You are on page 1of 4

Entrevista com Roger Chartier

Escrito por Stella Bortoni

A História em busca de uma nova objetividade científica

Entrevista: Roger Chartier, historiador francês

ÂNGELA RAVAZZOLO

Fronteiras do Pensamento

O historiador francês Roger Chartier é o conferencista internacional da nona semana do ciclo


Fronteiras do Pensamento, promovido pela Copesul Cultural. O curso, no Salão de Atos da
UFRGS, tem ingressos esgotados

O francês Roger Chartier é um dos principais estudiosos contemporâneos dedicados a pensar


a história do livro e da leitura, além das práticas de pesquisa e escrita entre historiadores. Na
próxima terça-feira, dia 22, ele apresenta na Reitoria da UFRGS a conferência História: Uma
Leitura do Tempo. Chartier, que esteve em Passo Fundo em 2003, participando da 10ª Jornada
Nacional de Literatura, diz que a cientificidade da história não pode ser encerrada no
paradigma das ciências matemáticas, mas tampouco aceita conclusões relativistas. Professor
visitante na Universidade da Pensilvânia e diretor, professor e pesquisador da École des
Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, Chartier concedeu entrevista ao Cultura, por
e-mail, desde Córdoba, na Espanha.
Cultura - O título de sua conferência é História: Uma Leitura do Tempo. Essa leitura evoca o
olhar pessoal e subjetivo do historiador, mas também pode evocar os documentos concretos
com os quais ele trabalha. Como o senhor entende a palavra leitura?

Roger Chartier - O título da conferência foi uma sugestão dos organizadores da série
Fronteiras do Pensamento, sugestão que aceitei sem embaraço, pois, de um lado, cada
interpretação histórica pode ser comparada a uma leitura, que dá sentido aos fenômenos
estudados. Por outro lado, a compreensão do entrecruzamento de vários tempos é, segundo
me parece, algo próprio do historiador. É por isso que em minha conferência farei alusão à
distinção clássica proposta por Braudel sobre os três tempos da história: a longa duração, a
conjuntura e o acontecimento. Eu acrescentaria duas observações: mais que a subjetividade,

1/4
Entrevista com Roger Chartier

Escrito por Stella Bortoni

os preconceitos ou as curiosidades dos historiadores, o que governa suas leituras do passado


é o conjunto de técnicas, conceitos e imposições que definem, em cada tempo e a cada
momento, aquilo que Michel de Certeau chamou de instituição histórica, ou seja, o lugar social
onde a história é escrita (nas universidades, mas, antes delas, na cidade, na corte do príncipe,
nas academias de sábios etc). Por outro lado, como você diz, a leitura da história, no sentido
da interpretação, é sempre fundada sobre leituras precedentes, aquelas que comandam uma
aproximação erudita e crítica diante dos documentos.
Cultura - Nas últimas décadas, as teorias da história, especialmente a partir da chamada Nova
História francesa, abalaram alguns dos pilares da produção histórica, entre eles a fonte (como
garantia de retrato da realidade) e a objetividade (como garantia de verdade). Como o senhor
avalia os caminhos atuais da historiografia?

Chartier - Acredito que esses abalos são saudáveis. Eles lembram aos historiadores que a
história, mesmo a história mais estatística e estrutural, pertence, sempre, à classe dos escritos
com os quais ela partilha as figuras retóricas e as formas narrativas. Mostram que a
cientificidade da história não pode ficar encerrada no paradigma que governa as ciências
matemáticas, aquilo que Carlo Ginzburg chama de paradigma de Galileu. No entanto, não
aceito as conclusões relativistas ou céticas que alguns tiram dessa constatação. A história
como disciplina é fundada sobre operações particulares, supõe técnicas específicas e se
submete a critérios de verificação. Reconhecer que os próprios historiadores são históricos
(Braudel não escreveu história como Heródoto fez) não significa desprezar sua cientificidade. A
mim, parece que a historiografia, hoje, tenta fundar uma nova objetividade (a qual supõe uma
pluralidade de interpretações mas também a recusa de outras) e procura mobilizar
instrumentos que trazem a possibilidade do realismo crítico que Ricoeur consigna à história.
Desde então, subiu a intensidade dos debates teóricos e metodológicos (em torno da
microhistória, do estudo de caso, da generalização e, sobretudo, em torno de novos campos de
pesquisa, novas categorias analíticas e novas formas de escritura histórica).
Cultura - A disciplina histórica sempre se ocupou do tempo passado, mas de uns tempos para
cá também passou a se interessar pelo tempo presente (um caso exemplar é o Institut
dHistoire du Temps Présent, o IHTP). O senhor acredita que os historiadores podem se
debruçar sem receio sobre fatos contemporâneos?

Chartier - A história contemporânea é o domínio mais intenso no qual a história pode


demonstrar sua capacidade crítica, denunciando as falsificações históricas ou mesmo
recusando certas interpretações. Para a época contemporânea, essa capacidade crítica se
transforma em responsabilidade cívica por parte do historiador, como já o mostraram Pierre
Vidal-Naquet ou François Bédarida, o fundador do IHTP. Mas ela vale também para os
historiadores dedicados a outros períodos. A denúncia crítica dos fatos está no fundamento da
definição científica da história. Pesquisas sobre fatos e falsários mostram que a história está
sempre ameaçada.

2/4
Entrevista com Roger Chartier

Escrito por Stella Bortoni

Cultura - Qual a missão da história, hoje, no quadro geral das ciências sociais?

Chartier - Sem dúvida, é retomar a proposição de Braudel sobre a duração, longa ou menos
longa, no campo das ciências humanas e sociais, às vezes tão obcecadas pelo presente. Claro
que o mundo científico mudou depois de Braudel (e pretendo criticar na minha conferência sua
arquitetura temporal), mas os grandes exemplos da sociologia (Weber, Elias, Bourdieu)
demonstram que, para compreender o presente, é preciso não se isolar. As sociedades e os
indivíduos são históricos, e não podemos apreender suas configurações específicas a não ser
que as inscrevamos nos tempos múltiplos que as construíram.
Cultura - História, literatura e memória pertenciam a áreas claramente separadas. Hoje, a
historiografia contempla um diálogo entre esses três campos na construção do texto histórico.
Como o senhor vê essa possibilidade de interação?

Chartier - Os historiadores se tornaram mais conscientes de que eles não detêm o monopólio
do discurso sobre o passado. A memória, individual ou coletiva, espontânea ou
institucionalizada, e a literatura (particularmente as peças teatrais ou os romances históricos)
constroem representações do passado mais poderosas que aquelas que encontramos nos
livros de história (ao menos naqueles que não têm o poder de sedução de Carlo Ginzburg ou
Robert Darnton). Daí a necessidade de uma confrontação entre história e memória ou entre
história e literatura, reconhecendo o poder da ficção, das fábulas e dos mitos. A marca própria
da história consiste não apenas em historicizar seus concorrentes, memória e ficção, mas
também em reafirmar sua função própria no seio das sociedades: estabelecer um saber crítico
e controlável, que recusa as falsificações, que expõe os mitos como mitos e que propõe uma
representação do passado fundada sobre operações do saber histórico. Entram aí a pesquisa
de documentos, a escolha de uma técnica de análise (arqueológica, psicológica, estatística
etc.), a validação de hipóteses, a construção de uma explicação.
Cultura - Temos hoje um manancial de textos na Internet. Ao mesmo tempo que a rede pode
ser entendida como um território livre e democrático, qual a garantia de veracidade dessas
fontes?

Chartier - A entrada no mundo da textualidade eletrônica mexeu com a história em todas as


suas etapas: multiplicou o acesso a documentos (mesmo que não substitua a consulta aos
originais), facilitou as análises, autorizou uma nova modalidade de argumentação, que dá aos
leitores a chance de controles múltiplos. O leitor pode ler aquilo que leu o historiador e pode
refazer tudo ou pelo menos parte do percurso de pesquisa. Houve uma verdadeira mutação
epistemológica. Mas, como você assinala, a medalha tem um reverso. Com os textos
eletrônicos, esfacelam-se os critérios imediatos que legavam autoridade científica a certos
discursos históricos. No mundo do numérico, todos os textos são dotados de uma mesma
forma e aparecem no monitor com o mesmo peso de verdade. As falsificações tomam ali mais
facilmente a aparência de autenticidade, e a circulação de informações errôneas ou mentirosas

3/4
Entrevista com Roger Chartier

Escrito por Stella Bortoni

não encontra obstáculos (como nos mostram os falsos verbetes da Wikipédia). Esse é um
desafio que implica a necessidade de se introduzir na web indicadores sobre o estatuto de
autoridade científica, os mesmos controles de que se valem as revistas e as editoras
acadêmicas. Não há uma fatalidade nas invenções técnicas, mas - é preciso lembrar com
Walter Benjamin - elas são o que as sociedades fazem delas.

4/4

You might also like