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Luanda F. G.

da Costa

POR UMA EDUCAÇÃO PARA ALÉM DO NARCISISMO


Luanda Francine Garcia da Costa1

RESUMO: Nessa aula, tomaremos a questão do narcisismo


como via de articulação entre tolerância/intolerância de modo a
estabelecer conexões filosófico-psicanalíticas que apontem à
necessidade de uma educação que se direcione para além do
narcisismo.

“Por que eu sou a única outra pessoa que não pode me olhar nos olhos”
(Paulo César Pinheiro)2
CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

É fato constatado: sozinhos não podemos olhar nossos próprios

olhos. Precisamos sempre de um outro, de um “não-Eu” para que

possamos nos enxergar e, assim, construir nossa imagem do Eu. O

olhar do outro fornece nossa própria consistência existencial - sozinhos

não nos vemos - o outro reflete uma imagem de nós e a partir de então,

constituímos e atestamos nossa existência no mundo.

No mito grego, Narciso fora um jovem que olhara seus olhos

através do espelho d’água, se apaixonara por sua imagem refletida no

rio e escolhera o caminho de se alienar em sua própria imagem,

afogando-se em si.

Entre o Ser e sua imagem refletida há um espaço, um vão, e por

que não dizer, um abismo que faz com que as duas instâncias não

1 Luanda F. G. da Costa é filósofa, educadora e psicanalista em formação.


2 Trecho da canção “A Trindade”.

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coincidam. Nesse espaço que equidista o Ser e sua imagem, “tudo pode

acontecer” em termos de deslocamentos e preenchimentos.

Paralelamente, ao nos propormos a busca de uma educação3 rumo à

tolerância (sabemos, tolerar é pouco – o mínimo – todavia, um mínimo

altamente necessário), situamo-nos similarmente, em um espaço, entre

uma coisa e outra. Isso significa que as duas instâncias – educação e

tolerância – não coincidem e que nesse espaço, muita coisa pode

acontecer. Assim, diante desta cisão, pensar numa educação para a

tolerância adquire a expressão reflexiva de um espelho d'água: como a

educação pode refletir tolerância?

Longe de fornecer fórmulas e respostas exatas, essa investigação

tem como propósito levantar algumas ideias e apontamentos que

possam contribuir com a busca de uma educação voltada à uma ética

que avance para além de nossos ideais narcísicos.

NARCISISMO, EU E IMAGEM

O termo narcisismo em psicanálise assume grande importância e

é empregado para designar um comportamento pelo qual um indivíduo

“ama a si mesmo”, tratando seu corpo do mesmo modo como se trata o

corpo de uma pessoa que esteja amando. Trata-se do mecanismo de

buscar a si mesmo como objeto de amor, sendo esse um processo

3 Tomaremos o termo “educação” não como sinônimo de escola/pedagogia, mas como meio pelo qual um ser
humano é inserido na cultura, um processo contínuo presente desde que o Ser chega ao mundo até o
momento que o deixa.

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constitutivo de todo ser humano. Sua importância se deve ao fato de ser

um meio fundante e de auto-preservação do Eu, e indicar uma primeira

fase necessária para a maturação da libido (energia sexual), a fim de

que esta posteriormente possa se deslocar para outros objetos sexuais

que não o próprio Eu.

Barthes4 ao discorrer sobre o momento em que nos sentimos

observados por uma câmera fotográfica, enfatiza o fato de nos

colocamos automaticamente a posar. Rubem Alves5 resume isso de

modo preciso:

“Olho para foto. Sofro. O fotógrafo me pegou distraído. Não saí


bem. Não me reconheço naquela imagem. Sou muito mais
bonito. Sofro mais ainda quando os amigos confirmam: ‘Como
você saiu bem!’ O que eles disseram é que sou daquele jeito
mesmo. Não posso reclamar do fotógrafo. Reclamo do meu
próprio corpo. Recuso-me a ser daquele jeito. É preciso ficar
atento. Que não me fotografem desprevenido. Se me perceber
sendo fotografado, farei pose. A pose é o sutil movimento que
faço com o corpo no intuito de fazê-lo coincidir com a
escorregadia imagem que amo e me escapa. A imagem que
amo está fora do corpo. Recuso-me a ser minha imagem
desprevenida. É preciso o movimento da pose para coincidir
com ela. Quero ser uma imagem bela”.
O que vemos na foto? O que ela retrata? Nós mesmos? Sim, mas

não. Vamos didaticamente, analisar por partes:

4 Roland Barthes, em “A Câmara Clara”.


5 Rubem Alves, em “Concerto para Corpo e Alma”, p. 31.

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1º - Não podemos afirmar que “vemos uma coisa”, e sim, que vemos

uma imagem. Para a psicanálise (e algumas correntes filosóficas), o

mundo que vemos é um mundo de imagens, ou seja, não temos acesso

ao que realmente possa ser uma “coisa em si”.

2º - Quem vê não são os olhos do corpo, quem vê é o Eu. Isso implica

considerar que o que enxergamos é visto a partir de uma instância

muito singular. É como se cada um tivesse os seus óculos particulares,

e com eles enxergasse o mundo de maneira única.

3º - Não obstante, o Eu percebe as imagens e elas se inscrevem no Eu.

O sujeito, portanto, em uma dimensão, é constituído por imagens, se

identifica com elas. “Não somos a imagem do espelho, isso é

absolutamente certo, mas, do ponto de vista do Eu, a imagem é o Eu”.6

4º - O que estamos chamando de “Eu” é uma substância imaginária. O

psicanalista Jacques Lacan dizia que o Eu pode ser entendido como

“uma cebola com cascas imaginárias”.7 Ou ainda, em termos da filosofia

de Nietzsche, como uma multiplicidade de personagens, vozes, facetas

e máscaras - uma por trás da outra.

5º - Contudo, nem todas as imagens são percebidas pelo Eu, mas

somente aquelas em que o Eu se reconhece. Reconhecer-se não quer

dizer que “isso é o mesmo que Eu”, mas que determinadas imagens

despertam um sentido intimamente ligado à nossa história, à nossa


6 Juan-David Nasio, em “O Olhar em Psicanálise”, p. 19.
7 Idem, p. 26.

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impressão do mundo, à nossa sensação, ao nosso ideal (como o Eu

gostaria de se reconhecer, a escorregadia imagem que o Eu ama e que

está fora do corpo).

Assim, temos que “não apenas o mundo não são coisas, não

apenas não são imagens, como também o mundo, para o Eu, são

apenas as imagens em que ele se reconhece”.8 É importante ressaltar

que nessa dimensão onde as imagens se imprimem no Eu, não

precisamos pensar - no imaginário as coisas se dão do modo como se

dão a ver. Isso implica a crença de que o modo como vemos as coisas,

são de fato, como elas são.

Quando não nos sentimos bem ao nos observarmos numa

fotografia (ou em um espelho), é em relação a um modelo ideal, ao ideal

imaginário, ou seja, àquilo que espero que Eu seja. Queremos amar a

nós mesmos através de imagens. Queremos nos reconhecer belos. Se

nos vermos belos (e por isso bons) no olhar do outro, esse outro será

aceito e amado.

O INTOLERÁVEL E O TOLERÁVEL DA IMAGEM

A canção diz que “Narciso acha feio o que não é espelho”.9 Sim é

verdade, mas pode achar feio o que também é espelho quando este

refletir sua imagem recusada, não aceita. O espelho mostra a face

oculta de Narciso, e isso lhe fere. Chamamos de “ferida narcísica” esse


8 Ibidem, p. 22.
9 Trecho da canção “Sampa”, de Caetano Veloso.

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sentimento dolorido causado pela queda de um ideal em que nos

apoiamos.

Posto isso, caminharemos agora por duas vias complementares:

a) Narciso acha feio o que não é espelho: Odeio aquilo que não se

parece com o que fui/ com o que sou/ com o que gostaria de ser.

Diante daquilo que confronta nosso narcisismo pela via da

diferença, a tendência à rivalidade se faz visível – ou Eu ou o Outro –

como se a existência de uma singularidade ameaçasse à outra, e

assim, não pudessem coexistir. A partir de então, abre-se uma disputa

pelo vencedor do ideal “melhor e mais correto”. Trata-se de uma

tentativa para apagar as diferenças do outro (e assim aniquilar o outro

em sua singularidade), de fazer um nivelamento do outro ao meu Eu (o

“correto”), de modo a negar o diferente (o “errado”) para afirmar o igual,

do Eu.

Sobre a questão da “repetição”, da sucessão de coisas “iguais”,

Freud deixa claro seu valor mortificante. A ausência de diferenças forma

uma linha única sem nuances e, deste modo, evitamos o desprazer das

tensões, mas ficamos amortecidos, posto que “somos feitos de modo a

só podermos derivar prazer intenso de um contraste”.10 É preciso que a

alternância aconteça para que possamos viver, “nada é mais difícil de

10 S. Freud, em “Mal Estar na Civilização”, p. 84

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suportar do que uma sucessão de dias belos”.11

b) Narciso acha feio o espelho que mostra sua feiúra: odeio aquilo que

se parece com uma parte que não gosto de mim.

Tudo que sou eu, gosto. Tudo que é “não-eu”, cuspo. Não aceito

porque me é “estrangeiro”, como um corpo estranho que rejeito dentro

de minhas entranhas. Detenhamo-nos então na explanação de Freud:

“A palavra ‘estranho’ parece nos remeter justamente ao oposto


do que é familiar; e somos tentados a concluir que aquilo que é
‘estranho’ é assustador precisamente porque não é conhecido
e familiar. Naturalmente, nem tudo que é novo e não familiar é
assustador, a relação não pode ser invertida. Só podemos
dizer que aquilo que é novo pode tornar-se facilmente
assustador e estranho; algumas novidades são assustadoras,
mas de modo algum todas elas. Algo tem de ser acrescentado
ao que é novo e não familiar, para torná-lo estranho”.12
Pois bem, algo tem de ser acrescentado ao novo para que este se

torne estranho. O que seria? Esse “algo” aparece como a imagem do

retorno do que fora reprimido outrora, ou seja, a categoria de estranho

(e por isso assustador) só se configura como tal, justamente por remeter

ao que é de conhecido, de velho, e há muito familiar. Trata-se de um

movimento de defesa, que “levou o Eu a projetar para fora aquele

material, como algo estranho a si mesmo”.13

11 Frase de Goethe citada por Freud. Idem.


12 S. Freud, em “O Estranho”, p. 239.
13 Idem, p. 253-254.

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O que de estranho, de novo e de mesmo o outro me traz? Quando

a imagem do outro é insuportável? O que vejo? O que de mim vejo

refletido de tão insuportável?

Notemos que aqui há uma virada: o estranho, só é estranho,

porque não nos é estranho. O estranho nos é familiar no inconsciente.

Assim, o ódio sentido pelo que é supostamente estranho e distante de

nós, é o ódio pelo que nos é mais familiar e mais próximo.

Há também uma outra forma de hostilização do outro que se

apresenta com sua face mais fria: a violência da indiferença à diferença.

Não se trata mais de não querer reconhecer que o outro é diferente e

querer igualá-lo ao Eu, mas de colocar o outro, já de antemão, em uma

posição de invisibilidade, onde esteja apagado, e assim, inexistente.

Como consequência, não é de se surpreender que diversas atitudes

intolerantes sejam vistas com indiferença, posto que o objeto para o

qual tais atos se dirigem, se encontre fora do campo de visão, fora de

qualquer laço, seja ele de amor ou de ódio.

EDUCAÇÃO NARCÍSICA: ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO

Diante dessas abordagens sobre intolerância ao diferente,

podemos agora nos reportarmos à questão da educação dos filhos

propagada nos núcleos familiares. É óbvio dizer (e justamente por ser

óbvio, pouco visitado), mas a criança é um outro, um “não-Eu”, que não

vem ao mundo para ser uma mera reprodução dos pais. Por isso, a

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criança, desde bebê, ainda que dependente física e psicologicamente

de seus cuidadores, já é um ser com autonomia de escolha. O bebê tem

seus próprios desejos e os maneja de um jeito muito particular.

Não obstante, é comum a criança ser posta como um simples

prolongamento do Eu dos pais (ou cuidadores). A projeção narcísica dos

pais na criança faz desta, um objeto ideal (voltamos à questão dos

ideais). Atribuem a seus filhos todas as perfeições, reivindicam a eles

todos os privilégios que um dia tiveram que renunciar, os poupam de

restrições sociais e projetam-lhes uma gama de desejos frustrados:

“A criança deve satisfazer os sonhos e os desejos nunca


realizados dos pais, tornar-se um grande homem e herói no
lugar do pai, ou desposar um príncipe, a título de indenização
tardia da mãe. O ponto mais vulnerável do sistema narcísico, a
imortalidade do Eu, tão duramente encurralado pela realidade,
ganha, assim, um refúgio seguro abrigando-se na criança”.14
Pensar em uma educação guiada por esses moldes é pensar a

família como célula que educa para célula, e não para um organismo

inteiro - social. Ensimesmada, essa célula vai se corroendo dia-a-dia e,

parodiando Caetano Veloso, constrói dulcíssima prisão, mas não

encontra a mais justa equação. Na mesma ce(lu)la familiar, se retraem

todos, manifestando a educação do campo do fechado, do “sem poros”

para a alteridade. Quanto mais narcísica é a educação, mais o indivíduo

14 S. Freud, em “A Guisa de Introdução ao Narcisismo”, p. 110.

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se encolhe, dobra-se sobre si - nada entra, mas também nada sai - as

janelas ficam fechadas para receber a luz que emana do outro.

Segundo Freud, há um “conflito entre a família e a comunidade maior a

que o indivíduo pertence [...]. Quanto mais estreitamente os membros

de uma família se achem mutuamente ligados, com mais freqüência

tendem a se apartarem dos outros e mais difícil lhes é ingressar no

círculo mais amplo da cidade [...]. Separar-se da família torna-se uma

tarefa com que todo jovem se defronta.”15

Podemos afirmar que o ingresso dos indivíduos na sociedade é

um mal necessário. Mal porque implica o desprazer, o mal-estar oriundo

da necessidade de impor limites ao próprio desejo em função de um

coletivo, estranho e hostil. Necessário, porque, entre outras coisas, é na

vida em sociedade que o indivíduo poderá se desenvolver para além de

seu universo umbilical. De acordo com Aristóteles16, o ser humano é

um animal político por natureza, porque é um animal de linguagem.

Para o filósofo, somos seres que nos realizamos como cidadãos na vida

política da cidade (pólis). O simples viver junto, gregário, era para

Aristóteles algo importante, porém, ainda não diferia os homens de

algumas espécies de animais. Já o viver na pólis sim, posto que a

complexidade da organização política levaria aos homens o

desenvolvimento de novos modos de se relacionar, a fim de que não


15 S. Freud, em “Mal Estar na Civilização”, p. 108-109.
16 “A Política”.

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apenas vivessem, mas vivessem bem.

Quando nos propomos a vislumbrar uma educação que se

direcione para além do narcisismo (a expressão “para além” não deve

ser entendida como a tentativa de destruir o narcisismo, mas sim de

contemplá-lo em suas necessidades, de modo que estas não se

configurem como um “ponto final”), pensamos em uma educação que

impulsione o indivíduo a ir além do conhecido, do familiar, do privado.

Nesse sentido, vale lembrar a importância do pensamento de Hannah

Arendt17 a respeito das esferas pública e privada. De acordo com a

filósofa, a esfera privada diz respeito às necessidades individuais, já a

esfera pública, remete ao espaço em comum, à liberdade da ação em

conjunto, da manifestação política. As duas esferas se fazem

necessárias, mas a esfera privada precisa ser superada pela esfera

pública.

Quando o mundo privado é posto acima do público, há uma

suspensão ética do laço social (e político). Como ilustração, tomemos o

exemplo dos pais que esperam seus filhos saírem da escola com seus

carros parados em fila dupla. Essa é uma boa situação para

constatarmos a indiferença com a vida pública – apagada até a

inexistência. A crença de que sempre possa existir algo “acima de tudo”

faz com que os sujeitos se coloquem como exceções, acima da rede da

17 “A Condição Humana”.

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vida que enlaça à todos no estar no mundo – o individualismo (ou

narcisismo) quando elevado, coloca em risco todo o coletivo planetário.

Para Arendt, fugir na interioridade à procura de duração, precisão

e segurança é um caminho sem saída que conduz à autodestruição

narcísica. Uma sociedade pautada na intimidade da vida privada rouba

os homens sua faculdade e sua vontade de ultrapassar limites e

interromper processos automáticos. Essa capacidade política precisa da

distância narcísica, da diferença e da pluralidade encontrada na esfera

pública. Arendt propõe o cultivo de um “ethos da distância”, a fim de que

os indivíduos levem a sério a incomensurabilidade existente entre o eu

e o outro (o que impede sua incorporação narcisista). A aposta é que

esse cultivo da distância nas relações possa estabelecer uma relação

nova e somatória, onde o outro não mais apenas confirme o que em nós

já é existente, e sim, traga-nos o que é inexistente em nossa história,

em nosso presente e em nosso ideal. Através dessas relações que nos

levem para além de nossa própria descoberta no outro, seria possível a

invenção de novos “Eus”, por meio da observação dos diversos modos

de existência alheios.

Embora tenhamos a tendência de ver o outro como nossa

projeção, ou seja, através da lente do nosso narcisismo, ainda assim é

possível reconhecermos a existência, de fato, de um outro, que não se

configura apenas como nossa extensão. E ainda que não consigamos

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enxergar essa singularidade/alteridade, é possível reconhecermos que

ali existe um limite – do outro, e portanto, nosso. Deste modo, não é

preciso que haja laço amoroso para respeitar algo. Daí a o sentido da

tolerância: tolerar é o mínimo, e talvez o primeiro passo para que

possamos alçar novos modos de enxergar e se relacionar com o outro.

É necessário que a diferença não seja indiferente – ela tem que

fazer valer sua singular distinção. Dizer que somos todos um, não

significa afirmar que somos todos iguais. A proposta é que o outro seja

tratado realmente como estranho, e não como o estranhamente familiar.

Não é pelo direito à igualdade, e sim pelo direito à diferença que

precisamos nos educar. A questão aqui colocada não é a aspiração pela

superação das distâncias entre os seres, mas sim, pelo respeito,

admissão e manutenção dos distanciamentos. Note que para ler esse

texto, é necessário um espaço entre você e essas letras; Se a distância

for muito grande ou então quase nula, você não poderá indentificar o

que aqui se faz escrito. Do mesmo modo são marcardas nossas outras

relações: precisamos de diferenças e espaços para podermos perceber

e reconhecer a existência do outro, e a nossa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: EDUCAÇÃO, NARCISMO E REALIDADE

No centro de seus narcisismos, os indivíduos se encontram muito

bem instalados e confortáveis. Contudo, “o infantilismo está destinado a

ser superado. Os homens não podem permanecer crianças para

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sempre; têm de, por fim, sair para a ‘vida hostil’. Podemos chamar isso

de ‘educação para a realidade’”, diz Freud.18

Educação para a Realidade. O que podemos entender por esse

termo:

“A educação não prepara os jovens para a agressividade da


qual se acham destinados a se tornarem objetos. Ao
encaminhar os jovens para a vida com essa falsa orientação
psicológica, a educação se comporta como se se devesse
equipar pessoas que partem para uma expedição polar com
trajes de verão e mapas dos lagos italianos. Torna-se evidente,
nesse fato, que se está fazendo um certo mau uso das
exigências éticas. A rigidez dessas exigências não causaria
tanto prejuízo se a educação dissesse: ‘É assim que os
homens deveriam ser, para serem felizes e tornarem os outros
felizes, mas terão de levar em conta de que eles não são
assim.’”19
Gostaríamos de ser somente beleza, bondade e perfeição. Mas

não somos assim, e precisamos, no mínimo, tolerar a constatação da

realidade que abre feridas em nosso narcisismo - realidade de que

somos seres cindidos, divididos entre elevadas aspirações e “baixas”

inspirações. E, no que concerne a questão da presença do mal na

condição humana, como parte de sua própria constituição, ainda que

renegada, Freud faz a crítica:

“’As criancinhas não gostam’ quando se fala na inata inclinação


18 “Futuro de uma Ilusão”, p. 57
19 S. Freud, em “O Mal Estar na Civilização”, p. 137 (nota de rodapé).

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humana para a ‘ruindade’, a agressividade e a destrutividade, e


também para a crueldade. Deus nos criou à imagem de Sua
própria perfeição; ninguém deseja que lhe lembrem como é
difícil reconciliar a inegável existência do mal com Seu poder e
Sua bondade”.20
Não obstante, incluir o mal na estrutura humana não implica

resignação e nem prescrições de cartilhas que ensinem resoluções

certeiras. É preciso, pois, assumir a verdade do mal nas práticas

cotidianas e buscar modos criativos para lidar com sua presença, a fim

de que o pior não aconteça – a saber: a barbárie. Theodor Adorno21, fala

da necessidade de pensarmos uma educação que tenha como meta

evitar a barbárie. De acordo com ele, para que as experiências de

barbárie não se repitam, é preciso identificar e modificar as condições

que levaram à existência das mesmas. Um ato intolerante é sempre

precedido por outro ato, e temos a tendência de olhar para o que foi ou

para o que pode ser, mas não para as coisas em eminência de

acontecer (ou que estão acontecendo) – o mal muitas vezes é

imperceptível à nossa sensibilidade encapsulada, por isso, é necessário

atenção para identificar circunstâncias onde o mal se desenvolve

livremente. Desta maneira, para uma educação que evite o pior, é

necessário que haja espaço para a admissão da existência do mal e a

partir de então, que se criem os limites oriundos de posicionamentos

20 Idem, p. 124.
21 “Educação após Auschwitz”

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éticos dos sujeitos, para que o intolerável do mal, não seja por fim,

considerado indiferente e “tolerável”.

Educar almejando tolerância significa ir além da ordenação

narcisista tendo em vista a realidade do próprio narcisismo. Impossível

não causar feridas, não mexer no que Narciso não quer ver, não

balançar seus ideais. Para tanto, uma “educação para a realidade”

apontada por Freud, pode fornecer uma base sólida para que

caminhemos à uma organização social que ultrapasse o narcisismo.

Assim, educar para a realidade é levar em conta os limites do Eu, do

outro, da sociedade e do mundo (enquanto planeta), e também estar

ciente dos próprios limites da educação sem com isso resignar-se

diante do impossível: sempre restará em nós uma parcela de “natureza

inconquistável”. É necessário a aceitação de que coisas consideradas

como feias, más, sujas e destrutivas existam e que tenham os seus

lugares, sem que com isso, tenhamos que aceitá-las em todas as suas

formas de manifestações.

Que essa consciência do abismo entre o que somos e o que

gostaríamos de ser/ver, não sirva como pretexto à paralisia e a

desistência, mas sim, à exploração criativa de novas possibilidades

nesse interstício. Que continuemos buscando a construção de uma

ética educacional habitável, ou seja, menos divina/idealizada – e por

isso irrealizável – e sim, mais terrena, de modo a abranjer a realidade

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de nossas “imperfeições” sem no entanto, cair em levianos

conformismos. Que nos lancemos à tarefa de educarmo-nos, mesmo

sabendo do antagonismo irremediável entre nossas exigências internas

e as restrições da civilização. E que mesmo diante das dificuldades,

continuemos educando-nos para além do narcisismo.

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