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Revista Espaço Acadêmico – Mensal – Nº 101 – Outubro de 2009 – ISSN 1519-6186

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Zelaya: um case da nova política diplomática brasileira?


Rudá Ricci*

Resumo: O artigo analisa o acolhimento do Presidente de Honduras deposto, José


Manuel Zelaya pela Embaixada brasileira em Tegucigalpa como uma afirmação do país
como liderança regional, alterando a lógica diplomática vocacionada para abertura de
mercados.
Palavras-chave: Política Externa Brasileira; América Latina

integração.” Daí surge a Associação


Latino-Americana de Livre-Comércio
(ALALC). No plano institucional
interno, é também nessa fase que se
completa a profissionalização da
carreira diplomática, cujo acesso passa a
se dar, desde 1946, por vestibular
organizado pelo Instituto Rio Branco.
A política externa independente:
1961-1964

Fases da diplomacia brasileira no Política externa independente. “O


pós-Guerra impacto da revolução cubana e o
processo de descolonização tinham
Em artigo do início deste novo século, trazido o neutralismo e o não-
Paulo Roberto de Almeida (cf. alinhamento ao primeiro plano do
“Relações Internacionais do Brasil: cenário internacional, ao lado da
ensaio de síntese sobre os primeiros 500 competição cada vez mais acirrada entre
anos”), oferece um breve balanço sobre as duas superpotências pela
a política exterior brasileira. No período preeminência tecnológica e pela
pós-Guerra, sugere cinco fases distintas, influência política junto às jovens
demonstrando oscilação da postura em nações independentes.” A diplomacia
relação aos países da região: brasileira repensa seus fundamentos,
Uma política exterior tradicional: “em especial no que se refere ao
1945-1960 tradicional apoio emprestado ao
colonialismo português na África e a
Evolução gradual para a cooperação recusa do relacionamento econômico-
regional a partir do modelo cepalino, comercial com os países socialistas. A
cujo foco foi “a promoção do aliança preferencial com os Estados
desenvolvimento nacional por meio de Unidos é pensada mais em termos de
políticas ativas de industrialização, vantagens econômicas a serem
eventualmente mediante a cooperação barganhadas do que em função do
econômica no contexto sul-americano e xadrez geopolítico da Guerra Fria.” O
a promoção de esquemas de Brasil foi um dos articuladores da

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criação, em março de 1964, da Fase da afirmação da vocação regional


Conferência das Nações Unidas sobre – processo de integração sub-regional
Comércio e Desenvolvimento no Mercosul e de construção de um
(UNCTAD), cujos objetivos eram “a espaço econômico na América do Sul.
revisão completa da arquitetura do Segundo Almeida, “a diplomacia passa
sistema multilateral de comércio e a a apresentar múltiplas facetas, que não
criação de mecanismos – sustentação de exclusivamente a de tipo bilateral ou
produtos de base, sistema geral de aquelas de ordem estritamente
preferências comerciais em favor dos profissional corporativa: são elas a
exportadores de matérias-primas, não regional, a multilateral (principalmente
reciprocidade nas relações de comércio no âmbito da OMC) e a presidencial”.
– suscetíveis de promover uma inserção Aqui merece um destaque para a
mais ativa dos países em mudança do foco na diplomacia baseada
desenvolvimento na economia na política econômica externa. O Brasil
mundial.” começa a se posicionar politicamente
dentro de uma nova ordem
A volta ao alinhamento, 1964-1967
internacional. Abrem-se oportunidades
Com o golpe militar, retornamos ao que logo terão como novo sujeito de
colaboracionismo explícito com os destaque o bloco intitulado de BRIC por
interesses regionais dos EUA. Almeida Jim O´Neill, diretor de análise
denomina de “reconversão ideológica econômica global da Goldman Sachs,
da diplomacia brasileira”. Uma em novembro de 2001. Na projeção
“frustração de parte da nova geração de feita por O´Neill, em 2036, Brasil,
diplomatas que tinha sido educada nos Rússia, China e Índia seriam maiores
anos da política externa independente”. que o G7.
Revisão ideológica e busca de Neste artigo de 2000, Almeida sustenta
autonomia tecnológica: 1967-1985 um momento de transição ainda não
Foi marcada pela diplomacia do muito nítido: quanto à“estrutura de
crescimento, com foco na tentativa de tomada de decisões políticas, em nível
criação de autonomia tecnológica e mundial, e que conformação precisa, em
afirmação da ação estatal. Almeida cria termos de sistema hierarquizado (ainda
uma subdivisão neste período: (1) que segundo novos princípios), terá a
"diplomacia da prosperidade" ainda no ordem emergente atualmente, que passa
Governo Costa e Silva; (2) "Brasil a substituir o cenário bipolarizado
Grande Potência", no período Médici; enterrado ao mesmo tempo em que se
(3) "pragmatismo responsável", sob a cobre de terra o caixão do socialismo
presidência Geisel; (4) "diplomacia mundial. Em todo caso, essa "nova
ecumênica", já no último governo ordem" já não mais consistirá, apenas,
militar desse ciclo. Contudo, a fase final de duas superpotências, algumas
demarca a crise do regime militar, em potências médias e vários Estados
especial, pela redução do fluxo de "emergentes".”
financiamento externo a partir da crise Esta, obviamente, não é a única
do preço do barril de petróleo. periodização presente na literatura
Redefinição das prioridades e especializada. Raúl Bernal-Meza
afirmação da vocação regional: 1985- (BERNAL-MEZA, 2007), em seu
2000 artigo “Cambios y continuidades em La
política exterior brasileña” sugere que

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nos anos 80 entramos numa etapa Wilhelm Hofmeister (HOFMEISTER,


crítica, cheia de contradições. Se Sarney 2007) sugere a mesma inflexão em
redirecionou o Brasil para a América relação à diplomacia brasileira nas
Latina (a partir do Mercosul), Collor de relações com seus vizinhos. Não apenas
Melo teria adotado orientações confusas em termos comerciais, mas inovando
e contraditórias. Isto porque haveria nas formas de cooperação. Ressalta o
uma “indefinição do modelo de autor que embora a superação da
Estado”, elemento central, para o autor, anemia das relações com vizinhos já
na definição da política externa de um tenha iniciado com o governo FHC, foi
país. A partir de então, o país na gestão Lula que se projetou a “nova
ingressaria na busca de reconhecimento atenção” numa política ativa. Brasil
internacional como potência regional. teria assumido, desde então, o papel de
Com Lula, tal desejo equivaleria, liderança regional sul-americano, em
segundo Bernal-Meza, ao retorno do especial, em relação à infraestrutura
nacionalismo realista, que reconhecia o regional (cooperação intensa na área da
predomínio militar dos EUA, mas energia, segurança e relações
matizada por uma ordem mundial em comerciais).
transição. Na prática - citando o
Começo este artigo sobre o case Zelaya
embaixador Samuel Pinheiro Guimarães
por esta periodização da diplomacia
- o nacionalismo realista adotaria os
brasileira para situar o quanto a política
seguintes princípios:
diplomática do Brasil se altera a partir
• Aumentar o poder político, do fim da Guerra Fria, tendo como
militar, econômico, ideológico e questão central o novo papel
científico-tecnolólgico do Brasil, internacional ocupado pelo país. Não se
com objetivo de acumular trata de uma política externa meramente
recursos de autonomia nacional; focada na ampliação de parceiros
comerciais ou abertura de mercados,
• Construção de sólido pólo embora esta seja uma pauta essencial
político e econômico sul-
para o world player que nos tornamos.
americano;
Mas vai além como uma potência
• Buscar incorporação do Brasil emergente, a 7ª ou 9ª potência mundial
no Conselho de Segurança da (segundo as duas bases de cálculo do
ONU, na qualidade de membro Banco Mundial). E, ainda, um novo
permanente; posicionamento político frente ao
momento de fragilidade interna dos
• Cooperação com Índia e China,
EUA.
em desenvolvimento
tecnológico; Brasil e EUA assumem a liderança e
mediação de conflitos na América.
• Oposição à normatização
imposta pelos grandes poderes; Quando não seguimos apenas regras
internacionais, mas a produzimos
• Promoção da multipolarização
do sistema mundial; Este novo status impõe uma mudança
de compreensão do papel do Brasil nas
• Fortalecimento da cooperação relações internacionais, criando uma
multipolar com China, Índia e nova ordem na nossa região. O que
Rússia. sugere que a nossa política diplomática
avance na ampliação do eixo da

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diplomacia como explorador de transição ou construção gera riscos e


mercados para um eixo que articula incertezas. Mas há muitas
política econômica e liderança política. possibilidades abertas, a despeito da
resistência esperada do governo interino
E é aqui que entra o case Zelaya, muito
de Honduras. E nenhuma é amplamente
mais emblemático que nossa
desfavorável ao Brasil.
participação na pacificação (ou mesmo
intervenção) no Haiti. E algo que alguns A primeira é uma pressão crescente,
analistas teimam em tentar mas meramente formal, dos governos
desconsiderar, como recentemente o fez da região contra o golpe militar
Jorge Zaverucha, da UFPE. Em seu hondurenho. Recentemente, chefes de
artigo publicado na Folha de São Paulo Estado da América Central, do Caribe,
(“A derrapagem brasileira em da Colômbia e do México, participantes
Honduras”, 25/09/09), Zaverucha reduz da Cúpula de Tuxtla, aprovaram
a acolhida de Zelaya à embaixada declaração conjunta na qual manifestam
brasileira a uma questão jurídica. apoio ao Acordo de San José, proposta
Sugere que a Convenção de Viena não elaborada pelo presidente costa-
estipula que uma missão diplomática riquenho Oscar Arias para por fim à
confira abrigo humanitário, o que crise política de Honduras. A nota final
exigiria que o Brasil conferisse ao indica um possível isolamento
Presidente deposto a condição de dramático de Honduras. O impasse
asilado. Um argumento jurídico, hondurenho, vale registrar, gera
fundado numa ordem que se altera prejuízos comerciais que afetam, além
rapidamente. do próprio país, Nicarágua, El Salvador
e Guatemala. Segundo o Ministério da
O abrigo de Zelaya não é um mero ato
Indústria e Comércio, a crise tem
jurídico. É um ato político, dos mais
provocado prejuízo de US$ 6 milhões
significativos, que se sustenta num
por dia aos países centroamericanos.
papel de liderança regional assumido
pelo país, na afirmação da ordem A segunda possibilidade aberta é a
democrática na região. A autoridade realização das eleições nacionais em
institucional máxima de nosso país foi novembro a partir de um acordo de
absolutamente claro a respeito: cúpula, criando um governo de
denominou o governo interino de coalizão. É uma possibilidade remota,
golpista e exigiu o retorno de Zelaya à neste momento, devido á tensão em alta
Presidência da República. Por qual no país. O sociólogo Julio Navarro
motivo? Para sinalizar que o país líder acredita, inclusive, que a crise
da região não admite que a ordem transcenderá a eleição de novembro em
constitucional seja conspurcada. Que é seu país, e contaminará o próximo
garantidor desta ordem. governo.
Este é, sem dúvida, um novo papel Como, da Nicarágua, Zelaya chegou a
diplomático para o país na região. De sugerir a criação de guerrilha e comitês
fiador de um bloco comercial na região, de resistência em seu país, a
assumiu o papel de liderança possibilidade das escaramuças de rua
institucional. Não é um pequeno passo. evoluírem para uma guerra civil não
É dos mais emblemáticos. estaria totalmente descartada, embora
esta seja justamente a senha que a OEA
Obviamente que ouviremos os
e possivelmente a ONU menos desejem
vaticínios de Cassandras. Porque toda
porque obrigaria uma intervenção direta

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do Conselho de Segurança. A guerrilha El consejo de seguridad: ¿El retorno del


é uma sugestão que parece, neste realismo? Sus impactos en el Cono Sur”, In
COSTA, Sérgio, SANGMEISTER, Harmut e
momento, um factóide, já que o STECKBAUER, Sonja (orgs.), O Brasil na
Honduras não possui tradição de América Latina: interações, percepções,
organização de esquerda. Zelaya, interdependências. São Paulo:
lembremos, é oriundo do Partido Annablume/ADLAF/Fundação Heinrich Boll,
Liberal. 2007.
HOFMEISTER, Wilhelm. “No obediencia, pero
mayor interdependencia: la relación Del Brasil
Referências con SUS vecinos”, In COSTA, Sérgio,
SANGMEISTER, Harmut e STECKBAUER,
ALMEIDA, Paulo Roberto de. O Estudo das Sonja (orgs.), O Brasil na América Latina:
Relações Internacionais do Brasil. São Paulo: interações, percepções, interdependências.
Unimarco Editora, 1999. São Paulo: Annablume/ADLAF/Fundação
__________. “Relações internacionais: ensaio Heinrich Boll, 2007.
de síntese sobre os primeiros 500 anos”. NOVAES, Adauto (org.). Oito visões da
Impulso (Piracicaba), Piracicaba, v. 12, n. 27, América Latina. São Paulo: Editora SENAC,
p. 29-45, 2000. 2006.
BERNAL-MEZA, Raúl. “Cambios y
continuidades en la politica exterior brasileña.

*
RUDÁ RICCI é Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, do Fórum Brasil de Orçamento e do
Observatório Internacional da Democracia Participativa. E-mail: ruda@inet.com.br. Site:
www.cultiva.org.br. Blog: http://rudaricci.blogspot.com

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