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Advento da imagem
A importância concedida pelos antiquários aos testemunhos da cultura material e das belas-
artes não passa de um caso particular no âmbito do triunfo geral da observação concreta sobre a
tradição oral e escrita e do testemunho visual sobre a autoridade dos textos. Entre o século XVI e o
final do Iluminismo, o estudo das antiguidades evolui de acordo com uma atitude comparável à
das ciências naturais: ele visa uma mesma descrição, controlável, logo fiável, dos seus objectos.
Daí o papel crescente da ilustração no trabalho dos antiquários. Apesar da sua dispersão, as
antiguidades devem ser tornadas observáveis em permanência e comparáveis pela comunidade
dos sábios. Montfaucon (1719) afirma: «Por este termo de antiguidade entendo apenas aquilo que
pode surgir debaixo dos olhos e tudo o que se pode representar por imagens49.» Caylus (1752)
acrescenta: «Deve julgar-se apenas o que se vê e reflectir acerca da maneira como foi executado.
Esta via é tanto ou mais segura quanto o grau de conhecimento das Artes e das diversas práticas se
demonstram pelos próprios monumentos50». Thomas Warton (1762) afirma também:
«Necessitamos de uma demonstração visual e de provas claramente ilustradas51. » Mesmo nas obras
epigráficas52, a imagem reprodutora toma-se indispensável. L'Antiquité expliquée não tem menos de
mil cento e vinte gravuras e «trinta a quarenta a mil figuras» de «bela imponência»53.
Ao reunir o seu corpus de antiguidades, «corpo de luz em que todas as partes se iluminam
mutuamente»54, o primeiro objectivo dos antiquários é então o de dar a ver o passado, em
particular o passado silencioso ou não dito. Eles não se limitam, contudo, a uma soma. A imagem é
posta ao serviço de um método comparativo que lhes permite estabelecer séries tipológicas, por
vezes até sequências cronológicas, realizando assim uma espécie de história natural das produções
humanas. A atitude, claramente enunciada por Montfaucon («conceder-se a tarefa de bem pesar
as imagens, de as comparar umas com as outras55»), toma toda a sua dimensão sob a pena de
Caylus: «A via de comparação [... ] está para a Antiguidade como as observações e as
experiências estão para o Físico. A inspecção de diversos monumentos reunidos com cuidado
desvenda-lhes a utilização, tal como o exame dos vários efeitos da natureza combinados com
ordem lhes revela o princípio: e tal é a bondade deste método que a melhor maneira de convencer o
Antiquário e o Físico do erro é opondo ao primeiro novos monumentos e ao segundo novas
experiências. Mas, enquanto o Físico pode a qualquer momento verificar e multiplicar as
experiências, tendo sempre, por assim dizer, a natureza às suas ordens e os instrumentos nas
suas mãos, o Antiquário é frequentemente obrigado a procurar longe os termos de
comparação de que necessita». No entanto, «a gravura torna comuns [todas as riquezas] a
todos os povos que cultivam as letras»56. Difundida pela imprensa, a reprodução icónica reduz
a riqueza do mundo das antiguidades, como a do mundo dos vivos. Mas, tal como na física, ela
dá lugar à reflexão e às generalizações de que dependem tanto o estatuto científico do antiquário
como o do naturalista.
Todos os antiquários concordam em reconhecer que a cópia deve ser executada ao natural,
in situ para as obras de arquitectura: condição necessária, mais uma vez como no caso das
ciências naturais, para que a imagem e a sua reprodução tenham valor.
A constituição dos museus de imagens que são as recolhas de antiguidades não se
processa, contudo, sem dificuldades consideráveis. De ordem mental, mas também,
indissociavelmente, práticas e técnicas, essas dificuldades dizem respeito à fidelidade das
representações e só serão ultrapassadas, muito progressivamente, durante os últimos
decénios do século XVIII e o primeiro terço do século XIX.
O antiquário deve assim ultrapassar três obstáculos maiores: o peso da tradição, que
atribui aos autores da Antiguidade e às crónicas medievais uma parte da sua autoridade,
adquirida na longa duração, bem como o seu poder de ocultar o real; a falta de preparação
para o método de observação científica, posta em causa pelas concepções medievais da
representação e da cópia, que privilegiam um ou mais elementos, por vezes imateriais, em
detrimento da forma global57; a insuficiência do material arqueológico, recenseado ou
disponível, que teria permitido por si só pôr em causa um sistema de diferenças, gerador de
sentidos e de sequências históricas.
Estas fraquezas só podiam ser vencidas após uma árdua batalha. Peiresc desconfia por
princípio de todo o testemunho não confirmado pelos seus próprios olhos, bem como pela
mediação e, em último caso, pela pesagem: «Como não podia estar em todo o lado, pedia a
diferentes pessoas medidas e planos das mesmas coisas para as comparar e tomar em seguida
a decisão mais segura»58. De resto, ele não hesita na sua correspondência em escarnecer do
padre Kircher e da sua credulidade ou em morigerar, por vezes vivamente, Cassiano dal Pozzo,
pela ligeireza ou a imprecisão das suas descrições. Fiel aos ensinamentos de Girolamo
Aleandro59, Peiresc formula os princípios directores de uma investigação bem conduzida60.
Impõe-se a comparação com o avanço das ciências naturais que, na mesma época, sofrem
das mesmas dificuldades e são estorvadas pelo mesmo pseudo-saber lendário: animais fantásticos e
templos fabulosos exigem a mesma crítica. É pedido o mesmo rigor para o estudo das naturalia e
o dos artificia. As duas disciplinas ajudam-se e educam-se mutuamente. Nesse tempo, elas são
frequentemente praticadas por um mesmo sábio: Peiresc e o cavaleiro dal Pozzo observam com o
mesmo olhar um camafeu ou um camaleão61. O antiquário provençal desmistifica a
representação fantasista de hieróglifos cobrindo um obelisco romano publicada por Kircher e
refuta, ao mesmo tempo, a «teoria dos gigantes», ao demonstrar que os dentes que lhes são atribuídos
são, na realidade, molares de elefantes62.
Outro ponto comum aos naturalistas e aos antiquários é a sua dependência face aos ilustradores
das suas recolhas. Por mais pequena que seja a amplitude do inquérito, torna-se necessário utilizar
documentos de épocas anteriores, de que não se pode verificar a fiabilidade. Por outro lado,
qualquer publicação exige a mediação interpretativa do gravador.
Mas, salvo raras excepções, e a menos que, como no caso de Rubens, os gravadores sejam eles
próprios antiquários, não se pode confiar na objectividade dos artistas contemporâneos: é o lamento
permanente e unânime dos sábios, de Gaignières a Caylus, passando por Peiresc e
Montfaucon63. Os desenhadores e pintores não têm por hábito tirar as medidas exactas,
negligenciam os detalhes, atribuem à falta de habilidade as decisões formais que ignoram,
procuram melhorar os seus modelos, reconstituem-nos muitas vezes de memória ou, ainda, de
acordo com o seu próprio estilo. Sob este ponto de vista, os artistas hábeis são tão perigosos quanto
os medíocres. Donde o valor documental superior dos esboços, por muito toscos que sejam,
executados ao vivo pelos próprios antiquários: os melhores documentos ilustrados da Voyage de
Spon são os poucos desenhos que ele próprio «rabiscou» em Constantinopla e em Éfeso64. Os
sábios recorrem igualmente a engenheiros para traçar plantas.
Quanto aos desenhos dos arquitectos, estes são geralmente tão inexactos quanto os dos
pintores. Se, desde o século XV, eles efectuam levantamentos precisos de edifícios antigos no local,
até meados do século XVIII eles preocupar-se-ão pouco com a exactidão das representações que
publicam. Na maior parte dos casos65, essas imagens são produzidas e difundidas com outras
finalidades. Elas dão a ver um ideal belo e ilustram teorias. Quer sejam apresentados em planta,
corte, ou alçado, os edifícios antigos são reduzidos e abstraídos de qualquer contexto, de acordo
com um erro metodológico denunciado por Peiresc66 e igualmente frequente na reprodução das
naturalia. Para mais, quaisquer que sejam a sua época e estilo, eles são constituídos num
conjunto homogéneo e as suas diferenças são apagadas graças a uma grelha abstracta de figuração,
que significa a sua função demonstrativa e retórica. Todavia, o arquitecto não se contenta em
idealizar ou normalizar os monumentos antigos que representa: ele inventa deliberadamente. Ou
reconstitui, sem outro apoio que não o da sua imaginação67 (e a isto se chama então restaurar), as
partes ausentes dos edifícios arruinados - tal como Serlio em Roma ou, mais curiosamente, como
Inigo Jones quando «restaura» os famosos megalitos de Stonehenge, tornados colunas de um
vasto templo a céu aberto de ordem meia grega, meio toscana -, ou então o arquitecto imagina
edifícios que nunca viu pessoalmente. As sete maravilhas do mundo, as pirâmides e a esfinge do
Egipto, ou ainda o templo de Jerusalém, que foi objecto de inúmeros «restauros», como os do
jesuíta espanhol Villalpanda68, tornaram--se nos «restauros» mais célebres.
Tomemos o exemplo do Pártenon69: entre a primeira imagem fantasiosa, executada in situ em
1444, e a representação científica trazida de Atenas e publicada por David Le Roy na segunda edição
das suas Ruines des plus beaux monuments de Ia Grèce (1770), decorreram três séculos e meio,
intercalados por uma sucessão de figurações inexactas: difícil e longo caminho que se pode tomar
por paradigma do modo de constituição da representação exacta no domínio das antiguidades.
Quer se complete durante os anos de 1760 ou na viragem para o século XIX, o processo70 que conduz
da representação subjectiva ou imaginária à ilustração científica é sempre o mesmo. Os homólogos
das ilustrações da obra de Le Roy e das Antiqitités d'Athénes de Stuart e Revett são numerosos, de
importância e géneros diversos. Entre eles contam-se as ilustrações desenhadas e gravadas por
Soufflot e Major para as suas modestas Ruins of Paestum71 (1768), bem como as da monumental
Description d'Égipte (1809-1824), realizada por ordem de Bonaparte, e que as imagens de Serlio,
de Fischer von Erlach e de Pococke tinham precedido.
A medida que se generaliza, a exactidão da representação dos edifícios estudados contribui para
o aperfeiçoamento do conceito de monumento histórico, que adquire, significativamente, a sua
denominação em finais do século XVIII.
O Iluminismo
Notas:
49
Anliquité, prefácio, p. VI. Cf. também p. X: «Coloquei nesta obra todas as imagens que julguei
poderem servir para ilustrar a Antiguidade. Essas figuras, juntamente com as explicações, serão de uma
utilidade maravilhosa [... ]. Encontrar--se-á muitas vezes nas imagens histórias mudas que os autores
antigos não nos contam. »
50
Conde de Caylus, Recueil d'Antiquités (1752-1767), t. 3, p. 52 (a propósito das antiguidades
etruscas).
51
Observations on the Fairy Queene of Spenser. vol. II, Londres, 1762, de que um
trecho (p. 184-199) está incluído em Essays on Gothic Architecture de J. Warton, J. Bentham,
F. Grose e J. Milner, reunidos por Taylor, Londres, 2ª ed., 1802.
52
Cf. Inscriptiones antiquae totius Urbis Romae de Gruterus, Paris, 1600. Cada ilustração
leva a indicação Schedis fideliter descripsit et vidit.
53
No final do século, Séroux d'Agincourt, 1730-1814, afirma, por seu lado: «O que os
historiadores das Belas-Artes se contentaram muitas vezes em afirmar facilmente, eu queria
mostrar no meu livro. Aí, eram sobretudo os monumentos que deviam falar.» Efectivamente,
nos seis volumes in-folio da sua Histoire de l'art par les monuments, 3 volumes de ilustrações
figuram mil e quatrocentos monumentos. A obra, terminada em Itália durante a Revolução de
1789, foi publicada, em parte, postumamente. Não tem rival, pela ambição que a faz reunir
Antiguidade e Tempos Modernos, e sobretudo, em matéria de arquitectura, por já tratar a
arquitectura gótica como um «sistema». Séroux pode, contudo, ser ainda considerado um
antiquário.
54
Caylus, Recueil d'Antiquités, t. l, p. V.
55
L'Antiquité expliquée, op. cit., prefácio, p. VI.
56
Caylus, op. cit.
57
Cf. R. Krautheimer, «Introduction to an Iconography of Mediaeval Architecture», Studies
in Early Christianism, Mediaeval and Renaissance Art, Princeton, University Press, 1969.
58
Montfaucon, L'Antiquité expliquée, t. XIII (acerca das termas de Fréjus, para as quais ele
utiliza a igonografia de Peiresc).
59
1574-1629. Um dos humanistas e antiquários romanos mais célebres do seu tempo.
60
Ver, em particular, as Cartas a Cassiano dal Pozzo (1626-1637) na notável edição que lhe
deram J. -F- Lhôte e D. Joyal, Clermont-Ferrand, Amphion Adosa, 1989.
61
Ou ainda: a composição do fresco Núpcias Aldobrandinas, a matéria de um vaso antigo, os
relevos de um tripé ou a anatomia de uma gazela da Etiópia, o pelo de um alce da América, as
flores de uma planta de jasminium indicum. A observação e a descrição paralela de edifícios e
de animais encontra-se entre muitos outros autores, nomeadamente entre os médicos-
arquitectos Hooke e Perrault. Este último deixou, também ele, um célebre retrato de camaleão
nas Mémoires pour servir à l´histoire des animaux. Paris, 1771.
62
Op. cit., carta LXIX, cf. sobre a questão dos gigantes, A. Schapper, op. cit.
63
Peiresc, cartas a Gassendi de 21 de Dezembro de 1632, a Menestrier de 30 de Março de
1635 ou a Cassiano, op. cit,, carta XIV. Para Montfaucon, cf. A. Rostand, op. cit.
64
Op. cit., l. II, p. 224, 339; l. III, p. 236.
65
Existem excepções. Peiresc elogia as ilustrações que ilustram o Discours historial de
l´antique et ilustre ville de Nismes, Lião, 1560, de Poldo d'Albenas: elas são «man di buon
architecto e digne di far estimar il libro». Efectivamente, os desenhos reunidos pelo autor estão
todos cotados e são relativamente precisos. Peiresc não presta grande atenção ao comentário,
apesar de tudo notável para a época, no qual Poldo d'Albenas admite não sacrificar às
genealogias urbanas senão pela forma, desmistifica o vandalismo dos gots e multiplica as notas
judiciosas sobre a Maison Carrée, as arenas e a ponte do rio Gard.
66
0p. cit., p. 177.
67
Em muitos casos, os sábios não se deixam enganar. Montfaucon (t. II, l. II, cap. 21, p. 124): «A
maior parte dos perfis de Soria parece mais ser invenção sua, do que copiados a partir do antigo. É
fácil fazer o levantamento das fachadas degradadas; mas essas fachadas degradadas nem sempre
são suficientes para dar uma ideia do seu perfil. É de acreditar que, para ser uniforme na sua obra,
ele tenha querido apresentar o plano e o perfil de tudo c que a sua imaginação tenha suplantado tudo
o que faltava a essas fachadas degradadas [,.. ]. Na dúvida, sugeri suprimir todos estes perfis, de
que vários parecem mesmo não ser consoante o gosto antigo. » (Itálicos nossos).
68
In Ezechielem explanationes et apparatus Urbis ac templi hierosolymitani.
Commentariis et imaginibus illustratus, Roma, 1596-1604.
69
Objecto de um estudo a surgir: Présences du Parthénon, essai sur 1'histoire et la thérorie
de 1'architecture, por P. Tournikiotis. Na primeira parte desse notável trabalho, Tournikiotis
estabelece a seguinte sucessão:
I°fase. Representação idealizada, atemporal e descontextualizada apenas do templo:
Imagem l (arquetípica, desaparecida em 1514), executada no local por Ciríaco de Ancona.
viajante florentino, em 1444, estando Atenas sob o domínio florentino: inspirada nas descrições de
Pausânìas.
Imagem 2, cópia anónima da precedente: pórtico octostilo de ordem dórica.
Imagem 3, versão inspirada na precedente por São Galo: o pórtico dórico torna-se iónico e é
acrescentado atrás dele um edifício.
Imagem 4, anónima: a ordem iónica torna-se coríntia.
Imagem 5, de Spon, 1678: amálgama dórica de 2 e 3, ainda que Spon tenha visto o Pártenon: essa
imagem será reproduzida na maior parte das obras de antiguidades até meados do século XVIII.