temporal. Essa é causa da
sua sede. Quanto mais ele ganha terreno, mais se torna consciente, todo-poderoso, e
mais ele espera com razão do teólogo que [este] tire a água da rocha.”
Isso é esperar muito de nós? Não creio; muito pelo contrário. É esperar que
sejamos cavaleiros do Graal. Seríamos falsos mestres (como se fala de falsos profetas,
de falsos deuses e de falsos moedeiros) se nos contentássemos com respostas práticas e
imediatas:
Não faltará quem creia que Dom Quixote deveria ter falado com os cabreiros sobre
a questão das cabras. Tudo bem que Sancho fizesse isso, mas não o Cavaleiro. Dom
Quixote sabia muito bem que há somente uma questão, a mesma para todos, e que
aquilo que resgatará o pobre de sua pobreza resgatará ao mesmo tempo o rico de sua
riqueza. Aos diabos com os paliativos!
E então? Como o velho marinheiro de Coleridge, nós só devemos usar a palavra
para narrar a vida cotidiana. Aos diabos com os paliativos!
In: GESCHÉ, Adolphe. O ser humano. São Paulo. Paulinas,2003. pg.13-27.

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