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CINEMA E HISTÓRIA OU
CINEMA NA ESCOLA
MARIZA DE CARVALHO SOARES
No início da década de 1970 Marc Ferro, historïador francês, constatou que “o filme
não faz parte do universo mental do historiador” (FERRO, 1992: 79)1. Buscou então uma
explicação para isso no fato do cinema apresentar um tipo de linguagem estranha ao universo
teórico-metodológico da história. Segundo ele, este obstáculo serviu como desafio ao
“infatigável ardor dos historiadores, obcecados por descobrir novos domí nios”. A obsessão
tem sido a marca do trabalho desse grupo de historiadores - do qual Marc Ferro faz parte -
que cunhou para si mesmo o rótulo de uma Nouvelte Histoire2, uma "nova história".
Este projeto - embora conhecendo pouco sobre outros trabalhos referidos à proposta
de Cinema e História3 visa, a partir da experiência concreta com cinema em sala de aula no
curso de História da Universidade Federal Fluminense, pensar o cinema como objeto da
história e, a partir daí; o filme como fonte tanto na pesquisa quanto no ensino da história.
Passo agora a colocar alguns pressupostos importantes para a reflexão que venho
desenvolvendo sobre Cinema e História e para a elaboração e execução do projeto que
apresentarei em seguida.
1
Este text o foi escrito em 1971. Em 1992 foi publicado pela Paz e Terra a partir de uma coletânea de textos do
autor editada em 1977 pela Editions Denoë1 Gonthier, sob o título Cinéma et histoire.
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Todas as palavras grafadas em itálico são termos usados pelos historiadores da Nouvelle Histoire. Para situar
melhor esse grupo ver o livro de Peter Burke ( 1992).
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Não posso deixar de mencionar aqui o trabalho de Jean-Claude Bernadet e Alcides Freire Ramos (1988).
Primeiros Escritos, n° 1 – julho-agosto de 1994. LABHOI
l. PRESSUPOSTOS
Para tentar analisar melhor esta questão vou tratar um pouco mais do que seja a
memória coletiva.7 Segundo Nora:
“Toda a evolução do mundo contemporâneo - e sua explosão a nível mundial, a sua precipitação e
democratização - tende a fabricar um maior número de memórias colectivas, a multiplicar os grupos
sociais que se autonomizam pela preservação ou pela recuperação do seu próprio passado, a compensar
o desenraizamento histórico da sociedade e a angústia do futuro com a valorização de um passado que
não era, até então vivido como tal.” (NORA, 1990: 453)
4
Compartilho aqui das colocações de Sílvio Tendler, cineasta com formação em história, em entrevista à revista
Filme Cultura (1984). Recentemente, por ocasião da comemoração dos 20 anos do CPDOC o cineasta colocou,
durante a oficina realizada por Pierre Sorlin, sua proposta de constituição de uma história “audio-visual”.
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O termo memória coletiva não me agrada. A memória não é da ordem do coletivo, a memória é, sem dúvida,
assim como as sociedades, da ordem do social. Por isso, daqui em diante passo a falar não em memória coletiva,
mas sim em memória social. Quando estiver me referindo a narrativas individuais irei tratá-las como
lembranças. A partir de uma e de outra, com a metodologia adequada pode-se fazer história.
6
Uso lugar no sentido dado por Pierre Nora: “lugares topográficos, como os arquivos, as bibliotecas e os
museus; lugares simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares
funcionais como os manuais, as autobiografias ou as associações. Todos esses memoriais têm a sua história.”
(NORA, 1990: 454).
7
Esse termo aparece com freqüência nos textos dos historiadores da Nouvelle Histoire. No dicionário da
Nouvelle Histoire o verbete é escrito por Pierre Nora (Le GOFF, 1978). O dicionário foi publicado na França em
1978, dirigido por Roger Chartier e Jacques Revel, como parte da coleção As Enciclopédias do Saber Moderno
e traduzido para o português em 1990 pela Livraria Almedina, de Coimbra. Segundo Pierre Nora existe a
memória Histórica que é aquela produzida pelos historiadores e a memória coletiva, produzida pelas sociedades
sobre si mesmas e sobre as demais. Segundo ele a utilização estratégica pode também ser fecunda para a
renovação da historiografia. (NORA, 1990: 451)
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dentro dessa abertura para “novas memórias” que o cinema surge como um novo objeto da
história. A partir de Marc Ferro, e esse não é seu único mérito, os historiadores já não são
mais meros espectadores.
Se por um lado o cinema reforça certos mitos da sociedade ocidental, por outro
afronta essa mesma sociedade ao lembrar nomes, fatos e lugares aparentemente esquecidos
pela memória social e muitas vezes pela própria história que, sem perceber, às vezes,
submerge à força da falsa identidade entre memória/história.
Cabe aqui lembrar a advertência de Pierre Nora de que a história contemporânea vem
sendo escrita num constante enfrentamento entre os historiadores e as memórias coletivas que
pressionam a história. Segundo ele, “Doravante a história será escrita sob pressão das
memórias coletivas.” (NORA, 1990: 453). Dois exemplos podem ser citados:
a. Os filmes de faroeste: a análise desses filmes, feita de forma bastante instigante por
André Bazin, crítico de cinema francês (1991) e também nosso próprio trabalho na área de
ensino de História da América tem tomado essa filmografia como exemplar para o estudo da
história americana. Os Estados Unidos, na busca de seu tão conhecido Destino Manifesto
levou os americanos ao Oeste, ao México, ao Caribe, ao Vietnã e aos filmes de cowboy onde
o mocinho, numa visão maniqueísta das relações humanas, sempre vence. A partir desta
perspectiva foi feito por mim um exercício oral com os alunos com o filme “Sete homens e
um destino”, versão western de “Os sete samurais”, onde sete ladrões americanos se
transformam em heróis, salvando uma aldeia mexicana de bandidos que bem lembram a
imagem que o próprio cinema americano faz de Pancho Villa. E um filme tido como
comercial, portanto, supostamente sem relevância histórica, mas que permite uma rica análise
sobre o expansionismo americano e sua visão sobre o destino das nações.
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existe uma infinidade de filmes que podem trazer uma importante contribuição ao estudo da
história em função do tema que tratam. Os filmes ditos “históricos”, por outro lado, nem
sempre representaram tão bem os momentos da história que pretendem retratar. Filmes como
“Cleópatra” e outros nos falam mais sobre a indústria cinematográfica americana do que
sobre o Egito antigo. Já o filme “Adeus meninos”8, por exemplo, recoloca um tema esquecido
pela memória da Segunda Guerra: o anti-semitismo e o colaboracionismo francês. Em
princípio é um filme de ficção9 mas que em muito ajuda a compreender a sociedade francesa
da década de 40.
As análises sobre cinema incidem tanto sobre as narrativas fílmicas quanto sobre o
que estou aqui chamando de espaço institucional. Nesse sentido o cinema não é apenas o
filme. Como mostra Marc Ferro é possível
“analisar no filme tanto a narrativa quanto o cenário, a escritura, as relações do filme com aquilo que
não é filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime de governo. Só assim se pode chegar à
compreensão não apenas da obra, mas também da realidade que ela representa.” (FERRO, 1992: 87)
Dentro desta perspectiva acredito que o cinema deva ser pensado como um espaço de
produção de narrativas, classificadas a partir de determinados critérios de elaboração: a)
documentário/ficção; b) cinema mudo/cinema falado; c) os gêneros: o drama, o épico e a
comédia. Por outro lado, toda essa produção se dá em determinadas circunstâncias, voltada
para determinados interesses, atendendo a certo tipo de público. Tudo isso precisa ser
analisado.10
É, então, a partir desse conjunto de questões (e de outras não colocadas) que tenho
tentando desenvolver um projeto voltado para o ensino e pesquisa, de forma integrada, que
passo agora a apresentar.
8
“Aux revoir, les enfants", co-produção franco-alemã de 1987. Baseado nas lembranças do próprio diretor,
Louis Malle.
9
Classificado na lista de gêneros da Abril como Drama, e não como Guerra.
10
Não posso deixar de mencionar a análise desenvolvida por Edgar Morin, como, por exemplo, seu livro Les
Stars (1972) sobre o chamado Star system e o trabalho de Pierre Bourdieu com seu conceito de “campo de
poder”, “campo intelectual”e “habitus de classe” (BOURDIEU, 1982).
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A partir dessas listagens é possível a busca de filmes por assunto (mulher, cidadania,
guerra civil), época/data (XX, 1945), país (Espanha) e nomes (Colombo, Napoleão) etc. Essa
busca serve tanto à seleção de filmes para atividades de ensino quanto, por exemplo, à
classificação para organização de séries voltadas ao desenvolvimento da pesquisa. O Projeto
fornece aos interessados a ficha de cada filme, incluindo uma bibliografia sobre o tema e uma
breve descrição das atividades já realizadas no âmbito do projeto com o filme. Além da
divulgação do cadastro o projeto visa também divulgar trabalhos desenvolvidos por alunos e
professores a partir da publicação de um Boletim, já em fase de elaboração do primeiro
número.
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estudo dos filmes ou séries de imagens fílmicas tenham, para a história contemporânea a
importância que as séries de iconografia e cultura material tiveram para os estudos sobre a
Idade Média e Moderna. Digo isso baseada não apenas na pista dada por Ferro mas também
na avaliação de Nora quando ele coloca a possibilidade de
(...) “fazer com que a ‘memória colectiva’ represente, no que respeita à história contemporânea, o
mesmo papel que a chamada história das mentalidades representou relativamente á história moderna.”
(NORA, 1990: 454)
Para terminar gostaria de relatar uma experiência de trabalho por mim realizada junto
aos alunos do departamento de História da UFF envolvendo a combinação das atividades de
ensino e pesquisa. O curso foi organizado em duas partes, a primeira com a apresentação de
algumas discussões teóricas e a segunda composta por exercícios desenvolvidos pelos alunos
a partir da seleção de alguns filmes. Cada etapa do trabalho dos grupos foi discutida pelo
conjunto da turma. Ao final do curso foram escritos quatro trabalhos envolvendo temas da
historiografia, segundo diferentes enfoques teóricos e a partir da própria opção dos alunos. Os
trabalhos foram os seguintes:
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Os professores poderão ter acesso ao cadastro do Projeto Cinema e História, obtendo, através dele sugestões
de filmes, roteiros para debate e bibliografia. Para maiores detalhes ver o texto completo do Projeto Cinema e
História.
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4. “Bye Bye Brasil”: duas análises: a) o grupo trabalhou com o filme e com uma
entrevista fornecida por Cacá Diegues. A partir da análise de Francisco de Oliveira (“A
crítica à razão dualista”) o grupo identificou uma rebeldia da narrativa fílmica em relação às
intenções dualistas de seu criador, apresentadas na entrevista; b) análise do papel da televisão
no interior do Brasil a partir do conceito de "indústria cultural" de Adorno.
O empenho dos alunos no sucesso deste projeto tem sido fundamental. Por isso não
quero terminar esta apresentação sem antes fazer-lhes justiça, agradecendo sua participação e
o estímulo que tem sido para mim estar com eles. Agradeço também a atenção de todos os
presentes. Muito obrigado.
BIBLIOGRAFIA
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1982.
Le GOFF, Jacques e outros {dirigida por). A nova história . Coimbra: Almedina. 1990.
VÍDEO 1993. Guias práticos Nova Cultural. São Paulo. Nova Cultural. 1992.