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ambiente

O Código Florestal ao
arr epio da ciência
Projeto prevê alteração da lei sem
responder a previsões de danos ambientais
que vêm sendo feitas por especialistas
de diversas áreas de pesquisa

Giovana Girardi e Andreia Fanzeres

N
o mês que vem, quando o governo do, e mais de 80 milhões de hectares de deixou escapar de onde teria vindo sua
federal anunciar de quanto foi terra no país estão em situação de não consultoria científica: um assessor é bió-
o desmatamento da Amazônia conformidade com o código. A proposta logo. Mas a própria comunidade científica
neste ano, é muito provável que ele mostre de substitutivo elaborada pelo deputado faz um mea-culpa. Apesar de não faltarem
a menor taxa desde 1988, quando o dado federal Aldo Rebelo (PCdoB-SP), e já apro- trabalhos que mostrem as consequências
começou a ser medido anualmente pelo vada em comissão especial para votação das supressões de vegetação nativa pre-
Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Es- em plenário, flexibiliza esses instrumen- vistas, pesquisadores admitem que eles
paciais). Uma vitória no caminho do com- tos de proteção com a justificativa, entre mesmos demoraram para se manifestar
promisso assumido internacionalmente de outras, de regularizar proprietários que sobre a necessidade de modificar o códi-
reduzir o desmatamento para diminuir as infringiram a legislação vigente. go, inclusive para torná-lo mais efetivo.
emissões de gases de efeito estufa do país. Esse projeto de lei vem sendo ampla- “O problema da maior parte da pesqui-
Paralelamente, porém, é provável que o mente criticado por pesquisadores de di- sa existente é ela não ser adequadamente
Congresso esteja votando um projeto de versas áreas diretamente relacionadas direcionada (ou decodificada) para atender
lei que substitui o atual Código Florestal à matéria e não há informações que as- demandas vindas da legislação. Não acho
– e que muitos pesquisadores e ambien- segurem sua fundamentação científica, correto os pesquisadores afirmarem que
talistas entendem ir na contramão desse seja para as alterações previstas por seus existe enorme quantidade de informação
compromisso, ao diminuir a proteção às dispositivos, seja como contraposição às disponível se ela não foi, com a ajuda de-
florestas e permitir novos desmatamentos. objeções levantadas contra ele. les, convertida em algo que possa ser útil
O texto original, de 1965, que sofreu al- Cientistas alegam que, ao tentar mi- na discussão”, desabafa Gerd Sparovek,
terações em 1989 e em 2000, dispõe sobre nimizar os problemas do agronegócio, da Esalq (Escola Superior de Agricultu-
as chamadas APPs (áreas de preservação a proposta acaba colocando em risco a ra Luiz de Queiroz), da USP. “O Código
permanente, como matas ciliares e topos biodiversidade e os serviços ambientais Florestal vem sendo negligenciado pelos

Ilustração Mauro Nakata


de morro) e a Reserva Legal, ou RL (tre- prestados pela floresta. Quando questio- agricultores, por quem fiscaliza, e tam-
chos de propriedades privadas que não nado sobre o assunto, Aldo diz que ouviu, bém na pesquisa praticamente desde que
podem ser desmatados – a porcentagem sim, pesquisadores, sem citar algum nome ele foi criado. Estamos correndo atrás do
varia conforme o bioma). Bastante rigoro- específico ou mostrar papers publicados. prejuízo, com pressa e sem o cuidado e
so, ele é também largamente desrespeita- Certa vez, em uma coletiva de imprensa, rigor necessários ao processo de produção

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científica, em muito, porque não demos a “O fato de o código hoje ser tão desres- 100 mil espécies. Esse número conside- a sentir as mudanças, de acordo com uma visível. Onde não tinha mata, as espécies Esses animais se reproduzem na água,
atenção devida ao problema no passado.” peitado mostra que de fato tem algo de ra uma eventual perda de 70 milhões de dupla de pesquisadores da Unesp. exóticas, mais tolerantes, dominavam, subs- mas usam as matas ciliares para abrigo e
É desse agrônomo o cálculo do tamanho errado com ele. Precisamos chegar a um hectares na Amazônia em decorrência da A bióloga Lilian Casatti, do Instituto de tituindo as espécies nativas especialistas.” alimentação. A diminuição de APPs, assim
do déficit de vegetação no país. De acordo consenso, mas para isso precisamos nos diminuição da Reserva Legal. O projeto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibil- Os peixes maiores, de interesse para a como de Reserva Legal, pode promover
com o Código Florestal, deveria haver em basear nas pesquisas. E há lacunas a serem lei prevê que “pequenas propriedades” ce), do câmpus de São José do Rio Preto, pesca, também podem sentir o impacto redução e fragmentação de habitats, com
APPs 103 milhões de hectares (Mha) no preenchidas, como estudos que mostrem com até quatro módulos fiscais – o que que está compilando os trabalhos sobre o da diminuição da mata ciliar. “Se as cabe- consequências como endogamia (cruza-
país, mas só 59 Mha estão protegidos. Já alternativas, que apontem exatamente na região pode passar de 400 hectares – impacto na ictiofauna para a Biota Neotro- ceiras ficam desprotegidas, a parte mais mento entre parentes, levando à perda de
em Reserva Legal, o déficit é de 43 Mha, o tamanho do custo [socioeconômico e não precisam manter a área. Além disso, pica, lembra que a maioria das espécies larga, rio abaixo, vai acabar sofrendo com diversidade genética), além de aumento
diante de 254 Mha previstos. São terras ambiental] do desmatamento em relação em algumas condições, permite que as de peixes de água doce do país vive nos o assoreamento. Muitas espécies que co- da radiação, promovendo insolação direta
que, pela legislação vigente, deveriam à recuperação da mata e ao investimen- APPs sejam incluídas no cômputo da RL pequenos riachos, dependendo assim da locam os ovos no fundo dos rios podem sobre os ovos, larvas e girinos.
ser recuperadas. O substitutivo proposto to de tecnologias na agropecuária, por do imóvel. E autoriza que a recuperação presença de matas ripárias. A supressão assim ter os filhotes soterrados. Além disso, Para Haddad, além de não ser “ético o
por Rebelo exime dessa responsabilidade exemplo. Mas a tônica é evitar uma vota- da reserva seja realizada com plantio in- da floresta significa, por exemplo, uma se o leito está assoreado, o rio perde em ser humano destruir outros organismos,
terrenos, desmatados até 22 de julho de ção imediata, porque faltam dados para tercalado de espécies nativas e exóticas, maior incidência de sol na água, aumen- volume e, sem as colunas d’água, grandes eliminar espécies”, a perda de anfíbios,
2008, que sejam considerados áreas rurais tomar uma decisão”, defende o ecólogo sendo que estas não podem exceder 50% tando sua temperatura, o que leva a uma predadores, como tucunaré, dourado, jaú assim como pode ocorrer com os peixes,
consolidadas (com edificações, benfeito- Jean Paul Metzger, da USP. da área total a ser recuperada. proliferação de algas e, por fim, à eutro- e pintado, vão perder área.” vai alterar o equilíbrio ecológico. Reduzir
rias e atividades agrossilvipastoris), para Outra mudança que pode ter implicação fização da água, provocando a morte de Também nos menores riachos é onde suas populações significaria ter uma pro-
as quais deverão ser promulgados progra- Extinção em massa direta sobre a biodiversidade é a redução de peixes (veja quadro abaixo). ocorre a maioria das espécies de anfíbios, liferação de insetos, que podem ser praga
mas de regularização ambiental em até Em carta publicada em 16 de julho na re- APPs dos atuais 30 metros para 15 metros Ela comparou a situação de 95 riachos lembra Célio Haddad, da Unesp de Rio da agricultura ou transmissores de doenças
cinco anos a partir da publicação da lei. vista Science, ele, Joly e colegas alertaram nas margens de corpos d’água com menos do noroeste do Estado, escolhidos alea- Claro, que colaborou com Felipe Toledo, para o homem, além de diminuir a oferta
“Não há justificativa nenhuma para isso”, que a modificação do código pode levar a de 5 metros de largura. “Isso representa toriamente – metade estava totalmente da Unicamp, além de outros especialistas, de alimento para peixes, répteis, aves e
critica o biólogo Carlos Joly, da Unicamp, um aumento “substancial” de emissões de mais de 80% dos rios brasileiros”, afirma desmatada nas margens e metade manti- para revisar a mudança do código sob o mamíferos que predam anfíbios. “Deve-
e um dos coordenadores do programa Bio- gás carbônico e à extinção de pelo menos Joly. Peixes e anfíbios serão os primeiros nha alguma preservação. “A diferença era ponto de vista da conservação de anfíbios. ríamos estar indo no outro caminho, de
ta/Fapesp. “O código foi modificado em reconectar os fragmentos. A proposta vem
1989, usou-se o avanço do conhecimento Impactos do novo código na contramão de tudo o que a ciência está
científico para aprimorar a versão original Um dos pontos mais polêmicos do projeto que altera o Código Florestal é a falando que é para fazer, não só por uma
redução da APP (área de preservação permanente) de 30 metros para 15 metros Eutrofização de corpos d’água
e não há por que agora dizer que quem nas margens de riachos com até 5 metros de largura. Essa é a situação em que
questão de bondade com os organismos,
Com mais luz e menos larvas de anfíbios
descumpriu até 2008 está anistiado. Tem se encaixa a maioria dos riachos de cabeceira do país. Os impactos atingem a para se alimentar de cianobactérias mas para o bem do ser humano”, afirma.
de exigir a restauração. Temos um conhe- biodiversidade e os serviços ambientais da floresta. Veja alguns exemplos: (tóxicas), algas e plantas aquáticas,elas
proliferam, promovendo a eutrofização
cimento técnico para que isso aconteça. dos rios e de reservatórios de água. Quanto maior, melhor
Tem um custo enorme? Bem, então vamos Para a manutenção mais efetiva de algu-
pensar em maneiras como isso pode ser mas espécies de animais, aliás, os pes-
Desconexão de habitats
financiado”, complementa. Mata ripária bem preservada funciona quisadores pedem uma revisão diferente
Essa medida, acreditam pesquisadores como corredor ecológico; se o seu tamanho do Código Florestal: que ele fique mais
Espécies aquáticas Proliferação de insetos é muito reduzido, animais maiores já
ouvidos pela reportagem, pode incentivar Com menos árvores nas margens, Sem peixes e anfíbios, insetos não conseguem fazer uso dele. Também rigoroso. É a conclusão a que chegaram
novos desmatamentos – perderia o senti- aumentam a incidência de luz sobre que são pragas agrícolas e diminuem os serviços de polinização e os pesquisadores Carlos Peres e Alex Lees,
a água e a temperatura, o que afeta transmitem doenças para seres dispersão de espécies. Tudo junto ajuda
do respeitar as regras se no intervalo de o metabolismo dos peixes e sua humanos ficarão livres de seus a promover o isolamento de espécies, a
da Universidade de East Anglia, na Ingla-
alguns anos pode surgir uma nova lei e reprodução. Nos riachos pequenos é principais predadores naturais perda de diversidade e, ao final, extinção terra, após analisarem populações de aves
também onde ocorre a maior parte
perdoar os passivos ambientais do passado. dos anfíbios. A redução de metragem
e mamíferos em 37 fragmentos florestais
Joly organizou em agosto um seminário deve causar declínio populacional e na região de Alta Floresta (MT), em 2005.
na Fapesp com pesquisadores de várias eventualmente extinção de espécies Com o apoio de imagens de satélites,
áreas do conhecimento para discutir os eles definiram as condições de largura e
principais impactos que a alteração do estrutura mínimas necessárias para manter
código pode trazer para fauna e flora e viáveis esses grupos e concluíram que a
para os serviços que a floresta presta em funcionalidade desses corredores é maior
termos de proteção dos recursos hídricos, quando eles estão conectados a grandes
polinização, dispersão de sementes, etc. manchas de matas. Os espaços mais estrei-
São dados já conhecidos há tempos pela tos (com menos de 200 metros de largura)
academia, mas que foram apresentados Assoreamento e isolados – condição da maioria das matas
Com uma floresta ripária menor, aumenta
juntos (e serão compilados até o final do o fluxo de sedimentos, fertilizantes
que restaram no arco do desmatamento na
ano em uma edição da revista Biota Neo- e pesticidas que entram nos rios Amazônia – apresentaram um terço das
tropica) para tentar estender a discussão e através do escoamento superficial ou aves e um quarto dos mamíferos vistos nos
subterrâneo, o que pode diminuir a oferta
demover os congressistas da ideia de votar de água e encarecer seu tratamento fragmentos maiores e mais conectados.
o projeto agora, logo depois das eleições. “Qualquer extensão de mata em regiões

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já muito desmatadas, como grande parte tamanho das matas ao longo de cursos com menos de 200 metros são formados protegendo os mananciais tem-se um custo
O exemplo catarinense do arco do desmatamento amazônico, d’água é, de longe, o principal determinan- essencialmente por ambientes de borda, de tratamento de água menor. “Em algu-
Em abril de 2009, o então governador de Santa Catarina, Luiz Henrique da cumpre um papel de importância alta- te para a viabilidade de diversas espécies. altamente perturbados”, escreve, citando mas áreas do interior de São Paulo onde o
Silveira (PMDB), sancionou a lei que cria o código ambiental do Estado, definindo mente desproporcional na retenção da Durante os oito anos em que esteve no Peres e Lees. Fernanda conta que notou, manancial está bem protegido, calculamos
o tamanho das áreas de preservação permanente mínimas de acordo com o das biodiversidade”, explica Peres. “A largura norte de Mato Grosso estudando a frag- em trechos de 100 metros no Mato Gros- que o tratamento de mil metros cúbicos
propriedades. Assim, para imóveis de até 50 hectares, por exemplo, as matas exigida pelo código vigente representa um mentação na Amazônia, a pesquisadora so, “uma grande proporção de árvores custa R$ 2. Quando não há vegetação, isso
ciliares precisam ter apenas cinco metros de extensão. Em fazendas um pouco mínimo necessário para que esses rema- não encontrou em áreas florestadas com mortas, especialmente de grande porte”. pode subir para R$ 300.”
maiores, sobe para 10 metros. Pesquisas mostram que faixas tão diminutas não nescentes continuem funcionando tanto cerca de 800 hectares animais como quei- Os autores sugerem que as APPs em tor- Sem contar que o maior assoreamento
garantem salvaguarda dos solos, dos recursos hídricos ou da biodiversidade. como corredores ecológicos, amenizando xadas. Em fragmentos de 100 hectares, no de rios na Amazônia deveriam manter dos rios pode tornar mais frequentes e in-
O que acontece em Santa Catarina antecede o que pode ocorrer em escala a hostilidade de qualquer paisagem des- a probabilidade de ocorrência de onças- pelo menos 200 metros de área florestada tensas as inundações rio abaixo, afetando
nacional se forem aprovadas as alterações no Código Florestal Brasileiro. As- matada, quanto como habitat florestal pintadas foi inferior a 40%. de cada lado para que haja uma plena con- as populações ribeirinhas que moram ao
sim como na proposta do deputado, em Santa Catarina o governador autorizou para uma gama de espécies com níveis Outro impacto importante é no chamado servação da biodiversidade. “A manuten- longo do curso d’água. “Transfere-se o ônus
que áreas de preservação permanente sejam computadas como reservas legais de especificidade diferenciados.” efeito de borda – a vegetação que fica, co- ção de corredores de 60 m (30 m de cada da produção agrícola para a população
nas propriedades, e dá um prazo de cinco anos (ampliáveis por mais cinco) pa- Resultados semelhantes foram obtidos mo o nome diz, na borda de um corredor lado do rio), conforme a legislação atual, mais carente de centros urbanos”, diz Joly.
ra que o proprietário se comprometa a compensar as reservas legais, se não por Fernanda Michalski, do Instituto Pro- ou fragmento é sempre mais afetada pelas resultaria na conservação de apenas 60% Galetti complementa: “É comum a gente
estiverem de acordo com a lei. Todas as irregularidades cometidas na vigência carnívoros e da Universidade Federal do perturbações externas, como luminosida- das espécies locais”, cita Metzger. ouvir: ‘ah, para que proteger o mico-leão?’.
do Código Florestal Brasileiro, desde 1965, ficam praticamente perdoadas. A Amapá, que estudou a eficiência dos cor- de, ressecamento do ar e do solo, rajadas O problema é que ninguém faz o papel do
lei catarinense ainda autoriza a exploração de erva-mate nas reservas legais redores para carnívoros de médio porte na de ventos, queimadas, etc. De acordo com Serviços para o homem mico-leão. Ele dispersa no mínimo umas
sem necessidade de autorização do órgão ambiental. E, entre outros pontos, mesma região. Seu propósito era verificar Metzger, em artigo publicado na revista Em setembro, Fernanda, Peres e o zoó- cem espécies de plantas, que não têm ou-
considera que as atividades de pesquisa e extração de areia são passíveis de que tipos de fragmentos estavam sendo Natureza e Conservação sobre as bases logo Darren Norris, que é doutorando na tros dispersores. Portanto, para ter uma
serem autorizadas nas APPs. habitados por esses animais, para anali- científicas do código atual, esses efeitos são Unesp de Rio Claro, frisaram em carta na mata ciliar rica, que proteja o rio, é pre-
Como a lei catarinense contraria o que diz a legislação federal (que autoriza sar quão coerente é a nossa legislação em mais intensos nos primeiros 100 metros Science que “as reformas poderão levar a ciso ter o mico-leão. É o papel ecológico
a existência de leis de proteção estaduais desde que não sejam menos restri- termos de conservação. Descobriu que o de largura, “o que implica que corredores perdas irreversíveis à biodiversidade”. Eles de cada espécie no ecossistema”.
tivas que a federal), a Procuradoria Geral da República ajuizou uma ação de reafirmam que a redução dos corredores Ele cita como exemplo um problema
inconstitucionalidade contra o instrumento, pois entendeu que ao permitir inter- florestais significa que as paisagens vão que já se observou no sudoeste de São
venções em áreas de preservação, a medida ameaça a segurança de milhares perder a capacidade de reter e conectar Paulo, onde foi extinto localmente o cer-
de pessoas. A ação ainda aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal. espécies e de manter a qualidade e o fluxo vo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus)
Os próprios catarinenses já sentiram na pele como faz falta a robustez da de recursos hídricos. O empobrecimento em razão da destruição das várzeas (essas
vegetação nativa nos morros e nas margens dos rios, quando sofreram em do ambiente poderá ser sentido pelas ero- áreas deixam de ser consideradas APPs
novembro de 2008 com enchentes e deslizamentos catastróficos no Vale do sões no solo e pela cada vez menor capa- pelo novo código) para construção de hi-
rio Itajaí. Com as APPs mais frágeis, o risco é que o código estimule ainda mais cidade de captação de água, o que em si drelétricas. Em estudo realizado na área
EFEITO DE BORDA
desmatamento. pode trazer consequências econômicas, de inundação da usina Sérgio Motta, Jo-
Vegetação que fica na beira
Por recomendação do Ministério Público Federal e do Estadual, os órgãos como a desvalorização do preço da terra. sé Maurício Barbanti Duarte, da Unesp
da floresta é mais afetada por
ambientais de Santa Catarina ainda não estão aplicando os artigos considera-
perturbações externas
“Há uma relação direta com o funcio- de Jaboticabal, e colegas estimaram uma
dos inconstitucionais. “Mas isso não quer dizer que não esteja havendo efei- namento do ecossistema. A floresta não redução populacional de 80% dois anos
tos negativos, porque no Estado muitas pessoas estão na expectativa de que vai mais funcionar como deveria, não terá após o enchimento do reservatório. “O
a legislação federal mude, o que legitimará o código catarinense. Por causa mais dispersor de semente nem poliniza- bicho tenta fugir para algum lugar, acaba
disso, estão deixando de fazer a restauração de suas áreas, o que é urgente”, dor. Com isso, tudo o que ela provia, como indo para os pastos, onde estão os ani-
afirma a ambientalista Miriam Prochnow, que há anos se tornou uma liderança reduzir assoreamento de rios, diminuir a mais domésticos, levando doenças que
na defesa da conservação no Estado. temperatura local, vai se perder”, com- não existiam ali”, explica Galetti.
Em Santa Catarina, não foi apresentado nenhum estudo científico como base plementa Mauro Galetti, da Unesp de Rio A maior parte dos pesquisadores ouvidos
da elaboração do novo código. “Os argumentos foram meramente políticos. Claro e organizador de uma compilação na reportagem acredita que o prejuízo aos
Apesar de os parlamentares terem criticado o atual Código Florestal Brasileiro, de estudos sobre impactos nos mamíferos. serviços ambientais pode acabar afetando
alegando que as faixas de matas ripárias foram estabelecidas arbitrariamen- José Galizia Tundisi, do Instituto Inter- a própria agricultura. Os danos diretos são
te, não apresentaram nenhum estudo técnico para fundamentar as mudanças nacional de Ecologia e um dos principais erosão e diminuição da oferta de água.
que eles propuseram”, explica João de Deus Medeiros, biólogo catarinense e especialistas em recursos hídricos do país, Ao longo de dez anos Joly conduziu um
diretor de Florestas do Ministério do Meio Ambiente. concorda. “Os leigos, em geral, esquecem projeto na região do rio Jacaré Pepira, em
Com ou sem o novo código, o Estado já ostenta o título de vice-campeão que a vegetação é parte do ciclo hidrológico. Brotas (SP), onde comparou o grau de ero-
no ritmo de desmatamento da Mata Atlântica entre 2005 e 2008, segundo o Sem ela, a água não consegue se infiltrar, são entre solos com mata ciliar bem pre-
levantamento da SOS Mata Atlântica com o Inpe. Perdeu no período quase 26 diminui a capacidade de produção de va- servada, com pastagem e sem nada. “No
mil hectares, só ficando atrás da Bahia. por d’água que depois vai trazer chuva.” último caso, a perda de solo chegou a 15
Segundo ele, o aspecto mais prático dessa toneladas/hectare/ano. Na área de pas-
história é que quando há uma vegetação tagem esse valor cai para cerca de 700

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kg/ano. Na mata ciliar, não chega a 500 proposta”, disse. “Promovemos audiên- rias de rios com largura de até 10 metros representar quase 30% do PIB nacional? explicação para isso é complexa. “A falta “Penso que o crescimento da produtivida-
gramas. Claro que ninguém vai deixar o cias no país inteiro, todos que quiseram tivessem 15 metros, em vez de 30 metros, A dúvida foi espalhada pelo setor ruralis- de alternativas de desenvolvimento em de, tanto na pecuária quanto na agricultura
solo nu o ano inteiro, mas, se em vez da se manifestar, o fizeram. Agora, não deu exclusivamente nos casos de recomposi- ta do Congresso a partir de 2009, quando outros setores, a ausência de remuneração e na integração das duas atividades, pode
pastagem, que é uma cobertura de certa para ouvir pessoalmente esse ou aquele ção da vegetação.” Segundo ele, o MMA ganhou destaque um estudo feito por Eva- da floresta em pé, a frouxa fiscalização, resolver o problema do desmatamento da
forma homogênea e contínua do solo, ti- pesquisador. Há muitos pesquisadores.” trabalha num texto alternativo ao do de- risto Eduardo de Miranda, então chefe da a valorização imobiliária de terras depois Amazônia. Mas não sei se resolve o pro-
ver uma cultura com plantio intercalado Ele disse que ouviu “especialmente a putado, pois vários pontos são conflitantes Embrapa Monitoramento por Satélite, que de desmatadas, a existência de mercado blema do Cerrado. Lá é muito barato abrir
e áreas de solo aberto no meio, aumenta Embrapa”, e que um dos pontos mais po- com a política do governo federal. “Nossa sugeriu que faltaria terra para a expansão para produtos de desmatamento (carvão terra. Então há uma tendência de ampliar
tremendamente a erosão”, explica. lêmicos da proposta teria sido referendado proposta não pode ser interpretada como agrícola no país se fosse cumprida à risca vegetal, madeira) e aspectos culturais do essa área”, complementa.
Tundisi recorda uma situação similar que pela área ambiental do governo. “A resolução flexibilização. Todos os rios de até 10 me- a legislação ambiental, fundiária e indige- uso da terra como reserva patrimonial são, O problema, diz ele, é que o código atual
ocorreu nos Estados Unidos na década de de reduzirmos a mata ciliar nos córregos tros precisam ter 30 metros de mata de nista. O trabalho, criticado por ambienta- provavelmente, as razões para a contínua está “desatualizado em função da realida-
1920, na região do Texas. “Ali havia uma de 30 para 15 metros foi de acordo com cada lado. Não vamos permitir que se rea- listas e pela academia, acabou não sendo expansão da fronteira agrícola no Brasil de dos fatos”. “Não estou fazendo juízo de
grama que protegia as planícies, mantinha o Ministério do Meio Ambiente”, disse. lizem novos desmatamentos nas APPs.” endossado nem mesmo pela Embrapa. através do desmatamento”, diz. valor se está certo ou errado, mas estou
a umidade. O governo incentivou a pro- “Também nos baseamos em estudos de Após a reportagem ter reiterado a soli- Por isso, ele acredita na necessidade dizendo como é a vida real, não como a
dução de trigo no local. Por alguns anos, legislação comparada, já que não existe citação de avaliações científicas sobre as Terra de sobra de criação de um “gatilho que desenca- gente sonha. Porque é muito mais difícil
tiveram colheitas magníficas. A partir de reserva legal em nenhum país do mundo.” consequências ambientais da alteração da “Não há problema, no momento, de falta deie uma nova forma de as coisas acon- uma reforma no crédito rural e ter tecnolo-
1930 o solo começou a se degradar. Sem “Não foi bem isso”, rebateu João de Deus lei, o deputado disse que em vez de um de terra para expansão da agricultura e tecerem”, que teria de vir no formato de gias que sejam mais sustentáveis entrando
a grama, ocorreu uma seca e perdeu-se Medeiros, diretor de Florestas do ministé- corte científico, a reportagem teria um pecuária no Brasil”, afirma Celso Manzatto, uma lei ambiental sobre áreas privadas rapidamente do que ampliar a fronteira.”
toda uma região. Isso só começou a ser re- rio. “Tínhamos proposto que matas ripá- viés político. E, apesar de não ter indicado chefe-geral da Embrapa Meio Ambiente. que tenha condições de ser cumprida. Rodrigues afirma que a proposta de Re-
composto em 1938/1939, com as florestas nenhum cientista favorável ao seu subs- “Mostramos nos últimos 20 anos que é “Que seja adequadamente fiscalizada e belo “tem um mérito enorme de ninguém
plantadas pelo governo Roosevelt. É um titutivo, desafiou: “Quero ver se vocês só possível ganhar produtividade sem preci- restrinja de forma muito contundente a ter gostado dela”. Para ele, isso significa que
exemplo bem claro do que pode acontecer vão ouvir o grupo de pesquisadores que sar incorporar novas terras. Não significa, abertura ilegal de novas áreas bem como ela é equilibrada. Mas criticou o artigo 47,
aqui.” (Leia mais no Ponto Crítico, pág. 50.) se opõem à proposta. Parece que sim. En- necessariamente, que vamos ter desmata- o desmatamento em situações em que ele que prevê moratória de cinco anos em que
Questionado pela reportagem sobre Pesquisadores afirmam que tão não é honesto de sua parte dizer que a mento zero. O que o país precisa, e ainda não se justifica para o estabelecimento de não será permitida a supressão de flores-
quais estudos teriam fundamentado as as alterações na faixa de reportagem será estritamente científica.” não dispõe, é de políticas de ordenamen- uma agropecuária intensiva.” tas para o estabelecimento de atividades
mudanças no Código Florestal, o deputado proteção aos riachos pode Mesmo sem o deputado ter apontado to do território que apontem claramente Apesar de concordar que é possível crescer agropastoris – excetuam-se imóveis que
Aldo Rebelo não citou nomes de pesquisa-
acabar sendo um tiro no pesquisadores e estudos favoráveis ao seu quais são as áreas a serem ocupadas para dessa forma, o ex-ministro da Agricultura já tenham autorização de corte emitida.
pé da própria agricultura,
dores, nem publicações científicas. “Nos projeto, insistimos. Procuramos a Embra- a produção agropecuária no futuro.” Roberto Rodrigues, coordenador do Centro “O agronegócio sente que o país perde
ao promover erosão do
baseamos em estudos dos consultores da solo, assoreamento dos pa para responder à pergunta: é possível Procurado pela reportagem, Miranda de Agronegócio da FGV, em São Paulo, e uma oportunidade de crescer”, diz. “Tem
Câmara dos Deputados, engenheiros flo- rios, diminuição da oferta manter essa necessária proteção às florestas disse que sustenta seus dados: “Há um professor de Economia Rural da Unesp de de fazer uma lei que seja realista. Se fizer
restais, biólogos, e outros especialistas de água e proliferação e ainda atender às demandas de um setor problema entre o uso efetivo da terra e o Jaboticabal, vê a questão com ressalvas. uma lei que estabeleça uma moratória pa-
que ajudaram inclusive na redação da de pragas agrícolas que tem forte apelo para a economia, ao que fala a lei”. Mas afirma que não chegou “Estou convencido de que a integração ra o desmatamento do Cerrado, mas ela
a ser ouvido na formulação do substitutivo. pecuária-lavoura é algo que vai revolucio- não for acompanhada de instrumentos
Já Gerd Sparovek, que fez um mapea- nar a agricultura do mundo inteiro. É um de política econômica para o campo que
mento semelhante de quanto do território caminho formidável para ampliar a pro- permitam o crescimento da tecnologia e
deveria estar, ou já é, preservado, defende dução, mas a incorporação de tecnologia o aumento da produção nas áreas já dis-
que não existe necessidade de revisar o é um processo que depende de uma po- poníveis, [o desmatamento] vai acontecer.”
código para permitir o desenvolvimento lítica de renda para o campo que o Brasil Para Manzatto, o problema é que há uma
do setor agropecuário. Segundo ele, a agri- não tem ainda. Razão pela qual ampliar a situação de conflito em algumas regiões
cultura tem espaço para se expandir sobre fronteira talvez seja mais barato”, afirma. que estão na ilegalidade, em especial nos
áreas de elevada e média aptidão agríco- casos considerados de ocupação consolida-
la que hoje são ocupadas pela pecuária da (como os arrozais em várzea no sul do
extensiva (com 1,1 cabeça por hectare). país), e é preciso discutir essa ocupação.
Pelos seus cálculos, encontram-se nestas “E é evidente que tem também um com-
condições 61 Mha, dentre os 211 Mha ocu- ponente social de recomposição dessas
pados pela pecuária. “Com isso é possível “O crescimento da áreas que precisa ser dimensionado”, diz.
quase dobrar a área agrícola no país”, diz. produtividade pode Mas ele admite que nem a Embrapa
Hoje a atividade se espalha por 67 Mha. resolver o problema do tem condições de falar em quanto, por
desmatamento da Amazônia.
Para garantir esse espaço, seria neces- exemplo, poderiam ser alteradas as faixas
Mas não sei se resolve o
sário adotar técnicas de intensificação da de proteção no país. “Na verdade nós não
estranho no ninho do Cerrado. Lá é muito
Cervo-do-pantanal, ao fugir pecuária e de integração com a agricultura, barato abrir terra. Há uma temos os indicadores e até sugerimos uma
da destruição da várzea, foi que, apesar de já estarem desenvolvidas tendência de ampliar a moratória de pesquisas para que pudésse-
para o pasto, levando doenças do ponto de vista técnico, ainda são muito área”, diz Roberto Rodrigues, mos gerar dados um pouco mais técnicos
desconhecidas pelo gado pouco adotadas. Sparovek acredita que a ex-ministro da Agricultura e embasados para a discussão.”

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