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Público • Sexta-feira 12 Novembro 2010 • 39

Sem dinheiro, o Estado de Bem-Estar entra em ruptura; temos de trocá-lo pela Sociedade de Bem-Estar

Como a crise nos vai obrigar a abandonar o Estado-faz-tudo

A
JOSÉ CARLOS COELHO
Venda Nova, freguesia do concelho da No Estado de Bem-Estar, como tem notado o pro-
Amadora onde existe uma forte comu- fessor da Universidade de Aveiro José Manuel Morei-
nidade imigrante, vai receber ainda es- ra, é muito fácil criar-se uma economia de interesses
te ano seis toneladas de ajuda alimentar que vai minando quer o Estado, tomado por corpora-
aos mais carenciados enviada pela União ções, quer o livre mercado, distorcido por contratos
Europeia. Mas que será distribuída apenas por 22 de privilégio. É que, escreveu o insuspeito Anthony
famílias. São excedentes (noutros tempos chamáva- Giddens, “algumas formas institucionais do Estado de
José mos-lhes restos) da produção agrícola europeia e, Bem-Estar são burocráticas, alienantes e ineficientes
Manuel por isso, vem manteiga a rodos. Que, muito prova- e as prestações sociais podem até ter consequências
Fernandes velmente, acabará no caixote do lixo. Até porque a perversas, pondo em causa os objectivos para que
junta de freguesia viu os serviços do Ministério da foram criadas.” Nem mais.
Extremo Solidariedade (que nome tão apropriado) recusar No fundo, o que é preciso é pensar nos assuntos
ocidental o seu pedido para alargar a distribuição a outras de outra forma, passando a pensar no valor pú-
famílias. A reportagem vinha esta semana no Jor- blico que se quer alcançar em vez de agir em fun-
nal de Notícias e não faltavam outros pormenores ção das inércias da máquina pública. Isto porque
kafkianos entre histórias de desespero. hoje é possível e, sobretudo, é desejável “aplicar
Em Portugal, que se saiba, ainda não se morre de soluções que envolvem uma grande variedade de
fome. Mas o Expresso contava-nos no sábado como actores sociais: organismos públicos, organizações
começou a haver escolas a abrir os refeitórios ao fim- sem fins lucrativos e entidades privadas”, como
de-semana para saciar crianças que, sem essa aju- notaram José Manuel Moreira e André Azevedo
da, chegariam com fome às aulas na segunda-feira. Alves. Mais: ao olhar de outra forma para a ”coisa
E o PÚBLICO, domingo passado, revelava que são pública”, “deve-se incentivar um novo paradigma
cada vez mais os portugueses da classe média que da governação que, mais que fortalecer a velha
recorrem à sopa dos pobres ou aos cabazes do Banco política, seja capaz de incentivar e facilitar a parti-
Alimentar contra a Fome, pessoas que nas cantinas cipação e vigilância cívicas por parte dos cidadãos,
comunitárias comem viradas para a parede, pois têm limitando os abusos do poder político”.

É
vergonha de ser reconhecidas.
Lê-se nos jornais, vê-se na televisão, não se po- por isso que, quando dizemos que mui-
de ignorar: há uma nova pobreza que se infiltra tos dos portugueses que hoje só tentam
por todos os interstícios da sociedade e não poupa Medidas como o fim tão a preencher os enormes vazios manter-se à tona de água foram “traídos
mesmo quem, até há bem pouco tempo, levava deixados por uma Administração pelo Estado”, não estamos a dizer que tal
uma vida relativamente confortável. É uma reali- dos contratos com Pública que prometeu tratar de aconteceu porque o Estado deixou de os
dade com que também nos confrontamos nas ruas, tudo e, agora, trata sobretudo de- subsidiar – estamos é a dizer que o Estado os traiu
quando encontramos pedintes e sem-abrigo que,
as escolas privadas, o la mesma. Há, pois, que mudar de porque os tratou como dependentes e, depois, quan-
percebe-se pelos modos e pela roupa, caíram há estrangulamento da ADSE paradigma. do entrou em bancarrota, abandonou-os. Ora quem
muito pouco tempo nessa situação. É gente traída “Temos de passar do conceito se habitua à dependência perde defesas, perde senti-
pela vida e traída pelo Estado e pelas expectativas ou a falhada intenção de Estado de Bem-Estar para o de do de responsabilidade e de iniciativa, tende a deixar
ilusórias que este lhes criou. de cobrar IVA às IPSS Sociedade de Bem-Estar”, defen- de ser um cidadão de corpo inteiro para se tornar
O destino absurdo (criminoso?) de parte das aju- deu esta semana Diogo Vasconcelos num cliente, mesmo que um cliente pequenino.
das alimentares vindas da União Europeia ilustra, vão todas no sentido numa conferência sobre Adminis- É também por isso que, até pela situação de crise
contudo, e de forma eloquente, a desadequação do tração Pública que integrou o ciclo em que vivemos, se tem de permitir a evolução pa-
nosso dito “Estado social”. O que a União Europeia
de aumentar o peso Portugal 2011 – Para além da Crise ra um Estado e uma Administração Pública menos
envia e o Estado português reencaminha não é o do Estado, diminuir que está a decorrer no Instituto de preocupados em ser fornecedores universais e mo-
que faz falta – é o que sobra de uma política agrícola Estudos Políticos da Universidade nopolistas de todos os serviços, antes preocupados
absurda. O que se distribui não deriva das neces- a liberdade dos cidadãos Católica. O ponto é pertinente. Tan- com os “bens públicos” que se vão alcançando inde-
sidades de cada família, mas das elucubrações de e dificultar uma futura to nas áreas sociais como nos seus pendentemente do caminho prosseguido.
um longínquo burocrata antes do mais preocupado domínios tradicionais da acção, é Infelizmente é o contrário que está a suceder.
com “desvios” ou com que a ajuda chegue a famílias recuperação económica necessário ultrapassar o Estado que Foram anunciadas nos últimos dias duas medidas
“não suficientemente pobres” para os seus critérios temos, que desconfia dos cidadãos que vão no sentido da centralização e da diminui-
frios e contabilísticos. e que quer fazer tudo porque acha ção de liberdade de escolha dos cidadãos, tratando-
Quem está no terreno – e estão sobretudo no ter- Um Estado social que cria que só assim tudo é bem feito, e os cada vez mais como um rebanho indiferencia-
reno instituições privadas de solidariedade social, para isso cria normas infindáveis do que, em nome dos cortes orçamentais, têm de
organizações do chamado “terceiro sector” – sabe dependentes aprisiona-os e serviços imensos, e evoluir para comer e calar. Uma dessas medidas foi o anúncio
que a realidade exige medidas e práticas diferentes. nos limites da sua pobreza. um modelo de Administração Pú- pelo Ministério da Educação do fim dos contratos
Muitas juntas de freguesia, os núcleos mais descen- blica que confia nos cidadãos e se de associação com escolas privadas, reforçando o
tralizados e mais próximos dos cidadãos da Admi- Já uma Sociedade de Bem- preocupa sobretudo com assegurar monopólio estatal na oferta do ensino gratuito. A
nistração Pública, também já perceberam que assim que lhes são prestados os serviços outra foram as medidas anunciadas relativamente
não se resolvem os problemas. O mesmo se passa em
-Estar que promova um de que necessitam. à ADSE, um sistema público de saúde mais antigo
escolas públicas e privadas. Ou nos interfaces dos envolvimento responsável Trata-se de devolver poder à so- do que o SNS e que sai mais barato por tratamento
serviços de saúde. E o que aí se sente é que há uma ciedade, de preferir uma cidadania médico ao Estado, mas que se quer desmontar,
forma centralizada, burocrática, estatista, de não da cidadania criará responsável e activa a uma cidada- assim limitando também a liberdade de escolha
acorrer a estes problemas e uma forma descentrali- condições para a sua nia dependente e passiva, de per- dos funcionários públicos.
zada, heterogénea, imaginativa, realmente solidária, mitir a concorrência entre diferen- São duas medidas que agravam a centralização
de tentar minorar o impacto social da crise. emancipação económica tes serviços públicos e entre estes e burocrática e que, vindas de um Governo presidido

O
os que existem fora do Estado, quer por um vendilhão de ilusões que ainda há poucos
que nestes dias se está a revelar não são no sector privado, quer no terceiro sector. Trata-se meses proclamava a diminuição “estatística” da po-
apenas os limites do nosso Estado Social. de promover a inovação social, encontrando novas breza, não surpreendem, mas que tornam ainda
Ou as suas dificuldades de financiamen- formas, mais eficazes, mais humanas, mais partici- mais difícil encontrarmos caminhos para sair da
to. O que nos aparece à vista desarmada padas e mais transparentes, de resolver problemas crise. Porque não será o Estado a tirar-nos do fundo
é a sua desadequação face não só às ne- que também assumem novas formas – como, de res- do buraco onde este Governo nos enterrou: terão de
cessidades em períodos de emergência, como aos to, estamos a ver nesta crise. E quando falamos de ser sempre os cidadãos e as empresas. Infelizmente
desafios da sustentabilidade em períodos “normais”. inovação social, falamos, por exemplo, do projecto o executivo, com medidas como estas, parece em-
O que se está a passar por todo o país mostra-nos Entre Gerações da Fundação Gulbenkian, que está penhado em retirar à sociedade os poucos instru-
como são as organizações da sociedade civil que, a estudar diferentes programas intergeracionais mentos e a raras oportunidades de tomar a iniciativa
descentralizadamente, com uma sensibilidade e um destinados a reforçar o sentido de comunidade e a que esta ainda tem para reagir e para, por si, voltar
carinho desconhecido nas burocracias estatais, es- promover a coesão social. à superfície. Jornalista (twitter.com/jmf1957)

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