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Amor, Ordem e progresso

Carta aberta aos participantes dos Diálogos Incertos

Por que me parece tão bom para a saúde (das pessoas e do país) que se façam
encontros como Diálogos Incertos? Porque este tipo de convite envolve a bela
simplicidade do complexo.
A complexidade não é algo em si mesmo, ela refere-se aos processos tão
densamente povoados de distinções possíveis em que o observador não
compreende a configuração relacional que consitue estes processos.
Identificar a complexidade de algo diz mais sobre a ignorância do observador neste
contexto do que a natureza do que se quer discutir. E assim está, pronto!
Por outro lado, a simplicidade também não é algo em si, implica uma visão
sistêmica recursiva que sabe olhar para as interconexões que entrelaçam as
coerências e regularidades do fenômeno que se distingue, de modo que seja
possível abstrair os processos genéricos que a constituem. Simples não é o mesmo
que simplório.
Então eu quero celebrar a boa recepção dada ao convite para a simplicidade do
encontro humano entre os participantes dos diálogos incertos. Sem expectativas
(ou com quase nenhuma), sem exigências, sem frustrações por não viver o que não
foi vivido, sem foco em resultados mas sim no processo, o processo de se encontrar
conversando, girando juntos na reflexão.
É verdade, houve um eixo, que inclusive foi declarado, a Biologia Cultural (2), mas
esta não foi imposta, nem foi vivida como palestra ou uma aula, foi simplesmente
uma alavanca de provocação, um vetor em torno do qual giramos.
E de fato a Biologia Cultural se presta prefeitamente para este tipo de encontro em
ambientes de aprendizagem informal , onde o principal é desfrutarmo-nos no
respeito mútuo e no encantamento de nos ouvir-mos uns aos outros.
A confiança e a aceitação mútuas (Biologia do Amar) consolidam uma base
poderosa, que garante continuamente nas comunidades as possibilidades de
realização da dimensão social. Confiança e a aceitação mútuas tem uma presença
fundamental, mesmo que geralmente não sejam percebidas.
Acontece que nós não as percebemos, são transparente para nós a água é para o
peixe, mas sem esta base simplesmente não é possível a convivência de um país,
cidade, clube, família ou casal.
Pois estas dinâmicas amorosas nutriram os Diálogos Incertos tornando possível
que o simples fosse profundo, que as pessoas se sentissem inspiradas a se verem e
ouvirem no calor deliciosamente “doce” das conversações e dos aquários reflexivos.
Houve até quem que se encorajou para compartilhar segredos pessoais, coisa que
acontece apenas no acolhimento de um ambiente de mútuo respeito.
E toda essa intimidade partilhada é a marca de um genuíno espaço conversacional,
gerador de bem-estar e aprendizagem sem esforço, com prazer, o prazer da
permitir proximidade corporal e psíquica. Algo que nos dias de hoje faz muita falta
nas escolas, universidades e empresas de todos os tipos.
Bem, gostaria de refletir agora acerca de uma das coisas que mais apreciei
descobrir naquela conversação, o fato de que antigamente haveria um terceiro
elemento no lema do escudo pátrio do Brasil que, como todos sabem é: “ORDEM E
PROGRESSO” mas que um dia poderia ter sido “ORDEM, PROGRESSO E AMOR”.
Que plena maravilha! E como evoca o ethos do espírito brasileiro!
Esta revelação surgiu no contexto de uma explicação na qual eu dizia de um
aspecto cultural que encontramos hoje em todo o mundo, o conhecimento humano
como algo que traz poder, sustentado pela objetividade como argumento final para
obrigar outros a fazerem o que alguns desejam.
E mencionei neste contexto quão profundamente alienante e alienado me parecia o
lema pátrio do Chile: “Pela Razão ou pela Força.” Porque no fundo o que quer dizer
este lema é: “Não importa a partir do que, mas cumpra-se a minha vontade.”
O lema esconde um grande número de hipóteses de ambígua formulação: Que
razão? A razão de quem? Em favor de quem? “Força contra quem, para dentro ou
para fora do país? etc,
Sejam então, “Minha razão” e “minha força”, melhor dizendo, uma imposição
absoluta disfarçado de aparente razoabilidade, sempre aplicada por uma
autoridade responsável.
Eu preferiria o lema: “Pela razão ou pela Poesia”, que resume numa visão o que eu
gostaria que fosse o Chile: Uma república verdadeiramente democrática, onde se
pudesse deixar de usar a razão como argumento para obrigar, e se deixaria de usar
a força quando a razão falhasse em seus objectivos, de modo que a poesia, atuaria
como um mecanismo gerador de um convite co-inspirador, capaz de trazer-nos à
mão novas oportunidades de consenso e conexões cívicas onde hoje não existem.
E como bem disse o professor Maturana em uma reflexão sobre o assunto: “Na
convivência democrática, a razão e a força não são argumentos para orbigar, mas
sim instrumentos de ação para alcançarmos um objetivo comum, que não é nada
menos que a convivência na vida democrática “(4). Ok, então eu queria enfatizar
que, para além do óbvio, incluir o AMAR no lema do Brasil, para mim é algo muito
poderoso, evocando agora uma deriva profundamente democrática. Vejamos isto
por partes.
Antes de mais nada, se me deixassem brincar gostaria de propor que o AMAR
viesse primeiro: “Amar, Ordem e Progresso”, como propõe Ximena Dávila a
respeito da biologia do amor, ativaríamos a palavra tornando-a um verbo e não um
substantivo. Na abstração do amar feita por Maturana no âmbito das condutas
possíveis, podemos constatar que se constitui como: “o campo de todos os
comportamentos em que eu, outros e os outros aparecem como legítimo outro na
convivência com um.”
Então não se trata de um comportamento específico, podemos realizar qualquer
fazer a partir do amar, se dadas as condições adequadas. Sem a ampliação da
aceitação mútua do amar, a linguagem não poderia ter surgido em nossa linhagem
evolutiva, e é ao redor da conservação de um viver centrado no amar que se
conduziu a história das transformações da humanidade, especialmente antes da
ascensão da cultura patriarcal-matriarcal (cerca de 10 mil anos atrás). Mesmo
assim seguimos sendo até hoje sendo Homo Sapiens-Amans(5), e as pessoas que
adoecem e morrem estão vivendo permanentemente em um desamar que as nega.
Sem dúvida alguma, o mais importante nas sociedades anteriores ao período ao
patriarcado/matriarcado era o amar com uma dinâmica espontânea. Em em uma
sociedade democrática moderna isto não poderia faltar, ou viveríamos em um
regime autoritário ou monárquico, em que nem todos são considerados pessoas ou
cidadãos. E não falo aqui da democracia como sistema eleitoral e político, mas
como o campo cotidiano relacional que surge apenas no respeito mútuo. Como
gosta de dizer Maturana : “A democracia é uma obra de arte de todos os dias.”
Neste sentido, incluir a palavra amor no lema pátrio é um convite explícito à ética
cívica. Então, O que acontece com a ordem? Em nossa atual geocultura
costumamos entender a ordem em termos de uma dinâmica que é estabelecida
através da obediência à autoridade. Uma dinâmica demanda o controle, e que
pressupõe que a cidadania não é confiável sem a supervisão dos agentes da ordem.
Entretanto, assim como ocorre em qualquer sistema, a ordem é uma propriedade
emergente de suas coerências estruturais e operacionais.
O tão mencionado auto-organização é um pleonasmo, pois em um sentido estrito,
todo o sistema é auto-organizado, no sentido de que sua identidade é constituída
pelas relações que constituem a sua organização estrutural. Qualquer sistema
físico, biológico, cultural, etc, é como é de acordo com sua estrutura, e se pode fazer
nele e com ele apenas o que sua estrutura permitir.
Devemos aqui fazer uma distinção entre o controle entendido nesses termos, que
envolve a emoção de desconfiança, e os cuidados com a observação dos processos
que envolvem os chamados mecanismos de controle de, por exemplo, uma linha de
produção.
Não se trata de laissez faire (delargar), mas sim de entender que, no social, onde as
pessoas sabem o que fazer, podem fazê-lo sem serem monitoradas pois as
coerências do próprio fazer determinam os meios para sua realização. A ordem é
um comentário que, como observadores, fazemos quando vemos o fluxo do
processo de acordo com a constituição relevante que os define. E não é preciso
agentes da ordem para isto, na melhor das hipóteses, como no caso de um maestro,
um observador para coordenar a oportunidade e sinergia das emoções a partir das
quais aqueles fazem o que é feito, sempre no rumo das coordenações consensuais.
Então, em uma sociedade que vive explicitamente na ética cívica e que coloca em
seu centro o amar, a ordem vai simplesmente emergindo a partir desse pano de
fundo que preserva as relações democráticas, como acontece por exemplo em todas
as comunidades que surgem a partir da colaboração com fins humanitários. No
Chile, por ocasião do terremoto, diversas pessoas organizaram grupos para auxiliar
de diferentes formas as pessoas afetadas, e entre eles não era preciso uma as
autoridade. Inclusive tudo se organizava com poucas reuniões já que todos sabiam,
compreendiam a agiam de acordo com um projeto comum que era o que orientava
suas ações.
O Projeto Comum(6) projeto funciona como uma matriz de relações onde os
desejos de todos podem surgir e ter presença em um âmbito social ou profissional
concreto em que se realizam. Se a deriva evolutiva está guiada pelos desejos e
preferências dos seres vivos em geral e dos seres humanos em particular, o Projeto
Comum é a matriz relacional das coerências operacionais que definem a ordem e a
orientação das redes de conversações que constituem a cultura de uma
comunidade. Na Matríztica trabalhávamos com organizações e comunidades em
torno da configuração reflexiva do Projeto Comum para harmonizar um viver ético
no bem estar(7), e encontramos sempre o poder de ordem espontânea, que é onde a
maioria vive em uma comunidade,vivendo conscientemente seu Projeto Comum e a
centralidade da ética na sua implementação e conservação.
Bem, finalmente um par de ideias sobre o progresso e o progressismo. Como nos
tem mostrado Humberto Maturana em sua reformulação explicativa sobre a
evolução(8), esta é o resultado de um processo de deriva estrutural natural. A
deriva natural é um processo que não tem um sentido, não vai a lugar nenhum,
mas chega onde chega seguindo ao longo do trajeto do que é conservado. E o viver
de um organismo ocorre como um fluxo contínuo de mudanças estruturais que
mantêm tanto sua organização como sua adaptação ao seu ambiente. Mas isto não
tem nada a ver com o acaso, isso é uma outra noção que, como os observadores,
estabelecemos quando não sabemos o que vai acontecer. Apenas acontece a cada
momento o que poderia acontecer de acordo com o coerências sistêmicas
envolvidas
No entanto nós, como humanos, seres que habitam na reflexão, quando
distinguimos as coerências operacionais do domínio em que se dá nossa deriva,
podemos imaginar diversas direções possíveis. Você vive o que você pode viver no
momento em que vive, em um sentido estrito, biologicamente não existem
alternativas, os seres vivos deslilzam no viver conservando seu próprio viver.
Os seres humanos podem refletir e se perguntar o que gostamos e o que não, e é
aqui onde surge a questão do progresso, mas isso não faz parte da vida biológica,
mas sim de um aspecto de um habitar cultural próprio da humanidade, esta é uma
observação que fazmos sobre a conveniência de seguir as orientações derivadas de
nosso próprio viver. Como dizem Humberto e Ximena : “Conversamos sobre
progresso nos referindo à direção de um ciclo de mudanças que parece positivo e
desejável, em alguns domínios da nossa vida” (9). Porém o suceder natural é
espontâneo, ou seja, ocorre sem a intervenção de um agente diretor, como no caso
dos projetos humanos em que a intenção de quem desenha surge guiando o que
acontece.
Então, se olharmos para quando falamos de progresso, o que nós encontramos é
que tem a ver sempre em último termo com situações onde queremos alargar as
condições de possibilidade para o nosso bem-estar pessoal ou coletivo. Não tem a
ver com a inovação a todo custo, com a mudança pela mudança, não, as pessoas
querem avançar no caminho da conservação de seu bem-estar. E se o amor orienta
e organiza a nossa convivência democrática, o progresso será um resultado
espontâneo que irá surgindo sem esforço em torno da conservação da dinâmica do
amor e do respeito mútuo, que combina a matriz relacional de nosso conviver, um
conviver ético no qual nos importa o que acontece com os outros, porque nos
importam estes outros,e iremos gerando as condições para o seu bem-estar com a
consciência e compreensão de que o bem-estar de todos é o bem-estar de cada um e
vice-versa, sem contradições. Nosso bem-estar passa pelo bem-estar de outros,
porque somos todos parte da mesma rede que sustenta a nós todos. Não há
contradição entre o individual e o coletivo, pelo menos não em nossa origem,
porém se nós a criamos foi em nossa história cultural.
Mas como é possível que esses relacionamentos na amorosidade riginária do bem-
estar tenham se transformado em linhagens de conviência patriarcal-matriarcal
geradoras de dor e sofrimento? Mude o que se conserva, e então todo o resto
também muda. Em algum momento pusemos no centro a desconfiança, a
apropriação, o controle, a dominação e e a subjugação. O que mudou foram os
espaços de confiança, colaboração e co-inspiração, sendo relegados em nosso
habitar a algumas redes de conversações. Mas cada um de nós tem o que é preciso
para viver um viver que se funda sobre a condição fundamental de sermos seres
amorosos.
Seres orientados a apreciar o compartilhar e o curiosear reflexivo, seres que
ampliam sua inteligência e criatividade ao tecer convivências com outros padrões
de relacionamento em que tudo o que importa é o que acontece com o outro, seres
que criam espaços onde se desfrutam da proximidade física, psíquica e relacional
com os outros. Talvez as perguntas mais poderosas do que cada um pode fazer na
privacidade da sua consciência reflexiva tem a ver com o que distingue querer
conservar em seu viver e conviver, bem como aquelas perguntasaque estão
relacionados com a forma de como o que fazemos, de que modo vivemos como
vivemos, seja com a dor em seu viver ou no bem-estar. Por quê? Por quê o viver dos
seres vivos é guiado por seus desejos?, e então tudo vai estar aberto a mudanças em
torno do que queremos conservar, e entender as diretrizes sobre como nós fazemos
o que fazemos nos permitirá ver-nos, cenxergar nossas armadilhas e sair delas. Que
beleza poder contar com esta grande confiança básica que nos convidam Humberto
Maturana e Ximena Dávila, a confiança que, de fato, somos seres amorosos.
De todo meu coração desejo que em um dia, oxalá bem próximo, este belo país que
o Brasil é, seja capaz de co-inspirar uma Assembléia Constituinte, onde se converse
sobre os caminhos pragmáticos no qual os cidadãos poderão realizar uma
convivência inspirada em seu velho lema: “Ordem, Progresso e Amor “.

Ignacio Muñoz Cristi


Antropólogo y Consultor
Abril 2010

Tradução Luiz Algarra


1- “¿Como um encontro espontâneo pode ser organizado? Esta foi a pergunta que
disparou nossas ações para promovermos os Diálogos Incertos, evento realizado
durante todo o dia 16 de abril no Espaço Terra, em Embu das Artes, São Paulo.
2010.” Por Papagallis y Traveland. Ver más en: http://papagallis.com.br
2- El Instituto de Formación Matríztica (2000-2010/ Hoy Escuela Matríztica de
Santiago) es una institución co-fundada por el biólogo chileno Dr. Humberto
Maturana y la profesora Ximena Dávila, es un centro de clase internacional en el
que fue desarrollada la comprensión Biológico-Cultural de lo humano y desde
donde se ha difundido a una diversidad de países y en colaboración con diferentes
instituciones. www.matriztica.org
3 – Tiempo después de pensar este nuevo lema como un poema en si mismo,
descubrí que el gran poeta chileno Pablo Neruda, ya había inventado el mismo
verso, al respecto invito a ver la historia en mi Blog de poesía:
http://bellezadenopensar.blogspot.com/2008/02/por-la-razn-o-la-poesa-me-
plagiaron.html
4- El texto completo estaba anteriormente en el Web de Matríztica, yo lo reproduje
en el Blog ya mencionado, se lo puede ver en:
http://bellezadenopensar.blogspot.com/2008/01/por-la-razn-o-la-poesa.html
5- Para profundizar en esto sugiero leer el capitulo I de: Maturana, H., Dávila, X.
“Habitar Humano en seis ensayos de Biología-Cultura”. JC-Sáez Editor. Chile,
2008. Hay versión portuguesa editada por Palas Athena en 2009.
6- Esta noción y su comprensión fueron creados por Dávila y Maturana , ver:
Dávila, Y., Maturana, R. “La gran oportunidad: fin de la psiquis del liderazgo en el
surgimiento de la psiquis de la gerencia co-inspirativa”. En Revista: Estado,
Gobierno, Gestión Pública. No 10. Año 2007.
7- Los fundamentos del Arte y Ciencia del trabajo con organizaciones realizado por
el equipo del Instituto Matríztico fue creado por Ximena Dávila y Humberto
Maturana, y llamado primero “Entendimiento Matríztico Organizacional” y luego
“Ethical-Scope” (Visión-Acción Ética). Nosotros en Muñoz & Lehuedé Asociados
trabajamos también desde este fundamento.
8- Maturana, H.R., J. Mpodozis. Origen de las Especies por Medio de la Deriva
Natural, Publicacion Ocasional N. 46. Museo Nacional de Historia Natural.
Santiago, Chile.2000. (revista chilena de Historia Natural. 73: 261-310.)
9- Tomado de: Dávila, Y., Maturana, R. “La gran oportunidad: fin de la psiquis del
liderazgo en el surgimiento de la psiquis de la gerencia co-inspirativa”. Op. Cit.

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