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Meu Brasil, brasileiro: um relato de experiência

Gislene Natera Azor


gigiazor@uol.com.br

Resumo: A partir do campo das Artes (Música) o texto tem como objetivo trazer algumas
reflexões sobre as possibilidades de parceria entre músico e pedagogos no contexto dos anos
iniciais do Ensino Fundamental. Meu Brasil, brasileiro é um relato de experiência que teve
como proposta uma aprendizagem colaborativa, instituindo os participantes como principais
agentes do agir/pensar reflexivo. Apresenta a necessidade de o professor especialista realizar
diferentes diálogos com a equipe pedagógica e com o mundo que o rodeia, trazendo
principalmente as contribuições teóricas de Paulo Freire. Conclui-se provisoriamente, que os
professores necessitam permanentemente do desenvolvimento ser/sentir-se reflexivo,
proporcionando cada vez mais a construção coletiva de métodos de trabalhos.
Palavras chave: educação musical, ensino fundamental, interdisciplinaridade.

A música representa uma forma de expressão que dá diferentes possibilidades do


homem dialogar, refletir, compreender e ressignificar o mundo. Ela pode estar presente na
escola de diferentes formas: como disciplina (agregada ao currículo com professor
especialista), nas relações interdisciplinares (quando utilizada para realizar comandos, relaxar,
comemorar eventos, entreter, etc.) ou nos corredores e horários de saídas entre os alunos.
A escola, como instituição, é um espaço formado por diferentes manifestações, sejam
elas, verbais, comportamentais ou simbólicas. O texto a seguir realizará um diálogo com um
projeto de trabalho e as possibilidades do ser/sentir-se reflexivo, segundo as contribuições de
Paulo Freire.
Relataremos uma experiência musical desenvolvida no ano de 2008, com crianças da
Escola Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental (1º ao 5º ano- Ensino de 9 anos),
em uma escola particular de Santa Catarina. Desta forma, o texto busca contribuir para o
debate sobre as possibilidades de trabalhos em parceria entre músicos e professores de sala,
no contexto dos anos iniciais do Ensino Fundamental.
Paulo Freire nos inspira a pensar que “a palavra como comportamento humano
significante do mundo, não designa apenas as coisas, transforma-as; não é só pensamento, é
práxis” (FREIRE, 2005, p.19, grifos do autor). Nesta perspectiva, as nossas experiências nos
permitem sugerir a idéia de que, a educação musical pode ser contemplada dentro do
ambiente escolar através de projetos de trabalho e não de forma conteudista, acreditando que
“ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria
produção ou a sua construção” (FREIRE, 1996, p.21).
Nossas impressões é que os trabalhos por projetos, segundo as argumentações de
Hernández (1998, p. 83-86)1 são mais respeitosos, pois não definem seus conteúdos nem se
quer seu tema, antes do encontro com as crianças. Os educandos, nesta perspectiva, dão
opiniões, resumem, ampliam e às vezes, até mudam o inicial caminho. Ao mesmo tempo, os
trabalhos por projetos “obrigam” o professor a viver a incerteza, a insegurança, o encontro
com o mundo real, e possibilitam trocas entre alunos, trocas entre professores e alunos, trocas
entre os professores e também proporcionam a mistura e os links entre os mais diferentes e
variados projetos, onde na procura de várias respostas encontraremos novas perguntas.
Na concepção do autor (FREIRE, 2005) é preciso haver diálogo, amor ao mundo e aos
homens, pois o diálogo nos levará ao saber, ao romper, ao compreender o mundo e a si
mesmo. Implica em pensamento crítico, em humildade, onde a prática começa ao se perguntar
em torno do que se vai dialogar, ou seja, em torno de qual conteúdo programático.
O projeto se iniciou com uma proposta de aprendizagem colaborativa entre a
professora de música e de artes visuais. Tinha como desafio conhecer alguns artistas
brasileiros que marcaram época. Nossa problemática era: Como cada linguagem iniciaria e
convidaria os alunos, tão pequenos, para esta viagem? Como conseguiríamos que os alunos
fizessem links entre os artistas plásticos e os músicos, sem necessariamente apresentá-los em
ordem cronológica ou linear? Como contextualizar estes fatos?
As aulas de música tinham como objetivos específicos: o estímulo à pesquisa, o
conhecimento da vida e obra de alguns artistas; as possibilidades de vivências e criações de
releituras e, a percepção de que o artista reflete o período histórico de sua nação, mas também
o define.
Para a escola infantil e o 1º ano do Ensino Fundamental, a proposta se configurava em
diferentes cantigas, instrumentos, confecção de instrumentos, desenvolvendo assim o instinto
rítmico, a noção de timbre, altura, intensidade e duração. Iniciou-se com cantigas de roda, de
ninar, de reisado, de bumba meu boi, que foram trazidas e influenciadas pelos portugueses.
Em seguida, foi proporcionadas experiências com instrumentos de corda como o cavaquinho
e o violão e instrumentos de sopro como a flauta. Sob a influência dos africanos, ouvimos o
lundu, jongo e a polirritmia, trazendo os instrumentos agogô, ganzá e xerê. Além disso, foram
trazidas outras influências musicais, como a dos espanhóis (encontrados no repertório gaúcho)
e a dos franceses (com as cantigas de ninar).

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Na concepção do autor, basicamente os projetos de trabalho se caracterizam por possuírem um tema-problema;
atitude cooperativa e professor aprendiz; estabelecer conexões; trabalhar com diferentes tipos de informação
entre outras.
Já nos 2º, 3º, 4º e 5º anos do Ensino Fundamental, a proposta era estimular o aluno à
pesquisa, procurando conhecer os diferentes compositores em diferentes épocas. A escolha
entre este ou outro compositor seria decidida a partir do interesse de cada classe.
Para estimular a pesquisa dos alunos sobre os compositores, buscamos transportar os
alunos para outro lugar, outro tempo. Com esta proposta, nos colocamos como sujeito da
investigação e ao colocar uma música no aparelho de som2 comentamos que adorávamos
aquela música, porém, não sabíamos se ela era nova ou velha. Graciosamente, um aluno nos
alertou: “- É fácil, Profª! É só olhar a data de validade!!!”
Percebemos naquele momento, que o consumo ou a cultura familiar é a verificação
das datas de validade dos produtos consumidos, mas ao mesmo tempo, ficava-nos
subentendido que não devemos consumir produtos de validade vencida. Seria então, uma
proposta indecente propor o consumo de músicas com “data de validade” vencida? Como
explicar aos alunos que a música não tem validade? Como explicar que esta escrita, este
registro, marca época, história, contextualiza um momento? Como explicar que existe
músicas que não morrem nunca (apesar de seus compositores já estarem mortos) e que outras
músicas já morreram independentes de seu compositor ainda estar vivo? Seria então, uma
proposta de valores? Como construir essa amplitude de repertório, sem intervir nos valores e
crenças familiares?
Com essas indagações iniciais, optamos partir do conhecimento prévio do aluno. Os
alunos foram trazendo para as aulas de música suas realidades musicais e seus valores
(situações conhecidas), assim foram afirmando a inexistência das tradicionais canções
infantis entre eles e, o domínio das mesmas por canções de sucesso, especialmente aquelas
veiculadas às novelas, programas de auditório, comerciais e outros. Fomos observando que
mesmo as crianças que fazem aula de música em escolas especializadas, estão convivendo e
sendo influenciadas pela mídia. Não queremos aqui, fazer críticas as mídias e muito menos
julgar as qualidades e gostos musicais, mas refletir em “como” agir e ampliar o repertório
musical sem vetar o interesse da criança.
Neste momento, a professora de artes desistiu do trabalho em parceria com a música!
Mesmo assim, as aulas de música permaneceram com a permissão da audição de diferentes
músicas trazidas pelas crianças, o que proporcionou a necessidade de reflexões e debates
sobre o gosto musical. Resumidamente, os debates se focaram em: O que faz você gostar

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Neste caso específico, a música escolhida foi um chorinho.
desta música? É a melodia? É o ritmo? Onde você costuma ouvi-la? Ela é muito presente na
mídia? Se sim, por que será? A letra da música possui uma boa mensagem?
Observamos que vivemos em uma sociedade permeada de virtudes, mas também de
vícios. Segundo Souza (2000), é preciso que o professor tenha como objetivo a produção de
uma consciência verdadeira, que se oriente pelos alunos e que decida sua metodologia em
cada lugar e em cada situação, procurando conscientizar-se sobre os diversos conteúdos e
conseguir relativizar seus ideais estéticos. Apoiados nesta concepção e na idéia de que
ensinar exige respeito aos saberes dos educandos, criticidade, percebemos que
Na verdade, a curiosidade ingênua que, ‘desarmada’, está associada ao saber
do senso comum, é a mesma curiosidade que, criticizando-se [...] se torna
curiosidade epistemológica. [...] Não haveria criatividade sem a curiosidade
que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo
que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos. (FREIRE, 1996,
p.15, grifos do autor)

Ancorados ainda em Freire (1996), apresentamos uma série de shows pesquisados na


TV Cultura e no Youtube sobre diferentes artistas e diferentes épocas. Os alunos adoraram!
Iniciaram assim, a grande viagem ao “túnel do tempo musical”, percebendo as diferentes
vestimentas, danças e maneiras de apresentações musicais, das quais gostaram e riram muito.
Por outro lado, a conscientização de que a música é influenciada por uma época, mas
também marca essa época foi confirmada pelas apresentações dos Festivais e momentos da
ditadura.
Segundo Fantin (2008, p. 71-72), os professores devem não só assegurar a
participação e a autoria dos alunos no âmbito das tecnologias, mas a interação com todos os
objetos que alimentam o pensar e o fazer, como livros, filmes, apresentações musicais,
exposições, sites da Internet, entre outros. Sugere a autora, em problematizar e refletir os
objetivos e as mediações sociais para que não nos tornemos apenas consumidores, mas que
também possamos discutir a complexa questão da qualidade, da construção do gosto e do que
essas produções significam na sociedade contemporânea, possibilitando assim uma mediação
significativa, crítica, sensível e informada, com critérios para a seleção desta ou de outra obra.
Assim, insistimos em um pensar coletivo, não-fragmentado. Vislumbramos uma
proposta interdisciplinar3: a aprendizagem colaborativa, instituindo uma parceria de co-
responsabilidade entre a professora de música, as pedagogas e as coordenações (Escola
Infantil e Anos iniciais).

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Segundo Asensio (apud Hernández; Ventura, 1998, p. 53) entende-se por interdisciplinariedade a “tentativa
voluntária de integração de diferentes ciências com um objetivo de conhecimento comum”.
Nesta perspectiva, o especialista se tornou o responsável pelos conteúdos musicais,
entretanto, a parceria entre músico e pedagogo foi uma alternativa viável para que a música
pudesse ser vivenciada cotidianamente pelos alunos, transcendesse as aulas específicas e
possibilitasse liberdade, curiosidade, experiência e ampliação de repertórios, proporcionando
o mínimo necessário para o desenvolvimento de ouvintes-críticos.
Dentro dos limites, observamos que algumas pedagogas abraçaram o projeto com
amor e carinho, outras se sentiram “obrigadas” a negociar com ele, entretanto, todas
conseguiram vincular um projeto já existente com um fato histórico brasileiro escolhido
pelos seus alunos na aula de música. Para realizar estes links entre os projetos já existentes
foi preciso vários encontros.
As pedagogas trouxeram seus temas e suas propostas de “como” realizar as parcerias
e por outro lado, a professora de música precisou re-organizar e re-elaborar suas idéias
iniciais, contando com opiniões, reclamações e reflexões sobre as possibilidades ou não de
tais parcerias.
Para a professora de música, o desafio era realizar uma apresentação formal (chama-
se uma classe por vez), mas que os diferentes momentos representados pelas crianças
acontecessem sem interrupções. Assim, iniciamos as montagens de cenários plásticos,
narrativas de uma determinada época, imagens de arquivos captadas pelas crianças (uso de
projeções em telões) como suportes entre uma e outra apresentação musical. Desta forma,
provocamos a escola para que as diferentes linguagens e as novas tecnologias fossem
perdendo suas fronteiras.
Uma das classes da escola infantil, por exemplo, em parceria com a música conseguiu
possibilitar que os pais se tornassem “fontes de pesquisa”, onde inclusive, uma avó nos
ensinou a dançar o iê- iê- iê. Com ela, realizamos uma grande pesquisa oral e presencial.
Realizamos um “Baile Retrô”, onde todos vestidos à caráter, mostraram suas escolhas
musicais, alguns passos de danças, mas também aprenderam outros passos e outras músicas
com a avó. Assim, fomos re-criando cenários e uma história dentro da história da música
brasileira, ressignificando-a dentro do contexto escolar.
Nossas reflexões mostram que o trabalho colaborativo cria tensões, mas exige que a
equipe toda esteja crítica e reflexiva, que se permita dialogar, aprender a respeitar os limites,
a ser comprometida, a se inserir e a se deixar ser inserida. Em relação às aulas de música,
Figueiredo (2001, p. 36) afirma que
O trabalho conjunto entre generalista e especialista poderá ampliar as ações e
as competências musicais na escola, viabilizando uma educação musical
continuada, presente no currículo escolar de forma significativa na formação
da criança.

Assim, sugerimos que as pessoas envolvidas devem ser tratadas com respeito, com
amor, onde o mais importante não é a realização do projeto em si, o conteúdo, sua
apresentação, mas o processo, as ações que criam o movimento e as intervenções que
acontecem nas entrelinhas.
Este relato, provisoriamente nos mostra que os professores necessitam
permanentemente do desenvolvimento ser/sentir-se reflexivo, proporcionando cada vez mais
a construção coletiva de métodos de trabalhos.
Referências

FANTIN, Monica. Os cenários culturais e as multiliteracies na escola. In: Comunicação e


Sociedade, vol. 13, 2008, p. 69-85.

FIGUEIREDO, Sergio Luis Ferreira. Professores Generalistas e a Educação Musical. IV


Encontro Regional da ABEM Sul, I Encontro do Laboratório de Ensino de Música/ LEM-CE-
UFSM, p. 26-37, Anais...Santa Maria- Rio Grande do Sul, maio de 2001.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2005.


_____Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 25ª Edição. São
Paulo, Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura).

HERNÁNDEZ, Fernando. Transgressão e mudança na educação: os projetos de trabalho.


Trad. Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artmed, 1998.

HERNÁNDEZ, Fernando; VENTURA, Montserrat. A organização do currículo por


projetos de trabalho. Trad. Jussara Haubert Rodrigues. 5 ed. Porto Alegre: Artes Médicas,
1998.

SOUZA, Jusamara. Música, Cotidiano e Educação. Org. Jusamara Souza; Adriana


Bozzetto..[et al.]. Porto Alegre: Programa de Pós- Graduação em Música do Instituto de Artes
da UFRGS, 2000.

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