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EXORTAÇÃO APOSTÓLICA

PÓS-SINODAL
VERBUM DOMINI
DO SANTO PADRE
BENTO XVI
AO EPISCOPADO, AO CLERO
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E AOS FIÉIS LEIGOS
SOBRE
A PALAVRA DE DEUS
NA VIDA E NA MISSÃO DA IGREJA

ÍNDICE

Introdução [1]

Para que a nossa alegria seja perfeita [2]


Da «Dei Verbum» ao Sínodo sobre a Palavra de Deus [3]
O Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus [4]
O Prólogo do Evangelho de João por guia [5]

I PARTE
VERBUM DEI

O Deus que fala

Deus em diálogo [6]


Analogia da Palavra de Deus [7]
Dimensão cósmica da Palavra [8]
A criação do homem [9]
O realismo da Palavra [10]
Cristologia da Palavra [11-13]
Dimensão escatológica da Palavra de Deus [14]
A Palavra de Deus e o Espírito Santo [15-16]
Tradição e Escritura [17-18]
Sagrada Escritura, inspiração e verdade [19]
Deus Pai, fonte e origem da Palavra [20-21]

A resposta do homem a Deus que fala

Chamados a entrar na Aliança com Deus [22]


Deus escuta o homem e responde às suas perguntas [23]
Dialogar com Deus através das suas palavras [24]
A Palavra de Deus e a fé [25]
O pecado como não escuta da Palavra de Deus [26]
Maria «Mater Verbi Dei» e «Mater fidei» [27-28]

A hermenêutica da Sagrada Escritura na Igreja

A Igreja, lugar originário da hermenêutica da Bíblia [29-30]


«A alma da sagrada teologia» [31]
Desenvolvimento da investigação bíblica e Magistério eclesial [32-33]
A hermenêutica bíblica conciliar: uma indicação a acolher [34]
O perigo do dualismo e a hermenêutica secularizada [35]
1
Fé e razão na abordagem da Escritura [36]
Sentido literal e sentido espiritual [37]
A necessária superação da «letra» [38]
A unidade intrínseca da Bíblia [39]
A relação entre Antigo e Novo Testamento [40-41]
As páginas «obscuras» da Bíblia [42]
Cristãos e judeus, relativamente às Sagradas Escrituras [43]
A interpretação fundamentalista da Sagrada Escritura [44]
Diálogo entre Pastores, teólogos e exegetas [45]
Bíblia e ecumenismo [46]
Consequências sobre a organização dos estudos teológicos [47]
Os Santos e a interpretação da Escritura [48-49]

II PARTE
VERBUM IN ECCLESIA

A palavra de Deus e a Igreja

A Igreja acolhe a Palavra [50]


Contemporaneidade de Cristo na vida da Igreja [51]

Liturgia, lugar privilegiado da palavra de Deus

A Palavra de Deus na sagrada Liturgia [52]


Sagrada Escritura e Sacramentos [53]
Palavra de Deus e Eucaristia [54-55]
A sacramentalidade da Palavra [56]
A Sagrada Escritura e o Leccionário [57]
Proclamação da Palavra e ministério do leitorado [58]
A importância da homilia [59]
Conveniência de um Directório homilético [60]
Palavra de Deus, Reconciliação e Unção dos Doentes [61]
Palavra de Deus e Liturgia das Horas [62]
Palavra de Deus e Cerimonial das Bênçãos [63]
Sugestões e propostas concretas para a animação litúrgica [64]
a) Celebrações da Palavra de Deus [65]
b) A Palavra e o silêncio [66]
c) Proclamação solene da Palavra de Deus [67]
d) A Palavra de Deus no templo cristão [68]
e) Exclusividade dos textos bíblicos na liturgia [69]
f) Canto litúrgico biblicamente inspirado [70]
g) Particular atenção aos cegos e aos surdos [71]

A palavra de Deus na vida eclesial

Encontrar a Palavra de Deus na Sagrada Escritura [72]


A animação bíblica da pastoral [73]
Dimensão bíblica da catequese [74]
Formação bíblica dos cristãos [75]
A Sagrada Escritura nos grandes encontros eclesiais [76]
Palavra de Deus e vocações [77]
a) Palavra de Deus e Ministros Ordenados [78-81]
b) Palavra de Deus e candidatos às Ordens Sacras [82]
c) Palavra de Deus e vida consagrada [83]
d) Palavra de Deus e fiéis leigos [84]
e) Palavra de Deus, matrimónio e família [85]
Leitura orante da Sagrada Escritura e «lectio divina» [86-87]

2
Palavra de Deus e oração mariana [88]
Palavra de Deus e Terra Santa [89]

III PARTE
VERBUM MUNDO

A missão da Igreja: anunciar a palavra de Deus ao mundo

A Palavra que sai do Pai e volta para o Pai [90]


Anunciar ao mundo o «Logos» da Esperança [91]
Da Palavra de Deus deriva a missão da Igreja [92]
A Palavra e o Reino de Deus [93]
Todos os baptizados responsáveis do anúncio [94]
A necessidade da «missio ad gentes» [95]
Anúncio e nova evangelização [96]
Palavra de Deus e testemunho cristão [97-98]

Palavra de Deus e compromisso no mundo

Servir Jesus nos seus «irmãos mais pequeninos» (Mt 25, 40) [99]
Palavra de Deus e compromisso na sociedade pela justiça [100-101]
Anúncio da Palavra de Deus, reconciliação e paz entre os povos [102]
A Palavra de Deus e a caridade activa [103]
Anúncio da Palavra de Deus e os jovens [104]
Anúncio da Palavra de Deus e os migrantes [105]
Anúncio da Palavra de Deus e os doentes [106]
Anúncio da Palavra de Deus e os pobres [107]
Palavra de Deus e defesa da criação [108]

Palavra de Deus e culturas

O valor da cultura para a vida do homem [109]


A Bíblia como grande código para as culturas [110]
O conhecimento da Bíblia nas escolas e universidades [111]
A Sagrada Escritura nas diversas expressões artísticas [112]
Palavra de Deus e meios de comunicação social [113]
Bíblia e inculturação [114]
Traduções e difusão da Bíblia [115]
A Palavra de Deus supera os limites das culturas [116]

Palavra de Deus e diálogo inter-religioso

O valor do diálogo inter-religioso [117]


Diálogo entre cristãos e muçulmanos [118]
Diálogo com as outras religiões [119]
Diálogo e liberdade religiosa [120]

Conclusão

A palavra definitiva de Deus [121]


Nova evangelização e nova escuta [122]
A Palavra e a alegria [123]
«Mater Verbi et Mater laetitiae» [124]

3
INTRODUÇÃO

1. A palavra do senhor permanece eternamente. E esta é a palavra do Evangelho que vos foi
anunciada» (1 Pd 1, 25; cf. Is 40, 8). Com esta citação da Primeira Carta de São Pedro, que retoma
as palavras do profeta Isaías, vemo-nos colocados diante do mistério de Deus que Se comunica a Si
mesmo por meio do dom da sua Palavra. Esta Palavra, que permanece eternamente, entrou no
tempo. Deus pronunciou a sua Palavra eterna de modo humano; o seu Verbo «fez-Se carne» (Jo 1,
14). Esta é a boa nova. Este é o anúncio que atravessa os séculos, tendo chegado até aos nossos dias.
A XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que se efectuou no Vaticano de 5 a 26 de
Outubro de 2008, teve como tema A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. Foi uma
experiência profunda de encontro com Cristo, Verbo do Pai, que está presente onde dois ou três se
encontram reunidos em seu nome (cf. Mt 18, 20). Com esta Exortação apostólica pós-sinodal, acolho
de bom grado o pedido que me fizeram os Padres de dar a conhecer a todo o Povo de Deus a riqueza
surgida naquela reunião vaticana e as indicações emanadas do trabalho comum.[1] Nesta linha,
pretendo retomar tudo o que foi elaborado pelo Sínodo, tendo em conta os documentos
apresentados: os Lineamenta, o Instrumentum laboris, os Relatórios ante e post disceptationem e os
textos das intervenções, tanto os que foram lidos na sala como os apresentados in scriptis, os
Relatórios dos Círculos Menores e os seus debates, a Mensagem final ao Povo de Deus e sobretudo
algumas propostas específicas (Propositiones), que os Padres consideraram de particular relevância.
Desejo assim indicar algumas linhas fundamentais para uma redescoberta, na vida da Igreja, da
Palavra divina, fonte de constante renovação, com a esperança de que a mesma se torne cada vez
mais o coração de toda a actividade eclesial.

Para que a nossa alegria seja perfeita

2. Quero, antes de mais nada, recordar a beleza e o fascínio do renovado encontro com o Senhor
Jesus que se experimentou nos dias da assembleia sinodal. Por isso, fazendo-me eco dos Padres,
dirijo-me a todos os fiéis com as palavras de São João na sua primeira carta: «Nós vos anunciamos a
vida eterna, que estava no Pai e que nos foi manifestada – o que vimos e ouvimos, isso vos
anunciamos, para que também vós tenhais comunhão connosco. Quanto à nossa comunhão, ela é
com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo» (1 Jo 1, 2-3). O Apóstolo fala-nos de ouvir, ver, tocar e
contemplar (cf. 1 Jo 1, 1) o Verbo da Vida, já que a Vida mesma se manifestou em Cristo. E nós,
chamados à comunhão com Deus e entre nós, devemos ser anunciadores deste dom. Nesta
perspectiva querigmática, a assembleia sinodal foi um testemunho para a Igreja e para o mundo de
como é belo o encontro com a Palavra de Deus na comunhão eclesial. Portanto, exorto todos os fiéis
a redescobrirem o encontro pessoal e comunitário com Cristo, Verbo da Vida que Se tornou visível,
a fazerem-se seus anunciadores para que o dom da vida divina, a comunhão, se dilate cada vez mais
pelo mundo inteiro. Com efeito, participar na vida de Deus, Trindade de Amor, é a alegria completa
(cf. 1 Jo 1, 4). E é dom e dever imprescindível da Igreja comunicar a alegria que deriva do encontro
com a Pessoa de Cristo, Palavra de Deus presente no meio de nós. Num mundo que frequentemente
sente Deus como supérfluo ou alheio, confessamos como Pedro que só Ele tem «palavras de vida
eterna» (Jo 6, 68). Não existe prioridade maior do que esta: reabrir ao homem actual o acesso a
Deus, a Deus que fala e nos comunica o seu amor para que tenhamos vida em abundância (cf. Jo 10,
10).

Da «Dei Verbum» ao Sínodo sobre a Palavra de Deus


1
Cf. Propositio 1.
4
3. Com a XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus, estamos
conscientes de nos termos debruçado de certo modo sobre o próprio coração da vida cristã, dando
continuidade à assembleia sinodal anterior sobre a Eucaristia como fonte e ápice da vida e da
missão da Igreja. De facto, a Igreja funda-se sobre a Palavra de Deus, nasce e vive dela.[2] Ao longo
de todos os séculos da sua história, o Povo de Deus encontrou sempre nela a sua força, e também
hoje a comunidade eclesial cresce na escuta, na celebração e no estudo da Palavra de Deus. Há que
reconhecer que, nas últimas décadas, a vida eclesial aumentou a sua sensibilidade relativamente a
este tema, com particular referência à Revelação cristã, à Tradição viva e à Sagrada Escritura. Pode-
se afirmar que, a partir do pontificado do Papa Leão XIII, houve um crescendo de intervenções
visando suscitar maior consciência da importância da Palavra de Deus e dos estudos bíblicos na vida
da Igreja,[3] que teve o seu ponto culminante no Concílio Vaticano II, de modo especial com a
promulgação da Constituição dogmática sobre a Revelação divina Dei Verbum. Esta representa um
marco miliário no caminho da Igreja. «Os Padres Sinodais (…) reconhecem, com ânimo agradecido,
os grandes benefícios que este documento trouxe à vida da Igreja a nível exegético, teológico,
espiritual, pastoral e ecuménico».[4] De modo particular cresceu, nestes anos, a consciência do
«horizonte trinitário e histórico-salvífico da Revelação»[5] em que se deve reconhecer Jesus Cristo
como «o mediador e a plenitude de toda a Revelação».[6] A Igreja confessa, incessantemente, a cada
geração que Ele, «com toda a sua presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras,
sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição e, enfim, com o envio do
Espírito de verdade, completa totalmente e confirma com o testemunho divino a Revelação».[7]

É de conhecimento geral o grande impulso dado pela Constituição dogmática Dei Verbum à
redescoberta da Palavra de Deus na vida da Igreja, à reflexão teológica sobre a Revelação divina e
ao estudo da Sagrada Escritura. E numerosas foram também as intervenções do Magistério eclesial
sobre estas matérias nos últimos quarenta anos.[8] A Igreja, ciente da continuidade do seu próprio
caminho sob a guia do Espírito Santo, com a celebração deste Sínodo sentiu-se chamada a
aprofundar ainda mais o tema da Palavra divina, seja para verificar a realização das indicações
conciliares seja para enfrentar os novos desafios que o tempo presente coloca a quem acredita em
Cristo.

O Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus

4. Na XII Assembleia sinodal, Pastores vindos de todo o mundo congregaram-se ao redor da Palavra
de Deus, colocando simbolicamente no centro da Assembleia o texto da Bíblia, para redescobrirem
algo que nos arriscamos de dar por adquirido no dia-a-dia: o facto de que Deus fale e responda às
2
Cf. XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, Instrumentum laboris, 27.
3
Cf. Leão XIII, Carta enc. Providentissimus Deus (18 de Novembro de 1893): ASS 26 (1893-94), 269-292; Bento XV, Carta enc.
Spiritus Paraclitus (15 de Setembro de 1920): AAS 12 (1920), 385-422; Pio XII, Carta enc. Divino afflante Spiritu (30 de
Setembro de 1943): AAS 35 (1943), 297-325.
4
Propositio 2.
5
Ibidem.
6
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 2.
7
Ibid., 4.
8
Entre as várias intervenções, de natureza diversa, há que recordar: Paulo VI, Carta ap. Summi Dei Verbum (4 de Novembro de
1963): AAS 55 (1963), 979-995; Idem, Motu proprio Sedula cura (27 de Junho de 1971): AAS 63 (1971), 665-669; João Paulo II,
Audiência Geral (1 de Maio de 1985): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 5/V/1985), p. 12; Idem, Discurso sobre a
interpretação da Bíblia na Igreja (23 de Abril de 1993): AAS 86 (1994), 232-243; Bento XVI, Discurso no Congresso
internacional por ocasião do 40º aniversário da Dei Verbum (16 de Setembro de 2005): AAS 97 (2005), 957; Idem, Angelus (6 de
Novembro de 2005): Insegnamenti I (2005), 759-760. Há que citar ainda as intervenções da Pont. Comissão Bíblica, De sacra
Scriptura et Christologia (1984): Ench. Vat. 9, n. 1208-1339; Unidade e diversidade na Igreja (11 de Abril de 1988): Ench. Vat.
11, n. 544-643; A interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993): Ench. Vat. 13, n. 2846-3150; O povo judeu e as suas
sagradas Escrituras na Bíblia cristã (24 de Maio de 2001): Ench. Vat. 20, n. 733-1150; Bíblia e moral. Raízes bíblicas do agir
cristão (11 de Maio de 2008), Cidade do Vaticano 2008.
5
nossas perguntas.[9] Juntos escutámos e celebrámos a Palavra do Senhor. Narrámos uns aos outros
aquilo que o Senhor está a realizar no Povo de Deus, partilhando esperanças e preocupações. Tudo
isto nos tornou conscientes de que só podemos aprofundar a nossa relação com a Palavra de Deus
dentro do «nós» da Igreja, na escuta e no acolhimento recíproco. Daqui nasce a gratidão pelos
testemunhos sobre a vida eclesial nas diversas partes do mundo, surgidos nas várias intervenções
feitas na sala. Ao mesmo tempo foi comovedor também ouvir os Delegados Fraternos, que
aceitaram o convite para participar no encontro sinodal. Penso de modo particular na meditação que
nos ofereceu Sua Santidade Bartolomeu I, Patriarca Ecuménico de Constantinopla, pela qual os
Padres sinodais exprimiram profunda gratidão.[10] Além disso, pela primeira vez, o Sínodo dos
Bispos quis convidar também um Rabino, que nos deu um testemunho precioso sobre as Sagradas
Escrituras judaicas; estas são precisamente uma parte das nossas Sagradas Escrituras.[11]

Pudemos assim constatar, com alegria e gratidão, que «na Igreja há um Pentecostes também hoje, ou
seja, que ela fala em muitas línguas; e isto não só no sentido externo de estarem nela representadas
todas as grandes línguas do mundo mas também, e mais profundamente, no sentido de que nela
estão presentes os variados modos da experiência de Deus e do mundo, a riqueza das culturas, e só
assim se manifesta a vastidão da existência humana e, a partir dela, a vastidão da Palavra de Deus».
[12] Além disso, pudemos constatar também um Pentecostes ainda a caminho; vários povos
aguardam ainda que seja anunciada a Palavra de Deus na sua própria língua e cultura.

Como não recordar também que, durante todo o Sínodo, nos acompanhou o testemunho do
Apóstolo Paulo? De facto, foi providencial que a XII Assembleia Geral Ordinária se tenha realizado
precisamente dentro do ano dedicado à figura do grande Apóstolo das Nações, por ocasião do
bimilenário do seu nascimento. A sua existência caracterizou-se completamente pelo zelo em
difundir a Palavra de Deus. Como não sentir vibrar no nosso coração as palavras com que se referia
à sua missão de anunciador da Palavra divina: «Faço tudo por causa do Evangelho» (1 Cor 9, 23);
«pois eu – escreve na Carta aos Romanos – não me envergonho do Evangelho, o qual é poder de
Deus para salvação de todo o crente» (1, 16)?! Quando reflectimos sobre a Palavra de Deus na vida
e na missão da Igreja, não podemos deixar de pensar em São Paulo e na sua vida entregue à difusão
do anúncio da salvação de Cristo a todos os povos.

O Prólogo do Evangelho de João por guia

5. Desejo, através desta Exortação apostólica, que as conclusões do Sínodo influam eficazmente
sobre a vida da Igreja: sobre a relação pessoal com as Sagradas Escrituras, sobre a sua interpretação
na liturgia e na catequese bem como na investigação científica, para que a Bíblia não permaneça
uma Palavra do passado, mas uma Palavra viva e actual. Com este objectivo, pretendo apresentar e
aprofundar os resultados do Sínodo, tomando por referência constante o Prólogo do Evangelho de
João (Jo 1, 1-18), que nos dá a conhecer o fundamento da nossa vida: o Verbo, que desde o
princípio está junto de Deus, fez-Se carne e veio habitar entre nós (cf. Jo 1, 14). Trata-se de um
texto admirável, que dá uma síntese de toda a fé cristã. A partir da sua experiência pessoal do
encontro e seguimento de Cristo, João, que a tradição identifica com «o discípulo que Jesus amava»
(Jo 13, 23; 20, 2; 21, 7.20), «chegou a esta certeza íntima: Jesus é a Sabedoria de Deus encarnada, é
a sua Palavra eterna feita homem mortal».[13] Aquele que «viu e acreditou» (Jo 20, 8) nos ajude

9
Cf. Bento XVI, Discurso à Cúria Romana (22 de Dezembro de 2008): AAS 101 (2009), 49.
10
Cf. Propositio 37.
11
Cf. Pont. Comissão Bíblica, O povo judeu e as suas sagradas Escrituras na Bíblia cristã (24 de Maio de 2001): Ench. Vat. 20,
n. 733-1150.
12
Bento XVI, Discurso à Cúria Romana (22 de Dezembro de 2008): AAS 101 (2009), 50.
13
Bento XVI, Angelus (4 de Janeiro de 2009): Insegnamenti, V/1 (2009), 13.
6
também a apoiar a cabeça sobre o peito de Cristo (cf. Jo 13, 25), donde brotou sangue e água (cf. Jo
19, 34), símbolos dos Sacramentos da Igreja. Seguindo o exemplo do Apóstolo João e dos outros
autores inspirados, deixemo-nos guiar pelo Espírito Santo para podermos amar cada vez mais a
Palavra de Deus.

7
I PARTE

VERBUM DEI

«No princípio já existia o Verbo,


e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus (…)
e o Verbo fez-Se carne» (Jo 1, 1.14)

O Deus que fala

Deus em diálogo

6. A novidade da revelação bíblica consiste no facto de Deus Se dar a conhecer no diálogo, que
deseja ter connosco.[14] A Constituição dogmática Dei Verbum tinha exposto esta realidade,
reconhecendo que «Deus invisível na riqueza do seu amor fala aos homens como a amigos e convive
com eles, para os convidar e admitir à comunhão com Ele».[15] Mas ainda não teríamos
compreendido suficientemente a mensagem do Prólogo de São João, se nos detivéssemos na
constatação de que Deus Se comunica amorosamente a nós. Na realidade, o Verbo de Deus, por
meio do Qual «tudo começou a existir» (Jo 1, 3) e que Se «fez carne» (Jo 1, 14), é o mesmo que já
existia «no princípio» (Jo 1, 1). Se aqui podemos descobrir uma alusão ao início do livro do Génesis
(cf. Gn 1, 1), na realidade vemo-nos colocados diante de um princípio de carácter absoluto e que nos
narra a vida íntima de Deus. O Prólogo joanino apresenta-nos o facto de que o Logos existe
realmente desde sempre, e desde sempre Ele mesmo é Deus. Por conseguinte, nunca houve em Deus
um tempo em que não existisse o Logos. O Verbo preexiste à criação. Portanto, no coração da vida
divina, há a comunhão, há o dom absoluto. «Deus é amor» (1 Jo 4, 16) – dirá noutro lugar o mesmo
Apóstolo, indicando assim «a imagem cristã de Deus e também a consequente imagem do homem e
do seu caminho».[16] Deus dá-Se-nos a conhecer como mistério de amor infinito, no qual, desde toda
a eternidade, o Pai exprime a sua Palavra no Espírito Santo. Por isso o Verbo, que desde o princípio
está junto de Deus e é Deus, revela-nos o próprio Deus no diálogo de amor entre as Pessoas divinas
e convida-nos a participar nele. Portanto, feitos à imagem e semelhança de Deus amor, só nos
podemos compreender a nós mesmos no acolhimento do Verbo e na docilidade à obra do Espírito
Santo. É à luz da revelação feita pelo Verbo divino que se esclarece definitivamente o enigma da
condição humana.

Analogia da Palavra de Deus

7. A partir destas considerações que brotam da meditação sobre o mistério cristão expresso no
Prólogo de João, é necessário agora pôr em evidência aquilo que foi afirmado pelos Padres sinodais
a propósito das diversas modalidades com que usamos a expressão «Palavra de Deus». Falou-se,
justamente, de uma sinfonia da Palavra, de uma Palavra única que se exprime de diversos modos:
«um cântico a diversas vozes».[17] A este propósito, os Padres sinodais falaram de um uso analógico
da linguagem humana na referência à Palavra de Deus. Com efeito, se esta expressão, por um lado,
diz respeito à comunicação que Deus faz de Si mesmo, por outro assume significados diversos que
devem ser atentamente considerados e relacionados entre si, tanto do ponto de vista da reflexão
14
Cf. Relatio ante disceptationem, I.
15
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 2.
16
Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 1: AAS 98 (2006), 217-218.
17
Instrumentum laboris, 9.
8
teológica como do uso pastoral. Como nos mostra claramente o Prólogo de João, o Logos indica
originariamente o Verbo eterno, ou seja, o Filho unigénito, gerado pelo Pai antes de todos os séculos
e consubstancial a Ele: o Verbo estava junto de Deus, o Verbo era Deus. Mas este mesmo Verbo –
afirma São João – «fez-Se carne» (Jo 1, 14); por isso Jesus Cristo, nascido da Virgem Maria, é
realmente o Verbo de Deus que Se fez consubstancial a nós. Assim a expressão «Palavra de Deus»
acaba por indicar aqui a pessoa de Jesus Cristo, Filho eterno do Pai feito homem.

Além disso, se no centro da revelação divina está o acontecimento de Cristo, é preciso reconhecer
que a própria criação, o liber naturae, constitui também essencialmente parte desta sinfonia a
diversas vozes na qual Se exprime o único Verbo. Do mesmo modo confessamos que Deus
comunicou a sua Palavra na história da salvação, fez ouvir a sua voz; com a força do seu Espírito,
«falou pelos profetas».[18] Por conseguinte, a Palavra divina exprime-se ao longo de toda a história
da salvação e tem a sua plenitude no mistério da encarnação, morte e ressurreição do Filho de Deus.
E Palavra de Deus é ainda aquela pregada pelos Apóstolos, em obediência ao mandato de Jesus
Ressuscitado: «Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda a criatura» (Mc 16, 15). Assim
a Palavra de Deus é transmitida na Tradição viva da Igreja. Enfim, é Palavra de Deus, atestada e
divinamente inspirada, a Sagrada Escritura, Antigo e Novo Testamento. Tudo isto nos faz
compreender por que motivo, na Igreja, veneramos extremamente as Sagradas Escrituras, apesar da
fé cristã não ser uma «religião do Livro»: o cristianismo é a «religião da Palavra de Deus», não de
«uma palavra escrita e muda, mas do Verbo encarnado e vivo».[19] Por conseguinte a Sagrada
Escritura deve ser proclamada, escutada, lida, acolhida e vivida como Palavra de Deus, no sulco da
Tradição Apostólica de que é inseparável.[20]

Como afirmaram os Padres sinodais, encontramo-nos realmente perante um uso analógico da


expressão «Palavra de Deus», e disto mesmo devemos estar conscientes. Por isso, é necessário que
os fiéis sejam melhor formados para identificar os seus diversos significados e compreender o seu
sentido unitário. E do ponto de vista teológico é preciso também aprofundar a articulação dos vários
significados desta expressão, para que resplandeça melhor a unidade do plano divino e, neste, a
centralidade da pessoa de Cristo.[21]

Dimensão cósmica da Palavra

8. Conscientes do significado fundamental da Palavra de Deus referida ao Verbo eterno de Deus


feito carne, único salvador e mediador entre Deus e o homem,[22] e escutando esta Palavra, somos
levados pela revelação bíblica a reconhecer que ela é o fundamento de toda a realidade. O Prólogo
de São João afirma, referindo-se ao Logos divino, que «tudo começou a existir por meio d’Ele, e,
sem Ele, nada foi criado» (Jo 1, 3); de igual modo na Carta aos Colossenses afirma-se, aludindo a
Cristo «primogénito de toda a criação» (1, 15), que «tudo foi criado por Ele e para Ele» (1, 16). E o
autor da Carta aos Hebreus recorda que «pela fé conhecemos que o mundo foi formado pela palavra
de Deus, de tal modo que o que se vê não provém das coisas sensíveis» (11, 3).

Este anúncio é, para nós, uma palavra libertadora. De facto, as afirmações da Sagrada Escritura
indicam que tudo o que existe não é fruto de um acaso irracional, mas é querido por Deus, está
dentro do seu desígnio, em cujo centro se encontra a oferta de participar na vida divina em Cristo. A

18
Credo de Niceia-Constantinopla: DS 150.
19
São Bernardo de Claraval, Homilia super missus est, IV, 11: PL 183, 86 B.
20
Cf. Conc. Ecum. VAT. ii, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 10.
21
Cf. Propositio 3.
22
Cf. Congr. para a Doutrina da Fé, Declaração sobre a unicidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja Dominus
Iesus (6 de Agosto de 2000), 13-15: AAS 92 (2000), 754-756.
9
criação nasce do Logos e traz indelével o sinal da Razão criadora que regula e guia. Esta feliz
certeza é cantada nos Salmos: «Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, pelo sopro da sua boca
todos os seus exércitos» (Sl 33, 6); e ainda: «Ele falou e as coisas existiram. Ele mandou e as coisas
subsistiram» (Sl 33, 9). A realidade inteira exprime este mistério: «Os céus proclamam a glória de
Deus, o firmamento anuncia as obras das suas mãos» (Sl 19, 2). É a própria Sagrada Escritura que
nos convida a conhecer o Criador, observando a criação (cf. Sb 13, 5; Rm 1, 19-20). A tradição do
pensamento cristão soube aprofundar este elemento-chave da sinfonia da Palavra, quando por
exemplo São Boaventura – que, juntamente com a grande tradição dos Padres Gregos, vê todas as
possibilidades da criação no Logos[23] – afirma que «cada criatura é palavra de Deus, porque
proclama Deus».[24] A Constituição dogmática Dei Verbum sintetizara este facto dizendo que
«Deus, criando e conservando todas as coisas pelo Verbo (cf. Jo 1, 3), oferece aos homens um
testemunho perene de Si mesmo na criação».[25]

A criação do homem

9. Deste modo, a realidade nasce da Palavra, como creatura Verbi, e tudo é chamado a servir a
Palavra. A criação é lugar onde se desenvolve toda a história do amor entre Deus e a sua criatura;
por conseguinte, o movente de tudo é a salvação do homem. Contemplando o universo na
perspectiva da história da salvação, somos levados a descobrir a posição única e singular que ocupa
o homem na criação: «Deus criou o homem à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou
homem e mulher» (Gn 1, 27). Isto permite-nos reconhecer plenamente os dons preciosos recebidos
do Criador: o valor do próprio corpo, o dom da razão, da liberdade e da consciência. Nisto
encontramos também tudo aquilo que a tradição filosófica chama «lei natural».[26] Com efeito, «todo
o ser humano que atinge a consciência e a responsabilidade experimenta um chamamento interior
para realizar o bem»[27] e, consequentemente, evitar o mal. Sobre este princípio, como recorda São
Tomás de Aquino, fundam-se também todos os outros preceitos da lei natural.[28] A escuta da
Palavra de Deus leva-nos em primeiro lugar a prezar a exigência de viver segundo esta lei «escrita
no coração» (cf. Rm 2, 15; 7, 23).[29] Depois, Jesus Cristo dá aos homens a Lei nova, a Lei do
Evangelho, que assume e realiza de modo sublime a lei natural, libertando-nos da lei do pecado, por
causa do qual, come diz São Paulo, «querer o bem está ao meu alcance, mas realizá-lo não» (Rm 7,
18), e dá aos homens, por meio da graça, a participação na vida divina e a capacidade de superar o
egoísmo.[30]

O realismo da Palavra

10. Quem conhece a Palavra divina conhece plenamente também o significado de cada criatura. De
facto, se todas as coisas «têm a sua subsistência» n’Aquele que existe «antes de todas as coisas» (Cl
1, 17), então quem constrói a própria vida sobre a sua Palavra edifica de modo verdadeiramente
23
Cf. In Hexaemeron, XX, 5: Opera Omnia, V (Quaracchi 1891), p. 425-426; Breviloquium, I, 8: Opera Omnia, V (Quaracchi
1891), p. 216-217.
24
Itinerarium mentis in Deum, II, 12: Opera Omnia, V (Quaracchi 1891), p. 302-303; cf. Commentarius in librum Ecclesiastes,
cap. 1, vers. 11, Quaestiones, II, 3: Opera Omnia, VI (Quaracchi 1891), p. 16.
25
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 3; cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé
católica Dei Filius, cap. 2 – De revelatione: DS 3004.
26
Cf. Propositio 13.
27
Comissão Teológica Internacional, À procura de uma ética universal: novo olhar sobre a lei natural, Cidade do Vaticano 2009,
n. 39.
28
Cf. Summa theologiae, Ia-IIae, q. 94, a. 2.
29
Cf. Pont. Comissão Bíblica, Bíblia e moral. Raízes bíblicas do agir cristão (11 de Maio de 2008), Cidade do Vaticano 2008, nn.
13, 32 e 109.
30
Cf. Comissão Teológica Internacional, À procura de uma ética universal: novo olhar sobre a lei natural, Cidade do Vaticano
2009, n. 102.
10
sólido e duradouro. A Palavra de Deus impele-nos a mudar o nosso conceito de realismo: realista é
quem reconhece o fundamento de tudo no Verbo de Deus.[31] Isto revela-se particularmente
necessário no nosso tempo, em que manifestam o seu carácter efémero muitas coisas com as quais
se contava para construir a vida e sobre as quais se era tentado a colocar a própria esperança. Mais
cedo ou mais tarde, o ter, o prazer e o poder manifestam-se incapazes de realizar as aspirações mais
profundas do coração do homem. De facto, para edificar a própria vida, ele tem necessidade de
alicerces sólidos, que permaneçam mesmo quando falham as certezas humanas. Na realidade, já que
«para sempre, Senhor, como os céus, subsiste a vossa palavra» e a fidelidade do Senhor «atravessa
as gerações» (Sl 119, 89-90), quem constrói sobre esta palavra, edifica a casa da própria vida sobre a
rocha (cf. Mt 7, 24). Que o nosso coração possa dizer a Deus cada dia: «Sois o meu abrigo, o meu
escudo, na vossa palavra pus a minha esperança» (Sl 119, 114), e possamos agir cada dia confiando
no Senhor Jesus como São Pedro: «Porque Tu o dizes, lançarei as redes» (Lc   5, 5).

Cristologia da Palavra

11. A partir deste olhar sobre a realidade como obra da Santíssima Trindade, através do Verbo
divino, podemos compreender as palavras do autor da Carta aos Hebreus: «Tendo Deus falado
outrora aos nossos pais, muitas vezes e de muitas maneiras, pelos Profetas, agora falou-nos nestes
últimos tempos pelo Filho, a Quem constituiu herdeiro de tudo e por Quem igualmente criou o
mundo» (Hb 1, 1-2). É estupendo observar como todo o Antigo Testamento se nos apresenta já
como história na qual Deus comunica a sua Palavra: de facto, «tendo estabelecido aliança com
Abraão (cf. Gn 15, 18), e com o povo de Israel por meio de Moisés (cf. Ex 24, 8), revelou-Se ao
Povo escolhido como único Deus verdadeiro e vivo, em palavras e obras, de tal modo que Israel
pudesse conhecer por experiência os planos de Deus sobre os homens, os compreendesse cada vez
mais profunda e claramente, ouvindo o mesmo Deus falar por boca dos profetas, e os difundisse
mais amplamente entre os homens (cf. Sl 21, 28-29; 95, 1-3; Is 2, 1-4; Jr 3, 17)».[32]

Esta condescendência de Deus realiza-se, de modo insuperável, na encarnação do Verbo. A Palavra


eterna que se exprime na criação e comunica na história da salvação, tornou-se em Cristo um
homem, «nascido de mulher» (Gl 4, 4). Aqui a Palavra não se exprime primariamente num discurso,
em conceitos ou regras; mas vemo-nos colocados diante da própria pessoa de Jesus. A sua história,
única e singular, é a palavra definitiva que Deus diz à humanidade. Daqui se compreende por que
motivo, «no início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro
com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo
decisivo».[33] A renovação deste encontro e desta consciência gera no coração dos fiéis a maravilha
pela iniciativa divina, que o homem, com as suas próprias capacidades racionais e imaginação,
jamais teria podido conceber. Trata-se de uma novidade inaudita e humanamente inconcebível: «O
Verbo fez-Se carne e habitou entre nós» (Jo 1, 14a). Estas expressões não indicam uma figura
retórica mas uma experiência vivida. Quem a refere é São João, testemunha ocular: «Nós vimos a
sua glória, glória que Lhe vem do Pai, como Filho único cheio de graça e de verdade» (Jo 1, 14b). A
fé apostólica testemunha que a Palavra eterna Se fez Um de nós. A Palavra divina exprime-se
verdadeiramente em palavras humanas.

12. A tradição patrística e medieval, contemplando esta «Cristologia da Palavra», utilizou uma
sugestiva expressão: O Verbo abreviou-Se.[34] «Na sua tradução grega do Antigo Testamento, os
31
Cf. Bento XVI, Homilia durante a Hora Tércia no início da I Congregação Geral do Sínodo dos Bispos (6 de Outubro de
2008): AAS 100 (2008), 758-761.
32
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 14.
33
Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 Dezembro de 2005), 1: AAS 98 (2006), 217-218.
34
«Ho Logos pachynetai (ou brachynetai)». Cf. Orígenes, Peri Archon, I, 2, 8: SC 252, 127-129.
11
Padres da Igreja encontravam uma frase do profeta Isaías – que o próprio São Paulo cita – para
mostrar como os caminhos novos de Deus estivessem já preanunciados no Antigo Testamento. Eis a
frase: “O Senhor compendiou a sua Palavra, abreviou--a” (Is 10, 23; Rm 9, 28). (…) O próprio Filho
é a Palavra, é o Logos: a Palavra eterna fez-Se pequena; tão pequena que cabe numa manjedoura.
Fez--Se criança, para que a Palavra possa ser compreendida por nós».[35] Desde então a Palavra já
não é apenas audível, não possui somente uma voz; agora a Palavra tem um rosto, que por isso
mesmo podemos ver: Jesus de Nazaré.[36]

Repassando a narração dos Evangelhos, notamos como a própria humanidade de Jesus se manifesta
em toda a sua singularidade precisamente quando referida à Palavra de Deus. De facto, na sua
humanidade perfeita, Ele realiza a vontade do Pai a todo o momento; Jesus ouve a sua voz e
obedece-Lhe com todo o seu ser; conhece o Pai e observa a sua palavra (cf. Jo 8, 55); comunica-nos
as coisas do Pai (cf. Jo 12, 50); «dei-lhes as palavras que Tu Me deste» (Jo 17, 8). Assim Jesus
mostra que é o Logos divino que Se dá a nós, mas é também o novo Adão, o homem verdadeiro,
aquele que cumpre em cada momento não a própria vontade mas a do Pai. Ele «crescia em
sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens» (Lc   2, 52). De maneira perfeita,
  5, 1).
escuta, realiza em Si mesmo e comunica-nos a Palavra divina (cf. Lc

Por fim, a missão de Jesus cumpre-se no Mistério Pascal: aqui vemo-nos colocados diante da
«Palavra da cruz» (cf. 1 Cor 1, 18). O Verbo emudece, torna-se silêncio de morte, porque Se «disse»
até calar, nada retendo do que nos devia comunicar. Sugestivamente os Padres da Igreja, ao
contemplarem este mistério, colocam nos lábios da Mãe de Deus esta expressão: «Está sem palavra
a Palavra do Pai, que fez toda a criatura que fala; sem vida estão os olhos apagados d’Aquele a cuja
palavra e aceno se move tudo o que tem vida».[37] Aqui verdadeiramente comunica-se-nos o amor
«maior», aquele que dá a vida pelos próprios amigos (cf. Jo 15, 13).

Neste grande mistério, Jesus manifesta-Se como a Palavra da Nova e Eterna Aliança: a liberdade de
Deus e a liberdade do homem encontraram--se definitivamente na sua carne crucificada, num pacto
indissolúvel, válido para sempre. O próprio Jesus, na Última Ceia, ao instituir a Eucaristia falara de
«Nova e Eterna Aliança», estabelecida no seu sangue derramado (cf. Mt 26, 28; Mc 14, 24; Lc   22,
20), mostrando-Se como o verdadeiro Cordeiro imolado, no qual se realiza a definitiva libertação da
escravidão.[38]

No mistério refulgente da ressurreição, este silêncio da Palavra manifesta-se com o seu significado
autêntico e definitivo. Cristo, Palavra de Deus encarnada, crucificada e ressuscitada, é Senhor de
todas as coisas; é o Vencedor, o Pantocrator, e assim todas as coisas ficam recapituladas n’Ele para
sempre (cf. Ef 1, 10). Por isso, Cristo é «a luz do mundo» (Jo 8, 12), aquela luz que «resplandece
nas trevas» (Jo 1, 5) mas as trevas não a acolheram (cf. Jo 1, 5). Aqui se compreende plenamente o
significado do Salmo 119 quando a designa «farol para os meus passos, e luz para os meus
caminhos» (v. 105); esta luz decisiva na nossa estrada é precisamente a Palavra que ressuscita.
Desde o início, os cristãos tiveram consciência de que, em Cristo, a Palavra de Deus está presente
como Pessoa. A Palavra de Deus é a luz verdadeira, de que o homem tem necessidade. Sim, na
ressurreição, o Filho de Deus surgiu como Luz do mundo. Agora, vivendo com Ele e para Ele,
podemos viver na luz.

35
Bento XVI, Homilia na solenidade do Natal do Senhor (24 de Dezembro de 2006): AAS 99 (2007), 12.
36
Cf. Mensagem final, II, 4-6.
37
Máximo o Confessor, A vida de Maria, n. 89: Textos marianos do primeiro milénio, 2, Roma 1989, p. 253.
38
Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 9-10: AAS 99 (2007), 111-112.
12
13. Chegados por assim dizer ao coração da «Cristologia da Palavra», é importante sublinhar a
unidade do desígnio divino no Verbo encarnado: é por isso que o Novo Testamento nos apresenta o
Mistério Pascal de acordo com as Sagradas Escrituras, como a sua íntima realização. São Paulo, na
Primeira Carta aos Coríntios, afirma que Jesus Cristo morreu pelos nossos pecados, «segundo as
Escrituras» (15, 3) e que ressuscitou no terceiro dia «segundo as Escrituras» (15, 4). Deste modo o
Apóstolo põe o acontecimento da morte e ressurreição do Senhor em relação com a história da
Antiga Aliança de Deus com o seu povo. Mais ainda, faz-nos compreender que esta história recebe
de tal acontecimento a sua lógica e o seu verdadeiro significado. No Mistério Pascal, realizam-se «as
palavras da Escritura, isto é, esta morte realizada “segundo as Escrituras” é um acontecimento que
contém em si mesmo um logos, uma lógica: a morte de Cristo testemunha que a Palavra de Deus Se
fez totalmente “carne”, “história” humana».[39] Também a ressurreição de Jesus acontece «ao
terceiro dia, segundo as Escrituras»: dado que a corrupção, segundo a interpretação judaica,
começava depois do terceiro dia, a palavra da Escritura cumpre-se em Jesus, que ressuscita antes de
começar a corrupção. Deste modo São Paulo, transmitindo fielmente o ensinamento dos Apóstolos
(cf. 1 Cor 15, 3), sublinha que a vitória de Cristo sobre a morte se verifica através da força criadora
da Palavra de Deus. Esta força divina proporciona esperança e alegria: tal é, em definitivo, o
conteúdo libertador da revelação pascal. Na Páscoa, Deus revela-Se a Si mesmo juntamente com a
força do Amor trinitário que aniquila as forças destruidoras do mal e da morte.

Assim, recordando estes elementos essenciais da nossa fé, podemos contemplar a unidade profunda
entre criação e nova criação e de toda a história da salvação em Cristo. Recorrendo a uma imagem,
podemos comparar o universo com uma partitura, um «livro» – diria Galileu Galilei – considerando-
o como «a obra de um Autor que Se exprime através da “sinfonia” da criação. Dentro desta sinfonia,
a determinado ponto aparece aquilo que, em linguagem musical, se chama um “solo”, um tema
confiado a um só instrumento ou a uma só voz; e é tão importante que dele depende o significado da
obra inteira. Este “solo” é Jesus (…). O Filho do Homem compendia em Si mesmo a terra e o céu, a
criação e o Criador, a carne e o Espírito. É o centro do universo e da história, porque n’Ele se unem
sem se confundir o Autor e a sua obra».[40]

Dimensão escatológica da Palavra de Deus

14. Por meio de tudo isto, a Igreja exprime a consciência de se encontrar, em Jesus Cristo, com a
Palavra definitiva de Deus; Ele é «o Primeiro e o Último» (Ap 1, 17). Deu à criação e à história o
seu sentido definitivo; por isso somos chamados a viver o tempo, a habitar na criação de Deus
dentro deste ritmo escatológico da Palavra. «Portanto, a economia cristã, como nova e definitiva
aliança, jamais passará, e não se há-de esperar nenhuma outra revelação pública antes da gloriosa
manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. 1 Tm 6, 14; Tt 2, 13)».[41] De facto, como
recordaram os Padres durante o Sínodo, a «especificidade do cristianismo manifesta-se no
acontecimento que é Jesus Cristo, ápice da Revelação, cumprimento das promessas de Deus e
mediador do encontro entre o homem e Deus. Ele, “que nos deu a conhecer Deus” (Jo 1, 18), é a
Palavra única e definitiva confiada à humanidade».[42] São João da Cruz exprimiu esta verdade de
modo admirável: «Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra – e não tem outra –
Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta Palavra única e já nada mais tem para
dizer (…). Porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o
Todo que é o seu Filho. E por isso, quem agora quisesse consultar a Deus ou pedir-Lhe alguma visão
39
Bento XVI, Audiência Geral (15 de Abril de 2009): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 18/IV/2009), p. 12.
40
Bento XVI, Homilia na solenidade da Epifania (6 de Janeiro de 2009): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 10/I/2009), p.
3.
41
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 4.
42
Propositio 4.
13
ou revelação, não só cometeria um disparate, mas faria agravo a Deus, por não pôr os olhos
totalmente em Cristo e buscar fora d’Ele outra realidade ou novidade».[43]

Consequentemente, o Sínodo recomendou que «se ajudassem os fiéis a bem distinguir a Palavra de
Deus das revelações privadas»,[44] cujo «papel não é (…) “completar” a Revelação definitiva de
Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente, numa determinada época histórica».[45] O valor das
revelações privadas é essencialmente diverso do da única revelação pública: esta exige a nossa fé; de
facto nela, por meio de palavras humanas e da mediação da comunidade viva da Igreja, fala-nos o
próprio Deus. O critério da verdade de uma revelação privada é a sua orientação para o próprio
Cristo. Quando aquela nos afasta d’Ele, certamente não vem do Espírito Santo, que nos guia no
âmbito do Evangelho e não fora dele. A revelação privada é uma ajuda para a fé, e manifesta-se
como credível precisamente porque orienta para a única revelação pública. Por isso, a aprovação
eclesiástica de uma revelação privada indica essencialmente que a respectiva mensagem não contém
nada que contradiga a fé e os bons costumes; é lícito torná-la pública, e os fiéis são autorizados a
prestar-lhe de forma prudente a sua adesão. Uma revelação privada pode introduzir novas
acentuações, fazer surgir novas formas de piedade ou aprofundar antigas. Pode revestir-se de um
certo carácter profético (cf. 1 Ts 5, 19-21) e ser uma válida ajuda para compreender e viver melhor o
Evangelho na hora actual; por isso não se deve desprezá-la. É uma ajuda, que é oferecida, mas da
qual não é obrigatório fazer uso. Em todo o caso, deve tratar-se de um alimento para a fé, a
esperança e a caridade, que são o caminho permanente da salvação para todos.[46]

A Palavra de Deus e o Espírito Santo

15. Depois de nos termos detido sobre a Palavra última e definitiva de Deus ao mundo, é necessário
recordar agora a missão do Espírito Santo relativamente à Palavra divina. De facto, não é possível
uma compreensão autêntica da revelação cristã fora da acção do Paráclito. Isto deve-se ao facto de a
comunicação que Deus faz de Si mesmo implicar sempre a relação entre o Filho e o Espírito Santo,
a Quem Ireneu de Lião realmente chama «as duas mãos do Pai».[47] Aliás, é a Sagrada Escritura que
nos indica a presença do Espírito Santo na história da salvação e, particularmente, na vida de Jesus,
o Qual é concebido no seio da Virgem Maria por obra do Espírito Santo (cf. Mt 1, 18; Lc   1, 35); ao
iniciar a sua missão pública nas margens do Jordão, vê-O descer sobre Si em forma de pomba (cf.
  10, 21); é no Espírito que Se oferece
Mt 3, 16); neste mesmo Espírito, Jesus age, fala e exulta (cf. Lc
a Si mesmo (cf. Hb 9, 14). Quando está para terminar a sua missão – segundo narra o evangelista
São João –, o próprio Jesus relaciona claramente o dom da sua vida com o envio do Espírito aos
Seus (cf. Jo 16, 7). Depois Jesus ressuscitado, trazendo na sua carne os sinais da paixão, derrama o
Espírito (cf. Jo 20, 22), tornando os discípulos participantes da sua própria missão (cf. Jo 20, 21). O
Espírito Santo ensinará aos discípulos todas as coisas, recordando-lhes tudo o que Cristo disse (cf.
Jo 14, 26), porque será Ele, o Espírito de Verdade (cf. Jo 15, 26), a guiar os discípulos para a
Verdade inteira (cf. Jo 16, 13). Por fim, como se lê nos Actos dos Apóstolos, o Espírito desce sobre
os Doze reunidos em oração com Maria no dia de Pentecostes (cf. 2, 1-4) e anima-os na missão de
anunciar a Boa Nova a todos os povos.[48]

Por conseguinte, a Palavra de Deus exprime-se em palavras humanas graças à obra do Espírito
Santo. A missão do Filho e a do Espírito Santo são inseparáveis e constituem uma única economia

43
São João da Cruz, Subida do Monte Carmelo, II, 22.
44
Propositio 47.
45
Catecismo da Igreja Católica, 67.
46
Cf. Congr. para a Doutrina da Fé, A mensagem de Fátima (26 de Junho de 2000): Ench. Vat., 19, n. 974-1021.
47
Adversus haereses, IV, 7, 4: PG 7, 992-993; V, 1, 3: PG 7, 1123; V, 6, 1: PG 7, 1137; V, 28, 4: PG 7, 1200.
48
Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 12: AAS 99 (2007), 113-114.
14
da salvação. O mesmo Espírito, que actua na encarnação do Verbo no seio da Virgem Maria, guia
Jesus ao longo de toda a sua missão e é prometido aos discípulos. O mesmo Espírito que falou por
meio dos profetas, sustenta e inspira a Igreja no dever de anunciar a Palavra de Deus e na pregação
dos Apóstolos; e, enfim, é este Espírito que inspira os autores das Sagradas Escrituras.

16. Conscientes deste horizonte pneumatológico, os Padres sinodais quiseram lembrar a importância
da acção do Espírito Santo na vida da Igreja e no coração dos fiéis relativamente à Sagrada
Escritura:[49] sem a acção eficaz do «Espírito da Verdade» (Jo 14, 16), não se podem compreender
as palavras do Senhor. Como recorda ainda Santo Ireneu: «Aqueles que não participam do Espírito
não recebem do peito da sua mãe [a Igreja] o alimento da vida; nada recebem da fonte mais pura que
brota do corpo de Cristo».[50] Tal como a Palavra de Deus vem até nós no corpo de Cristo, no corpo
eucarístico e no corpo das Escrituras por meio do Espírito Santo, assim também só pode ser acolhida
e compreendida verdadeiramente graças ao mesmo Espírito.

Os grandes escritores da tradição cristã são unânimes ao considerar o papel do Espírito Santo na
relação que os fiéis devem ter com as Escrituras. São João Crisóstomo afirma que a Escritura «tem
necessidade da revelação do Espírito, a fim de que, descobrindo o verdadeiro sentido das coisas que
nela se encerram, disso mesmo tiremos abundante proveito».[51] Também São Jerónimo está
firmemente convencido de que «não podemos chegar a compreender a Escritura sem a ajuda do
Espírito Santo que a inspirou».[52] Depois, São Gregório Magno sublinha, de modo sugestivo, a obra
do mesmo Espírito na formação e na interpretação da Bíblia: «Ele mesmo criou as palavras dos
Testamentos Sagrados, Ele mesmo as desvendou».[53] Ricardo de São Víctor recorda que são
necessários «olhos de pomba», iluminados e instruídos pelo Espírito, para compreender o texto
sagrado.[54]

Desejaria ainda sublinhar como é significativo o testemunho a respeito da relação entre o Espírito
Santo e a Escritura que encontramos nos textos litúrgicos, onde a Palavra de Deus é proclamada,
escutada e explicada aos fiéis. É o caso de antigas orações que, em forma de epiclese, invocam o
Espírito antes da proclamação das leituras: «Mandai o vosso Espírito Santo Paráclito às nossas
almas e fazei-nos compreender as Escrituras por Ele inspiradas; e concedei-me interpretá-las de
maneira digna, para que os fiéis aqui reunidos delas tirem proveito». De igual modo, encontramos
orações que, no fim da homilia, novamente invocam de Deus o dom do Espírito sobre os fiéis:
«Deus salvador (…), nós Vos pedimos por este povo: Mandai sobre ele o Espírito Santo; o Senhor
Jesus venha visitá-lo, fale à mente de todos e abra os corações à fé e conduza para Vós as nossas
almas, Deus das Misericórdias».[55] Por tudo isto bem podemos compreender que não é possível
alcançar o sentido da Palavra, se não se acolhe a acção do Paráclito na Igreja e nos corações dos
fiéis.

Tradição e Escritura

17. Reafirmando o vínculo profundo entre o Espírito Santo e a Palavra de Deus, lançamos também
as bases para compreender o sentido e o valor decisivo da Tradição viva e das Sagradas Escrituras
49
Cf. Propositio 5.
50
Adversus haereses III, 24, 1: PG 7, 966.
51
Homiliae in Genesim, XXII, 1: PG 53, 175.
52
Epistula 120, 10: CSEL 55, 500-506.
53
Homiliae in Ezechielem, I, VII, 17: CC 142, 94.
54
«Oculi ergo devotae animae sunt columbarum quia sensus eius per Spiritum sanctum sunt illuminati et edocti, spiritualia
sapientes. (…) Nunc quidem aperitur animae talis sensus, ut intellegat Scripturas»: Ricardo de São Víctor, Explicatio in Cantica
canticorum, 15: PL 196, 450 B.D.
55
Sacramentarium Serapionis II (XX): Didascalia et Constitutiones apostolorum, ed. F. X. Funk, II (Paderborn 1906), 161.
15
na Igreja. De facto, uma vez que Deus «amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único»
(Jo 3, 16), a Palavra divina, pronunciada no tempo, deu-Se e «entregou-Se» à Igreja definitivamente
para que o anúncio da salvação possa ser eficazmente comunicado em todos os tempos e lugares.
Como nos recorda a Constituição dogmática Dei Verbum, o próprio Jesus Cristo «mandou aos
Apóstolos que pregassem a todos, como fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de
costumes, o Evangelho prometido antes pelos profetas e por Ele cumprido e promulgado
pessoalmente, comunicando-lhes assim os dons divinos. Isto foi realizado com fidelidade tanto pelos
Apóstolos que, na sua pregação oral, exemplos e instituições, transmitiram aquilo que tinham
recebido dos lábios, trato e obras de Cristo, e o que tinham aprendido por inspiração do Espírito
Santo, como por aqueles Apóstolos e varões apostólicos que, sob a inspiração do Espírito Santo,
escreveram a mensagem da salvação».[56]

Além disso o Concílio Vaticano II recorda que esta Tradição de origem apostólica é realidade viva e
dinâmica: ela «progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo»; não no sentido de mudar na
sua verdade, que é perene, mas «progride a percepção tanto das coisas como das palavras
transmitidas», com a contemplação e o estudo, com a inteligência dada por uma experiência
espiritual mais profunda, e por meio da «pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado,
receberam o carisma da verdade».[57]

A Tradição viva é essencial para que a Igreja, no tempo, possa crescer na compreensão da verdade
revelada nas Escrituras; de facto, «mediante a mesma Tradição, conhece a Igreja o cânon inteiro dos
livros sagrados, e a própria Sagrada Escritura entende-se nela mais profundamente e torna-se
incessantemente operante».[58] Em última análise, é a Tradição viva da Igreja que nos faz
compreender adequadamente a Sagrada Escritura como Palavra de Deus. Embora o Verbo de Deus
preceda e exceda a Sagrada Escritura, todavia, enquanto inspirada por Deus, esta contém a Palavra
divina (cf. 2 Tm 3, 16) «de modo totalmente singular».[59]

18. Disto conclui-se como é importante que o Povo de Deus seja educado e formado claramente para
se abeirar das Sagradas Escrituras na sua relação com a Tradição viva da Igreja, reconhecendo nelas
a própria Palavra de Deus. É muito importante, do ponto de vista da vida espiritual, fazer crescer
esta atitude nos fiéis. A este respeito pode ajudar a recordação de uma analogia desenvolvida pelos
Padres da Igreja entre o Verbo de Deus que Se faz «carne» e a Palavra que se faz «livro».[60] A
Constituição dogmática Dei Verbum, ao recolher esta tradição antiga segundo a qual «o corpo do
Filho é a Escritura que nos foi transmitida» – como afirma Santo Ambrósio[61] –, declara: «As
palavras de Deus, com efeito, expressas por línguas humanas, tornaram-se intimamente semelhantes
à linguagem humana, como outrora o Verbo do eterno Pai Se assemelhou aos homens tomando a
carne da fraqueza humana».[62] Vista assim, a Sagrada Escritura, apesar da multiplicidade das suas
formas e conteúdos, aparece-nos como uma realidade unitária. De facto, «através de todas as
palavras da Sagrada Escritura, Deus não diz mais que uma só palavra, o seu Verbo único, em quem
totalmente Se diz (cf. Hb 1, 1-3)»,[63] como claramente afirmava já Santo Agostinho: «Lembrai-vos
de que o discurso de Deus que se desenvolve em todas as Escrituras é um só, e um só é o Verbo que
Se faz ouvir na boca de todos os escritores sagrados».[64]

56
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 7.
57
Ibid., 8.
58
Ibid., 8.
59
Cf. Propositio 3.
60
Cf. Mensagem final, II, 5.
61
Expositio Evangelii secundum Lucam 6, 33: PL 15, 1677.
62
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 13.
63
Catecismo da Igreja Católica, 102. Cf. também Ruperto de Deutz, De operibus Spiritus Sancti, I, 6: SC 131, 72-74.
16
Em última análise, através da obra do Espírito Santo e sob a guia do Magistério, a Igreja transmite a
todas as gerações aquilo que foi revelado em Cristo. A Igreja vive na certeza de que o seu Senhor,
tendo falado outrora, não cessa de comunicar hoje a sua Palavra na Tradição viva da Igreja e na
Sagrada Escritura. De facto, a Palavra de Deus dá-se a nós na Sagrada Escritura, enquanto
testemunho inspirado da revelação, que, juntamente com a Tradição viva da Igreja, constitui a regra
suprema da fé.[65]

Sagrada Escritura, inspiração e verdade

19. Um conceito-chave para receber o texto sagrado como Palavra de Deus em palavras humanas é,
sem dúvida, o de inspiração. Também aqui se pode sugerir uma analogia: assim como o Verbo de
Deus Se fez carne por obra do Espírito Santo no seio da Virgem Maria, assim também a Sagrada
Escritura nasce do seio da Igreja por obra do mesmo Espírito. A Sagrada Escritura é «Palavra de
Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito de Deus».[66] Deste modo se reconhece toda a
importância do autor humano que escreveu os textos inspirados e, ao mesmo tempo, do próprio
Deus como verdadeiro autor.

Daqui se vê com toda a clareza – lembraram os Padres sinodais – como o tema da inspiração é
decisivo para uma adequada abordagem das Escrituras e para a sua correcta hermenêutica,[67] que
deve, por sua vez, ser feita no mesmo Espírito em que foi escrita.[68] Quando esmorece em nós a
consciência da inspiração, corre-se o risco de ler a Escritura como objecto de curiosidade histórica e
não como obra do Espírito Santo, na qual podemos ouvir a própria voz do Senhor e conhecer a sua
presença na história.

Além disso, os Padres sinodais puseram em evidência como ligado com o tema da inspiração esteja
também o tema da verdade das Escrituras.[69] Por isso, um aprofundamento da dinâmica da
inspiração levará, sem dúvida, também a uma maior compreensão da verdade contida nos livros
sagrados. Como indica a doutrina conciliar sobre o tema, os livros inspirados ensinam a verdade: «E
assim, como tudo quanto afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos deve ser tido como afirmado
pelo Espírito Santo, por isso mesmo se deve acreditar que os livros da Escritura ensinam com
certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse consi-gnada
nas sagradas Letras. Por isso, “toda a Escri-tura é divinamente inspirada e útil para ensinar, para
corrigir, para instruir na justiça: para que o homem de Deus seja perfeito, experimentado em todas as
boas obras (2 Tm 3, 16-17 gr.)”».[70]

Não há dúvida que a reflexão teológica sempre considerou inspiração e verdade como dois
conceitos-chave para uma hermenêutica eclesial das Sagradas Escrituras. No entanto, deve-se
reconhecer a necessidade actual de um condigno aprofundamento destas realidades, para se
responder melhor às exigências relativas à interpretação dos textos sagrados segundo a sua natureza.
Nesta perspectiva, desejo vivamente que a investigação possa avançar neste campo e dê fruto para a
ciência bíblica e para a vida espiritual dos fiéis.

Deus Pai, fonte e origem da Palavra


64
Enarrationes in Psalmos, 103, IV, 1: PL 37, 1378. Análogas afirmações em Orígenes, In Iohannem V, 5-6: SC 120, pp. 380-
384.
65
Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 21.
66
Ibid., 9.
67
Cf. Propositiones 5 e 12.
68
Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 12.
69
Cf. Propositio 12.
70
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 11.
17
20. A economia da revelação tem o seu início e a sua origem em Deus Pai. Pela sua palavra «foram
feitos os céus, pelo sopro da sua boca todos os seus exércitos» (Sl 33, 6). É Ele que faz resplandecer
«o conhecimento da glória de Deus, que se reflecte na face de Cristo» (2 Cor 4, 6; cf. Mt 16, 17; Lc 
9, 29).

No Filho, «Logos feito carne» (cf. Jo 1, 14), que veio para cumprir a vontade d’Aquele que O
enviou (cf. Jo 4, 34), Deus, fonte da revelação, manifesta-Se como Pai e leva à perfeição a educação
divina do homem, já anteriormente animada pela palavra dos profetas e pelas maravilhas realizadas
na criação e na história do seu povo e de todos os homens. O apogeu da revelação de Deus Pai é
oferecido pelo Filho com o dom do Paráclito (cf. Jo 14, 16), Espírito do Pai e do Filho, que nos
«guiará para a verdade total» (Jo 16, 13).

Deste modo, todas as promessas de Deus se tornam «sim» em Jesus Cristo (cf. 2 Cor 1, 20). Abre-se
assim, para o homem, a possibilidade de percorrer o caminho que o conduz ao Pai (cf. Jo 14, 6),
para que no fim «Deus seja tudo em todos» (1 Cor 15, 28).

21. Como mostra a cruz de Cristo, Deus fala também por meio do seu silêncio. O silêncio de Deus, a
experiência da distância do Omnipotente e Pai é etapa decisiva no caminho terreno do Filho de
Deus, Palavra encarnada. Suspenso no madeiro da cruz, o sofrimento que Lhe causou tal silêncio fê-
Lo lamentar: «Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?» (Mc 15, 34; Mt 27, 46). Avançando
na obediência até ao último respiro, na obscuridade da morte, Jesus invocou o Pai. A Ele Se
entregou no momento da passagem, através da morte, para a vida eterna: «Pai, nas tuas mãos,
  23, 46).
entrego o meu espírito» (Lc

Esta experiência de Jesus é sintomática da situação do homem que, depois de ter escutado e
reconhecido a Palavra de Deus, deve confrontar-se também com o seu silêncio. É uma experiência
vivida por muitos Santos e místicos, e que ainda hoje faz parte do caminho de muitos fiéis. O
silêncio de Deus prolonga as suas palavras anteriores. Nestes momentos obscuros, Ele fala no
mistério do seu silêncio. Portanto, na dinâmica da revelação cristã, o silêncio aparece como uma
expressão importante da Palavra de Deus.

A resposta do homem a Deus que fala

Chamados a entrar na Aliança com Deus

22. Ao sublinhar a pluralidade de formas da Palavra, pudemos ver através de quantas modalidades
Deus fala e vem ao encontro do homem, dando-Se a conhecer no diálogo. É certo que o diálogo,
como afirmaram os Padres sinodais, «quando se refere à Revelação comporta o primado da Palavra
de Deus dirigida ao homem».[71] O mistério da Aliança exprime esta relação entre Deus que chama
através da sua Palavra e o homem que responde, sabendo claramente que não se trata de um
encontro entre dois contraentes iguais; aquilo que designamos por Antiga e Nova Aliança não é um
acto de entendimento entre duas partes iguais, mas puro dom de Deus. Por meio deste dom do seu
amor, Ele, superando toda a distância, torna--nos verdadeiramente seus «parceiros», de modo a
realizar o mistério nupcial do amor entre Cristo e a Igreja. Nesta perspectiva, todo o homem aparece
como o destinatário da Palavra, interpelado e chamado a entrar, por uma resposta livre, em tal
diálogo de amor. Assim Deus torna cada um de nós capaz de escutar e responder à Palavra divina.
O homem é criado na Palavra e vive nela; e não se pode compreender a si mesmo, se não se abre a

71
Propositio 4.
18
este diálogo. A Palavra de Deus revela a natureza filial e relacional da nossa vida. Por graça, somos
verdadeiramente chamados a configurar-nos com Cristo, o Filho do Pai, e a ser transformados n’Ele.

Deus escuta o homem e responde às suas perguntas

23. Neste diálogo com Deus, compreendemo-nos a nós mesmos e encontramos resposta para as
perguntas mais profundas que habitam no nosso coração. De facto, a Palavra de Deus não se
contrapõe ao homem, nem mortifica os seus anseios verdadeiros; pelo contrário, ilumina-os,
purifica-os e realiza-os. Como é importante, para o nosso tempo, descobrir que só Deus responde à
sede que está no coração de cada homem! Infelizmente na nossa época, sobretudo no Ocidente,
difundiu-se a ideia de que Deus é alheio à vida e aos problemas do homem; pior ainda, de que a sua
presença pode até ser uma ameaça à autonomia humana. Na realidade, toda a economia da salvação
mostra-nos que Deus fala e intervém na história a favor do homem e da sua salvação integral. Por
conseguinte é decisivo, do ponto de vista pastoral, apresentar a Palavra de Deus na sua capacidade
de dialogar com os problemas que o homem deve enfrentar na vida diária. Jesus apresenta-Se-nos
precisamente como Aquele que veio para que pudéssemos ter a vida em abundância (cf. Jo 10, 10).
Por isso, devemos fazer todo o esforço para mostrar a Palavra de Deus precisamente como abertura
aos próprios problemas, como resposta às próprias perguntas, uma dilatação dos próprios valores e,
conjuntamente, uma satisfação das próprias aspirações. A pastoral da Igreja deve ilustrar claramente
como Deus ouve a necessidade do homem e o seu apelo. São Boaventura afirma no Breviloquium:
«O fruto da Sagrada Escritura não é um fruto qualquer, mas a plenitude da felicidade eterna. De
facto, a Sagrada Escritura é precisamente o livro no qual estão escritas palavras de vida eterna,
porque não só acreditamos mas também possuímos a vida eterna, em que veremos, amaremos e
serão realizados todos os nossos desejos».[72]

Dialogar com Deus através das suas palavras

24. A Palavra divina introduz cada um de nós no diálogo com o Senhor: o Deus que fala, ensina-nos
como podemos falar com Ele. Espontaneamente o pensamento detém-se no Livro dos Salmos, onde
Ele nos fornece as palavras com que podemos dirigir-nos a Ele, levar a nossa vida para o colóquio
com Ele, transformando assim a própria vida num movimento para Deus.[73] De facto, nos Salmos,
encontramos articulada toda a gama de sentimentos que o homem pode ter na sua própria existência
e que são sapientemente colocados diante de Deus; alegria e sofrimento, angústia e esperança, medo
e perplexidade encontram lá a sua expressão. E, juntamente com os Salmos, pensamos também em
numerosos textos da Sagrada Escritura que apresentam o homem a dirigir-se a Deus sob a forma de
oração de intercessão (cf. Ex 33, 12-16), de canto de júbilo pela vitória (cf. Ex 15), ou de lamento no
desempenho da própria missão (cf. Jr 20, 7-18). Deste modo, a palavra que o homem dirige a Deus
torna-se também Palavra de Deus, como confirmação do carácter dialógico de toda a revelação
cristã,[74] e a existência inteira do homem torna-se um diálogo com Deus que fala e escuta, que
chama e dinamiza a nossa vida. Aqui a Palavra de Deus revela que toda a existência do homem está
sob o chamamento divino.[75]

A Palavra de Deus e a fé

72
Prol.: Opera Omnia, V (Quaracchi 1891), pp. 201-202.
73
Cf. Bento XVI, Discurso aos homens de cultura no «Collège des Bernardins» de Paris (12 de Setembro de 2008): AAS 100
(2008), 721-730.
74
Cf. Propositio 4.
75
Cf. Relatio post disceptationem, 12.
19
25. «A Deus que Se revela é devida “a obediência da fé” (Rm 16, 26; cf. Rm 1, 5; 2 Cor 10, 5-6);
pela fé, o homem entrega-se total e livremente a Deus oferecendo a Deus revelador “o obséquio
pleno da inteligência e da vontade” e prestando voluntário assentimento à sua revelação».[76] Com
estas palavras, a Constituição dogmática Dei Verbum exprimiu de modo claro a atitude do homem
diante de Deus. A resposta própria do homem a Deus, que fala, é a fé. Isto coloca em evidência que,
«para acolher a Revelação, o homem deve abrir a mente e o coração à acção do Espírito Santo que
lhe faz compreender a Palavra de Deus presente nas Sagradas Escrituras».[77] De facto, é
precisamente a pregação da Palavra divina que faz surgir a fé, pela qual aderimos de coração à
verdade que nos foi revelada e entregamos todo o nosso ser a Cristo: «A fé vem da pregação, e a
pregação pela palavra de Cristo» (Rm 10, 17). Toda a história da salvação nos mostra
progressivamente esta ligação íntima entre a Palavra de Deus e a fé que se realiza no encontro com
Cristo. De facto, com Ele a fé toma a forma de encontro com uma Pessoa à qual se confia a própria
vida. Cristo Jesus continua hoje presente, na história, no seu corpo que é a Igreja; por isso, o acto da
nossa fé é um acto simultaneamente pessoal e eclesial.

O pecado como não escuta da Palavra de Deus

26. A Palavra de Deus revela inevitavelmente também a dramática possibilidade que tem a liberdade
do homem de subtrair-se a este diálogo de aliança com Deus, para o qual fomos criados. De facto, a
Palavra divina desvenda também o pecado que habita no coração do homem. Muitas vezes
encontramos, tanto no Antigo como no Novo Testamento, a descrição do pecado como não escuta
da Palavra, como ruptura da Aliança e, consequentemente, como fechar-se a Deus que chama à
comunhão com Ele.[78] Com efeito, a Sagrada Escritura mostra-nos como o pecado do homem é
essencialmente desobediência e «não escuta». Precisamente a obediência radical de Jesus até à
morte de Cruz (cf. Fl 2, 8) desmascara totalmente este pecado. Na sua obediência, realiza-se a Nova
Aliança entre Deus e o homem e é-nos concedida a possibilidade da reconciliação. De facto, Jesus
foi mandado pelo Pai como vítima de expiação pelos nossos pecados e pelos do mundo inteiro (cf. 1
Jo 2, 2; 4, 10; Hb 7, 27). Assim, é-nos oferecida misericordiosamente a possibilidade da redenção e
o início de uma vida nova em Cristo. Por isso, é importante que os fiéis sejam educados a
reconhecer a raiz do pecado na não escuta da Palavra do Senhor e a acolher em Jesus, Verbo de
Deus, o perdão que nos abre à salvação.

Maria «Mater Verbi Dei» e «Mater fidei»

27. Os Padres sinodais declararam que o objectivo fundamental da XII Assembleia foi «renovar a fé
da Igreja na Palavra de Deus»; por isso é necessário olhar para uma pessoa em Quem a
reciprocidade entre Palavra de Deus e fé foi perfeita, ou seja, para a Virgem Maria, «que, com o seu
sim à Palavra da Aliança e à sua missão, realiza perfeitamente a vocação divina da humanidade».[79]
A realidade humana, criada por meio do Verbo, encontra a sua figura perfeita precisamente na fé
obediente de Maria. Desde a Anunciação ao Pentecostes, vemo-La como mulher totalmente
disponível à vontade de Deus. É a Imaculada Conceição, Aquela que é «cheia de graça» de Deus (cf.
Lc  1, 28), incondicionalmente dócil à Palavra divina (cf. Lc   1, 38). A sua fé obediente face à
iniciativa de Deus plasma cada instante da sua vida. Virgem à escuta, vive em plena sintonia com a

76
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 5.
77
Propositio 4.
78
Por exemplo Dt 28, 1-2.15.45; 32, 1; nos grandes profetas cf. Jr 7, 22-28; Ez 2, 8; 3, 10; 6, 3; 13, 2; mas também nos menores:
cf. Zc 3, 8. Em São Paulo, cf. Rm 10, 14-18; 1 Ts 2, 13.
79
Propositio 55.
20
Palavra divina; conserva no seu coração os acontecimentos do seu Filho, compondo-os por assim
  2, 19.51).[80]
dizer num único mosaico (cf. Lc

No nosso tempo, é preciso que os fiéis sejam ajudados a descobrir melhor a ligação entre Maria de
Nazaré e a escuta crente da Palavra divina. Exorto também os estudiosos a aprofundarem ainda mais
a relação entre mariologia e teologia da Palavra. Daí poderá vir grande benefício tanto para a vida
espiritual como para os estudos teológicos e bíblicos. De facto, quando a inteligência da fé olha um
tema à luz de Maria, coloca-se no centro mais íntimo da verdade cristã. Na realidade, a encarnação
do Verbo não pode ser pensada prescindindo da liberdade desta jovem mulher que, com o seu
assentimento, coopera de modo decisivo para a entrada do Eterno no tempo. Ela é a figura da Igreja
à escuta da Palavra de Deus que nela Se fez carne. Maria é também símbolo da abertura a Deus e
aos outros; escuta activa, que interioriza, assimila, na qual a Palavra se torna forma de vida.

28. Nesta ocasião, desejo chamar a atenção para a familiaridade de Maria com a Palavra de Deus.
Isto transparece com particular vigor no Magnificat. Aqui, em certa medida, vê-se como Ela Se
identifica com a Palavra, e nela entra; neste maravilhoso cântico de fé, a Virgem exalta o Senhor
com a sua própria Palavra: «O Magnificat – um retrato, por assim dizer, da sua alma – é
inteiramente tecido de fios da Sagrada Escritura, com fios tirados da Palavra de Deus. Desta maneira
se manifesta que Ela Se sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus, dela sai e a ela volta
com naturalidade. Fala e pensa com a Palavra de Deus; esta torna-se Palavra d’Ela, e a sua palavra
nasce da Palavra de Deus. Além disso, fica assim patente que os seus pensamentos estão em sintonia
com os de Deus, que o d’Ela é um querer juntamente com Deus. Vivendo intimamente permeada
pela Palavra de Deus, Ela pôde tornar-Se mãe da Palavra encarnada».[81]

Além disso, a referência à Mãe de Deus mostra-nos como o agir de Deus no mundo envolve sempre
a nossa liberdade, porque, na fé, a Palavra divina transforma-nos. Também a nossa acção apostólica
e pastoral não poderá jamais ser eficaz, se não aprendermos de Maria a deixar-nos plasmar pela
acção de Deus em nós: «A atenção devota e amorosa à figura de Maria, como modelo e arquétipo da
fé da Igreja, é de importância capital para efectuar também nos nossos dias uma mudança concreta
de paradigma na relação da Igreja com a Palavra, tanto na atitude de escuta orante como na
generosidade do compromisso em prol da missão e do anúncio».[82]

Contemplando na Mãe de Deus uma vida modelada totalmente pela Palavra, descobrimo-nos
também nós chamados a entrar no mistério da fé, pela qual Cristo vem habitar na nossa vida. Como
nos recorda Santo Ambrósio, cada cristão que crê, em certo sentido, concebe e gera em si mesmo o
Verbo de Deus: se há uma só Mãe de Cristo segundo a carne, segundo a fé, porém, Cristo é o fruto
de todos.[83] Portanto, o que aconteceu em Maria pode voltar a acontecer em cada um de nós
diariamente na escuta da Palavra e na celebração dos Sacramentos.

A hermenêutica da Sagrada Escritura na Igreja

A Igreja, lugar originário da hermenêutica da Bíblia

29. Outro grande tema surgido durante o Sínodo, sobre o qual quero debruçar-me agora, é a
interpretação da Sagrada Escritura na Igreja. E precisamente a ligação intrínseca entre Palavra e fé
põe em evidência que a autêntica hermenêutica da Bíblia só pode ser feita na fé eclesial, que tem o
80
Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 33: AAS 99 (2007), 132-133.
81
Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 41: AAS 98 (2006), 251.
82
Propositio 55.
83
Cf. Expositio Evangelii secundum Lucam 2, 19: PL 15, 1559-1560.
21
seu paradigma no sim de Maria. A este respeito, São Boaventura afirma que, sem a fé, não há chave
de acesso ao texto sagrado: «Esta é o conhecimento de Jesus Cristo, do qual têm origem, como de
uma fonte, a segurança e a inteligência de toda a Sagrada Escritura. Por isso é impossível que
alguém possa entrar para a conhecer, se antes não tiver a fé infusa de Cristo que é lanterna, porta e
também fundamento de toda a Escritura».[84] E São Tomás de Aquino, mencionando Santo
Agostinho, insiste vigorosamente: «A letra do Evangelho também mata, se faltar a graça interior da
fé que cura».[85]

Isto permite-nos assinalar um critério fundamental da hermenêutica bíblica: o lugar originário da


interpretação da Escritura é a vida da Igreja. Esta afirmação não indica a referência eclesial como
um critério extrínseco ao qual se devem submeter os exegetas, mas é uma exigência da própria
realidade das Escrituras e do modo como se formaram ao longo do tempo. De facto, «as tradições de
fé formavam o ambiente vital onde se inseriu a actividade literária dos autores da Sagrada Escritura.
Esta inserção englobava também a participação na vida litúrgica e na actividade externa das
comunidades, no seu mundo espiritual, na sua cultura e nas vicissitudes do seu destino histórico. Por
isso, de modo semelhante, a interpretação da Sagrada Escritura exige a participação dos exegetas em
toda a vida e em toda a fé da comunidade crente do seu tempo».[86] Por conseguinte, «devendo a
Sagrada Escritura ser lida e interpretada com o mesmo Espírito com que foi escrita»,[87] é preciso
que os exegetas, os teólogos e todo o Povo de Deus se abeirem dela por aquilo que realmente é:
como Palavra de Deus que Se nos comunica através de palavras humanas (cf. 1 Ts 2, 13). Trata-se
de um dado constante e implícito na própria Bíblia: «Nenhuma profecia da Escritura é de
interpretação particular, porque jamais uma profecia foi proferida pela vontade dos homens.
Inspirados pelo Espírito Santo é que os homens santos falaram em nome de Deus» (2 Pd 1, 20-21).
Aliás, é precisamente a fé da Igreja que reconhece na Bíblia a Palavra de Deus; como
admiravelmente diz Santo Agostinho, «não acreditaria no Evangelho se não me movesse a isso a
autoridade da Igreja Católica».[88] O Espírito Santo, que anima a vida da Igreja, é que torna capaz de
interpretar autenticamente as Escrituras. A Bíblia é o livro da Igreja e, a partir da imanência dela na
vida eclesial, brota também a sua verdadeira hermenêutica.

30. São Jerónimo recorda que, sozinhos, nunca poderemos ler a Escritura. Encontramos demasiadas
portas fechadas e caímos facilmente em erro. A Bíblia foi escrita pelo Povo de Deus e para o Povo
de Deus, sob a inspiração do Espírito Santo. Somente com o «nós», isto é, nesta comunhão com o
Povo de Deus, podemos realmente entrar no núcleo da verdade que o próprio Deus nos quer dizer.
[89] Aquele grande estudioso, para quem «a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo»,[90]
afirma que o carácter eclesial da interpretação bíblica não é uma exigência imposta do exterior; o
Livro é precisamente a voz do Povo de Deus peregrino, e só na fé deste Povo é que estamos, por
assim dizer, na tonalidade justa para compreender a Sagrada Escritura. Uma autêntica interpretação
da Bíblia deve estar sempre em harmónica concordância com a fé da Igreja Católica. Jerónimo
escrevia assim a um sacerdote: «Permanece firmemente apegado à doutrina tradicional que te foi
ensinada, para que possas exortar segundo a sã doutrina e rebater aqueles que a contradizem».[91]

Abordagens do texto sagrado que prescindam da fé podem sugerir elementos interessantes ao


deterem-se sobre a estrutura do texto e as suas formas; inevitavelmente, porém, tal tentativa seria
84
Breviloquium, Prol.: Opera Omnia, V (Quaracchi 1891), p. 201-202.
85
Summa theologiae, Ia-IIae, q. 106, art. 2.
86
Pont. Comissão Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993), III, A, 3: Ench. Vat. 13, n. 3035.
87
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 12.
88
Contra epistolam Manichaei quam vocant fundamenti, V, 6: PL 42, 176.
89
Cf. Bento XVI, Audiência Geral (14 de Novembro de 2007): Insegnamenti III/2 (2007), 586-591.
90
Commentariorum in Isaiam libri, Prol.: PL 24, 17.
91
Epistula 52, 7: CSEL 54, 426.
22
apenas preliminar e estruturalmente incompleta. De facto, como foi afirmado pela Pontifícia
Comissão Bíblica, repercutindo um princípio compartilhado na hermenêutica moderna, «o justo
conhecimento do texto bíblico só é acessível a quem tem uma afinidade vital com aquilo de que fala
o texto».[92] Tudo isto põe em relevo a relação entre a vida espiritual e a hermenêutica da Escritura.
De facto, «com o crescimento da vida no Espírito, cresce também no leitor a compreensão das
realidades de que fala o texto bíblico».[93] Uma intensa e verdadeira experiência eclesial não pode
deixar de incrementar a inteligência da fé autêntica a respeito da Palavra de Deus; e, vice-versa, a
leitura na fé das Escrituras faz crescer a própria vida eclesial. Daqui podemos compreender de um
modo novo a conhecida afirmação de São Gregório Magno: «As palavras divinas crescem
juntamente com quem as lê».[94] Assim, a escuta da Palavra de Deus introduz e incrementa a
comunhão eclesial com todos os que caminham na fé.

«A alma da sagrada teologia»

31. «O estudo destes sagrados livros deve ser como que a alma da sagrada teologia»:[95] esta
afirmação da Constituição dogmática Dei Verbum foi-se-nos tornando ao longo destes anos cada vez
mais familiar. Podemos dizer que o período sucessivo ao Concílio Vaticano II, no que se refere aos
estudos teológicos e exegéticos, citou frequentemente esta frase como símbolo do renovado
interesse pela Sagrada Escritura. Também a XII Assembleia do Sínodo dos Bispos se referiu várias
vezes a esta conhecida afirmação, para indicar a relação entre investigação histórica e hermenêutica
da fé aplicadas ao texto sagrado. Nesta perspectiva, os Padres reconheceram, com alegria, o
crescimento do estudo da Palavra de Deus na Igreja ao longo dos últimos decénios e exprimiram um
vivo agradecimento aos numerosos exegetas e teólogos que, com a sua dedicação, empenho e
competência, deram e ainda dão uma contribuição essencial para o aprofundamento do sentido das
Escrituras, enfrentando os problemas complexos que o nosso tempo coloca à investigação bíblica.
[96] Expressaram sentimentos de sincera gratidão também aos membros da Pontifícia Comissão
Bíblica que se sucederam nestes últimos anos e que, em estreita relação com a Congregação para a
Doutrina da Fé, continuam a dar o seu qualificado contributo para enfrentar questões peculiares
inerentes ao estudo da Sagrada Escritura. Além disso, o Sínodo sentiu a necessidade de se interrogar
sobre o estado dos estudos bíblicos actuais e sobre a sua relevância no âmbito teológico. De facto,
da relação fecunda entre exegese e teologia depende, em grande parte, a eficácia pastoral da acção
da Igreja e da vida espiritual dos fiéis. Por isso, considero importante retomar algumas reflexões
surgidas no debate havido sobre este tema nos trabalhos do Sínodo.

Desenvolvimento da investigação bíblica e Magistério eclesial

32. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer os benefícios que a exegese histórico-crítica e os outros
métodos de análise do texto, desenvolvidos em tempos mais recentes, trouxeram para a vida da
Igreja.[97] Segundo a visão católica da Sagrada Escritura, a atenção a estes métodos é imprescindível
e está ligada ao realismo da encarnação: «Esta necessidade é a consequência do princípio cristão
formulado no Evangelho de João 1, 14: Verbum caro factum est. O facto histórico é uma dimensão
constitutiva da fé cristã. A história da salvação não é uma mitologia, mas uma verdadeira história e,

92
Pont. Comissão Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993), II, A, 2: Ench. Vat. 13, n. 2988.
93
Ibid., II, A, 2: o.c., n. 2991.
94
Homiliae in Ezechielem I, VII, 8: PL 76, 843 D.
95
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 24; cf. Leão XIII, Carta enc. Providentissimus Deus
(18 de Novembro de 1893), Pars II, sub fine: ASS 26 (1893-94), 269-292; Bento XV, Carta enc. Spiritus Paraclitus (15 de
Setembro de 1920), Pars III: AAS 12 (1920), 385-422.
96
Cf. Propositio 26.
97
Cf. Pont. Comissão Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993), A-B: Ench. Vat. 13, n. 2846-3150.
23
por isso, deve-se estudar com os métodos de uma investigação histórica séria».[98] Por isso, o estudo
da Bíblia exige o conhecimento e o uso apropriado destes métodos de pesquisa. Se é verdade que
esta sensibilidade no âmbito dos estudos se desenvolveu mais intensamente na época moderna,
embora não de igual modo por toda a parte, todavia na sã tradição eclesial sempre houve amor pelo
estudo da «letra». Basta recordar aqui a cultura monástica, à qual em última análise devemos o
fundamento da cultura europeia: na sua raiz, está o interesse pela palavra. O desejo de Deus inclui o
amor pela palavra em todas as suas dimensões: «Visto que, na Palavra bíblica, Deus caminha para
nós e nós para Ele, é preciso aprender a penetrar no segredo da língua, compreendê--la na sua
estrutura e no seu modo de se exprimir. Assim, devido precisamente à procura de Deus, tornam-se
importantes as ciências profanas que nos indicam as vias rumo à língua».[99]

33. O Magistério vivo da Igreja, ao qual compete «o encargo de interpretar autenticamente a Palavra
de Deus escrita ou contida na Tradição»,[100] interveio com sapiente equilíbrio relativamente à justa
posição a tomar face à introdução dos novos métodos de análise histórica. Refiro-me, de modo
particular, às encíclicas Providentissimus Deus do Papa Leão XIII e Divino afflante Spiritu do Papa
Pio XII. O meu venerável predecessor João Paulo II recordou a importância destes documentos para
a exegese e a teologia, por ocasião da celebração do centenário e cinquentenário respectivamente da
sua publicação.[101] A intervenção do Papa Leão XIII teve o mérito de proteger a interpretação
católica da Bíblia dos ataques do racionalismo, sem contudo se refugiar num sentido espiritual
separado da história. Não desprezava a crítica científica; desconfiava-se somente «das opiniões
preconcebidas que pretendem fundar-se sobre a ciência mas, na realidade, fazem astuciosamente sair
a ciência do seu campo».[102] Por sua vez, o Papa Pio XII encontrava-se perante os ataques dos
adeptos duma exegese chamada mística, que recusava qualquer abordagem científica. Com grande
sensibilidade, a Encíclica Divino afflante Spiritu evitou que se desenvolvesse a ideia de uma
dicotomia entre a «exegese científica» para o uso apologético e a «interpretação espiritual reservada
ao uso interno», afirmando, pelo contrário, quer o «alcance teológico do sentido literal
metodicamente definido», quer a pertença da «determinação do sentido espiritual (…) ao campo da
ciência exegética».[103] De tal modo ambos os documentos recusam «a ruptura entre o humano e o
divino, entre a pesquisa científica e a visão da fé, entre o sentido literal e o sentido espiritual».[104]
Este equilíbrio foi, sucessivamente, expresso no documento de 1993 da Pontifícia Comissão Bíblica:
«No seu trabalho de interpretação, os exegetas católicos jamais devem esquecer que interpretam a
Palavra de Deus. A sua tarefa não termina depois que distinguiram as fontes, definiram as formas ou
explicaram os processos literários. O objectivo do seu trabalho só está alcançado quando tiverem
esclarecido o significado do texto bíblico como Palavra actual de Deus».[105]

A hermenêutica bíblica conciliar: uma indicação a acolher

34. A partir deste horizonte, podem-se apreciar melhor os grandes princípios da interpretação
próprios da exegese católica expressos pelo Concílio Vaticano II, particularmente na Constituição
dogmática Dei Verbum: «Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à

98
Bento XVI, Intervenção na XIV Congregação Geral do Sínodo (14 de Outubro de 2008): Insegnamenti IV/2 (2008), 492; cf.
Propositio 25.
99
Bento XVI, Discurso aos homens de cultura no «Collège des Bernardins» de Paris (12 de Setembro de 2008): AAS 100 (2008),
722-723.
100
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 10.
101
Cf. João Paulo II, Discurso por ocasião do centenário da Providentissimus Deus e do cinquentenário da Divino afflante Spiritu
(23 de Abril de 1993): AAS 86 (1994), 232-243.
102
Ibid., 4: o.c., 235.
103
Ibid., 5: o.c., 235.
104
Ibid., 5: o.c., 236.
105
Pont. Comissão Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993), III, C, 1: Ench. Vat. 13, n. 3065.
24
maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve
investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus
manifestar por meio das suas palavras».[106] O Concílio, por um lado, sublinha, como elementos
fundamentais para identificar o significado pretendido pelo hagiógrafo, o estudo dos géneros
literários e a contextualização; por outro, devendo a Escritura ser interpretada no mesmo Espírito em
que foi escrita, a Constituição dogmática indica três critérios de base para se respeitar a dimensão
divina da Bíblia: 1) interpretar o texto tendo presente a unidade de toda a Escritura; isto hoje
chama-se exegese canónica; 2) ter presente a Tradição viva de toda a Igreja; 3) observar a analogia
da fé. «Somente quando se observam os dois níveis metodológicos, histórico-crítico e teológico, é
que se pode falar de uma exegese teológica, de uma exegese adequada a este Livro».[107]

Os Padres sinodais afirmaram, justamente, que o fruto positivo produzido pelo uso da investigação
histórico-crítica moderna é inegável. Mas, enquanto a exegese académica actual, mesmo católica,
trabalha a alto nível no que se refere à metodologia histórico-crítica, incluindo as suas mais recentes
integrações, é forçoso exigir um estudo análogo da dimensão teológica dos textos bíblicos, para que
progrida o aprofundamento segundo os três elementos indicados pela Constituição dogmática Dei
Verbum.[108]

O perigo do dualismo e a hermenêutica secularizada

A este propósito, é preciso sublinhar hoje o grave risco de um dualismo que se gera ao abordar as
Sagradas Escrituras. De facto, distinguindo os dois níveis da abordagem bíblica, não se pretende de
modo algum separá-los, contrapô-los, ou simplesmente justapô-los. Só funcionam em reciprocidade.
Infelizmente, não raro uma infrutífera separação dos mesmos leva a exegese e a teologia a
comportarem-se como estranhas; e isto «acontece mesmo aos níveis académicos mais altos».[109]
Desejo aqui lembrar as consequências mais preocupantes que se devem evitar.

a) Antes de mais nada, se a actividade exegética se reduz só ao primeiro nível, consequentemente a


própria Escritura torna-se um texto só do passado: «Daí podem-se tirar consequências morais, pode-
se aprender a história, mas o Livro como tal fala só do passado e a exegese já não é realmente
teológica, mas torna-se pura historiografia, história da literatura».[110] É claro que, numa tal redução,
não é possível de modo algum compreender o acontecimento da revelação de Deus através da sua
Palavra que nos é transmitida na Tradição viva e na Escritura.

b) A falta de uma hermenêutica da fé na abordagem da Escritura não se apresenta apenas em termos
de uma ausência; o seu lugar acaba inevitavelmente ocupado por outra hermenêutica, uma
hermenêutica secularizada, positivista, cuja chave fundamental é a convicção de que o Divino não
aparece na história humana. Segundo esta hermenêutica, quando parecer que há um elemento divino,
isso deve-se explicar de outro modo, reduzindo tudo ao elemento humano. Consequentemente
propõem-se interpretações que negam a historicidade dos elementos divinos.[111]

c) Uma tal posição não pode deixar de danificar a vida da Igreja, fazendo surgir dúvidas sobre
mistérios fundamentais do cristianismo e sobre o seu valor histórico, como, por exemplo, a
106
N. 12.
107
Bento XVI, Intervenção na XIV Congregação Geral do Sínodo (14 de Outubro de 2008): Insegnamenti IV/2 (2008), 493; cf.
Propositio 25.
108
Cf. Propositio 26.
109
Propositio 27.
110
Bento XVI, Intervenção na XIV Congregação Geral do Sínodo (14 de Outubro de 2008): Insegnamenti IV/2 (2008), 493; cf.
Propositio 26.
111
Cf. ibid.: o.c. 493; propositio 26.
25
instituição da Eucaristia e a ressurreição de Cristo. De facto, assim impõe-se uma hermenêutica
filosófica, que nega a possibilidade de ingresso e presença do Divino na história. A assunção de tal
hermenêutica no âmbito dos estudos teológicos introduz, inevitavelmente, um gravoso dualismo
entre a exegese, que se situa unicamente no primeiro nível, e a teologia que leva a uma
espiritualização do sentido das Escrituras não respeitadora do carácter histórico da revelação.

Tudo isto não pode deixar de resultar negativo também para a vida espiritual e a actividade pastoral;
«a consequência da ausência do segundo nível metodológico é que se criou um fosso profundo entre
exegese científica e lectio divina. E precisamente daqui nasce às vezes uma forma de perplexidade
na própria preparação das homilias».[112] Além disso, há que assinalar que tal dualismo produz às
vezes incerteza e pouca solidez no caminho de formação intelectual mesmo de alguns candidatos aos
ministérios eclesiais.[113] Enfim, «onde a exegese não é teologia, a Escritura não pode ser a alma da
teologia e, vice-versa, onde a teologia não é essencialmente interpretação da Escritura na Igreja, esta
teologia já não tem fundamento».[114] Portanto, é necessário voltar decididamente a considerar com
mais atenção as indicações dadas pela Constituição dogmática Dei Verbum a este propósito.

Fé e razão na abordagem da Escritura

36. Creio que pode contribuir para uma compreensão mais completa da exegese e,
consequentemente, da sua relação com a teologia inteira aquilo que escreveu o Papa João Paulo II na
Encíclica Fides et ratio a este respeito. Afirmava ele que não se deve subestimar «o perigo que
existe quando se quer individuar a verdade da Sagrada Escritura com a aplicação de uma única
metodologia, esquecendo a necessidade de uma exegese mais ampla que permita o acesso, em união
com toda a Igreja, ao sentido pleno dos textos. Os que se dedicam ao estudo da Sagrada Escritura
nunca devem esquecer que as diversas metodologias hermenêuticas têm também na sua base uma
concepção filosófica: é preciso examiná-las com grande discernimento, antes de as aplicar aos
textos sagrados».[115]

Esta clarividente reflexão permite-nos ver como, na abordagem hermenêutica da Sagrada Escritura,
está em jogo inevitavelmente a relação correcta entre fé e razão. De facto, a hermenêutica
secularizada da Sagrada Escritura é actuada por uma razão que quer estruturalmente fechar-se à
possibilidade de Deus entrar na vida dos homens e falar aos homens com palavras humanas. Por isso
é necessário, também neste caso, convidar a alargar os espaços da própria racionalidade.[116] Na
utilização dos métodos de análise histórica, dever-se-á evitar de assumir, sempre que aparecem,
critérios que preconceituosamente se fechem à revelação de Deus na vida dos homens. A unidade
dos dois níveis do trabalho interpretativo da Sagrada Escritura pressupõe, em última análise, uma
harmonia entre a fé e a razão. Por um lado, é necessária uma fé que, mantendo uma adequada
relação com a recta razão, nunca degenere em fideísmo, que se tornaria, a respeito da Escritura,
fautor de leituras fundamentalistas. Por outro, é necessária uma razão que, investigando os
elementos históricos presentes na Bíblia, se mostre aberta e não recuse aprioristicamente tudo o que
excede a própria medida. Aliás, a religião do Logos encarnado não poderá deixar de apresentar-se
profundamente razoável ao homem que sinceramente procura a verdade e o sentido último da
própria vida e da história.

112
Ibid.: o.c. 493; cf. Propositio 26.
113
Cf. Propositio 27.
114
Bento XVI, Intervenção na XIV Congregação Geral do Sínodo (14 de Outubro de 2008): Insegnamenti IV/2 (2008), 493-494.
115
João Paulo II, Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998), 55: AAS 91 (1999), 49-50.
116
Cf. Bento XVI, Discurso no IV Congresso Nacional da Igreja em Itália (19 de Outubro de 2006): AAS 98 (2006),
804-815.
26
Sentido literal e sentido espiritual

Como foi afirmado na assembleia sinodal, um significativo contributo para a recuperação de uma
adequada hermenêutica da Escritura provém de uma renovada escuta dos Padres da Igreja e da sua
abordagem exegética.[117] Com efeito, os Padres da Igreja oferecem-nos, ainda hoje, uma teologia de
grande valor, porque no centro está o estudo da Sagrada Escritura na sua integridade. De facto, os
Padres são primária e essencialmente «comentadores da Sagrada Escritura».[118] O seu exemplo
pode «ensinar aos exegetas modernos uma abordagem verdadeiramente religiosa da Sagrada
Escritura, e também uma interpretação que se atém constantemente ao critério de comunhão com a
experiência da Igreja, que caminha através da história sob a guia do Espírito Santo».[119]

Apesar de não conhecer, obviamente, os recursos de ordem filológica e histórica à disposição da


exegese moderna, a tradição patrística e medieval sabia reconhecer os vários sentidos da Escritura, a
começar pelo literal, isto é, «o expresso pelas palavras da Escritura e descoberto pela exegese
segundo as regras da recta interpretação».[120] Por exemplo, São Tomás de Aquino afirma: «Todos
os sentidos da Sagrada Escritura se fundamentam no literal».[121] É preciso, porém, recordar-se de
que, no período patrístico e medieval, toda a forma de exegese, incluindo a literal, era feita com base
na fé, não havendo necessariamente distinção entre sentido literal e sentido espiritual. A propósito,
recorde-se o dístico clássico que traduz a relação entre os diversos sentidos da Escritura:

«Littera gesta docet, quid credas allegoria,


Moralis quid agas, quo tendas anagogia.
A letra ensina-te os factos [passados], a alegoria o que deves crer,
A moral o que deves fazer, a anagogia para onde deves tender».[122]

Sobressai aqui a unidade e a articulação entre sentido literal e sentido espiritual, o qual, por sua vez,
se subdivide em três sentidos que descrevem os conteúdos da fé, da moral e da tensão escatológica.

Em suma, reconhecendo o valor e a necessidade – apesar dos seus limites – do método histórico-
crítico, pela exegese patrística, aprendemos que «só se é fiel à intencionalidade dos textos bíblicos
na medida em que se procura encontrar, no coração da sua formulação, a realidade de fé que os
mesmos exprimem e em que se liga esta realidade com a experiência crente do nosso mundo».[123]
Somente nesta perspectiva se pode reconhecer que a Palavra de Deus é viva e se dirige a cada um de
nós no momento presente da nossa vida. Continua assim plenamente válida a afirmação da
Pontifícia Comissão Bíblica que define o sentido espiritual, segundo a fé cristã, como «o sentido
expresso pelos textos bíblicos quando são lidos sob o influxo do Espírito Santo no contexto do
mistério pascal de Cristo e da vida nova que dele resulta. Este contexto existe efectivamente. O
Novo Testamento reconhece nele o cumprimento das Escrituras. Por isso, é normal reler as
Escrituras à luz deste novo contexto, o da vida no Espírito».[124]

A necessária superação da «letra»

117
Cf. Propositio 6.
118
Cf. Santo Agostinho, De libero arbitrio, III, XXI, 59: PL 32, 1300; De Trinitate, II, I, 2: PL 42, 845.
119
Congr. para a Educação Católica, Instr. Inspectis dierum (10 de Novembro de 1989), 26: AAS 82 (1990), 618.
120
Catecismo da Igreja Católica, 116.
121
Summa theologiae, I, q.1, art.10, ad 1.
122
Catecismo da Igreja Católica, 118.
123
Pont. Comissão Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993), II, A, 2: Ench. Vat. 13, n. 2987.
124
Ibid., II, B, 2: o.c., n. 3003.
27
38. Para se recuperar a articulação entre os diversos sentidos da Escritura, torna-se então decisivo
identificar a passagem entre letra e espírito. Não se trata de uma passagem automática e espontânea;
antes, é preciso transcender a letra: «de facto, a Palavra do próprio Deus nunca se apresenta na
simples literalidade do texto. Para alcançá-la, é preciso transcender a literalidade num processo de
compreensão, que se deixa guiar pelo movimento interior do conjunto e, portanto, deve tornar-se
também um processo de vida».[125] Descobrimos assim o motivo por que um autêntico processo
interpretativo nunca é apenas intelectual, mas também vital, que requer o pleno envolvimento na
vida eclesial enquanto vida «segundo o Espírito» (Gl 5, 16). Deste modo tornam-se mais claros os
critérios evidenciados pelo número 12 da Constituição dogmática Dei Verbum: a referida superação
não pode verificar-se no fragmento literário individual mas em relação com a totalidade da
Escritura. De facto, é uma única Palavra aquela para a qual somos chamados a transcender. Este
processo possui uma íntima dramaticidade, porque, no processo de superação, a passagem que
acontece em virtude do Espírito tem inevitavelmente a ver também com a liberdade de cada um. São
Paulo viveu plenamente na sua própria vida esta passagem. O que significa transcender a letra e a
sua compreensão unicamente a partir do conjunto, expressou-o ele de modo radical nesta frase: «A
letra mata, mas o Espírito vivifica» (2 Cor 3, 6). São Paulo descobre que «o Espírito libertador tem
um nome e que a liberdade tem, consequentemente, uma medida interior: “O Senhor é Espírito, e
onde está o Espírito do Senhor há liberdade” (2 Cor 3, 17). O Espírito libertador não é simplesmente
a própria ideia, a visão pessoal de quem interpreta. O Espírito é Cristo, e Cristo é o Senhor que nos
indica a estrada».[126] Sabemos como esta passagem foi dramática e simultaneamente libertadora em
Santo Agostinho; ele acreditou nas Escrituras, que antes se lhe apresentavam muito diversificadas
em si mesmas e às vezes indelicadas, precisamente por esta superação que aprendeu de Santo
Ambrósio mediante a interpretação tipológica, segundo a qual todo o Antigo Testamento é um
caminho para Jesus Cristo. Para Santo Agostinho, transcender a letra tornou credível a própria letra
e permitiu-lhe encontrar finalmente a resposta às profundas inquietações do seu espírito, sedento da
verdade.[127]

A unidade intrínseca da Bíblia

39. Na escola da grande tradição da Igreja, aprendemos na passagem da letra ao espírito a identificar
também a unidade de toda a Escritura, pois única é a Palavra de Deus que interpela a nossa vida,
chamando-a constantemente à conversão.[128] Continuam a ser para nós uma guia segura as
expressões de Hugo de São Víctor: «Toda a Escritura divina constitui um único livro e este único
livro é Cristo, fala de Cristo e encontra em Cristo a sua realização».[129] É certo que a Bíblia, vista
sob o aspecto puramente histórico ou literário, não é simplesmente um livro, mas uma colectânea de
textos literários, cuja redacção se estende por mais de um milénio e cujos diversos livros não são
facilmente reconhecíveis como partes duma unidade interior; antes, há tensões palpáveis entre eles.
Se isto já se verifica no interior da Bíblia de Israel, que nós, cristãos, chamamos Antigo Testamento,
muito mais quando nós, como cristãos, ligamos o Novo Testamento e os seus escritos – como se
fosse a chave hermenêutica – com a Bíblia de Israel interpretando-a como caminho para Cristo. No
Novo Testamento, aparece menos a expressão «a Escritura» (cf. Rm 4, 3; 1 Pd 1, 6), do que «as
Escrituras» (cf. Mt 21, 43; Jo 5, 39; Rm 1, 2; 2 Pd 3, 16), que porém, no seu conjunto, são depois
consideradas como a única Palavra de Deus dirigida a nós.[130] Por isso se vê claramente como é a
125
Bento XVI, Discurso aos homens de cultura no «Collège des Bernardins» de Paris (12 de Setembro de 2008): AAS 100 (2008),
726.
126
Ibid.: o.c., 726.
127
Cf. Bento XVI, Audiência Geral (9 de Janeiro de 2008): Insegnamenti IV/1 (2008), 41-45.
128
Cf. Propositio 29.
129
De arca Noe, 2, 8: PL 176, 642 C-D.
130
Cf. Bento XVI, Discurso aos homens de cultura no «Collège des Bernardins» de Paris (12 de Setembro de 2008): AAS 100
(2008), 725.
28
pessoa de Cristo que dá unidade a todas as «Escrituras» postas em relação com a única «Palavra».
Compreende-se assim a afirmação do número 12 da Constituição dogmática Dei Verbum, quando
indica a unidade interna de toda a Bíblia como critério decisivo para uma correcta hermenêutica da
fé.

A relação entre Antigo e Novo Testamento

40. Na perspectiva da unidade das Escrituras em Cristo, tanto os teólogos como os pastores
necessitam de estar conscientes das relações entre o Antigo e o Novo Testamento. Em primeiro
lugar, é evidente que o próprio Novo Testamento reconhece o Antigo Testamento como Palavra de
Deus e, por conseguinte, admite a autoridade das Sagradas Escrituras do povo judeu.[131]
Reconhece-as implicitamente, quando usa a mesma linguagem e frequentemente alude a trechos
destas Escrituras; reconhece-as explicitamente, porque cita muitas partes servindo-se delas para
argumentar. Uma argumentação baseada nos textos do Antigo Testamento reveste-se assim, no
Novo Testamento, de um valor decisivo, superior ao de raciocínios simplesmente humanos. No
quarto Evangelho, a este propósito Jesus declara que «a Escritura não pode ser anulada» (Jo 10, 35)
e São Paulo especifica de modo particular que a revelação do Antigo Testamento continua a valer
para nós, cristãos (cf. Rm 15, 4; 1 Cor 10, 11).[132] Além disso, afirmamos que «Jesus de Nazaré foi
um judeu e a Terra Santa é terra-mãe da Igreja»;[133] a raiz do cristianismo encontra-se no Antigo
Testamento e sempre se nutre desta raiz. Por isso a sã doutrina cristã sempre recusou qualquer forma
emergente de marcionismo, que tende de diversos modos a contrapor entre si o Antigo e o Novo
Testamento.[134]

Além disso, o próprio Novo Testamento se diz em conformidade com o Antigo e proclama que, no
mistério da vida, morte e ressurreição de Cristo, encontraram o seu perfeito cumprimento as
Escrituras Sagradas do povo judeu. Mas é preciso notar que o conceito de cumprimento das
Escrituras é complexo, porque comporta uma tríplice dimensão: um aspecto fundamental de
continuidade com a revelação do Antigo Testamento, um aspecto de ruptura e um aspecto de
cumprimento e superação. O mistério de Cristo está em continuidade de intenção com o culto
sacrificial do Antigo Testamento; mas realizou-se de um modo muito diferente, que corresponde a
muitos oráculos dos profetas, e alcançou assim uma perfeição nunca antes obtida. De facto, o Antigo
Testamento está cheio de tensões entre os seus aspectos institucionais e os seus aspectos proféticos.
O mistério pascal de Cristo está plenamente de acordo – embora de uma forma que era imprevisível
– com as profecias e o aspecto prefigurativo das Escrituras; mas apresenta evidentes aspectos de
descontinuidade relativamente às instituições do Antigo Testamento.

41. Estas considerações mostram assim a importância insubstituível do Antigo Testamento para os
cristãos, mas ao mesmo tempo evidenciam a originalidade da leitura cristológica. Desde os tempos
apostólicos e depois na Tradição viva, a Igreja deixou clara a unidade do plano divino nos dois
Testamentos graças à tipologia, que não tem carácter arbitrário mas é intrínseca aos acontecimentos
narrados pelo texto sagrado e, por conseguinte, diz respeito a toda a Escritura. A tipologia «descobre
nas obras de Deus, na Antiga Aliança, prefigurações do que o mesmo Deus realizou, na plenitude
dos tempos, na pessoa do seu Filho encarnado».[135] Por isso os cristãos lêem o Antigo Testamento à
luz de Cristo morto e ressuscitado. Se a leitura tipológica revela o conteúdo inesgotável do Antigo
131
Cf. Propositio 10; Pont. Comissão Bíblica, O povo judeu e as suas sagradas Escrituras na Bíblia cristã (24 de Maio de 2001),
3-5: Ench. Vat. 20, n. 748-755.
132
Cf. Catecismo da Igreja Católica, 121-122.
133
Propositio 52.
134
Cf. Pont. Comissão Bíblica, O povo judeu e as suas sagradas Escrituras na Bíblia cristã (24 de Maio de 2001), 19: Ench. Vat.
20, n. 799-801; Orígenes, Homilia sobre Números 9, 4: SC 415, 238-242.
135
Catecismo da Igreja Católica, 128.
29
Testamento relativamente ao Novo, não deve todavia fazer-nos esquecer que aquele mantém o seu
próprio valor de Revelação que Nosso Senhor veio reafirmar (cf. Mc 12, 29-31). Por isso «também o
Novo Testamento requer ser lido à luz do Antigo. A catequese cristã primitiva recorreu
constantemente a este método (cf. 1 Cor 5, 6-8; 10, 1-11)».[136] Por este motivo, os Padres sinodais
afirmaram que «a compreensão judaica da Bíblia pode ajudar a inteligência e o estudo das Escrituras
por parte dos cristãos».[137]

Assim se exprimia, com aguda sabedoria, Santo Agostinho sobre este tema: «O Novo Testamento
está oculto no Antigo e o Antigo está patente no Novo».[138] Deste modo, tanto em âmbito pastoral
como em âmbito académico, importa que seja colocada bem em evidência a relação íntima entre os
dois Testamentos, recordando com São Gregório Magno que aquilo que «o Antigo Testamento
prometeu, o Novo Testamento fê-lo ver; o que aquele anuncia de maneira oculta, este proclama
abertamente como presente. Por isso, o Antigo Testamento é profecia do Novo Testamento; e o
melhor comentário do Antigo Testamento é o Novo Testamento».[139]

As páginas «obscuras» da Bíblia

42. No contexto da relação entre Antigo e Novo Testamento, o Sínodo enfrentou também o caso de
páginas da Bíblia que às vezes se apresentam obscuras e difíceis por causa da violência e
imoralidade nelas referidas. Em relação a isto, deve-se ter presente antes de mais nada que a
revelação bíblica está profundamente radicada na história. Nela se vai progressivamente
manifestando o desígnio de Deus, actuando-se lentamente ao longo de etapas sucessivas, não
obstante a resistência dos homens. Deus escolhe um povo e, pacientemente, realiza a sua educação.
A revelação adapta-se ao nível cultural e moral de épocas antigas, referindo consequentemente
factos e usos como, por exemplo, manobras fraudulentas, intervenções violentas, extermínio de
populações, sem denunciar explicitamente a sua imoralidade. Isto explica-se a partir do contexto
histórico, mas pode surpreender o leitor moderno, sobretudo quando se esquecem tantos
comportamentos «obscuros» que os homens sempre tiveram ao longo dos séculos, inclusive nos
nossos dias. No Antigo Testamento, a pregação dos profetas ergue-se vigorosamente contra todo o
tipo de injustiça e de violência, colectiva ou individual, tornando-se assim o instrumento da
educação dada por Deus ao seu povo como preparação para o Evangelho. Seria, pois, errado não
considerar aqueles passos da Escritura que nos aparecem problemáticos. Entretanto deve-se ter
consciência de que a leitura destas páginas requer a aquisição de uma adequada competência,
através duma formação que leia os textos no seu contexto histórico-literário e na perspectiva cristã,
que tem como chave hermenêutica última «o Evangelho e o mandamento novo de Jesus Cristo
realizado no mistério pascal».[140] Por isso exorto os estudiosos e os pastores a ajudarem todos os
fiéis a abeirar-se também destas páginas por meio de uma leitura que leve a descobrir o seu
significado à luz do mistério de Cristo.

Cristãos e judeus, relativamente às Sagradas Escrituras

43. Depois de considerar a íntima relação que une o Novo Testamento ao Antigo, é espontâneo fixar
a atenção no vínculo peculiar que isso cria entre cristãos e judeus, um vínculo que não deveria
jamais ser esquecido. Aos judeus, o Papa João Paulo II declarou: sois «os nossos “irmãos

136
Ibid., 129.
137
Propositio 52.
138
Quaestiones in Heptateuchum, 2, 73: PL 34, 623.
139
Homiliae in Ezechielem, I, VI, 15: PL 76, 836 B.
140
Propositio 29.
30
predilectos” na fé de Abraão, nosso patriarca».[141] Por certo, estas afirmações não significam
ignorar as rupturas atestadas no Novo Testamento relativamente às instituições do Antigo
Testamento e menos ainda o cumprimento das Escrituras no mistério de Jesus Cristo, reconhecido
Messias e Filho de Deus. Mas esta diferença profunda e radical não implica de modo algum
hostilidade recíproca. Pelo contrário, o exemplo de São Paulo (cf. Rm 9–11) demonstra que «uma
atitude de respeito, estima e amor pelo povo judeu é a única atitude verdadeiramente cristã nesta
situação que, misteriosamente, faz parte do desígnio totalmente positivo de Deus».[142] De facto, o
Apóstolo afirma que os judeus, «quanto à escolha divina, são amados por causa dos Patriarcas, pois
os dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis» (Rm 11, 28-29).

Além disso, usa a bela imagem da oliveira para descrever as relações muito estreitas entre cristãos e
judeus: a Igreja dos gentios é como um rebento de oliveira brava enxertado na oliveira boa que é o
povo da Aliança (cf. Rm 11, 17-24). Alimentamo-nos, pois, das mesmas raízes espirituais.
Encontramo-nos como irmãos; irmãos que em certos momentos da sua história tiveram um
relacionamento tenso, mas agora estão firmemente comprometidos na construção de pontes de
amizade duradoura.[143] Como disse o Papa João Paulo II noutra ocasião: «Temos muito em comum.
Juntos podemos fazer muito pela paz, pela justiça e por um mundo mais fraterno e mais humano».
[144]

Desejo afirmar uma vez mais quão precioso é para a Igreja o diálogo com os judeus. É bom que,
onde isto se apresentar como oportuno, se criem possibilidades mesmo públicas de encontro e
diálogo, que favoreçam o crescimento do conhecimento mútuo, da estima recíproca e da
colaboração inclusive no próprio estudo das Sagradas Escrituras.

A interpretação fundamentalista da Sagrada Escritura

44. A atenção que quisemos dar até agora ao tema da hermenêutica bíblica, nos seus diversos
aspectos, permite-nos abordar o tema – muitas vezes aflorado no debate sinodal – da interpretação
fundamentalista da Sagrada Escritura.[145] Sobre este tema, a Pontifícia Comissão Bíblica, no
documento A interpretação da Bíblia na Igreja, formulou indicações importantes. Neste contexto,
desejo chamar a atenção sobretudo para aquelas leituras que não respeitam o texto sagrado na sua
natureza autêntica, promovendo interpretações subjectivistas e arbitrárias. Na realidade, o
«literalismo» propugnado pela leitura fundamentalista constitui uma traição tanto do sentido literal
como do espiritual, abrindo caminho a instrumentalizações de variada natureza, difundindo por
exemplo interpretações anti-eclesiais das próprias Escrituras. O aspecto problemático da «leitura
fundamentalista é que, recusando ter em conta o carácter histórico da revelação bíblica, torna-se
incapaz de aceitar plenamente a verdade da própria Encarnação. O fundamentalismo evita a íntima
ligação do divino e do humano nas relações com Deus. (…) Por este motivo, tende a tratar o texto
bíblico como se fosse ditado palavra por palavra pelo Espírito e não chega a reconhecer que a
Palavra de Deus foi formulada numa linguagem e numa fraseologia condicionadas por uma dada
época».[146] Ao contrário, o cristianismo divisa nas palavras a Palavra, o próprio Logos, que estende
o seu mistério através de tal multiplicidade e da realidade de uma história humana.[147] A verdadeira
resposta a uma leitura fundamentalista é «a leitura crente da Sagrada Escritura, praticada desde a
141
João Paulo II, Mensagem ao Rabino-Chefe de Roma (22 de Maio de 2004): Insegnamenti 27/1 (2004), 655.
142
Pont. Comissão Bíblica, O povo judeu e as suas sagradas Escrituras na Bíblia cristã (24 de Maio de 2001), 87: Ench. Vat. 20,
n. 1150.
143
Cf. Bento XVI, Discurso de despedida no Aeroporto Ben Gurion de Telavive (15 de Maio de 2009): Insegnamenti V/1 (2009),
847-849.
144
João Paulo II, Discurso aos Rabinos-Chefes de Israel (23 de Março de 2000): Insegnamenti 23/1 (2000), 434.
145
Cf. Propositiones 46 e 47.
146
Pont. Comissão Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993), I, F: Ench. Vat. 13, n. 2974.
31
antiguidade na Tradição da Igreja. [Tal leitura] procura a verdade salvífica para a vida do indivíduo
fiel e para a Igreja. Esta leitura reconhece o valor histórico da tradição bíblica. Precisamente por este
valor de testemunho histórico é que ela quer descobrir o significado vivo das Sagradas Escrituras
destinadas também à vida do fiel de hoje»,[148] sem ignorar, portanto, a mediação humana do texto
inspirado e os seus géneros literários.

Diálogo entre Pastores, teólogos e exegetas

45. A autêntica hermenêutica da fé acarreta algumas consequências importantes no âmbito da


actividade pastoral da Igreja. Precisamente a este respeito, os Padres sinodais recomendaram, por
exemplo, um relacionamento mais assíduo entre Pastores, exegetas e teólogos. É bom que as
Conferências Episcopais favoreçam estes encontros com o «fim de promover uma maior comunhão
no serviço da Palavra de Deus».[149] Tal cooperação ajudará a todos a realizarem melhor o próprio
trabalho em benefício da Igreja inteira. De facto, situar-se no horizonte do trabalho pastoral quer
dizer, mesmo para os estudiosos, olhar o texto sagrado na sua natureza de comunicação que o
Senhor faz aos homens para a salvação. Portanto, como afirmou a Constituição dogmática Dei
Verbum, «é preciso que os exegetas católicos e demais estudiosos da sagrada teologia trabalhem em
íntima colaboração de esforços, para que, sob a vigilância do sagrado magistério, lançando mão de
meios aptos, estudem e expliquem as divinas Letras, de modo que o maior número possível de
ministros da Palavra de Deus possa oferecer com fruto ao Povo de Deus o alimento das Escrituras,
que ilumine o espírito, robusteça as vontades e inflame os corações dos homens no amor de Deus».
[150]

Bíblia e ecumenismo

46. Na certeza de que a Igreja tem o seu fundamento em Cristo, Verbo de Deus feito carne, o Sínodo
quis sublinhar a centralidade dos estudos bíblicos no diálogo ecuménico, que visa a plena expressão
da unidade de todos os crentes em Cristo.[151] De facto, na própria Escritura, encontramos a
comovente súplica de Jesus ao Pai pelos seus discípulos para que sejam um só a fim de que o mundo
creia (cf. Jo 17, 21). Tudo isto nos fortalece na convicção de que escutar e meditar juntos as
Escrituras nos faz viver uma comunhão real, embora ainda não plena;[152] pois «a escuta comum das
Escrituras impele ao diálogo da caridade e faz crescer o da verdade».[153] De facto, ouvir juntos a
Palavra de Deus, praticar a lectio divina da Bíblia, deixar-se surpreender pela novidade que nunca
envelhece e jamais se esgota da Palavra de Deus, superar a nossa surdez àquelas palavras que não
estão de acordo com as nossas opiniões ou preconceitos, escutar e estudar na comunhão dos fiéis de
todos os tempos: tudo isto constitui um caminho a percorrer para alcançar a unidade da fé, como
resposta à escuta da Palavra.[154] Verdadeiramente esclarecedoras eram estas palavras do Concílio
Vaticano II: «No próprio diálogo [ecuménico], a Sagrada Escritura é um exímio instrumento da
poderosa mão de Deus para a consecução daquela unidade que o Salvador oferece a todos os
homens».[155] Por isso, é bom incrementar o estudo, o diálogo e as celebrações ecuménicas da
147
Cf. Bento XVI, Discurso aos homens de cultura no «Collège des Bernardins» de Paris (12 de Setembro de 2008): AAS 100
(2008), 726.
148
Propositio 46.
149
Propositio 28.
150
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 23.
151
Em todo o caso não se esqueça que, relativamente aos chamados Livros Deuterocanónicos do Antigo Testamento e à sua
inspiração, os católicos e os ortodoxos não possuem exactamente o mesmo cânon bíblico que os anglicanos e os protestantes.
152
Cf. Relatio post disceptationem, 36.
153
Propositio 36.
154
Cf. Bento XVI, Discurso no XI Conselho Ordinário da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos (25 de Janeiro de 2007): AAS 99
(2007), 85-86.
155
Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio, 21.
32
Palavra de Deus, no respeito das regras vigentes e das diversas tradições.[156] Estas celebrações são
úteis à causa ecuménica e, se vividas no seu verdadeiro significado, constituem momentos intensos
de autêntica oração nos quais se pede a Deus para apressar o suspirado dia em que será possível
abeirar-nos todos da mesma mesa e beber do único cálice. Entretanto, na justa e louvável promoção
destes momentos, faça-se de modo que os mesmos não sejam propostos aos fiéis em substituição da
participação na Santa Missa nos dias de preceito.

Neste trabalho de estudo e de oração, reconhecemos com serenidade também os aspectos que
requerem ser aprofundados e que nos mantêm ainda distantes, como, por exemplo, a compreensão
do sujeito da interpretação com autoridade na Igreja e o papel decisivo do Magistério.[157]

Além disso queria sublinhar o que os Padres sinodais disseram da importância que têm, neste
trabalho ecuménico, as traduções da Bíblia nas diversas línguas. De facto, sabemos que traduzir um
texto não é trabalho meramente mecânico, mas faz parte em certo sentido do trabalho interpretativo.
A este respeito, o Venerável João Paulo II afirmou: «Quem recorda como influíram nas divisões,
especialmente no Ocidente, os debates em torno da Escritura, pode compreender quanto seja notável
o passo em frente representado por tais traduções comuns».[158] Por isso, a promoção das traduções
comuns da Bíblia faz parte do trabalho ecuménico. Desejo aqui agradecer a todos os que estão
comprometidos nesta importante tarefa e encorajá-los a continuarem na sua obra.

Consequências sobre a organização dos estudos teológicos

47. Outra consequência que deriva de uma adequada hermenêutica da fé diz respeito à necessidade
de mostrar as suas implicações na formação exegética e teológica, particularmente dos candidatos ao
sacerdócio. Faça-se com que o estudo da Sagrada Escritura seja verdadeiramente a alma da teologia,
enquanto se reconhece nela a Palavra que Deus hoje dirige ao mundo, à Igreja e a cada um
pessoalmente. É importante que os critérios indicados pelo número 12 da Constituição dogmática
Dei Verbum sejam efectivamente tomados em consideração e se tornem objecto de aprofundamento.
Evite-se cultivar uma noção de pesquisa científica, que se considera neutral face à Escritura. Por
isso, juntamente com o estudo das línguas próprias em que foi escrita a Bíblia e dos métodos
interpretativos adequados, é necessário que os estudantes tenham uma profunda vida espiritual, para
se aperceberem de que só é possível compreender a Escritura se a viverem.

Nesta perspectiva, recomendo que o estudo da Palavra de Deus, transmitida e escrita, se verifique
sempre em profundo espírito eclesial, tendo em devida conta, na formação académica, as
intervenções sobre estas temáticas feitas pelo Magistério, o qual «não está acima da palavra de
Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato
divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe
fielmente».[159] Portanto tenha-se o cuidado de que os estudos se realizem reconhecendo que «a
sagrada Tradição, a sagrada Escritura e o magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo desígnio de
Deus, de tal maneira se unem e associam que um sem os outros não se mantém».160] Desejo pois
que, segundo a doutrina do Concílio Vaticano II, o estudo da Sagrada Escritura, lida na comunhão
da Igreja universal, seja realmente como que a alma do estudo teológico.[161]

Os Santos e a interpretação da Escritura


156
Cf. Propositio 36.
157
Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 10.
158
Carta enc. Ut unum sint (25 de Maio de 1995), 44: AAS 87 (1995), 947.
159
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 10.
160
Ibid., 10.
161
Cf. ibid., 24.
33
48. A interpretação da Sagrada Escritura ficaria incompleta se não se ouvisse também quem viveu
verdadeiramente a Palavra de Deus, ou seja, os Santos.[162] De facto, «viva lectio est vita
bonorum».[163] Realmente a interpretação mais profunda da Escritura provém precisamente daqueles
que se deixaram plasmar pela Palavra de Deus, através da sua escuta, leitura e meditação assídua.

Certamente não é por acaso que as grandes espiritualidades, que marcaram a história da Igreja,
nasceram de uma explícita referência à Escritura. Penso, por exemplo, em Santo Antão Abade, que
se decide ao ouvir esta palavra de Cristo: «Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que possuíres, dá
o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no céus; depois, vem e segue-Me» (Mt 19, 21).[164]
Igualmente sugestivo é São Basílio Magno, quando, na sua obra Moralia, se interroga: «O que é
próprio da fé? Certeza plena e segura da verdade das palavras inspiradas por Deus. (…) O que é
próprio do fiel? Com tal certeza plena, conformar-se com o significado das palavras da Escritura,
sem ousar tirar nem acrescentar seja o que for».[165] São Bento, na sua Regra, remete para a
Escritura como «norma rectíssima para a vida do homem».[166] São Francisco de Assis – escreve
Tomás de Celano – «ao ouvir que os discípulos de Cristo não devem possuir ouro, nem prata, nem
dinheiro, não devem trazer alforge, nem pão, nem cajado para o caminho, não devem ter vários
pares de calçado, nem duas túnicas, (…) logo exclamou, transbordando de Espírito Santo: Com todo
o coração isto quero, isto peço, isto anseio realizar!».[167] E Santa Clara de Assis reproduz
plenamente a experiência de São Francisco: «A forma de vida da Ordem das Irmãs pobres (…) é
esta: observar o santo Evangelho do Senhor nosso Jesus Cristo».[168] Por sua vez, São Domingos de
Gusmão «em toda a parte se manifestava como um homem evangélico, tanto nas palavras como nas
obras»,[169] e tais queria que fossem também os seus padres pregadores: «homens evangélicos».[170]
Santa Teresa de Ávila, nos seus escritos, recorre continuamente a imagens bíblicas para explicar a
sua experiência mística, e lembra que o próprio Jesus lhe manifesta que «todo o mal do mundo
deriva de não se conhecer claramente a verdade da Sagrada Escritura».[171] Santa Teresa do Menino
Jesus encontra o Amor como sua vocação pessoal, quando perscruta as Escrituras, em particular os
capítulos 12 e 13 da Primeira Carta aos Coríntios;[172] e a mesma Santa assim nos descreve o
fascínio das Escrituras: «Apenas lanço o olhar sobre o Evangelho, imediatamente respiro os
perfumes da vida de Jesus e sei para onde correr».[173] Cada Santo constitui uma espécie de raio de
luz que brota da Palavra de Deus: assim o vemos também em Santo Inácio de Loyola na sua busca
da verdade e no discernimento espiritual, em São João Bosco na sua paixão pela educação dos
jovens, em São João Maria Vianney na sua consciência da grandeza do sacerdócio como dom e
dever; em São Pio de Pietrelcina no seu ser instrumento da misericórdia divina; em São Josemaria
Escrivá na sua pregação sobre a vocação universal à santidade; na Beata Teresa de Calcutá
missionária da caridade de Deus pelos últimos; e nos mártires do nazismo e do comunismo
representados, os primeiros, por Santa Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein), monja carmelita, e os
segundos pelo Beato Aloísio Stepinac, Cardeal Arcebispo de Zagrábia.

162
Cf. Propositio 22.
163
São Gregório Magno, Moralia in Job 24, 8, 16: PL 76, 295.
164
Cf. Santo Atanásio, Vita Antonii, II: PL 73, 127.
165
Moralia, Regula 80, 22: PG 31, 867.
166
Regra 73, 3: SC 182, 672.
167
Tomás de Celano, Vita prima Sancti Francisci, IX, 22: Fontes franciscani, 356.
168
Regra I, 1-2: Fontes franciscani, 2750.
169
Beato Jordão da Saxónia, Libellus de principiis Ordinis Praedicatorum, 104: Monumenta Fratrum Praedicatorum Historica,
16 (Roma 1935), p. 75.
170
Ordem dos Padres Pregadores, Primeiras Constituições ou Costumes, II, 31.
171
Vida 40, 1.
172
Cf. História de uma alma, Manuscrito B, 3vº.
173
Ibid., Manuscrito C, 35vº.
34
49. Assim a santidade relacionada com a Palavra de Deus inscreve-se de certo modo na tradição
profética, na qual a Palavra de Deus se serve da própria vida do profeta. Neste sentido, a santidade
na Igreja representa uma hermenêutica da Escritura da qual ninguém pode prescindir. O Espírito
Santo que inspirou os autores sagrados é o mesmo que anima os Santos a darem a vida pelo
Evangelho. Entrar na sua escola constitui um caminho seguro para efectuar uma hermenêutica viva e
eficaz da Palavra de Deus.

Tivemos um testemunho directo desta ligação entre Palavra de Deus e santidade durante a XII
Assembleia do Sínodo quando, a 12 de Outubro na Praça de São Pedro, se realizou a canonização de
quatro novos Santos: o sacerdote Caetano Errico, fundador da Congregação dos Missionários dos
Sagrados Corações de Jesus e de Maria; a Irmã Maria Bernarda Bütler, nascida na Suíça e
missionária no Equador e na Colômbia; a Irmã Afonsa da Imaculada Conceição, primeira santa
canonizada nascida na Índia; a jovem leiga equatoriana Narcisa de Jesus Martillo Morán. Com a sua
vida, deram testemunho ao mundo e à Igreja da perene fecundidade do Evangelho de Cristo.
Pedimos ao Senhor que, por intercessão destes Santos canonizados precisamente nos dias da
assembleia sinodal sobre a Palavra de Deus, a nossa vida seja aquele «terreno bom» onde o
Semeador divino possa semear a Palavra para que produza em nós frutos de santidade, a «trinta,
sessenta, e cem por um» (Mc 4, 20).

II PARTE

VERBUM IN ECCLESIA

«A todos os que O receberam, deu-lhes o poder


de se tornarem filhos de Deus» (Jo 1, 12)

A palavra de Deus e a Igreja

A Igreja acolhe a Palavra

50. O Senhor pronuncia a sua Palavra para que seja acolhida por aqueles que foram criados
precisamente «por meio» do Verbo. «Veio ao que era Seu» (Jo 1, 11): desde as origens, a Palavra
35
tem a ver connosco e a criação foi desejada numa relação de familiaridade com a vida divina. O
Prólogo do quarto Evangelho apresenta-nos também a rejeição da Palavra divina por parte dos
«Seus» que «não O receberam» (Jo 1, 11). Não recebê-Lo quer dizer não ouvir a sua voz, não se
configurar ao Logos. Mas, quando o homem, apesar de frágil e pecador, se abre sinceramente ao
encontro com Cristo, começa uma transformação radical: «A todos os que O receberam, (…) deu-
lhes o poder de se tornarem filhos de Deus» (Jo 1, 12). Receber o Verbo significa deixar-se plasmar
por Ele, para se tornar, pelo poder do Espírito Santo, conforme a Cristo, ao «Filho Único que vem
do Pai» (Jo 1, 14). É o início de uma nova criação: nasce a criatura nova, um povo novo. Aqueles
que crêem, ou seja, aqueles que vivem a obediência da fé «nasceram de Deus» (Jo 1, 13), são feitos
participantes da vida divina: filhos no Filho (cf. Gl 4, 5-6; Rm 8, 14-17). Santo Agostinho,
comentando este trecho do Evangelho de João, afirma de modo sugestivo: «Por meio do Verbo foste
feito, mas é necessário que por meio do Verbo sejas refeito».[174] Vemos esboçar-se aqui o rosto da
Igreja como realidade que se define pelo acolhimento do Verbo de Deus, que, encarnando, colocou
a sua tenda entre nós (cf. Jo 1, 14). Esta morada de Deus entre os homens – a shekinah (cf. Ex 26,
1) –, prefigurada no Antigo Testamento, realiza-se agora com a presença definitiva de Deus no meio
dos homens em Cristo.

Contemporaneidade de Cristo na vida da Igreja

51. A relação entre Cristo, Palavra do Pai, e a Igreja não pode ser compreendida em termos de um
acontecimento simplesmente passado, mas trata-se de uma relação vital na qual cada fiel,
pessoalmente, é chamado a entrar. Realmente, falamos da Palavra de Deus que está hoje presente
connosco: «Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo» (Mt 28, 20). Como afirmou o Papa
João Paulo II, «a contemporaneidade de Cristo com o homem de cada época realiza-se no seu corpo,
que é a Igreja. Por esta razão, o Senhor prometeu aos seus discípulos o Espírito Santo, que lhes
haveria de “lembrar” e fazer compreender os seus mandamentos (cf. Jo 14, 26) e seria o princípio
fontal de uma nova vida no mundo (cf. Jo 3, 5-8; Rm 8, 1-13)».[175] A Constituição dogmática Dei
Verbum expressa este mistério com os termos bíblicos de um diálogo nupcial: «Deus, que outrora
falou, dialoga sem interrupção com a esposa do seu amado Filho; e o Espírito Santo – por quem
ressoa a voz do Evangelho na Igreja e, pela Igreja, no mundo – introduz os crentes na verdade plena
e faz com que a palavra de Cristo neles habite em toda a sua riqueza (cf. Cl 3, 16)».[176]

Mestra de escuta, a Esposa de Cristo repete, com fé, também hoje: «Falai, Senhor, que a vossa Igreja
Vos escuta».[177] Por isso, a Constituição dogmática Dei Verbum começa com estes termos: «O
sagrado Concílio, ouvindo religiosamente a Palavra de Deus e proclamando-a com confiança…».
[178] Com efeito, trata-se de uma definição dinâmica da vida da Igreja: «São palavras com as quais o
Concílio indica um aspecto qualificante da Igreja: esta é uma comunidade que escuta e anuncia a
Palavra de Deus. A Igreja não vive de si mesma, mas do Evangelho; e do Evangelho tira, sem
cessar, orientação para o seu caminho. Temos aqui uma advertência que cada cristão deve acolher e
aplicar a si mesmo: só quem se coloca primeiro à escuta da Palavra é que pode depois tornar-se seu
anunciador».[179] Na Palavra de Deus proclamada e ouvida e nos Sacramentos, Jesus hoje, aqui e
agora, diz a cada um: «Eu sou teu, dou-Me a ti», para que o homem O possa acolher e responder-
Lhe dizendo por sua vez: «Eu sou teu».[180] Assim a Igreja apresenta-se como o âmbito onde
174
In Iohannis Evangelium Tractatus, I, 12: PL 35, 1385.
175
Carta enc. Veritatis splendor (6 de Agosto de 1993), 25: AAS 85 (1993), 1153.
176
N. 8.
177
Relatio post disceptationem, 11.
178
N. 1.
179
Bento XVI, Discurso no Congresso Internacional «A Sagrada Escritura na vida da Igreja» (16 de Setembro de 2005): AAS 97
(2005), 956.
180
Cf. Relatio post disceptationem, 10.
36
podemos, por graça, experimentar o que diz o Prólogo de João: «A todos os que O receberam, deu-
lhes o poder de se tornarem filhos de Deus» (Jo 1, 12).

Liturgia, lugar privilegiado da Palavra de Deus

A Palavra de Deus na sagrada Liturgia

52. Considerando a Igreja como «casa da Palavra»,[181] deve-se antes de tudo dar atenção à Liturgia
sagrada. Esta constitui, efectivamente, o âmbito privilegiado onde Deus nos fala no momento
presente da nossa vida: fala hoje ao seu povo, que escuta e responde. Cada acção litúrgica está, por
sua natureza, impregnada da Sagrada Escritura. Como afirma a Constituição Sacrosanctum
Concilium, «é enorme a importância da Sagrada Escritura na celebração da Liturgia. Porque é a ela
que se vão buscar as leituras que se explicam na homilia e os salmos para cantar; com o seu espírito
e da sua inspiração nasceram as preces, as orações e os hinos litúrgicos; dela tiram a sua capacidade
de significação as acções e os sinais».[182] Mais ainda, deve-se afirmar que o próprio Cristo «está
presente na sua palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura».[183] Com
efeito, «a celebração litúrgica torna-se uma contínua, plena e eficaz proclamação da Palavra de
Deus. Por isso, constantemente anunciada na liturgia, a Palavra de Deus permanece viva e eficaz
pela força do Espírito Santo, e manifesta aquele amor operante do Pai que não cessa jamais de agir
em favor de todos os homens».[184] De facto, a Igreja sempre mostrou ter consciência de que, na
acção litúrgica, a Palavra de Deus é acompanhada pela acção íntima do Espírito Santo que a torna
operante no coração dos fiéis. Na realidade, graças ao Paráclito é que «a Palavra de Deus se torna
fundamento da acção litúrgica, norma e sustentáculo da vida inteira. A acção do próprio Espírito
Santo (…) sugere a cada um, no íntimo do coração, tudo aquilo que, na proclamação da Palavra de
Deus, é dito para a assembleia inteira dos fiéis e, enquanto reforça a unidade de todos, favorece
também a diversidade dos carismas e valoriza a acção multiforme».[185]

Por isso, para a compreensão da Palavra de Deus, é necessário entender e viver o valor essencial da
acção litúrgica. Em certo sentido, a hermenêutica da fé relativamente à Sagrada Escritura deve ter
sempre como ponto de referência a liturgia, onde a Palavra de Deus é celebrada como palavra actual
e viva: «A Igreja, na liturgia, segue fielmente o modo de ler e interpretar as Sagradas Escrituras
seguido pelo próprio Cristo, quando, a partir do “hoje” do seu evento, exorta a perscrutar todas as
Escrituras».[186]

Aqui se vê também a sábia pedagogia da Igreja que proclama e escuta a Sagrada Escritura seguindo
o ritmo do ano litúrgico. Vemos a Palavra de Deus distribuída ao longo do tempo, particularmente
na celebração eucarística e na Liturgia das Horas. No centro de tudo, refulge o Mistério Pascal, ao
qual se unem todos os mistérios de Cristo e da história da salvação actualizados sacramentalmente:
«Com esta recordação dos mistérios da Redenção, a Igreja oferece aos fiéis as riquezas das obras e
merecimentos do seu Senhor, a ponto de os tornar como que presentes a todo o tempo, para que os
fiéis, em contacto com eles, se encham de graça».[187] Por isso exorto os Pastores da Igreja e os
agentes pastorais a fazer com que todos os fiéis sejam educados para saborear o sentido profundo da
181
Mensagem final, III, 6.
182
Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 24.
183
Ibid., 7.
184
Ordenamento das Leituras da Missa, 4.
185
Ibid., 9.
186
  4, 16-21; 24, 25-35.44-49.
Ibid., 3; cf. Lc
187
Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 102.
37
Palavra de Deus que está distribuída ao longo do ano na liturgia, mostrando os mistérios
fundamentais da nossa fé. Também disto depende a correcta abordagem da Sagrada Escritura.

Sagrada Escritura e Sacramentos

53. Ocupando-se do tema do valor da liturgia para a compreensão da Palavra de Deus, o Sínodo dos
Bispos quis sublinhar também a relação entre a Sagrada Escritura e a acção sacramental. É muito
oportuno aprofundar o vínculo entre Palavra e Sacramento, tanto na acção pastoral da Igreja como
na investigação teológica.[188] Certamente, «a liturgia da Palavra é um elemento decisivo na
celebração de cada um dos sacramentos da Igreja»;[189] na prática pastoral, porém, nem sempre os
fiéis estão conscientes deste vínculo, vendo a unidade entre o gesto e a palavra. É «dever dos
sacerdotes e diáconos, sobretudo quando administram os sacramentos, evidenciar a unidade que
formam Palavra e Sacramento no ministério da Igreja».[190] De facto, na relação entre Palavra e
gesto sacramental, mostra-se de forma litúrgica o agir próprio de Deus na história, por meio do
carácter performativo da Palavra. Com efeito, na história da salvação, não há separação entre o que
Deus diz e faz; a sua própria Palavra apresenta-se como viva e eficaz (cf. Hb 4, 12), como aliás
indica o significado do termo hebraico dabar. Do mesmo modo, na acção litúrgica, vemo-nos
colocados diante da sua Palavra que realiza aquilo que diz. Quando se educa o Povo de Deus para
descobrir o carácter performativo da Palavra de Deus na liturgia, ajudamo-lo também a perceber o
agir de Deus na história da salvação e na vida pessoal de cada um dos seus membros.

Palavra de Deus e Eucaristia

54. Quanto foi dito de modo geral a respeito da relação entre Palavra e Sacramentos, ganha maior
profundidade aplicado à celebração eucarística. Aliás a unidade íntima entre Palavra e Eucaristia
está radicada no testemunho da Escritura (cf. Jo 6; Lc   24), é atestada pelos Padres da Igreja e
191
reafirmada pelo Concílio Vaticano II.[ ] A este propósito, pensemos no grande discurso de Jesus
sobre o pão da vida na sinagoga de Cafarnaum (cf. Jo 6, 22-69), que tem como pano de fundo o
confronto entre Moisés e Jesus, entre aquele que falou face a face com Deus (cf. Ex 33, 11) e aquele
que revelou Deus (cf. Jo 1, 18). De facto, o discurso sobre o pão evoca o dom de Deus que Moisés
obteve para o seu povo com o maná no deserto, que na realidade é a Torah, a Palavra de Deus que
faz viver (cf. Sl 119; Pr 9, 5). Em Si mesmo, Jesus torna realidade esta figura antiga: «O pão de
Deus é o que desce do Céu e dá a vida ao mundo. (...) Eu sou o pão da vida» (Jo 6, 33.35). Aqui, «a
Lei tornou-se Pessoa. Encontrando Jesus, alimentamo-nos por assim dizer do próprio Deus vivo,
comemos verdadeiramente o pão do céu».[192] No discurso de Cafarnaum, aprofunda-se o Prólogo de
João: se neste o Logos de Deus Se faz carne, naquele a carne faz-Se «pão» dado para a vida do
mundo (cf. Jo 6, 51), aludindo assim ao dom que Jesus fará de Si mesmo no mistério da cruz,
confirmado pela afirmação acerca do seu sangue dado a «beber» (cf. Jo 6, 53). Assim, no mistério

188
Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 44-45: AAS 99 (2007), 139-141.
189
Pont. Comissão Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993), IV, C, 1: Ench. Vat. 13, n. 3123.
190
Ibid., III, B, 3: o.c., n. 3056.
191
Cf. Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 48.51.56; Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum,
21.26; Decr. sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, 6.15; Decr. sobre o ministério e a vida dos presbíteros
Presbyterorum ordinis, 18; Decr. sobre a renovação da vida religiosa Perfectae caritatis, 6. Na grande tradição da Igreja,
aparecem expressões significativas como: «Corpus Christi intelligitur etiam (…) Scriptura Dei – a Escritura de Deus também se
considera Corpo de Cristo»: Waltramus, De unitate Ecclesiae conservanda, 1, 14 (ed. W. Schwenkenbecher, Hannoverae 1883),
p. 33; «A carne do Senhor é verdadeiro alimento, e o seu sangue verdadeira bebida; tal é o verdadeiro bem que nos está reservado
na vida presente: nutrirmo-nos da sua carne e beber o seu sangue, não só na Eucaristia mas também na leitura da Sagrada
Escritura. De facto, verdadeiro alimento e verdadeira bebida é a Palavra de Deus que se absorve do conhecimento das Escrituras»:
São Jerónimo, Commentarius in Ecclesiasten, III: PL 23, 1092 A.
192
J. Ratzinger (Bento XVI), Jesus de Nazaré (Lisboa 2007), 336.
38
da Eucaristia, mostra-se qual é o verdadeiro maná, o verdadeiro pão do céu: é o Logos de Deus que
Se fez carne, que Se entregou a Si mesmo por nós no Mistério Pascal.

A narração de Lucas sobre os discípulos de Emaús permite-nos uma reflexão subsequente acerca do
  24, 13-35). Jesus foi ter com eles no dia
vínculo entre a escuta da Palavra e a fracção do pão (cf. Lc
depois do sábado, escutou as expressões da sua esperança desiludida e, acompanhando-os ao longo
do caminho, «explicou-lhes, em todas as Escrituras, tudo o que Lhe dizia respeito» (24, 27).
Juntamente com este viajante que inesperadamente se manifesta tão familiar às suas vidas, os dois
discípulos começam a ver as Escrituras de um novo modo. O que acontecera naqueles dias já não
aparece como um fracasso, mas cumprimento e novo início. Todavia, mesmo estas palavras não
parecem ainda suficientes para os dois discípulos. O Evangelho de Lucas diz que «abriram-se-lhes
os olhos e reconheceram-No» (24, 31) somente quando Jesus tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e
lho deu; antes, «os seus olhos estavam impedidos de O reconhecerem» (24, 16). A presença de
Jesus, primeiro com as palavras e depois com o gesto de partir o pão, tornou possível aos discípulos
reconhecê-Lo e apreciar de modo novo tudo o que tinham vivido anteriormente com Ele: «Não
estava o nosso coração a arder cá dentro, quando Ele nos explicava as Escrituras?» (24, 32).

55. Vê-se a partir destas narrações como a própria Escritura leva a descobrir o seu nexo indissolúvel
com a Eucaristia. «Por conseguinte, deve-se ter sempre presente que a Palavra de Deus, lida e
proclamada na liturgia pela Igreja, conduz, como se de alguma forma se tratasse da sua própria
finalidade, ao sacrifício da aliança e ao banquete da graça, ou seja, à Eucaristia».[193] Palavra e
Eucaristia correspondem-se tão intimamente que não podem ser compreendidas uma sem a outra: a
Palavra de Deus faz-Se carne, sacramentalmente, no evento eucarístico. A Eucaristia abre-nos à
inteligência da Sagrada Escritura, como esta, por sua vez, ilumina e explica o Mistério eucarístico.
Com efeito, sem o reconhecimento da presença real do Senhor na Eucaristia, permanece incompleta
a compreensão da Escritura. Por isso, «à palavra de Deus e ao mistério eucarístico a Igreja tributou e
quis e estabeleceu que, sempre e em todo o lugar, se tributasse a mesma veneração embora não o
mesmo culto. Movida pelo exemplo do seu fundador, nunca cessou de celebrar o mistério pascal,
reunindo-se num mesmo lugar para ler, “em todas as Escrituras, aquilo que Lhe dizia respeito” (Lc  
24, 27) e actualizar, com o memorial do Senhor e os sacramentos, a obra da salvação».[194]

A sacramentalidade da Palavra

56. Com o apelo ao carácter performativo da Palavra de Deus na acção sacramental e o


aprofundamento da relação entre Palavra e Eucaristia, somos introduzidos num tema significativo,
referido durante a Assembleia do Sínodo: a sacramentalidade da Palavra.[195] A este respeito é útil
recordar que o Papa João Paulo II já aludira «ao horizonte sacramental da Revelação e, de forma
particular, ao sinal eucarístico, onde a união indivisível entre a realidade e o respectivo significado
permite identificar a profundidade do mistério».[196] Daqui se compreende que, na origem da
sacramentalidade da Palavra de Deus, esteja precisamente o mistério da encarnação: «o Verbo fez-
Se carne» (Jo 1, 14), a realidade do mistério revelado oferece-se a nós na «carne» do Filho. A
Palavra de Deus torna-se perceptível à fé através do «sinal» de palavras e gestos humanos. A fé
reconhece o Verbo de Deus, acolhendo os gestos e as palavras com que Ele mesmo se nos apresenta.
Portanto, o horizonte sacramental da revelação indica a modalidade histórico-salvífica com que o
Verbo de Deus entra no tempo e no espaço, tornando-Se interlocutor do homem, chamado a acolher
na fé o seu dom.
193
Ordenamento das Leituras da Missa, 10.
194
Ibidem.
195
Cf. Propositio 7.
196
Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998), 13: AAS 91 (1999), 16.
39
Assim é possível compreender a sacramentalidade da Palavra através da analogia com a presença
real de Cristo sob as espécies do pão e do vinho consagrados.[197] Aproximando-nos do altar e
participando no banquete eucarístico, comungamos realmente o corpo e o sangue de Cristo. A
proclamação da Palavra de Deus na celebração comporta reconhecer que é o próprio Cristo que Se
faz presente e Se dirige a nós[198] para ser acolhido. Referindo-se à atitude que se deve adoptar tanto
em relação à Eucaristia como à Palavra de Deus, São Jerónimo afirma: «Lemos as Sagradas
Escrituras. Eu penso que o Evangelho é o Corpo de Cristo; penso que as santas Escrituras são o seu
ensinamento. E quando Ele fala em “comer a minha carne e beber o meu sangue” (Jo 6, 53),
embora estas palavras se possam entender do Mistério [eucarístico], todavia também a palavra da
Escritura, o ensinamento de Deus, é verdadeiramente o corpo de Cristo e o seu sangue. Quando
vamos receber o Mistério [eucarístico], se cair uma migalha sentimo-nos perdidos. E, quando
estamos a escutar a Palavra de Deus e nos é derramada nos ouvidos a Palavra de Deus que é carne
de Cristo e seu sangue, se nos distrairmos com outra coisa, não incorremos em grande perigo?».[199]
Realmente presente nas espécies do pão e do vinho, Cristo está presente, de modo análogo, também
na Palavra proclamada na liturgia. Por isso, aprofundar o sentido da sacramentalidade da Palavra de
Deus pode favorecer uma maior compreensão unitária do mistério da revelação em «acções e
palavras intimamente relacionadas»,[200] sendo de proveito à vida espiritual dos fiéis e à acção
pastoral da Igreja.

A Sagrada Escritura e o Leccionário

57. Ao acentuar o nexo entre Palavra e Eucaristia, o Sínodo quis justamente evocar também alguns
aspectos da celebração inerentes ao serviço da Palavra. Quero mencionar, em primeiro lugar, a
importância do Leccionário. A reforma desejada pelo Concílio Vaticano II[201] mostrou os seus
frutos, tornando mais rico o acesso à Sagrada Escritura que é oferecida abundantemente sobretudo
nas liturgias do domingo. A estrutura actual, além de apresentar com frequência os textos mais
importantes da Escritura, favorece a compreensão da unidade do plano divino, através da correlação
entre as leituras do Antigo e do Novo Testamento, «centrada em Cristo e no seu mistério pascal».
[202] Certas dificuldades que se sentem ao querer identificar as relações entre as leituras dos dois
Testamentos devem ser consideradas à luz da leitura canónica, ou seja, da unidade intrínseca da
Bíblia inteira. Onde se sentir a necessidade, os organismos competentes podem prover à publicação
de subsídios que tornem mais fácil compreender o nexo entre as leituras propostas pelo Leccionário,
que devem ser todas proclamadas na assembleia litúrgica, como previsto pela liturgia do dia.
Eventuais problemas e dificuldades sejam assinalados à Congregação para o Culto Divino e a
Disciplina dos Sacramentos.

Além disso, não devemos esquecer que o Leccionário actual do rito latino tem também um
significado ecuménico, visto que é utilizado e apreciado mesmo por confissões em comunhão ainda
não plena com a Igreja Católica. De modo diverso se apresenta o problema do Leccionário nas
liturgias das Igrejas Católicas Orientais, que o Sínodo pede para ser «examinado com
autoridade»[203] segundo a tradição própria e as competências das Igrejas sui iuris e tendo em conta
também o contexto ecuménico.

Proclamação da Palavra e ministério do leitorado


197
Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1373-1374.
198
Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 7.
199
In Psalmum 147: CCL 78, 337-338.
200
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 2.
201
Cf. Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 107-108.
202
Ordenamento das Leituras da Missa, 66.
203
Propositio 16.
40
58. Na assembleia sinodal sobre a Eucaristia, já se tinha pedido maior cuidado com a proclamação
da Palavra de Deus.[204] Como é sabido, enquanto o Evangelho é proclamado pelo sacerdote ou pelo
diácono, a primeira e a segunda leitura na tradição latina são proclamadas pelo leitor encarregado,
homem ou mulher. Quero aqui fazer-me eco dos Padres sinodais que sublinharam, também naquela
circunstância, a necessidade de cuidar, com uma adequada formação,[205] o exercício da função de
leitor na celebração litúrgica[206] e de modo particular o ministério do leitorado que enquanto tal, no
rito latino, é ministério laical. É necessário que os leitores encarregados de tal serviço, ainda que não
tenham recebido a instituição no mesmo, sejam verdadeiramente idóneos e preparados com
empenho. Tal preparação deve ser não apenas bíblica e litúrgica mas também técnica: «A formação
bíblica deve levar os leitores a saberem enquadrar as leituras no seu contexto e a identificarem o
centro do anúncio revelado à luz da fé. A formação litúrgica deve comunicar aos leitores uma certa
facilidade em perceber o sentido e a estrutura da liturgia da Palavra e os motivos da relação entre a
liturgia da Palavra e a liturgia eucarística. A preparação técnica deve tornar os leitores cada vez mais
idóneos na arte de lerem em público tanto com a simples voz natural, como com a ajuda dos
instrumentos modernos de amplificação sonora».[207]

A importância da homilia

59. «As tarefas e funções que competem a cada um relativamente à Palavra de Deus são diversas:
aos fiéis compete ouvi-la e meditá-la, enquanto a sua exposição cabe somente àqueles que, em
virtude da Ordem sacra, receberam a tarefa do magistério, ou àqueles a quem é confiado o exercício
deste ministério»,[208] ou seja, bispos, presbíteros e diáconos. Daqui se compreende a atenção
particular que, no Sínodo, foi dispensada ao tema da homilia. Já na Exortação apostólica pós-sinodal
Sacramentum caritatis, recordei como, «pensando na importância da palavra de Deus, surge a
necessidade de melhorar a qualidade da homilia; de facto, “esta constitui parte integrante da acção
litúrgica”, cuja função é favorecer uma compreensão e eficácia mais ampla da Palavra de Deus na
vida dos fiéis».[209] A homilia constitui uma actualização da mensagem da Sagrada Escritura, de tal
modo que os fiéis sejam levados a descobrir a presença e a eficácia da Palavra de Deus no momento
actual da sua vida. Aquela deve levar à compreensão do mistério que se celebra; convidar para a
missão, preparando a assembleia para a profissão de fé, a oração universal e a liturgia eucarística.
Consequentemente aqueles que, por ministério específico, estão incumbidos da pregação tenham
verdadeiramente a peito esta tarefa. Devem-se evitar tanto homilias genéricas e abstractas que
ocultam a simplicidade da Palavra de Deus, como inúteis divagações que ameaçam atrair a atenção
mais para o pregador do que para o coração da mensagem evangélica. Deve resultar claramente aos
fiéis que aquilo que o pregador tem a peito é mostrar Cristo, que deve estar no centro de cada
homilia. Por isso, é preciso que os pregadores tenham familiaridade e contacto assíduo com o texto
sagrado;[210] preparem-se para a homilia na meditação e na oração, a fim de pregarem com
convicção e paixão. A assembleia sinodal exortou a ter presente as seguintes perguntas: «O que
dizem as leituras proclamadas? O que dizem a mim pessoalmente? O que devo dizer à comunidade,
tendo em conta a sua situação concreta?».[211] O pregador deve deixar-se «interpelar primeiro pela
Palavra de Deus que anuncia»,[212] porque – como diz Santo Agostinho – «seguramente fica sem

204
Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 45: AAS 99 (2007), 140-141.
205
Cf. Propositio 14.
206
Cf. Código de Direito Canónico, cân. 230-§2; 204-§1.
207
Ordenamento das Leituras da Missa, 55.
208
Ibid., 8.
209
N. 46: AAS 99 (2007), 141.
210
Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 25.
211
Propositio 15.
212
Ibidem.
41
fruto aquele que prega exteriormente a Palavra de Deus sem a escutar no seu íntimo».[213] Cuide-se,
com atenção particular, a homilia dos domingos e solenidades; e mesmo durante a semana nas
Missas cum populo, quando possível, não se deixe de oferecer breves reflexões, apropriadas à
situação, para ajudar os fiéis a acolherem e tornarem fecunda a Palavra escutada.

Conveniência de um Directório homilético

60. Pregar de modo adequado referindo-se ao Leccionário é verdadeiramente uma arte que deve ser
cultivada. Por isso, dando continuidade à solicitação feita no Sínodo anterior,[214] peço às
autoridades competentes que, correlativamente ao Compêndio Eucarístico,[215] se pense também em
instrumentos e subsídios adequados para ajudar os ministros a desempenhar da melhor forma
possível a sua tarefa, como, por exemplo, um Directório sobre a homilia, de modo que os pregadores
possam encontrar nele uma ajuda útil a fim de se prepararem no exercício do ministério. E depois,
como nos lembra São Jerónimo, a pregação deve ser acompanhada pelo testemunho da própria vida:
«Que as tuas acções não desmintam as tuas palavras, para que não aconteça que, quando tu pregares
na igreja, alguém comente no seu íntimo: “Então porque é que tu não ages assim?” (…) No
sacerdote de Cristo, devem estar de acordo a mente e a palavra».[216]

Palavra de Deus, Reconciliação e Unção dos Doentes

61. Embora no centro da relação entre Palavra de Deus e Sacramentos esteja indubitavelmente a
Eucaristia, todavia é bom sublinhar a importância da Sagrada Escritura também nos outros
Sacramentos, particularmente nos Sacramentos de cura: a Reconciliação ou Penitência e a Unção
dos Doentes. Nestes Sacramentos, muitas vezes é negligenciada a referência à Sagrada Escritura,
quando, ao contrário, é necessário dar-lhe o espaço que lhe compete. De facto, nunca se deve
esquecer que «a Palavra de Deus é palavra de reconciliação, porque nela Deus reconcilia consigo
todas as coisas (cf. 2 Cor 5, 18-20; Ef 1, 10). O perdão misericordioso de Deus, encarnado em Jesus,
reabilita o pecador».[217] Pela Palavra de Deus, «o fiel é iluminado para poder conhecer os seus
pecados e é chamado à conversão e à confiança na misericórdia de Deus».[218] Para que se aprofunde
a força reconciliadora da Palavra de Deus, recomenda-se que o indivíduo penitente se prepare para a
confissão meditando um trecho apropriado da Sagrada Escritura e possa começar a confissão com a
leitura ou a escuta de uma advertência bíblica, como aliás está previsto no próprio ritual. Depois, ao
manifestar a sua contrição, é bom que o penitente utilize «uma oração composta de palavras da
Sagrada Escritura»,[219] prevista pelo ritual. Sempre que possível, seria bom que, em momentos
particulares do ano ou quando houver oportunidade, a confissão individual da multidão de penitentes
tenha lugar no âmbito de celebrações penitenciais, como previsto pelo ritual, no respeito das várias
tradições litúrgicas, para se poder dar amplo espaço à celebração da Palavra com o uso de leituras
apropriadas.

Passando ao sacramento da Unção dos Doentes, não se esqueça que «a força salutar da Palavra de
Deus é apelo vivo a uma conversão pessoal constante do próprio ouvinte».[220] A Sagrada Escritura
contém numerosas páginas de conforto, amparo e cura, que se devem à intervenção de Deus. Em
213
Sermo 179, 1: PL 38, 966.
214
Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 93: AAS 99 (2007), 177.
215
Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Compendium Eucharisticum (25 de Março de 2009), Cidade do
Vaticano 2009.
216
Epistula 52, 7: CSEL 54, 426-427.
217
Propositio 8.
218
Ritual da Penitência. Preliminares, 17.
219
Ibid., 19.
220
Propositio 8.
42
particular, recorde-se a atenção dada por Jesus aos doentes e como Ele mesmo, Verbo de Deus
encarnado, carregou as nossas dores e sofreu por amor do homem, dando assim sentido à doença e à
morte. É bom que, nas paróquias e sobretudo nos hospitais, se celebre – desde que as circunstâncias
o permitam – o Sacramento dos Doentes de forma comunitária. Em tais ocasiões, seja dado amplo
espaço à celebração da Palavra e ajudem-se os fiéis doentes a viver com fé a própria condição de
sofrimento, em união com o Sacrifício redentor de Cristo que nos liberta do mal.

Palavra de Deus e Liturgia das Horas

62. Entre as formas de oração que exaltam a Sagrada Escritura, conta-se, sem dúvida, a Liturgia das
Horas. Os Padres sinodais afirmaram que esta constitui «uma forma privilegiada de escuta da
Palavra de Deus, porque põe os fiéis em contacto com a Sagrada Escritura e com a Tradição viva da
Igreja».[221] Antes de mais nada, há que lembrar a profunda dignidade teológica e eclesial desta
oração. De facto, «na Liturgia das Horas, a Igreja exerce a função sacerdotal da sua Cabeça,
“oferecendo ininterruptamente (1 Ts 5, 17) a Deus o sacrifício de louvor, ou seja, o fruto dos lábios
que glorificam o seu nome (cf. Hb 13, 15)”. Esta oração é a “voz da Esposa a falar ao Esposo e
também a oração que o próprio Cristo, unido ao seu Corpo, eleva ao Pai”».[222] A este propósito, o
Concílio Vaticano II afirmara: «Todos os que rezam assim, cumprem, por um lado, a obrigação
própria da Igreja, e, por outro, participam na imensa honra da Esposa de Cristo, porque estão em
nome da Igreja, diante do trono de Deus, a louvar o Senhor».[223] Na Liturgia das Horas, enquanto
oração pública da Igreja, manifesta-se o ideal cristão de santificação do dia inteiro, ritmado pela
escuta da Palavra de Deus e pela oração dos Salmos, de modo que toda a actividade encontre o seu
ponto de referência no louvor prestado a Deus.

Aqueles que, em virtude do próprio estado de vida, são obrigados a rezar a Liturgia das Horas,
vivam fielmente tal compromisso em benefício de toda a Igreja. Os bispos, os sacerdotes e os
diáconos aspirantes ao sacerdócio, que receberam da Igreja o mandato de a celebrar, têm a obrigação
de rezar diariamente todas as Horas.[224] Relativamente à obrigatoriedade desta liturgia nas Igrejas
Orientais Católicas sui iuris, siga-se o que está indicado no direito próprio.[225] Além disso, encorajo
as comunidades de vida consagrada a serem exemplares na celebração da Liturgia das Horas, a fim
de poderem constituir um ponto de referência e inspiração para a vida espiritual e pastoral de toda a
Igreja.

O Sínodo exprimiu o desejo de uma maior difusão no Povo de Deus desta forma de oração,
especialmente a recitação de Laudes e Vésperas. Este incremento não deixará de fazer crescer nos
fiéis a familiaridade com a Palavra de Deus. Saliente-se também o valor da Liturgia das Horas
prevista para as Primeiras Vésperas do domingo e das solenidades, particularmente nas Igrejas
Orientais Católicas. Com tal finalidade, recomendo que, onde for possível, as paróquias e as
comunidades de vida religiosa favoreçam esta oração com a participação dos fiéis.

Palavra de Deus e Cerimonial das Bênçãos

63. No uso do Cerimonial das Bênçãos, preste-se atenção também ao espaço previsto para a
proclamação, a escuta e a explicação da Palavra de Deus, através de breves advertências. Com
efeito, o gesto da bênção, nos casos previstos pela Igreja e quando pedido pelos fiéis, não deve

221
Propositio 19.
222
Princípios e normas para a Liturgia das Horas, III, 15.
223
Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 85.
224
Cf. Código de Direito Canónico, cânones 276-§ 3; 1174-§ 1.
225
Cf. Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cânones 377; 473-§§ 1 e 2/1º; 538-§ 1; 881-§ 1.
43
aparecer isolado em si mesmo, mas relacionado, no grau que lhe é próprio, com a vida litúrgica do
Povo de Deus. Neste sentido, a bênção, como verdadeiro sinal sagrado, «adquire sentido e eficácia
da proclamação da Palavra de Deus».[226] Por isso, é importante aproveitar também estas
circunstâncias para suscitar nos fiéis fome e sede de toda a palavra que sai da boca de Deus (cf. Mt
4, 4).

Sugestões e propostas concretas para a animação litúrgica

64. Depois de ter lembrado alguns elementos fundamentais da relação entre Liturgia e Palavra de
Deus, quero agora assumir e valorizar algumas propostas e sugestões que os Padres sinodais
recomendaram para favorecer, no Povo de Deus, uma crescente familiaridade com a Palavra de
Deus no âmbito das acções litúrgicas ou de algum modo relacionadas com elas.

a) Celebrações da Palavra de Deus

65. Os Padres sinodais exortaram todos os Pastores a difundir, nas comunidades a eles confiadas, os
momentos de celebração da Palavra:[227] são ocasiões privilegiadas de encontro com o Senhor. Por
isso, tal prática não pode deixar de trazer grande proveito aos fiéis, e deve considerar-se um
elemento importante da pastoral litúrgica. Estas celebrações assumem particular relevância como
preparação para a Eucaristia dominical, de modo que os fiéis tenham possibilidade de penetrar
melhor na riqueza do Leccionário para meditar e rezar a Sagrada Escritura, sobretudo nos tempos
litúrgicos fortes do Advento e Natal, da Quaresma e Páscoa. Entretanto a celebração da Palavra de
Deus é vivamente recomendada nas comunidades onde não é possível, por causa da escassez de
sacerdotes, celebrar o Sacrifício Eucarístico nos dias festivos de preceito. Tendo em conta as
indicações já expressas na Exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum caritatis sobre as
assembleias dominicais à espera de sacerdote,[228] recomendo que sejam redigidos pelas
competentes autoridades directórios rituais, valorizando a experiência das Igrejas Particulares.
Assim, em tais situações, hão-de favorecer-se celebrações da Palavra que alimentem a fé dos fiéis,
mas evitando que as mesmas sejam confundidas com celebrações eucarísticas; «devem antes tornar-
se ocasiões privilegiadas de oração a Deus para que mande sacerdotes santos segundo o seu
Coração».[229]

Além disso, os Padres sinodais convidaram a celebrar a Palavra de Deus também por ocasião de
peregrinações, festas particulares, missões populares, retiros espirituais e dias especiais de
penitência, reparação e perdão. No que se refere às diversas formas de piedade popular, embora não
sejam actos litúrgicos nem se devam confundir com as celebrações litúrgicas, todavia é bom que se
inspirem nelas e sobretudo que dêem espaço adequado à proclamação e escuta da Palavra de Deus;
de facto, «a piedade popular encontrará nas palavras da Bíblia uma fonte inesgotável de inspiração,
modelos insuperáveis de oração e fecundas propostas de diversos temas».[230]

b) A Palavra e o silêncio

66. Várias intervenções dos Padres sinodais insistiram sobre o valor do silêncio para a recepção da
Palavra de Deus na vida dos fiéis.[231] De facto, a palavra pode ser pronunciada e ouvida apenas no
226
Ritual Romano, Cerimonial das Bênçãos. Preliminares gerais, 21.
227
Cf. Propositio 18; Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 35.
228
Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 75: AAS 99 (2007), 162-163.
229
Ibid., 75: o.c., 163.
230
Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Directório sobre Piedade Popular e Liturgia. Princípios e
Orientações (17 de Dezembro de 2001), 87: Ench. Vat. 20, n. 2461.
231
Cf. Propositio 14.
44
silêncio, exterior e interior. O nosso tempo não favorece o recolhimento e, às vezes, fica-se com a
impressão de ter medo de se separar, por um só momento, dos instrumentos de comunicação de
massa. Por isso, hoje é necessário educar o Povo de Deus para o valor do silêncio. Redescobrir a
centralidade da Palavra de Deus na vida da Igreja significa também redescobrir o sentido do
recolhimento e da tranquilidade interior. A grande tradição patrística ensina-nos que os mistérios de
Cristo estão ligados ao silêncio[232] e só nele é que a Palavra pode encontrar morada em nós, como
aconteceu em Maria, mulher indivisivelmente da Palavra e do silêncio. As nossas liturgias devem
facilitar esta escuta autêntica: Verbo crescente, verba deficiunt.[233]

Que este valor brilhe particularmente na Liturgia da Palavra, que «deve ser celebrada de modo a
favorecer a meditação».[234] O silêncio, quando previsto, deve ser considerado «como parte da
celebração».[235] Por isso, exorto os Pastores a estimularem os momentos de recolhimento, nos
quais, com a ajuda do Espírito Santo, a Palavra de Deus é acolhida no coração.

c) Proclamação solene da Palavra de Deus

67. Outra sugestão feita pelo Sínodo foi a de solenizar, sobretudo em ocorrências litúrgicas
relevantes, a proclamação da Palavra, especialmente do Evangelho, utilizando o Evangeliário,
conduzido processionalmente durante os ritos iniciais e depois levado ao ambão pelo diácono ou por
um sacerdote para a proclamação. Deste modo ajuda-se o Povo de Deus a reconhecer que «a leitura
do Evangelho constitui o ápice da própria liturgia da Palavra».[236] Seguindo as indicações contidas
no Ordenamento das Leituras da Missa, é bom valorizar a proclamação da Palavra de Deus com o
canto, particularmente o Evangelho, de modo especial em determinadas solenidades. A saudação, o
anúncio inicial: «Evangelho de Nosso Senhor…» e a exclamação final «Palavra da salvação», seria
bom proferi-los em canto para evidenciar a importância do que é lido.[237]

d) A Palavra de Deus no templo cristão

68. Para favorecer a escuta da Palavra de Deus, não se devem menosprezar os meios que possam
ajudar os fiéis a prestar maior atenção. Neste sentido, é necessário que, nos edifícios sagrados, nunca
se descuide a acústica, no respeito das normas litúrgicas e arquitectónicas. «Na construção das
igrejas, os Bispos, valendo-se da devida ajuda, procurem que sejam locais adequados à proclamação
da Palavra, à meditação e à celebração eucarística. Os espaços sagrados, mesmo fora da acção
litúrgica, revistam-se de eloquência, apresentando o mistério cristão relacionado com a Palavra de
Deus».[238]

Uma atenção especial seja dada ao ambão, enquanto lugar litúrgico donde é proclamada a Palavra de
Deus. Deve estar colocado em lugar bem visível, para onde se dirija espontaneamente a atenção dos
fiéis durante a liturgia da Palavra. É bom que seja fixo, esculturalmente em harmonia estética com o
altar, de modo a representar mesmo visivelmente o sentido teológico da dupla mesa da Palavra e
da Eucaristia. A partir do ambão, são proclamadas as leituras, o salmo responsorial e o Precónio
pascal; de lá podem ser feitas também a homilia e a leitura da oração dos fiéis.[239]
232
Cf. Santo Inácio de Antioquia, Ad Ephesios, XV, 2: Patres Apostolici (ed. F. X. Funk, Tubingae 1901), I, 224.
233
Cf. Santo Agostinho, Sermo 288, 5: PL 38, 1307; Sermo 120, 2: PL 38, 677.
234
Ordenamento Geral do Missal Romano, 56.
235
Ibid., 45; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 30.
236
Ordenamento das Leituras da Missa, 13.
237
Cf. ibid., 17.
238
Propositio 40.
239
Cf. Ordenamento Geral do Missal Romano, 309.
45
Além disso, os Padres sinodais sugerem que, nas igrejas, haja um local de honra onde se possa
colocar a Sagrada Escritura mesmo fora da celebração.[240] Realmente é bom que o livro onde está
contida a Palavra de Deus tenha dentro do templo cristão um lugar visível e de honra, mas sem tirar
a centralidade que compete ao Sacrário que contém o Santíssimo Sacramento.[241]

e) Exclusividade dos textos bíblicos na liturgia

69. O Sínodo reafirmou vivamente também aquilo que, aliás, já está estabelecido pela norma
litúrgica da Igreja,[242] isto é, que as leituras tiradas da Sagrada Escritura nunca sejam substituídas
por outros textos, por mais significativos que estes possam parecer do ponto de vista pastoral ou
espiritual: «Nenhum texto de espiritualidade ou de literatura pode atingir o valor e a riqueza contida
na Sagrada Escritura que é Palavra de Deus».[243] Trata-se de uma disposição antiga da Igreja que se
deve manter.[244] Face a alguns abusos, já o Papa João Paulo II lembrara a importância de nunca se
substituir a Sagrada Escritura por outras leituras.[245] Recorde-se que também o Salmo Responsorial
é Palavra de Deus, pela qual respondemos à voz do Senhor e por isso não deve ser substituído por
outros textos; entretanto é muito oportuno poder proclamá-lo de forma cantada.

f) Canto litúrgico biblicamente inspirado

70. No âmbito da valorização da Palavra de Deus durante a celebração litúrgica, tenha-se presente
também o canto nos momentos previstos pelo próprio rito, favorecendo o canto de clara inspiração
bíblica capaz de exprimir a beleza da Palavra divina por meio de um harmonioso acordo entre as
palavras e a música. Neste sentido, é bom valorizar aqueles cânticos que a tradição da Igreja nos
legou e que respeitam este critério; penso particularmente na importância do canto gregoriano.[246]

g) Particular atenção aos cegos e aos surdos

71. Neste contexto, queria também recordar que o Sínodo recomendou uma atenção particular
àqueles que, por causa da própria condição, sentem dificuldade em participar activamente na
liturgia, como por exemplo os cegos e os surdos. Na medida do possível, encorajo as comunidades
cristãs a providenciarem instrumentos adequados para ir ao encontro da dificuldade que padecem
estes irmãos e irmãs, para que lhes seja possível também estabelecer um contacto vivo com a
Palavra do Senhor.[247]

A palavra de Deus na vida eclesial

Encontrar a Palavra de Deus na Sagrada Escritura

72. Se é verdade que a liturgia constitui o lugar privilegiado para a proclamação, escuta e celebração
da Palavra de Deus, é igualmente verdade que este encontro deve ser preparado nos corações dos
fiéis e sobretudo por eles aprofundado e assimilado. De facto, a vida cristã caracteriza-se
240
Cf. Propositio 14.
241
Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 69: AAS 99 (2007), 157.
242
Cf. Ordenamento Geral do Missal Romano, 57.
243
Propositio 14.
244
Veja-se o cânon 36 do Sínodo de Hipona do ano de 393: DS 186.
245
Cf. João Paulo II, Carta ap. Vicesimus quintus annus (4 de Dezembro de 1988), 13: AAS 81 (1989), 910; Congr. para o Culto
Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Instr. sobre alguns aspectos que se devem observar e evitar em relação à Santíssima
Eucaristia Redemptionis sacramentum (25 de Março de 2004), 62: Ench. Vat. 22, n. 2248.
246
Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 116; Ordenamento Geral do Missal
Romano, 41.
247
Cf. Propositio 14.
46
essencialmente pelo encontro com Jesus Cristo que nos chama a segui-Lo. Por isso, o Sínodo dos
Bispos afirmou várias vezes a importância da pastoral nas comunidades cristãs como âmbito
apropriado onde percorrer um itinerário pessoal e comunitário relativo à Palavra de Deus, de modo
que esta esteja verdadeiramente no fundamento da vida espiritual. Juntamente com os Padres
sinodais, expresso o vivo desejo de que floresça «uma nova estação de maior amor pela Sagrada
Escritura da parte de todos os membros do Povo de Deus, de modo que, a partir da sua leitura orante
e fiel no tempo, se aprofunde a ligação com a própria pessoa de Jesus».[248]

Na história da Igreja, não faltam recomendações dos Santos sobre a necessidade de conhecer a
Escritura para crescer no amor de Cristo. Trata-se de um dado particularmente evidente nos Padres
da Igreja. São Jerónimo, grande «enamorado» da Palavra de Deus, interrogava-se: «Como seria
possível viver sem o conhecimento das Escrituras, se é por elas que se aprende a conhecer o próprio
Cristo, que é a vida dos crentes?».[249] Estava bem ciente de que a Bíblia é o instrumento «pelo qual
diariamente Deus fala aos crentes».[250] Eis os conselhos que ele dava a Leta, uma matrona romana,
para a educação da filha: «Assegura-te de que ela estude diariamente alguma passagem da Escritura.
(…) À oração faça seguir a leitura, e à leitura a oração. (…) Que em vez das jóias e dos vestidos de
seda, ame os Livros divinos».[251] Permanece válido para nós aquilo que São Jerónimo escrevia ao
sacerdote Nepociano: «Lê com muita frequência as Escrituras divinas; mais ainda, que as tuas mãos
nunca abandonem o Livro sagrado. Aprende nele o que deves ensinar».[252] Seguindo o exemplo
deste grande Santo que dedicou a sua vida ao estudo da Bíblia, tendo dado à Igreja a tradução latina
chamada Vulgata, e de todos os Santos que colocaram no centro da sua vida espiritual o encontro
com Cristo, renovemos o nosso compromisso de aprofundar a Palavra que Deus deu à Igreja;
poderemos assim tender para aquela «medida alta da vida cristã ordinária»,[253] desejada pelo Papa
João Paulo II no início do terceiro milénio cristão, que se alimenta constantemente na escuta da
Palavra de Deus.

73. A animação bíblica da pastoral

Nesta linha, o Sínodo convidou a um esforço pastoral particular para que a Palavra de Deus apareça
em lugar central na vida da Igreja, recomendando que «se incremente a “pastoral bíblica”, não em
justaposição com outras formas da pastoral mas como animação bíblica da pastoral inteira».[254]
Não se trata simplesmente de acrescentar qualquer encontro na paróquia ou na diocese, mas de
verificar que, nas actividades habituais das comunidades cristãs, nas paróquias, nas associações e
nos movimentos, se tenha realmente a peito o encontro pessoal com Cristo que Se comunica a nós
na sua Palavra. Dado que «a ignorância das Escrituras é a ignorância de Cristo»,[255] então podemos
esperar que a animação bíblica de toda a pastoral ordinária e extraordinária levará a um maior
conhecimento da Pessoa de Cristo, Revelador do Pai e plenitude da Revelação divina.

Por isso exorto os pastores e os fiéis a terem em conta a importância desta animação: será o modo
melhor também de enfrentar alguns problemas pastorais referidos durante a assembleia sinodal,
ligados por exemplo à proliferação de seitas, que difundem uma leitura deformada e
instrumentalizada da Sagrada Escritura. Quando não se formam os fiéis num conhecimento da Bíblia
conforme à fé da Igreja no sulco da sua Tradição viva, deixa-se efectivamente um vazio pastoral,
248
Propositio 9.
249
Epistula 30, 7: CSEL 54, 246.
250
Idem, Epistula 133, 13: CSEL 56, 260.
251
Idem, Epistula 107, 9.12: CSEL 55, 300.302.
252
Idem, Epistula 52, 7: CSEL 54, 426.
253
João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte (6 de Janeiro de 2001), 31: AAS 93 (2001), 287-288.
254
Propositio 30; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 24.
255
São Jerónimo, Commentariorum in Isaiam libri, Prol.: PL 24, 17B.
47
onde realidades como as seitas podem encontrar fácil terreno para lançar raízes. Por isso é
necessário prover também a uma preparação adequada dos sacerdotes e dos leigos, para poderem
instruir o Povo de Deus na genuína abordagem das Escrituras.

Além disso, como foi sublinhado durante os trabalhos sinodais, é bom que, na actividade pastoral, se
favoreça também a difusão de pequenas comunidades, «formadas por famílias ou radicadas nas
paróquias ou ainda ligadas aos diversos movimentos eclesiais e novas comunidades»,[256] nas quais
se promova a formação, a oração e o conhecimento da Bíblia segundo a fé da Igreja.

Dimensão bíblica da catequese

74. Um momento importante da animação pastoral da Igreja, onde se pode sapientemente descobrir
a centralidade da Palavra de Deus, é a catequese, que, nas suas diversas formas e fases, sempre deve
acompanhar o Povo de Deus. O encontro dos discípulos de Emaús com Jesus, descrito pelo
evangelista Lucas (cf. Lc  24, 13-35), representa em certo sentido o modelo de uma catequese em
  24, 27-28),
cujo centro está a «explicação das Escrituras», que somente Cristo é capaz de dar (cf. Lc
257
mostrando o seu cumprimento em Si mesmo.[ ] Assim, renasce a esperança, mais forte do que
qualquer revés, que faz daqueles discípulos testemunhas convictas e credíveis do Ressuscitado.

No Directório Geral da Catequese, encontramos válidas indicações para animar biblicamente a


catequese e, para elas, de bom grado remeto.[258] Neste momento, desejo principalmente sublinhar
que a catequese «tem de ser impregnada e embebida de pensamento, espírito e atitudes bíblicas e
evangélicas, mediante um contacto assíduo com os próprios textos sagrados; e recordar que a
catequese será tanto mais rica e eficaz quanto mais ler os textos com a inteligência e o coração da
Igreja»[259] e quanto mais se inspirar na reflexão e na vida bimilenária da mesma Igreja. Por isso,
deve-se encorajar o conhecimento das figuras, acontecimentos e expressões fundamentais do texto
sagrado; com tal finalidade, pode ser útil a memorização inteligente de algumas passagens bíblicas
particularmente expressivas dos mistérios cristãos. A actividade catequética implica sempre abeirar-
se das Escrituras na fé e na Tradição da Igreja, de modo que aquelas palavras sejam sentidas vivas,
como Cristo está vivo hoje onde duas ou três pessoas se reúnem em seu nome (cf. Mt 18, 20). A
catequese deve comunicar com vitalidade a história da salvação e os conteúdos da fé da Igreja, para
que cada fiel reconheça que a sua vida pessoal pertence também àquela história.

Nesta perspectiva, é importante sublinhar a relação entre a Sagrada Escritura e o Catecismo da


Igreja Católica, como afirma o Directório Geral da Catequese: «A Sagrada Escritura, como
“Palavra de Deus escrita sob a inspiração do Espírito Santo”, e o Catecismo da Igreja Católica,
enquanto importante expressão actual da Tradição viva da Igreja e norma segura para o ensino da fé,
são chamados a fecundar a catequese na Igreja contemporânea, cada um segundo o seu próprio
modo e a sua autoridade específica».[260]

Formação bíblica dos cristãos

75. Para se alcançar o objectivo desejado pelo Sínodo de conferir maior carácter bíblico a toda a
pastoral da Igreja, é necessário que exista uma adequada formação dos cristãos e, em particular, dos
256
Propositio 21.
257
Cf. Propositio 23.
258
Cf. Congr. para o Clero, Directório Geral da Catequese (15 de Agosto de 1997), 94-96: Ench. Vat. 16, n. 875-878; João Paulo
II, Exort. ap. Catechesi tradendae (16 de Outubro de 1979), 27: AAS 71 (1979), 1298-1299.
259
Congr. para o Clero, Directório Geral da Catequese (15 de Agosto de 1997), 127: Ench. Vat. 16, n. 935; cf. João Paulo II,
Exort. ap. Catechesi tradendae (16 de Outubro de 1979), 27: AAS 71 (1979), 1299.
260
N. 128: Ench. Vat. 16, n. 936.
48
catequistas. A este propósito, é preciso prestar atenção ao apostolado bíblico, método muito válido
para se atingir tal finalidade, como demonstra a experiência eclesial. Além disso, os Padres sinodais
recomendaram que se estabeleçam, possivelmente através da valorização de estruturas académicas já
existentes, centros de formação para leigos e missionários, nos quais se aprenda a compreender,
viver e anunciar a Palavra de Deus e, onde houver necessidade, constituam-se Institutos
especializados em estudos bíblicos a fim de dotarem os exegetas de uma sólida compreensão
teológica e uma adequada sensibilidade para os ambientes da sua missão.[261]

76. A Sagrada Escritura nos grandes encontros eclesiais

Entre as múltiplas iniciativas que podem ser tomadas, o Sínodo sugere que nos encontros, tanto a
nível diocesano como nacional ou internacional, se ponha em maior evidência a importância da
Palavra de Deus, da sua escuta e da leitura crente e orante da Bíblia. Por isso, no âmbito dos
Congressos Eucarísticos, nacionais e internacionais, das Jornadas Mundiais da Juventude e de outros
encontros poder-se-á louvavelmente reservar maior espaço para celebrações da Palavra e para
momentos de formação de carácter bíblico.[262]

Palavra de Deus e vocações

77. O Sínodo, quando sublinhou a exigência intrínseca que tem a fé de aprofundar a relação com
Cristo, Palavra de Deus entre nós, quis também evidenciar que esta Palavra chama cada um em
termos pessoais, revelando assim que a própria vida é vocação em relação a Deus. Isto significa que
quanto mais aprofundarmos a nossa relação pessoal com o Senhor Jesus, tanto mais nos damos conta
de que Ele nos chama à santidade, através de opções definitivas, pelas quais a nossa vida responde
ao seu amor, assumindo funções e ministérios para edificar a Igreja. É neste horizonte que se
entendem os convites feitos pelo Sínodo a todos os cristãos para aprofundarem a relação com a
Palavra de Deus, não só como baptizados mas também enquanto chamados a viver segundo os
diversos estados de vida. Aqui tocamos um dos pontos fundamentais da doutrina do Concílio
Vaticano II, que sublinhou a vocação à santidade de todo o fiel, cada um no seu próprio estado de
vida.[263] Na Sagrada Escritura, encontramos revelada a nossa vocação à santidade: «Sede santos,
porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo» (cf. Lv 11, 44; 19, 2; 20, 7). Depois São Paulo põe em
evidência a sua raiz cristológica: o Pai, em Cristo, «escolheu-nos, antes da constituição do mundo,
para sermos santos e imaculados diante dos seus olhos» (Ef 1, 4). Deste modo podemos tomar como
dirigida a cada um de nós a saudação dele aos irmãos e irmãs da comunidade de Roma: «A todos os
amados de Deus (…), chamados à santidade: Graça e paz vos sejam dadas da parte de Deus, nosso
Pai, e da do Senhor Jesus Cristo» (Rm 1, 7).

a) Palavra de Deus e Ministros Ordenados

78. Dirigindo-me em primeiro lugar aos Ministros Ordenados da Igreja, recordo-lhes o que afirmou
o Sínodo: «A Palavra de Deus é indispensável para formar o coração de um bom pastor, ministro da
Palavra».[264] Bispos, presbíteros e diáconos não podem de forma alguma pensar viver a sua vocação
e missão sem um decidido e renovado compromisso de santificação, que tem um dos seus pilares no
contacto com a Bíblia.

261
Cf. Propositio 33.
262
Cf. Propositio 45.
263
Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 39-42.
264
Propositio 31.
49
79. Àqueles que foram chamados ao episcopado e que são os anunciadores primeiros e com maior
autoridade da Palavra, desejo reafirmar o que o Papa João Paulo II deixou escrito na Exortação
apostólica pós-sinodal Pastores gregis: Para nutrir e fazer crescer a vida espiritual, o Bispo deve
colocar sempre em «primeiro lugar a leitura e a meditação da Palavra de Deus. Cada Bispo deverá
sempre confiar-se e sentir-se confiado “a Deus e à palavra da sua graça que tem o poder de construir
o edifício e de conceder parte na herança com todos os santificados” (Act 20, 32). Por isso, antes de
ser transmissor da Palavra, o Bispo, como os seus sacerdotes e como qualquer fiel – mais ainda,
como a própria Igreja – deve ser ouvinte da Palavra. Deve de certo modo estar “dentro” da Palavra,
para deixar-se guardar e nutrir dela como de um ventre materno».[265] À imitação de Maria, Virgo
audiens e Rainha dos Apóstolos, recomendo a todos os irmãos no episcopado a leitura pessoal
frequente e o estudo assíduo da Sagrada Escritura.

80. Quanto aos sacerdotes, quero apontar-lhes as palavras do Papa João Paulo II, quando, na
Exortação apostólica pós-sinodal Pastores dabo vobis, recordou que, «antes de mais, o sacerdote é
ministro da Palavra de Deus, é consagrado e enviado a anunciar a todos o Evangelho do Reino,
chamando cada homem à obediência da fé e conduzindo os crentes a um conhecimento e comunhão
sempre mais profundos do mistério de Deus, revelado e comunicado a nós em Cristo. Por isso, o
próprio sacerdote deve ser o primeiro a desenvolver uma grande familiaridade pessoal com a Palavra
de Deus: não basta conhecer o aspecto linguístico ou exegético, sem dúvida necessário; é preciso
abeirar-se da Palavra com coração dócil e orante, a fim de que ela penetre a fundo nos seus
pensamentos e sentimentos e gere nele uma nova mentalidade – “o pensamento de Cristo” (1 Cor 2,
16)».[266] E consequentemente as suas palavras, as suas opções e atitudes devem ser cada vez mais
uma transparência, um anúncio e um testemunho do Evangelho; «só “permanecendo” na Palavra, é
que o presbítero se tornará perfeito discípulo do Senhor, conhecerá a verdade e será realmente
livre».[267]

Em suma, a vocação ao sacerdócio requer que sejam consagrados «na verdade». O próprio Jesus
formula esta exigência referindo-se aos seus discípulos: «Consagra-os na verdade. A tua palavra é a
verdade. Assim como Tu Me enviaste ao mundo, também Eu os envio ao mundo» (Jo 17, 17-18). Os
discípulos, de certo modo, «são atraídos para a intimidade de Deus por meio da sua imersão na
Palavra divina. Esta é, por assim dizer, o banho que os purifica, o poder criador que os transforma
no ser de Deus».[268] E visto que o próprio Cristo é a Palavra de Deus feita carne (cf. Jo 1, 14), é «a
Verdade» (Jo 14, 6), então a oração de Jesus ao Pai «consagra-os na verdade» quer dizer
fundamentalmente: «Torna-os um só comigo. Une-os a Mim. Atrai-os para dentro de Mim. E de
facto, em última análise, há apenas um único sacerdote da Nova Aliança: o próprio Jesus Cristo».
[269] É necessário, pois, que os sacerdotes renovem sempre mais profundamente em si a consciência
desta realidade.

81. Quero referir-me também ao lugar da Palavra de Deus na vida daqueles que são chamados ao
diaconado, não só como grau prévio da Ordem do Presbiterado, mas também enquanto serviço
permanente. O Directório para o diaconado permanente afirma que «da identidade teológica do
diácono derivam com clareza os traços da sua espiritualidade específica, que se apresenta
essencialmente como espiritualidade de serviço. O modelo por excelência é Cristo servo, que viveu
totalmente ao serviço de Deus, para o bem dos homens».[270] Nesta perspectiva, compreende-se
265
N. 15: AAS 96 (2004), 846-847.
266
N. 26: AAS 84 (1992), 698.
267
Ibid., 26: o.c., 698.
268
Bento XVI, Homilia na Missa Crismal (9 de Abril de 2009): AAS 101 (2009), 355.
269
Ibid.: o.c., 356.
270
Congr. para a Educação Católica, Normas fundamentais para a formação dos diáconos permanentes (22 de Fevereiro de 1998),
11: Ench. Vat. 17, nn. 174-175.
50
como, nas várias dimensões do ministério diaconal, um «elemento caracterizador da espiritualidade
diaconal seja a Palavra de Deus, que o diácono é chamado a anunciar com autoridade, acreditando
naquilo que proclama, ensinando aquilo que acredita, vivendo aquilo que ensina».[271] Por isso
recomendo aos diáconos que incrementem uma leitura crente da Sagrada Escritura na própria vida
com o estudo e a oração. Sejam iniciados na Sagrada Escritura e na sua recta interpretação, na mútua
relação entre a Escritura e a Tradição, e particularmente na utilização da Escritura na pregação, na
catequese e na actividade pastoral em geral.[272]

b) Palavra de Deus e candidatos às Ordens Sacras

82. O Sínodo deu particular atenção ao papel decisivo da Palavra de Deus na vida espiritual dos
candidatos ao sacerdócio ministerial: «Os candidatos ao sacerdócio devem aprender a amar a
Palavra de Deus. Por isso, seja a Escritura a alma da sua formação teológica, evidenciando a
circularidade indispensável entre exegese, teologia, espiritualidade e missão».[273] Os aspirantes ao
sacerdócio ministerial são chamados a uma profunda relação pessoal com a Palavra de Deus,
particularmente na lectio divina, porque é de tal relação que se alimenta a sua vocação: é com a luz e
a força da Palavra de Deus que pode ser descoberta, compreendida, amada e seguida a respectiva
vocação e levada a cabo a própria missão, alimentando no coração os pensamentos de Deus, de
modo que a fé, como resposta à Palavra, se torne o novo critério de juízo e avaliação dos homens e
das coisas, dos acontecimentos e dos problemas.[274]

Esta atenção à leitura orante da Escritura não deve, de modo algum, alimentar uma dicotomia com o
estudo exegético que se requer durante o tempo da formação. O Sínodo recomendou que os
seminaristas sejam concretamente ajudados a ver a relação entre o estudo bíblico e a oração com a
Escritura. O estudo das Escrituras deve torná-los mais conscientes do mistério da revelação divina e
alimentar uma atitude de resposta orante ao Senhor que fala. Por sua vez, uma vida autêntica de
oração não poderá deixar de fazer crescer, na alma do candidato, o desejo de conhecer cada vez mais
a Deus que Se revelou na sua Palavra como amor infinito. Por isso, dever-se-á procurar com o
máximo cuidado que, na vida dos seminaristas, se cultive esta reciprocidade entre estudo e oração.
Para tal objectivo, é útil que os candidatos sejam iniciados no estudo da Sagrada Escritura segundo
métodos que favoreçam esta abordagem integral.

c) Palavra de Deus e vida consagrada

83. Relativamente à vida consagrada, o Sínodo lembrou em primeiro lugar que esta «nasce da escuta
da Palavra de Deus e acolhe o Evangelho como sua norma de vida».[275] Deste modo, viver no
seguimento de Cristo casto, pobre e obediente é uma «“exegese” viva da Palavra de Deus».[276] O
Espírito Santo, por cuja virtude foi escrita a Bíblia, é o mesmo que ilumina «a Palavra de Deus, com
nova luz, para os fundadores e fundadoras. Dela brotou cada um dos carismas e dela cada regra quer
ser expressão»,[277] dando origem a itinerários de vida cristã marcados pela radicalidade evangélica.

271
Ibid., 74: o.c., 263.
272
Cf. ibid., 81: o.c., 271.
273
Propositio 32.
274
Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Pastores dabo vobis (25 de Março de 1992), 47: AAS 84 (1992), 740-742.
275
Propositio 24.
276
Bento XVI, Homilia no Dia Mundial da Vida Consagrada (2 de Fevereiro de 2008): AAS 100 (2008), 133; cf. João Paulo II,
Exort. ap. pós-sinodal Vita consecrata (25 de Março de 1996), 82: AAS 88 (1996), 458-460.
277
Congr. para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, Instr. Recomeçar a partir de Cristo. Um
renovado compromisso da vida consagrada no terceiro milénio (19 de Maio de 2002), 24: Ench. Vat. 21, n. 447.
51
Desejo lembrar que a grande tradição monástica sempre teve como factor constitutivo da própria
espiritualidade a meditação da Sagrada Escritura, particularmente na forma da lectio divina. De
igual modo, hoje, as realidades antigas e novas de especial consagração são chamadas a ser
verdadeiras escolas de vida espiritual onde se há-de ler as Escrituras segundo o Espírito Santo na
Igreja, de modo que todo o Povo de Deus disso mesmo possa beneficiar. Por isso, o Sínodo
recomenda que nunca falte nas comunidades de vida consagrada uma sólida formação para a leitura
crente da Bíblia.[278]

Desejo fazer-me eco da solicitude e gratidão que o Sínodo exprimiu pelas formas de vida
contemplativa, que, pelo seu carisma específico, dedicam boa parte das suas jornadas a imitar a Mãe
de Deus que meditava assiduamente as palavras e os factos do seu Filho (cf. Lc  2, 19.51) e Maria de
Betânia que, sentada aos pés do Senhor, escutava a sua palavra (cf. Lc   10, 38). Penso de modo
particular nos monges e monjas de clausura que, sob a forma de separação do mundo, se encontram
mais intimamente unidos a Cristo, coração do mundo. A Igreja tem extrema necessidade do
testemunho de quem se compromete a «nada antepor ao amor de Cristo».[279] Com frequência, o
mundo actual vive demasiadamente absorvido pelas actividades exteriores, onde corre o risco de se
perder. As mulheres e os homens contemplativos, com a sua vida de oração, de escuta e meditação
da Palavra de Deus lembram-nos que não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da
boca de Deus (cf. Mt 4, 4). Por isso, todos os fiéis tenham bem presente que uma tal forma de vida
«indica ao mundo de hoje o que é mais importante e, no fim de contas, a única coisa decisiva: existe
uma razão última pela qual vale a pena viver, isto é, Deus e o seu amor imperscrutável».[280]

d) Palavra de Deus e fiéis leigos

84. O Sínodo concentrou muitas vezes a sua atenção nos fiéis leigos, agradecendo-lhes o generoso
empenho com que difundem o Evangelho nos vários âmbitos da vida diária: no trabalho, na escola,
na família e na educação.[281] Tal obrigação, que deriva do baptismo, deve poder desenrolar-se
através de uma vida cristã cada vez mais consciente e capaz de dar «razão da esperança» que vive
em nós (cf. 1 Pd 3, 15). Jesus, no Evangelho de Mateus, indica que «o campo é o mundo, a boa
semente são os filhos do Reino» (13, 38). Estas palavras aplicam-se de modo particular aos leigos
cristãos, que realizam a própria vocação à santidade com uma vida segundo o Espírito que se
exprime «de forma peculiar na sua inserção nas realidades temporais e na sua participação nas
actividades terrenas».[282] Precisam de ser formados a discernir a vontade de Deus por meio de uma
familiaridade com a Palavra de Deus, lida e estudada na Igreja, sob a guia dos legítimos Pastores.
Possam eles beber esta formação nas escolas das grandes espiritualidades eclesiais, em cuja raiz está
sempre a Sagrada Escritura. As próprias dioceses, na medida das suas possibilidades, proporcionem
oportunidades de uma tal formação aos leigos com particulares responsabilidades eclesiais.[283]

e) Palavra de Deus, matrimónio e família

85. O Sínodo sentiu necessidade de sublinhar também a relação entre Palavra de Deus, matrimónio e
família cristã. Com efeito, «com o anúncio da Palavra de Deus, a Igreja revela à família cristã a sua
verdadeira identidade, o que ela é e deve ser segundo o desígnio do Senhor».[284] Por isso, nunca se
perca de vista que a Palavra de Deus está na origem do matrimónio (cf. Gn 2, 24) e que o próprio
278
Cf. Propositio 24.
279
São Bento, Regra, IV, 21: SC 181, 456-458.
280
Bento XVI, Discurso durante a visita à Abadia de «Heiligenkreuz» (9 de Setembro de 2007): AAS 99 (2007), 856.
281
Cf. Propositio 30.
282
João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988), 17: AAS 81 (1989), 418.
283
Cf. Propositio 33.
284
João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 49: AAS 74 (1982), 140-141.
52
Jesus quis incluir o matrimónio entre as instituições do seu Reino (cf. Mt 19, 4-8), elevando a
sacramento o que originalmente estava inscrito na natureza humana. «Na celebração sacramental, o
homem e a mulher pronunciam uma palavra profética de doação recíproca: ser “uma só carne”, sinal
do mistério da união de Cristo e da Igreja (cf. Ef 5, 31-32)».[285] A fidelidade à Palavra de Deus leva
também a evidenciar que hoje esta instituição encontra-se, em muitos aspectos, sujeita a ataques pela
mentalidade corrente. Perante a difundida desordem dos sentimentos e o despontar de modos de
pensar que banalizam o corpo humano e a diferença sexual, a Palavra de Deus reafirma a bondade
originária do ser humano, criado como homem e mulher e chamado ao amor fiel, recíproco e
fecundo.

Do grande mistério nupcial deriva uma imprescindível responsabilidade dos pais em relação aos
seus filhos. De facto, pertence à autêntica paternidade e maternidade a comunicação e o testemunho
do sentido da vida em Cristo: através da fidelidade e unidade da vida familiar, os esposos são, para
os seus filhos, os primeiros anunciadores da Palavra de Deus. A comunidade eclesial deve sustentá-
los e ajudá-los a desenvolverem a oração em família, a escuta da Palavra, o conhecimento da Bíblia.
Por isso, o Sínodo deseja que cada casa tenha a sua Bíblia e a conserve em lugar digno para poder
lê-la e utilizá-la na oração. A ajuda necessária pode ser fornecida por sacerdotes, diáconos e leigos
bem preparados. O Sínodo recomendou também a formação de pequenas comunidades entre
famílias, onde se cultive a oração e a meditação em comum de trechos apropriados da Sagrada
Escritura.[286] Os esposos lembrem-se de que «a Palavra de Deus é um amparo precioso inclusive
nas dificuldades da vida conjugal e familiar».[287]

Neste contexto, quero evidenciar as recomendações do Sínodo quanto à função das mulheres
relativamente à Palavra de Deus. A contribuição do «génio feminino» – assim lhe chamava o Papa
João Paulo II[288] – para o conhecimento da Escritura e para a vida inteira da Igreja é hoje maior do
que no passado e tem a ver com o campo dos próprios estudos bíblicos. De modo especial, o Sínodo
deteve-se sobre o papel indispensável das mulheres na família, na educação, na catequese e na
transmissão dos valores. Com efeito, elas «sabem suscitar a escuta da Palavra, a relação pessoal com
Deus e comunicar o sentido do perdão e da partilha evangélica»,[289] como também ser portadoras de
amor, mestras de misericórdia e construtoras de paz, comunicadoras de calor e humanidade num
mundo que demasiadas vezes se limita a avaliar as pessoas com os critérios frios da exploração e do
lucro.

Leitura orante da Sagrada Escritura e «lectio divina»

86. O Sínodo insistiu repetidamente sobre a exigência de uma abordagem orante do texto sagrado
como elemento fundamental da vida espiritual de todo o fiel, nos diversos ministérios e estados de
vida, com particular referência à lectio divina.[290] Com efeito, a Palavra de Deus está na base de
toda a espiritualidade cristã autêntica. Esta posição dos Padres sinodais está em sintonia com o que
diz a Constituição dogmática Dei Verbum: Todos os fiéis «debrucem-se, pois, gostosamente sobre o
texto sagrado, quer através da sagrada Liturgia, rica de palavras divinas, quer pela leitura espiritual,
quer por outros meios que se vão espalhando tão louvavelmente por toda a parte, com a aprovação e
estímulo dos pastores da Igreja. Lembrem-se, porém, que a leitura da Sagrada Escritura deve ser
acompanhada de oração».[291] A reflexão conciliar pretendia retomar a grande tradição patrística que
285
Propositio 20.
286
Cf. Propositio 21.
287
Propositio 20.
288
Cf. Carta ap. Mulieris dignitatem (15 de Agosto de 1988), 31: AAS 80 (1988), 1727-1729.
289
Propositio 17.
290
Cf. Propositiones 9 e 22.
291
N. 25.
53
sempre recomendou abeirar-se da Escritura em diálogo com Deus. Como diz Santo Agostinho: «A
tua oração é a tua palavra dirigida a Deus. Quando lês, é Deus que te fala; quando rezas, és tu que
falas a Deus».[292] Orígenes, um dos mestres nesta leitura da Bíblia, defende que a inteligência das
Escrituras exige, ainda mais do que o estudo, a intimidade com Cristo e a oração; realmente é sua
convicção que o caminho privilegiado para conhecer Deus é o amor e de que não existe uma
autêntica scientia Christi sem enamorar-se d’Ele. Na Carta a Gregório, o grande teólogo
alexandrino recomenda: «Dedica-te à lectio das divinas Escrituras; aplica-te a isto com
perseverança. Empenha-te na lectio com a intenção de crer e agradar a Deus. Se durante a lectio te
encontras diante de uma porta fechada, bate e ser-te-á aberta por aquele guardião de que falou Jesus:
“O guardião abrir-lha-á”. Aplicando-te assim à lectio divina, procura com lealdade e inabalável
confiança em Deus o sentido das Escrituras divinas, que nelas amplamente se encerra. Mas não
deves contentar-te com bater e procurar; para compreender as coisas de Deus, tens necessidade
absoluta da oratio. Precisamente para nos exortar a ela é que o Salvador não se limitou a dizer:
“procurai e encontrareis” e “batei e ser-vos-á aberto”, mas acrescentou: “pedi e recebereis”».[293]

A este propósito, porém, deve-se evitar o risco de uma abordagem individualista, tendo presente
que a Palavra de Deus nos é dada precisamente para construir comunhão, para nos unir na Verdade
no nosso caminho para Deus. Sendo uma Palavra que se dirige a cada um pessoalmente, é também
uma Palavra que constrói comunidade, que constrói a Igreja. Por isso, o texto sagrado deve-se
abordar sempre na comunhão eclesial. Com efeito, «é muito importante a leitura comunitária,
porque o sujeito vivo da Sagrada Escritura é o Povo de Deus, é a Igreja. (…) A Escritura não
pertence ao passado, porque o seu sujeito, o Povo de Deus inspirado pelo próprio Deus, é sempre o
mesmo e, portanto, a Palavra está sempre viva no sujeito vivo. Então é importante ler a Sagrada
Escritura e ouvi-la na comunhão da Igreja, isto é, com todas as grandes testemunhas desta Palavra, a
começar dos primeiros Padres até aos Santos de hoje e ao Magistério actual».[294]

Por isso, na leitura orante da Sagrada Escritura, o lugar privilegiado é a Liturgia, particularmente a
Eucaristia, na qual, ao celebrar o Corpo e o Sangue de Cristo no Sacramento, se actualiza no meio
de nós a própria Palavra. Em certo sentido, a leitura orante pessoal e comunitária deve ser vivida
sempre em relação com a celebração eucarística. Assim como a adoração eucarística prepara,
acompanha e prolonga a liturgia eucarística,[295] assim também a leitura orante pessoal e comunitária
prepara, acompanha e aprofunda o que a Igreja celebra com a proclamação da Palavra no âmbito
litúrgico. Colocando em relação tão estreita lectio e liturgia, podem-se identificar melhor os critérios
que devem guiar esta leitura no contexto da pastoral e da vida espiritual do Povo de Deus.

87. Nos documentos que prepararam e acompanharam o Sínodo, falou-se dos vários métodos para se
abeirar, com fruto e na fé, das Sagradas Escrituras. Todavia prestou-se maior atenção à lectio divina,
que «é verdadeiramente capaz não só de desvendar ao fiel o tesouro da Palavra de Deus, mas
também de criar o encontro com Cristo, Palavra divina viva».[296] Quero aqui lembrar, brevemente,
os seus passos fundamentais: começa com a leitura (lectio) do texto, que suscita a interrogação sobre
um autêntico conhecimento do seu conteúdo: o que diz o texto bíblico em si? Sem este momento,
corre-se o risco que o texto se torne somente um pretexto para nunca ultrapassar os nossos
pensamentos. Segue-se depois a meditação (meditatio), durante a qual nos perguntamos: que nos diz
o texto bíblico? Aqui cada um, pessoalmente mas também como realidade comunitária, deve deixar-
se sensibilizar e pôr em questão, porque não se trata de considerar palavras pronunciadas no
292
Enarrationes in Psalmos, 85, 7: PL 37, 1086.
293
Orígenes, Epistola ad Gregorium, 3: PG 11, 92.
294
Bento XVI, Discurso aos alunos do Seminário Maior Romano (19 de Fevereiro de 2007): AAS 99 (2007), 253-254.
295
Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 66: AAS 99 (2007), 155-156.
296
Mensagem final, III, 9.
54
passado, mas no presente. Sucessivamente chega-se ao momento da oração (oratio), que supõe a
pergunta: que dizemos ao Senhor, em resposta à sua Palavra? A oração enquanto pedido,
intercessão, acção de graças e louvor é o primeiro modo como a Palavra nos transforma. Finalmente,
a lectio divina conclui-se com a contemplação (contemplatio), durante a qual assumimos como dom
de Deus o seu próprio olhar, ao julgar a realidade, e interrogamo-nos: qual é a conversão da mente,
do coração e da vida que o Senhor nos pede? São Paulo, na Carta aos Romanos, afirma: «Não vos
conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, a fim de
conhecerdes a vontade de Deus: o que é bom, o que Lhe é agradável e o que é perfeito» (12, 2). De
facto, a contemplação tende a criar em nós uma visão sapiencial da realidade segundo Deus e a
formar em nós «o pensamento de Cristo» (1 Cor 2, 16). Aqui a Palavra de Deus aparece como
critério de discernimento: ela é «viva, eficaz e mais penetrante que uma espada de dois gumes;
penetra até dividir a alma e o corpo, as junturas e as medulas e discerne os pensamentos e intenções
do coração» (Hb 4, 12). Há que recordar ainda que a lectio divina não está concluída, na sua
dinâmica, enquanto não chegar à acção (actio), que impele a existência do fiel a doar-se aos outros
na caridade.

Estes passos encontramo-los sintetizados e resumidos, de forma sublime, na figura da Mãe de Deus.
Modelo para todo o fiel de acolhimento dócil da Palavra divina, Ela «conservava todas estas coisas,
ponderando-as no seu coração» (Lc   2, 19; cf. 2, 51), e sabia encontrar o nexo profundo que une os
acontecimentos, os actos e as realidades, aparentemente desconexos, no grande desígnio divino.[297]

Além disso, quero lembrar a recomendação feita durante o Sínodo relativa à importância da leitura
pessoal da Escritura como prática que prevê a possibilidade também de obter, segundo as
disposições habituais da Igreja, a indulgência para si próprio ou para os defuntos.[298] A prática da
indulgência[299] implica a doutrina dos méritos infinitos de Cristo – que a Igreja, como ministra da
redenção, concede e aplica –, mas supõe também a doutrina da Comunhão dos Santos, que nos
mostra «como é íntima a nossa união em Cristo e quanto a vida sobrenatural de cada um pode
auxiliar os outros».[300] Nesta perspectiva, a leitura da Palavra de Deus apoia-nos no caminho de
penitência e conversão, permite-nos aprofundar o sentido de pertença eclesial e conserva-nos numa
familiaridade mais profunda com Deus. Como afirmava Santo Ambrósio, quando tomamos nas
mãos, com fé, as Sagradas Escrituras e as lemos com a Igreja, a pessoa humana volta a passear com
Deus no paraíso.[301]

Palavra de Deus e oração mariana

88. Pensando na relação indivisível entre a Palavra de Deus e Maria de Nazaré, convido, juntamente
com os Padres sinodais, a promover entre os fiéis, sobretudo na vida familiar, as orações marianas
que constituem uma ajuda para meditar os santos mistérios narrados pela Sagrada Escritura. Um
meio muito útil é, por exemplo, a recitação pessoal ou comunitária do Rosário,[302] que repercorre

297
Cf. Ibidem.
298
«Plenaria indulgentia conceditur christifideli qui Sacram Scripturam, iuxta textum a competenti auctoritate adprobatum, cum
veneratione divino eloquio debita et ad modum lectionis spiritalis, per dimidiam saltem horam legerit; si per minus tempus id
egerit indulgentia erit partialis – Concede-se a indulgência plenária ao fiel que ler a Sagrada Escritura, num texto aprovado pela
autoridade competente, com a devoção devida à palavra divina e a modo de leitura espiritual, pelo menos meia hora; se a leitura
durar menos tempo, a indulgência é parcial»: Paenitentiaria Apostolica, Enchiridion Indulgentiarum. Normae et concessiones (16
de Julho de 1999), concessão n. 30-§ 1.
299
Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1471-1479.
300
Paulo VI, Const. ap. Indulgentiarum doctrina (1 de Janeiro de 1967), 9: AAS 59 (1967), 18-19.
301
Cf. Epistula 49, 3: PL 16, 1204A.
302
Cf. Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Directório sobre Piedade Popular e Liturgia. Princípios e
Orientações (17 de Dezembro de 2001), 197-202: Ench. Vat. 20, nn. 2638-2643.
55
juntamente com Maria os mistérios da vida de Cristo[303] e que o Papa João Paulo II quis enriquecer
com os mistérios de luz.[304] É conveniente que o anúncio dos diversos mistérios seja acompanhado
por breves trechos da Bíblia sobre o mistério enunciado, para assim favorecer a memorização de
algumas expressões significativas da Escritura relativas aos mistérios da vida de Cristo.

Além disso, o Sínodo recomendou que se promova entre os fiéis a recitação da oração do Angelus
Domini. Trata-se de uma oração simples e profunda que nos permite «recordar diariamente o Verbo
Encarnado».[305] É oportuno que o Povo de Deus, as famílias e as comunidades de pessoas
consagradas sejam fiéis a esta oração mariana, que a tradição nos convida a rezar ao alvorecer, ao
meio-dia e ao entardecer. Na oração do Angelus Domini, pedimos a Deus que, pela intercessão de
Maria, nos seja concedido também cumprir a vontade de Deus como Ela e acolher em nós a sua
Palavra. Esta prática pode ajudar-nos a intensificar um amor autêntico ao mistério da Encarnação.

Merecem ser conhecidas, apreciadas e difundidas também algumas antigas orações do Oriente
cristão que, através de uma referência à Theotokos, à Mãe de Deus, percorrem toda a história da
salvação. Referimo-nos particularmente ao Akathistos e à Paraklesis. São hinos de louvor cantados
em forma de litania, impregnados de fé eclesial e de alusões bíblicas, que ajudam os fiéis a meditar
juntamente com Maria os mistérios de Cristo. De modo especial, o venerável hino à Mãe de Deus
denominado Akathistos – quer dizer: cantado permanecendo de pé –, representa uma das mais altas
expressões de piedade mariana da tradição bizantina.[306] Rezar com estas palavras dilata a alma e
dispõe-na para a paz que vem do Alto, de Deus – a paz que é o próprio Cristo, nascido de Maria para
a nossa salvação.

Palavra de Deus e Terra Santa

89. Recordando o Verbo de Deus que Se faz carne no seio de Maria de Nazaré, o nosso coração
volta-se agora para aquela Terra onde se cumpriu o mistério da nossa redenção e donde a Palavra de
Deus se difundiu até aos confins do mundo. De facto, por obra do Espírito Santo, o Verbo encarnou
num momento concreto e num lugar determinado, numa orla de terra situada nos confins do Império
Romano. Por isso, quanto mais contemplamos a universalidade e a unicidade da pessoa de Cristo,
tanto mais olhamos agradecidos para aquela Terra onde Jesus nasceu, viveu e Se entregou a Si
mesmo por todos nós. As pedras sobre as quais caminhou o nosso Redentor permanecem para nós
carregadas de recordações e continuam a «gritar» a Boa Nova. Por isso, os Padres sinodais
lembraram a expressão feliz dada à Terra Santa: «o quinto Evangelho».[307] Como é importante a
existência de comunidades cristãs naqueles lugares, apesar das inúmeras dificuldades! O Sínodo dos
Bispos exprime profunda solidariedade a todos os cristãos que vivem na Terra de Jesus, dando
testemunho da fé no Ressuscitado. Lá os cristãos são chamados a servir como «um farol de fé para a
Igreja universal e também como fermento de harmonia, sabedoria e equilíbrio na vida duma
sociedade que tradicionalmente foi e continua a ser pluralista, multiétnica e multirreligiosa».[308]

A Terra Santa continua ainda hoje a ser meta de peregrinação do povo cristão, vivida como gesto de
oração e de penitência, como o era já na antiguidade segundo o testemunho de autores como São
Jerónimo.[309] Quanto mais voltamos o olhar e o coração para a Jerusalém terrena, tanto mais se
303
Cf. Propositio 55.
304
Cf. João Paulo II, Carta ap. Rosarium Virginis Mariae (16 de Outubro de 2002): AAS 95 (2003), 5-36.
305
Propositio 55.
306
Cf. Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Directório sobre Piedade Popular e Liturgia. Princípios e
Orientações (17 de Dezembro de 2001), 207: Ench. Vat. 20, nn. 2656-2657.
307
Cf. Propositio 51.
308
Bento XVI, Homilia na Santa Missa junto do Vale de Josafat, em Jerusalém (12 de Maio de 2009): AAS 101 (2009), 473.
309
Cf. Epistula 108, 14: CSEL 55, 324-325.
56
inflama em nós o desejo da Jerusalém celeste, verdadeira meta de toda a peregrinação, e a paixão de
que o nome de Jesus – o único em que se encontra a salvação – seja reconhecido por todos (cf. Act
4, 12).

III PARTE

VERBUM MUNDO

«Ninguém jamais viu a Deus:


o Filho único, que está no seio do Pai,
é que O deu a conhecer» (Jo 1, 18)

A missão da Igreja:
anunciar a palavra de Deus ao mundo

A Palavra que sai do Pai e volta para o Pai

90. São João sublinha fortemente o paradoxo fundamental da fé cristã. Por um lado, afirma que
«ninguém jamais viu a Deus» (Jo 1, 18; cf. 1 Jo 4, 12): de modo nenhum podem as nossas imagens,
conceitos ou palavras definir ou calcular a realidade infinita do Altíssimo; permanece o Deus
semper maior. Por outro lado, diz que realmente o Verbo «Se fez carne» (Jo 1, 14). O Filho
unigénito, que está voltado para o seio do Pai, revelou o Deus que «ninguém jamais viu» (Jo 1, 18).
Jesus Cristo vem a nós «cheio de graça e de verdade» (Jo 1, 14), que nos são dadas por meio d’Ele
(cf. Jo 1, 17); de facto, «da sua plenitude é que todos nós recebemos, graça sobre graça» (Jo 1, 16).
E assim, no Prólogo, o evangelista João contempla o Verbo desde o seu estar junto de Deus
passando pelo fazer-Se carne, até ao regresso ao seio do Pai, levando consigo a nossa própria
humanidade que assumiu para sempre. Neste sair do Pai e voltar ao Pai (cf. Jo 13, 3; 16, 28; 17,
8.10), Ele apresenta-Se-nos como o «Narrador» de Deus (cf. Jo 1, 18). De facto, o Filho – afirma
Santo Ireneu de Lião – «é o Revelador do Pai».[310] Jesus de Nazaré é, por assim dizer, o «exegeta»
de Deus que «ninguém jamais viu»; «Ele é a imagem do Deus invisível» (Cl 1, 15). Cumpre-se aqui
a profecia de Isaías relativa à eficácia da Palavra do Senhor: assim como a chuva e a neve descem
do céu para regar e fazer germinar a terra, assim também a Palavra de Deus «não volta sem ter
produzido o seu efeito, sem ter executado a minha vontade e cumprido a sua missão» (Is 55, 10-11).
Jesus Cristo é esta Palavra definitiva e eficaz que saiu do Pai e voltou a Ele, realizando
perfeitamente no mundo a sua vontade.
310
Adversus haereses, IV, 20, 7: PG 7, 1037.
57
Anunciar ao mundo o «Logos» da Esperança

91. O Verbo de Deus comunicou-nos a vida divina que transfigura a face da terra, fazendo novas
todas as coisas (cf. Ap 21, 5). A sua Palavra envolve-nos não só como destinatários da revelação
divina, mas também como seus arautos. Ele, o enviado do Pai para cumprir a sua vontade (cf. Jo 5,
36-38; 6, 38-40; 7, 16-18), atrai-nos a Si e envolve-nos na sua vida e missão. Assim o Espírito do
Ressuscitado habilita a nossa vida para o anúncio eficaz da Palavra em todo o mundo. É a
experiência da primeira comunidade cristã, que via difundir-se a Palavra por meio da pregação e do
testemunho (cf. Act 6, 7). Quero citar aqui particularmente a vida do Apóstolo Paulo, um homem
arrebatado completamente pelo Senhor (cf. Fl 3, 12) – «já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em
mim» (Gl 2, 20) – e pela sua missão: «Ai de mim se não evangelizar!» (1 Cor 9, 16), ciente de que
em Cristo se revela realmente a salvação de todas as nações, a libertação da escravidão do pecado
para entrar na liberdade dos filhos de Deus.

Com efeito, o que a Igreja anuncia ao mundo é o Logos da Esperança (cf. 1 Pd 3, 15); o homem
precisa da «grande Esperança» para poder viver o seu próprio presente – a grande esperança que é
«aquele Deus que possui um rosto humano e que nos “amou até ao fim” (Jo 13, 1)».[311] Por isso, na
sua essência, a Igreja é missionária. Não podemos guardar para nós as palavras de vida eterna, que
recebemos no encontro com Jesus Cristo: são para todos, para cada homem. Cada pessoa do nosso
tempo – quer o saiba quer não – tem necessidade deste anúncio. Oxalá o Senhor suscite entre os
homens, como nos tempos do profeta Amós, nova fome e nova sede das palavras do Senhor (cf. Am
8, 11). A nós cabe a responsabilidade de transmitir aquilo que por nossa vez tínhamos, por graça,
recebido.

Da Palavra de Deus deriva a missão da Igreja

92. O Sínodo dos Bispos reafirmou com veemência a necessidade de revigorar na Igreja a
consciência missionária, presente no Povo de Deus desde a sua origem. Os primeiros cristãos
consideraram o seu anúncio missionário como uma necessidade derivada da própria natureza da fé:
o Deus em quem acreditavam era o Deus de todos, o Deus único e verdadeiro que Se manifestara na
história de Israel e, por fim, no seu Filho, oferecendo assim a resposta que todos os homens, no seu
íntimo, aguardam. As primeiras comunidades cristãs sentiram que a sua fé não pertencia a um
costume cultural particular, que diverge de povo para povo, mas ao âmbito da verdade, que diz
respeito igualmente a todos os homens.

Também aqui São Paulo nos ilustra, com a sua vida, o sentido da missão cristã e a sua originária
universalidade. Pensemos no episódio do Areópago de Atenas, narrado pelos Actos dos Apóstolos
(cf. 17, 16-34). O Apóstolo das Nações entra em diálogo com homens de culturas diversas, na
certeza de que o mistério de Deus, Conhecido-Desconhecido, do qual todo o homem tem uma certa
percepção embora confusa, revelou-Se realmente na história: «O que venerais sem conhecer, é que
eu vos anuncio» (Act 17, 23). De facto, a novidade do anúncio cristão é a possibilidade de dizer a
todos os povos: «Ele mostrou-Se. Ele em pessoa. E agora está aberto o caminho para Ele. A
novidade do anúncio cristão não consiste num pensamento mas num facto: Ele revelou-Se».[312]

A Palavra e o Reino de Deus

311
Bento XVI, Carta enc. Spe salvi (30 de Novembro de 2007), 31: AAS 99 (2007), 1010.
312
Bento XVI, Discurso aos homens de cultura no «Collège des Bernardins» de Paris (12 de Setembro de 2008): AAS 100 (2008),
730.
58
93. Por conseguinte, a missão da Igreja não pode ser considerada como realidade facultativa ou
suplementar da vida eclesial. Trata-se de deixar que o Espírito Santo nos assimile a Cristo,
participando assim na sua própria missão: «Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a
vós» (Jo 20, 21), de modo a comunicar a Palavra com a vida inteira. É a própria Palavra que nos
impele para os irmãos: é a Palavra que ilumina, purifica, converte; nós somos apenas servidores.

Por isso, é necessário descobrir cada vez mais a urgência e a beleza de anunciar a Palavra para a
vinda do Reino de Deus, que o próprio Cristo pregou. Neste sentido, renovamos a consciência – tão
familiar aos Padres da Igreja – de que o anúncio da Palavra tem como conteúdo o Reino de Deus (cf.
Mc 1, 14-15), sendo este a própria pessoa de Jesus (o Autobasileia), como sugestivamente lembra
Orígenes.[313] O Senhor oferece a salvação aos homens de cada época. Todos nos damos conta de
quão necessário é que a luz de Cristo ilumine cada âmbito da humanidade: a família, a escola, a
cultura, o trabalho, o tempo livre e os outros sectores da vida social.[314] Não se trata de anunciar
uma palavra anestesiante, mas desinstaladora, que chama à conversão, que torna acessível o
encontro com Ele, através do qual floresce uma humanidade nova.

Todos os baptizados responsáveis do anúncio

94. Uma vez que todo o Povo de Deus é um povo «enviado», o Sínodo reafirmou que «a missão de
anunciar a Palavra de Deus é dever de todos os discípulos de Jesus Cristo, em consequência do seu
baptismo».[315] Nenhuma pessoa que crê em Cristo pode sentir-se alheia a esta responsabilidade que
deriva do facto de ela pertencer sacramentalmente ao Corpo de Cristo. Esta consciência deve ser
despertada em cada família, paróquia, comunidade, associação e movimento eclesial. Portanto toda a
Igreja, enquanto mistério de comunhão, é missionária e cada um, no seu próprio estado de vida, é
chamado a dar uma contribuição incisiva para o anúncio cristão.

Bispos e sacerdotes, segundo a missão própria de cada um, são os primeiros chamados a uma vida
cativada pelo serviço da Palavra, para anunciar o Evangelho, celebrar os Sacramentos e formar os
fiéis no conhecimento autêntico das Escrituras. Sintam-se também os diáconos chamados a
colaborar, segundo a própria missão, para este compromisso de evangelização.

A vida consagrada resplandece, em toda a história da Igreja, pela sua capacidade de assumir
explicitamente o dever do anúncio e da pregação da Palavra de Deus na missio ad gentes e nas
situações mais difíceis, mostrando-se disponível também para as novas condições de evangelização,
empreendendo com coragem e audácia novos percursos e novos desafios para o anúncio eficaz da
Palavra de Deus.[316]

Os fiéis leigos são chamados a exercer a sua missão profética, que deriva directamente do baptismo,
e testemunhar o Evangelho na vida diária onde quer que se encontrem. A este respeito, os Padres
sinodais exprimiram «a mais viva estima e gratidão bem como encorajamento pelo serviço à
evangelização que muitos leigos, e particularmente as mulheres, prestam com generosidade e
diligência nas comunidades espalhadas pelo mundo, a exemplo de Maria de Magdala, primeira
testemunha da alegria pascal».[317] Além disso, o Sínodo reconhece, com gratidão, que os
313
Cf. In Evangelium secundum Matthaeum 17, 7: PG 13, 1197B; S. Jerónimo, Translatio homiliarum Origenis in Lucam 36: PL
26, 324-325.
314
Cf. Bento XVI, Homilia por ocasião da abertura da XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (5 de Outubro de
2008): AAS 100 (2008), 757.
315
Propositio 38.
316
Cf. Congr. para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, Instr. Recomeçar a partir de Cristo. Um
renovado compromisso da vida consagrada no terceiro milénio (19 de Maio de 2002), 36: Ench. Vat. 21, nn. 488-491.
317
Propositio 30.
59
movimentos eclesiais e as novas comunidades constituem, na Igreja, uma grande força para a
evangelização neste tempo, impelindo a desenvolver novas formas de anúncio do Evangelho.[318]

A necessidade da «missio ad gentes»

95. Ao exortar todos os fiéis para o anúncio da Palavra divina, os Padres sinodais reafirmaram a
necessidade, no nosso tempo também, de um decidido empenho na missio ad gentes. A Igreja não
pode de modo algum limitar-se a uma pastoral de «manutenção» para aqueles que já conhecem o
Evangelho de Cristo. O ardor missionário é um sinal claro da maturidade de uma comunidade
eclesial. Além disso, os Padres exprimiram vivamente a consciência de que a Palavra de Deus é a
verdade salvífica da qual tem necessidade cada homem em todo o tempo. Por isso, o anúncio deve
ser explícito. A Igreja deve ir ao encontro de todos com a força do Espírito (cf. 1 Cor 2, 5) e
continuar profeticamente a defender o direito e a liberdade das pessoas escutarem a Palavra de Deus,
procurando os meios mais eficazes para a proclamar, mesmo sob risco de perseguição.[319] A todos a
Igreja se sente devedora de anunciar a Palavra que salva (cf. Rm 1, 14).

Anúncio e nova evangelização

96. O Papa João Paulo II, na esteira de quanto já expressara o Papa Paulo VI na Exortação
apostólica Evangelii nuntiandi, tinha de muitos modos lembrado aos fiéis a necessidade de uma
nova estação missionária para todo o Povo de Deus.[320] Na alvorada do terceiro milénio, não só
existem muitos povos que ainda não conheceram a Boa Nova, mas há também muitos cristãos que
têm necessidade que lhes seja anunciada novamente, de modo persuasivo, a Palavra de Deus, para
poderem assim experimentar concretamente a força do Evangelho. Há muitos irmãos que são
«baptizados mas não suficientemente evangelizados».[321] É frequente ver nações, outrora ricas de fé
e de vocações, que vão perdendo a própria identidade, sob a influência de uma cultura secularizada.
[322] A exigência de uma nova evangelização, tão sentida pelo meu venerado Predecessor, deve-se
reafirmar sem medo, na certeza da eficácia da Palavra divina. A Igreja, segura da fidelidade do seu
Senhor, não se cansa de anunciar a boa nova do Evangelho e convida todos os cristãos a
redescobrirem o fascínio de seguir Cristo.

Palavra de Deus e testemunho cristão

97. Os horizontes imensos da missão eclesial e a complexidade da situação presente requerem hoje
modalidades renovadas para se poder comunicar eficazmente a Palavra de Deus. O Espírito Santo,
agente primário de toda a evangelização, nunca deixará de guiar a Igreja de Cristo nesta actividade.
Antes de mais nada, é importante que cada modalidade de anúncio tenha presente a relação
intrínseca entre comunicação da Palavra de Deus e testemunho cristão; disso depende a própria
credibilidade do anúncio. Por um lado, é necessária a Palavra que comunique aquilo que o próprio
Senhor nos disse; por outro, é indispensável dar, com o testemunho, credibilidade a esta Palavra,
para que não apareça como uma bela filosofia ou utopia, mas antes como uma realidade que se pode
viver e que faz viver. Esta reciprocidade entre Palavra e testemunho recorda o modo como o próprio
Deus Se comunicou por meio da encarnação do seu Verbo. A Palavra de Deus alcança os homens

318
Cf. Propositio 38.
319
Cf. Propositio 49.
320
Cf. João Paulo II, Carta enc. Redemptoris missio (7 de Dezembro de 1990): AAS 83 (1991), 294-340; Idem, Carta ap. Novo
millennio ineunte (6 de Janeiro de 2001), 40: AAS 93 (2001), 294-295.
321
Propositio 38.
322
Cf. Bento XVI, Homilia por ocasião da abertura da XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (5 de Outubro de
2008): AAS 100 (2008), 753-757.
60
«através do encontro com testemunhas que a tornam presente e viva».[323] Particularmente as novas
gerações têm necessidade de ser introduzidas na Palavra de Deus «através do encontro e do
testemunho autêntico do adulto, da influência positiva dos amigos e da grande companhia que é a
comunidade eclesial».[324]

Há uma relação estreita entre o testemunho da Escritura, como atestado que a Palavra de Deus dá de
si mesma, e o testemunho de vida dos crentes. Um implica e conduz ao outro. O testemunho cristão
comunica a Palavra atestada nas Escrituras. Por sua vez, as Escrituras explicam o testemunho que os
cristãos são chamados a dar com a própria vida. Deste modo, aqueles que encontram testemunhas
credíveis do Evangelho são levados a constatar a eficácia da Palavra de Deus naqueles que a
acolhem.

Nesta circularidade entre testemunho e Palavra, compreendem-se as afirmações do Papa Paulo VI na


Exortação apostólica Evangelii nuntiandi. A nossa responsabilidade não se limita a sugerir ao
mundo valores que compartilhamos; mas é preciso chegar ao anúncio explícito da Palavra de Deus.
Só assim seremos fiéis ao mandato de Cristo: «Por conseguinte a Boa Nova proclamada pelo
testemunho de vida deverá, mais cedo ou mais tarde, ser anunciada pela palavra de vida. Não há
verdadeira evangelização, se o nome, a doutrina, a vida, as promessas, o Reino, o mistério de Jesus
de Nazaré, Filho de Deus, não forem proclamados».[325]

O facto do anúncio da Palavra de Deus requerer o testemunho da própria vida é um dado bem
presente na consciência cristã desde as suas origens. O próprio Cristo é a testemunha fiel e
verdadeira (cf. Ap 1, 5; 3, 14), testemunha da Verdade (cf. Jo 18, 37). A este propósito, desejo
recordar os inumeráveis testemunhos que tivemos a graça de ouvir durante a assembleia sinodal.
Ficámos profundamente impressionados com o relato daqueles que souberam viver a fé e dar
luminosos testemunhos do Evangelho mesmo sob regimes contrários ao cristianismo ou em
situações de perseguição.

Tudo isto não nos deve meter medo. O próprio Jesus disse aos seus discípulos: «Um servo não é
maior que o seu senhor. Se a Mim Me perseguiram também vos perseguirão a vós» (Jo 15, 20). Por
isso desejo elevar a Deus, com toda a Igreja, um hino de louvor pelo testemunho de muitos irmãos e
irmãs que, mesmo neste nosso tempo, deram a vida para comunicar a verdade do amor de Deus que
nos foi revelado em Cristo crucificado e ressuscitado. Além disso, exprimo a gratidão da Igreja
inteira aos cristãos que não se rendem perante os obstáculos e as perseguições por causa do
Evangelho. Ao mesmo tempo unimo-nos, com profunda e solidária estima, aos fiéis de todas as
comunidades cristãs, particularmente na Ásia e na África, que neste tempo arriscam a vida ou a
marginalização social por causa da fé. Vemos realizar-se aqui o espírito das bem-aventuranças do
Evangelho para aqueles que são perseguidos por causa do Senhor Jesus (cf. Mt 5, 11). Ao mesmo
tempo não cessamos de erguer a nossa voz para que os governos das nações garantam a todos
liberdade de consciência e de religião, inclusive para poder testemunhar publicamente a própria fé.
[326]

Palavra de Deus e compromisso no mundo

Servir Jesus nos seus «irmãos mais pequeninos» (Mt 25, 40)

323
Propositio 38.
324
Mensagem final, IV, 12.
325
Paulo VI, Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8 de Dezembro de 1975), 22: AAS 68 (1976), 20.
326
Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decl. Dignitatis humanae, 2.7.
61
99. A Palavra divina ilumina a existência humana e leva as consciências a reverem em profundidade
a própria vida, porque toda a história da humanidade está sob o juízo de Deus: «Quando o Filho do
Homem vier na sua glória, acompanhado por todos os seus anjos, sentar-Se-á, então, no seu trono de
glória. Perante Ele reunir-se-ão todas as nações» (Mt 25, 31-32). No nosso tempo, detemo-nos
muitas vezes superficialmente no valor do instante que passa, como se fosse irrelevante para o
futuro. Diversamente, o Evangelho recorda-nos que cada momento da nossa existência é importante
e deve ser vivido intensamente, sabendo que cada um deverá prestar contas da própria vida. No
capítulo vinte e cinco do Evangelho de Mateus, o Filho do Homem considera como feito ou não
feito a Si aquilo que tivermos feito ou deixado de fazer a um só dos seus «irmãos mais pequeninos»
(25, 40.45): «Tive fome e destes-Me de comer, tive sede e destes-Me de beber; era peregrino e
recolhestes-Me; estava nu e destes-Me de vestir; adoeci e visitastes-Me; estive na prisão e fostes ter
comigo» (25, 35-36). Deste modo, é a própria Palavra de Deus que nos recorda a necessidade do
nosso compromisso no mundo e a nossa responsabilidade diante de Cristo, Senhor da História.
Quando anunciamos o Evangelho, exortamo-nos reciprocamente a cumprir o bem e a empenhar-nos
pela justiça, pela reconciliação e pela paz.

Palavra de Deus e compromisso na sociedade pela justiça

100. A Palavra de Deus impele o homem para relações animadas pela rectidão e pela justiça,
confirma o valor precioso aos olhos de Deus de todas as fadigas do homem para tornar o mundo
mais justo e mais habitável.[327] A própria Palavra de Deus denuncia, sem ambiguidade, as injustiças
e promove a solidariedade e a igualdade.[328] À luz das palavras do Senhor, reconheçamos pois os
«sinais dos tempos» presentes na história, não nos furtemos ao compromisso em favor de quantos
sofrem e são vítimas do egoísmo. O Sínodo lembrou que o compromisso pela justiça e a
transformação do mundo é constitutivo da evangelização. Como dizia o Papa Paulo VI, trata-se de
«chegar a atingir e como que a modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores
que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de
vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da
salvação».[329]

Com este objectivo, os Padres sinodais dirigiram um pensamento particular a quantos estão
empenhados na vida política e social. A evangelização e a difusão da Palavra de Deus devem
inspirar a sua acção no mundo à procura do verdadeiro bem de todos, no respeito e promoção da
dignidade de toda a pessoa. Certamente não é tarefa directa da Igreja criar uma sociedade mais justa,
embora lhe caiba o direito e o dever de intervir sobre as questões éticas e morais que dizem respeito
ao bem das pessoas e dos povos. Compete sobretudo aos fiéis leigos formados na escola do
Evangelho intervir directamente na acção social e política. Por isso o Sínodo recomenda uma
adequada educação segundo os princípios da doutrina social da Igreja.[330]

101. Além disso, quero chamar a atenção geral para a importância de defender e promover os
direitos humanos de toda a pessoa, que, como tais, são «universais, invioláveis e inalienáveis».[331]
A Igreja aproveita a ocasião extraordinária oferecida pelo nosso tempo para que a dignidade
humana, através da afirmação de tais direitos, seja mais eficazmente reconhecida e promovida
universalmente,[332] como característica impressa por Deus criador na sua criatura, assumida e
327
Cf. Propositio 39.
328
Cf. Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2009 (8 de Dezembro de 2008): Insegnamenti IV/2 (2008), 792-802.
329
Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8 de Dezembro de 1975), 19: AAS 68 (1976), 18.
330
Cf. Propositio 39.
331
João XXIII, Carta enc. Pacem in terris (11 de Abril de 1963), I: AAS 55 (1963), 259.
332
Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 47: AAS 83 (1991), 851-852; Idem, Discurso à
Assembleia Geral das Nações Unidas (2 de Outubro de 1979), 13: AAS 71 (1979), 1152-1153.
62
redimida por Jesus Cristo através da sua encarnação, morte e ressurreição. Por isso a difusão da
Palavra de Deus não pode deixar de reforçar a consolidação e o respeito dos direitos humanos de
cada pessoa.[333]

Anúncio da Palavra de Deus, reconciliação e paz entre os povos

102. Dentre os numerosos âmbitos de compromisso, o Sínodo recomendou vivamente a promoção


da reconciliação e da paz. No contexto actual, é grande a necessidade de descobrir a Palavra de Deus
como fonte de reconciliação e de paz, porque nela Deus reconcilia em Si todas as coisas (cf. 2 Cor 5,
18-20; Ef 1, 10): Cristo «é a nossa paz» (Ef 2, 14), Aquele que derruba os muros de divisão. Muitos
testemunhos no Sínodo comprovaram os graves e sangrentos conflitos e as tensões presentes no
nosso planeta. Às vezes tais hostilidades parecem assumir o aspecto de conflito inter-religioso.
Quero uma vez mais reafirmar que a religião nunca pode justificar a intolerância ou as guerras. Não
se pode usar a violência em nome de Deus![334] Toda a religião devia impelir para um uso correcto
da razão e promover valores éticos que edifiquem a convivência civil.

Fiéis à obra de reconciliação realizada por Deus em Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado, os
católicos e todos os homens de boa vontade empenhem-se por dar exemplos de reconciliação para se
construir uma sociedade justa e pacífica.[335] Nunca esqueçamos que «onde as palavras humanas se
tornam impotentes, porque prevalece o trágico clamor da violência e das armas, a força profética da
Palavra de Deus não esmorece e repete-nos que a paz é possível e que devemos, nós mesmos, ser
instrumentos de reconciliação e de paz».[336]

A Palavra de Deus e a caridade activa

103. O compromisso pela justiça, a reconciliação e a paz encontra a sua raiz última e perfeição no
amor que nos foi revelado em Cristo. Ouvindo os testemunhos proferidos no Sínodo, tornámo-
-nos mais atentos à ligação que há entre a escuta amorosa da Palavra de Deus e o serviço
desinteressado aos irmãos; que todos os fiéis compreendam «a necessidade de traduzir em gestos de
amor a palavra escutada, porque só assim se torna credível o anúncio do Evangelho, apesar das
fragilidades humanas que marcam as pessoas».[337] Jesus passou por este mundo fazendo o bem (cf.
Act 10, 38). Escutando com ânimo disponível a Palavra de Deus na Igreja, desperta-se «a caridade e
a justiça para com todos, sobretudo para com os pobres».[338] É preciso nunca esquecer que «o amor
– caritas – será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. (…) Quem quer desfazer-se do
amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem».[339] Por isso, exorto todos os fiéis a
meditarem com frequência o hino à caridade escrito pelo Apóstolo Paulo, deixando-se inspirar por
ele: «A caridade é paciente, a caridade é benigna, não é invejosa; a caridade não se ufana, não se
ensoberbece, não é inconveniente, não procura o seu interesse, não se irrita, não suspeita mal, não se
alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo
suporta. A caridade nunca acabará» (1 Cor 13, 4-8).

Deste modo o amor do próximo, radicado no amor de Deus, deve ser o nosso compromisso
constante como indivíduos e como comunidade eclesial local e universal. Diz Santo Agostinho: «É
333
Cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 152-159.
334
Cf. Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2007 (8 de Dezembro de 2006): Insegnamenti, II/2 (2006), 780.
335
Cf. Propositio 8.
336
Bento XVI, Homilia (25 de Janeiro de 2009): Insegnamenti V/1 (2009), 141.
337
Bento XVI, Homilia por ocasião do encerramento da XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (26 de Outubro de
2008): AAS 100 (2008), 779.
338
Propositio 11.
339
Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 28: AAS 98 (2006), 240.
63
fundamental compreender que a plenitude da Lei, bem como de todas as Escrituras divinas, é o amor
(…). Por isso quem julga ter compreendido as Escrituras, ou pelo menos uma parte qualquer delas,
mas não se empenha a construir, através da sua inteligência, este duplo amor de Deus e do próximo,
demonstra que ainda não as compreendeu».[340]

Anúncio da Palavra de Deus e os jovens

104. O Sínodo reservou uma atenção particular ao anúncio da Palavra divina feito às novas
gerações. Os jovens já são membros activos da Igreja e representam o seu futuro. Muitas vezes
encontramos neles uma abertura espontânea à escuta da Palavra de Deus e um desejo sincero de
conhecer Jesus. De facto, na idade da juventude, surgem de modo irreprimível e sincero as questões
sobre o sentido da própria vida e sobre a direcção que se deve dar à própria existência. A estas
questões só Deus sabe dar verdadeira resposta. Esta solicitude pelo mundo juvenil implica a
coragem de um anúncio claro; devemos ajudar os jovens a ganharem confidência e familiaridade
com a Sagrada Escritura, para que seja como uma bússola que indica a estrada a seguir.[341] Para
isso, precisam de testemunhas e mestres, que caminhem com eles e os orientem para amarem e por
sua vez comunicarem o Evangelho sobretudo aos da sua idade, tornando-se eles mesmos arautos
autênticos e credíveis.[342]

É preciso que a Palavra divina seja apresentada também nas suas implicações vocacionais de modo a
ajudar e orientar os jovens nas suas opções de vida, incluindo a consagração total.[343] Autênticas
vocações para a vida consagrada e para o sacerdócio encontram o seu terreno propício no contacto
fiel com a Palavra de Deus. Repito aqui o convite que fiz no início do meu pontificado para abrir de
par em par as portas a Cristo: «Quem faz entrar Cristo, nada perde, nada – absolutamente nada
daquilo que torna a vida livre, bela e grande. Não! Só nesta amizade se abrem de par em par as
portas da vida. Só nesta amizade se abrem realmente as grandes potencialidades da condição
humana. (…) Queridos jovens, não tenhais medo de Cristo! Ele não tira nada, e dá tudo. Quem se
entrega a Ele, recebe o cêntuplo. Sim, abri de par em par as portas a Cristo, e encontrareis a vida
verdadeira».[344]

Anúncio da Palavra de Deus e os migrantes

105. A Palavra de Deus torna-nos atentos à história e a tudo o que de novo germina nela. Por isso o
Sínodo quis, a propósito da missão evangelizadora da Igreja, fixar a atenção também no fenómeno
complexo dos movimentos migratórios, que tem assumido nestes anos proporções inéditas. Aqui
levantam-se questões bastante delicadas relativas à segurança das nações e ao acolhimento que se
deve oferecer a quantos buscam refúgio, melhores condições de vida, saúde, trabalho. Um grande
número de pessoas, que não conhece Cristo ou possui uma imagem imperfeita d’Ele, estabelece-se
em países de tradição cristã. Ao mesmo tempo pessoas que pertencem a povos marcados
profundamente pela fé cristã emigram para países onde há necessidade de levar o anúncio de Cristo
e de uma nova evangelização. Estas novas situações oferecem novas possibilidades para a difusão da
Palavra de Deus. A este propósito, os Padres sinodais afirmaram que os migrantes têm o direito de
ouvir o kerygma, que lhes é proposto, não imposto. Se forem cristãos, necessitam de uma assistência
pastoral adequada para fortalecer a fé e serem eles mesmos portadores do anúncio evangélico.

340
De doctrina christiana, I, 35, 39 – 36, 40: PL 34, 34.
341
Cf. Bento XVI, Mensagem para a XXI Jornada Mundial da Juventude em 2006 (22 de Fevereiro de 2006): AAS 98 (2006),
282-286.
342
Cf. Propositio 34.
343
Cf. Ibidem.
344
Homilia (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 712.
64
Conscientes da complexidade do fenómeno, é necessário que todas as dioceses interessadas se
mobilizem para que os movimentos migratórios sejam considerados também como ocasião para
descobrir novas modalidades de presença e de anúncio e se proveja, segundo as próprias
possibilidades, a um condigno acolhimento e animação destes nossos irmãos para que, tocados pela
Boa Nova, se façam eles mesmos anunciadores da Palavra de Deus e testemunhas do Senhor
Ressuscitado, esperança do mundo.[345]

Anúncio da Palavra de Deus e os doentes

106. Ao longo dos trabalhos sinodais, a atenção dos Padres deteve-se também na necessidade de
anunciar a Palavra de Deus a todos aqueles que estão em condições de sofrimento físico, psíquico ou
espiritual. De facto, é na hora do sofrimento que se levantam mais acutilantes no coração do homem
as questões últimas sobre o sentido da própria vida. Se a palavra do homem parece emudecer diante
do mistério do mal e da dor e a nossa sociedade parece dar valor à vida apenas se corresponde a
certos níveis de eficiência e bem-estar, a Palavra de Deus revela-nos que mesmo estas circunstâncias
são misteriosamente «abraçadas» pela ternura divina. A fé que nasce do encontro com a Palavra
divina ajuda-nos a considerar a vida humana digna de ser vivida plenamente, mesmo quando está
debilitada pelo mal. Deus criou o homem para a felicidade e a vida, enquanto a doença e a morte
entraram no mundo em consequência do pecado (cf. Sb 2, 23-24). Mas o Pai da vida é o médico por
excelência do homem e não cessa de inclinar-Se amorosamente sobre a humanidade que sofre.
Contemplamos o apogeu da proximidade de Deus ao sofrimento do homem, no próprio Jesus que é
«Palavra encarnada. Sofreu connosco, morreu. Com a sua paixão e morte, assumiu e transformou
profundamente a nossa debilidade».[346]

A proximidade de Jesus aos doentes não se interrompeu: prolonga-se no tempo graças à acção do
Espírito Santo na missão da Igreja, na Palavra e nos Sacramentos, nos homens de boa vontade, nas
actividades de assistência que as comunidades promovem com caridade fraterna, mostrando assim o
verdadeiro rosto de Deus e o seu amor. O Sínodo dá graças a Deus pelo testemunho esplêndido,
frequentemente escondido, de muitos cristãos – sacerdotes, religiosos e leigos – que emprestaram e
continuam a emprestar as suas mãos, os seus olhos e os seus corações a Cristo, verdadeiro médico
dos corpos e das almas. Depois exorta para que se continue a cuidar das pessoas doentes, levando-
lhes a presença vivificadora do Senhor Jesus na Palavra e na Eucaristia. Sejam ajudadas a ler a
Escritura e a descobrir que podem, precisamente na sua condição, participar de um modo particular
no sofrimento redentor de Cristo pela salvação do mundo (cf. 2 Cor 4, 8-11.14).[347]

Anúncio da Palavra de Deus e os pobres

107. A Sagrada Escritura manifesta a predilecção de Deus pelos pobres e necessitados (cf. Mt 25,
31-46). Com frequência, os Padres sinodais lembraram a necessidade de que o anúncio evangélico e
o empenho dos pastores e das comunidades se dirijam a estes nossos irmãos. Com efeito, «os
primeiros que têm direito ao anúncio do Evangelho são precisamente os pobres, necessitados não só
de pão mas também de palavras de vida».[348] A diaconia da caridade, que nunca deve faltar nas
nossas Igrejas, tem de estar sempre ligada ao anúncio da Palavra e à celebração dos santos mistérios.
[349] Ao mesmo tempo é preciso reconhecer e valorizar o facto de que os próprios pobres são

345
Cf. Propositio 38.
346
Bento XVI, Homilia por ocasião da XVII Jornada Mundial do Doente (11 de Fevereiro de 2009): Insegnamenti V/1 (2009),
232.
347
Cf. Propositio 35.
348
Propositio 11.
349
Cf. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 25: AAS 98 (2006), 236-237.
65
também agentes de evangelização. Na Bíblia, o verdadeiro pobre é aquele que se confia totalmente a
Deus e, no Evangelho, o próprio Jesus chama-os bem-aventurados, «porque deles é o reino dos
céus» (Mt 5, 3; cf. Lc  6, 20). O Senhor exalta a simplicidade de coração de quem reconhece em
Deus a verdadeira riqueza, coloca n’Ele a sua esperança e não nos bens deste mundo. A Igreja não
pode desiludir os pobres: «Os pastores são chamados a ouvi-los, a aprender deles, a guiá-los na sua
fé e a motivá-los para serem construtores da própria história».[350]

A Igreja está ciente também de que existe uma pobreza que é virtude a cultivar e a abraçar
livremente, como fizeram muitos Santos, e há a miséria, muitas vezes resultante de injustiças e
provocada pelo egoísmo, que produz indigência e fome e alimenta os conflitos. Quando a Igreja
anuncia a Palavra de Deus sabe que é preciso favorecer um «círculo virtuoso» entre a pobreza «que
se deve escolher» e a pobreza «que se deve combater», redescobrindo «a sobriedade e a
solidariedade como valores simultaneamente evangélicos e universais. (…) Isto obriga a opções de
justiça e de sobriedade».[351]

Palavra de Deus e defesa da criação

108. O compromiso no mundo requerido pela Palavra divina impele-nos a ver com olhos novos todo
o universo criado por Deus e que traz já em si os vestígios do Verbo, por Quem tudo foi feito (cf. Jo
1, 2). Com efeito, há uma responsabilidade que nos compete como fiéis e anunciadores do
Evangelho também a respeito da criação. A revelação, ao mesmo tempo que nos dá a conhecer o
desígnio de Deus sobre o universo, leva-nos também a denunciar os comportamentos errados do
homem, quando não reconhece todas as coisas como reflexo do Criador, mas mera matéria que se
pode manipular sem escrúpulos. Deste modo, falta ao homem aquela humildade essencial que lhe
permite reconhecer a criação como dom de Deus que se deve acolher e usar segundo o seu desígnio.
Ao contrário, a arrogância do homem que vive como se Deus não existisse, leva a explorar e
deturpar a natureza, não a reconhecendo como uma obra da Palavra criadora. Neste quadro
teológico, desejo lembrar as afirmações dos Padres sinodais ao recordarem que o facto de «acolher a
Palavra de Deus atestada na Sagrada Escritura e na Tradição viva da Igreja gera um novo modo de
ver as coisas, promovendo um ecologia autêntica, que tem a sua raiz mais profunda na obediência da
fé, (…) e desenvolvendo una renovada sensibilidade teológica sobre a bondade de todas as coisas,
criadas em Cristo».[352] O homem precisa de ser novamente educado para se maravilhar,
reconhecendo a verdadeira beleza que se manifesta nas coisas criadas.[353]

Palavra de Deus e culturas

O valor da cultura para a vida do homem

109. O anúncio joanino referente à encarnação do Verbo revela o vínculo indissolúvel que existe
entre a Palavra divina e as palavras humanas, através das quais Se nos comunica. Foi no âmbito
desta reflexão que o Sínodo dos Bispos se deteve sobre a relação entre Palavra de Deus e cultura. De
facto, Deus não Se revela ao homem abstractamente, mas assumindo linguagens, imagens e
expressões ligadas às diversas culturas. Trata-se de uma relação fecunda, largamente testemunhada
na história da Igreja. Hoje tal relação entra também numa nova fase, devido à propagação e
enraizamento da evangelização dentro das diversas culturas e nas mais recentes evoluções da cultura
ocidental. Isto implica, antes de mais nada, reconhecer a importância da cultura como tal para a vida
350
Propositio 11.
351
Bento XVI, Homilia (1 de Janeiro de 2009): Insegnamenti V/1 (2009), 5.
352
Propositio 54.
353
Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 92: AAS 99 (2007), 176-177.
66
de cada homem. De facto, o fenómeno da cultura, nos seus múltiplos aspectos, apresenta-se como
um dado constitutivo da experiência humana: «O homem vive sempre segundo uma cultura que lhe
é própria e por sua vez cria entre os homens um laço, que lhes é próprio também, determinando o
carácter inter-humano e social da existência humana».[354]

A Palavra de Deus inspirou, ao longo dos séculos, as diversas culturas, gerando valores morais
fundamentais, expressões artísticas magníficas e estilos de vida exemplares.[355] Assim, na esperança
de um renovado encontro entre Bíblia e culturas, quero reafirmar a todos os agentes culturais que
nada têm a temer da sua abertura à Palavra de Deus, que nunca destrói a verdadeira cultura, mas
constitui um estímulo constante para a busca de expressões humanas cada vez mais apropriadas e
significativas. Para servir verdadeiramente o homem, cada cultura autêntica deve estar aberta à
transcendência e, em última análise, a Deus.

A Bíblia como grande código para as culturas

110. Os Padres sinodais sublinharam a importância de favorecer um adequado conhecimento da


Bíblia entre os agentes culturais, mesmo nos ambientes secularizados e entre os não crentes;[356] na
Sagrada Escritura, estão contidos valores antropológicos e filosóficos que influíram positivamente
sobre toda a humanidade.[357] Deve-se recuperar plenamente o sentido da Bíblia como grande código
para as culturas.

O conhecimento da Bíblia nas escolas e universidades

111. Um âmbito particular do encontro entre Palavra de Deus e culturas é o da escola e da


universidade. Os Pastores tenham um cuidado especial por estes ambientes, promovendo um
conhecimento profundo da Bíblia para se poder individuar, também hoje, as suas fecundas
implicações culturais. Os centros de estudo promovidos pelas realidades católicas oferecem uma
contribuição original – que deve ser reconhecida – para a promoção da cultura e da instrução. Além
disso, não se deve descuidar o ensino da religião, formando cuidadosamente os professores. Em
muitos casos, isto representa para os estudantes uma ocasião única de contacto com a mensagem da
fé. É bom que se promova, neste ensino, o conhecimento da Sagrada Escritura, superando antigos e
novos preconceitos e procurando dar a conhecer a sua verdade.[358]

A Sagrada Escritura nas diversas expressões artísticas

112. A relação entre Palavra de Deus e cultura encontrou expressão em obras de âmbitos diversos,
particularmente no mundo da arte. Por isso a grande tradição do Oriente e do Ocidente sempre
estimou as manifestações artísticas inspiradas na Sagrada Escritura, como, por exemplo, as artes
figurativas e a arquitectura, a literatura e a música. Penso também na antiga linguagem expressa
pelos ícones que, partindo da tradição oriental, aos poucos se foi espalhando por todo o mundo. Com
os Padres sinodais, a Igreja inteira exprime apreço, estima e admiração pelos artistas «enamorados
da beleza», que se deixaram inspirar pelos textos sagrados; contribuíram para a decoração das
nossas igrejas, a celebração da nossa fé, o enriquecimento da nossa liturgia, e muitos deles ajudaram
ao mesmo tempo a tornar de algum modo perceptível no tempo e no espaço as realidades invisíveis

354
João Paulo II, Discurso à UNESCO (2 de Junho de 1980), 6: AAS 72 (1980), 738.
355
Cf. Propositio 41.
356
Cf. Ibidem.
357
Cf. João Paulo II, Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998), 80: AAS 91 (1999), 67-68.
358
Cf. Lineamenta 23.
67
e eternas.[359] Exorto os organismos competentes a promoverem na Igreja uma sólida formação dos
artistas sobre a Sagrada Escritura à luz da Tradição viva da Igreja e do Magistério.

Palavra de Deus e meios de comunicação social

113. Ligada à relação entre Palavra de Deus e culturas está também a importância da utilização
cuidadosa e inteligente dos meios, antigos e novos, de comunicação social. Os Padres sinodais
recomendaram um conhecimento apropriado destes instrumentos, estando atentos ao seu rápido
desenvolvimento e aos diversos níveis de interacção e investindo maiores energias para adquirir
competência nos vários sectores, particularmente nos novos meios de comunuicação, como por
exemplo a internet. Por parte da Igreja, já existe uma si-gnificativa presença no mundo da
comunicação de massa, e o próprio Magistério eclesial exprimiu-se várias vezes sobre este tema a
partir do Concílio Vaticano II.[360] A aquisição de novos métodos para transmitir a mensagem
evangélica faz parte da constante tensão evangelizadora dos fiéis, e hoje a rede de comunicação
envolve o mundo inteiro, tendo adquirido um novo significado o apelo de Cristo: «O que vos digo às
escuras, dizei-o à luz do dia, e o que escutais ao ouvido, proclamai-o sobre os terraços» (Mt 10, 27).
Para além da forma escrita, a Palavra divina deve ressoar também através das outras formas de
comunicação.[361] Por isso, juntamente com os Padres sinodais, desejo agradecer aos católicos que
lutam com competência por uma presença significativa no mundo dos mass media, solicitando um
empenhamento ainda mais amplo e qualificado.[362]

Entre as novas formas de comunicação de massa, há que reconhecer hoje um papel crescente à
internet, que constitui um novo fórum onde fazer ressoar o Evangelho, na certeza, porém, de que o
mundo virtual nunca poderá substituir o mundo real e que a evangelização só poderá usufruir da
virtualidade oferecida pelos novos meios de comunicação para instaurar relações significativas, se
se chegar ao encontro pessoal que permanece insubstituível. No mundo da internet, que permite que
bilhões de imagens apareçam sobre milhões de monitores em todo o mundo, deverá sobressair o
rosto de Cristo e ouvir-se a sua voz, porque, «se não há espaço para Cristo, não há espaço para o
homem».[363]

Bíblia e inculturação

114. O mistério da encarnação mostra-nos que Deus, por um lado, comunica-Se sempre numa
história concreta, assumindo os códigos culturais nela inscritos, mas, por outro, a própria Palavra
pode e deve transmitir-se em culturas diferentes, transfigurando-as a partir de dentro através daquilo
que Paulo VI chamava a evangelização das culturas.[364] Deste modo a Palavra de Deus, como aliás
a fé cristã, manifesta um carácter profundamente intercultural, capaz de encontrar e fazer encontrar
culturas diversas.[365]
359
Cf. Propositio 40.
360
Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre os instrumentos de comunicação social Inter mirifica; Pont. Cons. para as Comunicações
Sociais, Instr. past. Communio et progressio sobre os instrumentos da comunicação social, publicada por disposição do Concílio
Ecuménico Vaticano II (23 de Maio de 1971): AAS 63 (1971) 593-656; João Paulo II, Carta ap. O rápido desenvolvimento (24 de
Janeiro de 2005): AAS 97 (2005) 265-274; Pont. Cons. para as Comunicações Sociais, Instr. past. sobre as comunicações sociais
no XX aniversário da «Communio et progressio» Aetatis novae (22 de Fevereiro de 1992): AAS 84 (1992) 447-468; Idem, A
Igreja e internet (22 de Fevereiro de 2002): Ench. Vat. 21, nn. 66-95; Idem, Ética na internet (22 de Fevereiro de 2002): Ench.
Vat. 21, nn. 96-127.
361
Cf. Mensagem final IV, 11; Bento XVI, Mensagem para o XLIII Dia Mundial das Comunicações Sociais (24 de Janeiro de
2009): Insegnamenti V/1 (2009), 123-127.
362
Cf. Propositio 44.
363
João Paulo II, Mensagem para o XXXVI Dia Mundial das Comunicações Sociais (24 de Janeiro de 2002), 6: Insegnamenti
XXV/1 (2002), 94-95.
364
Cf. Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8 de Dezembro de 1975), 20: AAS 68 (1976), 18-19.
365
Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de Fevereiro de 2007), 78: AAS 99 (2007), 165.
68
Neste contexto, compreende-se também o valor da inculturação do Evangelho.[366] A Igreja está
firmemente persuadida da capacidade intrínseca que tem a Palavra de Deus de atingir todas as
pessoas humanas no contexto cultural onde vivem: «Esta convicção deriva da própria Bíblia, que,
desde o livro do Génesis, assume uma orientação universal (cf. Gn 1, 27-28), mantém-na depois na
bênção prometida a todos os povos graças a Abraão e à sua descendência (cf. Gn 12, 3; 18, 18) e
confirma-a definitivamente quando estende a “todas as nações” a evangelização».[367] Por isso, a
inculturação não deve ser confundida com processos de adaptação superficial, nem mesmo com a
amálgama sincretista que dilui a originalidade do Evangelho para o tornar mais facilmente aceitável.
[368] O autêntico paradigma da inculturação é a própria encarnação do Verbo: «A “aculturação” ou
“inculturação” será realmente um reflexo da encarnação do Verbo, quando uma cultura,
transformada e regenerada pelo Evangelho produzir na sua própria tradição expressões originais de
vida, de celebração, de pensamento cristão»,[369] levedando como o fermento dentro da cultura local,
valorizando as semina Verbi e tudo o que de positivo haja nela, abrindo-a aos valores evangélicos.
[370]

Traduções e difusão da Bíblia

115. Se a inculturação da Palavra de Deus é parte imprescindível da missão da Igreja no mundo, um


momento decisivo deste processo é a difusão da Bíblia por meio do valioso trabalho de tradução nas
diversas línguas. A este propósito, nunca se deve esquecer que a obra de tradução das Escrituras
«teve início desde os tempos do Antigo Testamento quando o texto hebraico da Bíblia foi traduzido
oralmente para aramaico (Ne 8, 8.12) e, mais tarde, traduzido de forma escrita para grego. De facto,
uma tradução é sempre algo mais do que uma simples transcrição do texto original. A passagem de
uma língua para outra comporta necessariamente uma mudança de contexto cultural: os conceitos
não são idênticos e o alcance dos símbolos é diferente, porque põem em relação com outras
tradições de pensamento e outros modos de viver».[371]

Durante os trabalhos sinodais, pôde-se constatar que várias Igrejas locais ainda não dispõem de uma
tradução integral da Bíblia nas suas próprias línguas. Actualmente quantos povos têm fome e sede
da Palavra de Deus, mas infelizmente não podem ainda ter um «acesso patente à Sagrada Escritura»,
[372] como desejara o Concílio Vaticano II. Por isso, o Sínodo considera importante, antes de mais
nada, a formação de especialistas que se dediquem a traduzir a Bíblia nas diversas línguas.[373]
Encorajo a que se invistam recursos neste âmbito. De modo particular, quero recomendar que seja
apoiado o empenho da Federação Bíblica Católica para um incremento ainda maior do número das
traduções da Sagrada Escritura e da sua minuciosa difusão.[374] Bom será que tal trabalho, pela sua
própria natureza, seja feito na medida do possível em colaboração com as diversas Sociedades
Bíblicas.

A Palavra de Deus supera os limites das culturas

366
Cf. Propositio 48.
367
Pont. Comissão Bíblica, A Interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993), IV, B: Ench. Vat. 13, nn. 3112.
368
Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, 22; Pont. Comissão Bíblica, A Interpretação
da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993), IV, B: Ench. Vat. 13, nn. 3111-3117.
369
João Paulo II, Discurso aos Bispos do Quénia (7 de Maio de 1980), 6: AAS 72 (1980), 497.
370
Cf. Instrumentum laboris, 56.
371
Pont. Comissão Bíblica, A Interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de 1993), IV, B: Ench. Vat. 13, n. 3113.
372
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 22.
373
Cf. Propositio 42.
374
Cf. Propositio 43.
69
116. No debate sobre a relação entre Palavra de Deus e culturas, a assembleia sinodal sentiu
necessidade de reafirmar aquilo que os primeiros cristãos puderam experimentar desde o dia de
Pentecostes (cf. Act 2, 1-13). A Palavra divina é capaz de penetrar e exprimir-se em culturas e
línguas diferentes, mas a própria Palavra transfigura os limites de cada uma das culturas criando
comunhão entre povos diversos. A Palavra do Senhor convida-nos a avançar para uma comunhão
mais vasta. «Saímos da estreiteza das nossas experiências e entramos na realidade que é
verdadeiramente universal. Entrando na comunhão com a Palavra de Deus, entramos na comunhão
da Igreja que vive a Palavra de Deus. (…) É sair dos limites de cada uma das culturas para a
universalidade que nos vincula a todos, a todos nos une e faz irmãos».[375] Portanto, anunciar a
Palavra de Deus começa sempre por nos pedir a nós mesmos um renovado êxodo, deixando as
nossas medidas e as nossas imaginações limitadas para abrir espaço em nós à presença de Cristo.

Palavra de Deus e diálogo inter-religioso

O valor do diálogo inter-religioso

117. A Igreja reconhece como parte essencial do anúncio da Palavra o encontro, o diálogo e a
colaboração com todos os homens de boa vontade, particularmente com as pessoas pertencentes às
diversas tradições religiosas da humanidade, evitando formas de sincretismo e de relativismo e
seguindo as linhas indicadas pela Declaração do Concílio Vaticano II Nostra aetate e desenvolvidas
pelo Magistério sucessivo dos Sumos Pontífices.[376] O processo veloz de globalização,
característico da nossa época, permite viver em contacto mais estreito com pessoas de culturas e
religiões diferentes. Trata-se de uma oportunidade providencial para manifestar como o autêntico
sentido religioso pode promover entre os homens relações de fraternidade universal. É muito
importante que as religiões possam favorecer, nas nossas sociedades frequentemente secularizadas,
uma mentalidade que veja em Deus Omnipotente o fundamento de todo o bem, a fonte inexaurível
da vida moral, o sustentáculo de um profundo sentido de fraternidade universal.

Na tradição judaico-cristã, por exemplo, encontra-se sugestivamente confirmado o amor de Deus por
todos os povos, que Ele, já na Aliança estabelecida com Noé, reúne num único e grande abraço
simbolizado pelo «arco nas nuvens» (Gn 9, 13.14.16) e que, segundo as palavras dos profetas,
pretende congregar numa única família universal (cf. Is 2, 2ss; 42, 6; 66, 18-21; Jr 4, 2; Sl 47). Na
realidade aparecem, em muitas das grandes tradições religiosas, testemunhos da ligação íntima que
existe entre a relação com Deus e a ética do amor por todo o homem.

Diálogo entre cristãos e muçulmanos

118. De entre as diversas religiões, a Igreja olha com estima os muçulmanos, que reconhecem a
existência de um único Deus;[377] fazem referimento a Abraão e prestam culto a Deus sobretudo com
a oração, a esmola e o jejum. Reconhecemos que, na tradição do Islão, há muitas figuras, símbolos e
temas bíblicos. Em continuidade com a importante acção empreendida pelo Venerável João Paulo II,
desejo que as relações baseadas na confiança, que estão instauradas desde há diversos anos entre
375
Bento XVI, Homilia durante a Hora Tércia, no início da I Congregação Geral do Sínodo dos Bispos (6 de Outubro de 2008):
AAS 100 (2008), 760.
376
De entre as numerosas e diversificadas intervenções, recorde-se: João Paulo II, Carta enc. Dominum et vivificantem (18 de
Maio de 1986): AAS 78 (1986), 809-900; Idem, Carta enc. Redemptoris missio (7 de Dezembro de 1990): AAS 83 (1991), 249-
340; Idem, Discursos e homilias em Assis, por ocasião do Dia de Oração pela Paz em 27 de Outubro de 1986: Insegnamenti, IX/2
(1986), 1249-1273; Idem, Dia de Oração pela Paz no Mundo (24 de Janeiro de 2002): Insegnamenti XXV/1 (2002), 97-108;
Congr. para a Doutrina da Fé, Decl. sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja Dominus Iesus (6 de
Agosto de 2000): AAS 92 (2000), 742-765.
377
Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs Nostra aetate, 3.
70
cristãos e muçulmanos, continuem e se desenvolvam num espírito de diálogo sincero e respeitoso.
[378] Neste diálogo, o Sínodo fez votos de que se possam aprofundar o respeito da vida como valor
fundamental, os direitos inalienáveis do homem e da mulher e a sua igual dignidade. Tendo em
conta a distinção entre a ordem sociopolítica e a ordem religiosa, as religiões devem dar a sua
contribuição para o bem comum. O Sínodo pede às Conferências Episcopais que se favoreçam, onde
for oportuno e profícuo, encontros para um conhecimento recíproco entre cristãos e muçulmanos a
fim de se promoverem os valores de que a sociedade tem necessidade para uma convivência pacífica
e positiva.[379]

Diálogo com as outras religiões

119. Além disso, desejo aqui manifestar o respeito da Igreja pelas antigas religiões e tradições
espirituais dos vários Continentes; contêm valores que podem favorecer imenso a compreensão entre
as pessoas e os povos.[380] Muitas vezes constatamos sintonias com valores expressos também nos
seus livros religiosos, como, por exemplo, o respeito pela vida, a contemplação, o silêncio e a
simplicidade, no Budismo; o sentido da sacralidade, do sacrifício e do jejum, no Hinduísmo; e ainda
os valores familiares e sociais no Confucionismo. Vemos, ainda noutras experiências religiosas, uma
sincera atenção à transcendência de Deus, reconhecido como Criador, e também ao respeito da vida,
do matrimónio e da família e ainda um forte sentido da solidariedade.

Diálogo e liberdade religiosa

120. Todavia o diálogo não seria fecundo, se não incluísse também um verdadeiro respeito por toda
a pessoa para que possa aderir livremente à sua própria religião. Por isso o Sínodo, ao mesmo tempo
que promove a colaboração entre os expoentes das diversas religiões, recorda igualmente «a
necessidade de que seja efectivamente assegurada a todos os crentes a liberdade de professar,
privada e publicamente a sua própria religião, e também a liberdade de consciência»;[381] de facto «o
respeito e o diálogo exigem a reciprocidade em todos os campos, sobretudo no que diz respeito às
liberdades fundamentais e, de modo muito particular, à liberdade religiosa. Tal respeito e diálogo
favorecem a paz e a harmonia entre os povos».[382]

378
Cf. Bento XVI, Discurso a Embaixadores dos países maioritariamente muçulmanos acreditados junto da Santa Sé (25 de
Setembro de 2006): AAS 98 (2006), 704-706.
379
Cf. Propositio 53.
380
Cf. Propositio 50.
381
Ibidem.
382
João Paulo II, Discurso no encontro com os jovens muçulmanos em Casablanca (Marrocos, 19 de Agosto de 1985), 5: AAS 78
(1986), 99.
71
CONCLUSÃO

A palavra definitiva de Deus

121. No termo destas reflexões, em que reuni e aprofundei a riqueza da XII Assembleia Geral
Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja, desejo uma
vez mais exortar todo o Povo de Deus, os Pastores, as pessoas consagradas e os fiéis leigos a
empenharem-se para que as Sagradas Escrituras se lhes tornem cada vez mais familiares. Nunca
devemos esquecer que, na base de toda a espiritualidade cristã autêntica e viva, está a Palavra de
Deus anunciada, acolhida, celebrada e meditada na Igreja. A intensificação do relacionamento com
a Palavra divina acontecerá com tanto maior decisão quanto mais cientes estivermos de nos
encontrar, quer na Escritura quer na Tradição viva da Igreja, em presença da Palavra definitiva de
Deus sobre o universo e a história.

Como nos leva a contemplar o Prólogo do Evangelho de João, todo o ser está sob o signo da
Palavra. O Verbo sai do Pai e vem habitar entre os Seus e regressa ao seio do Pai para levar consigo
toda a criação que n’Ele e para Ele fora criada. Agora a Igreja vive a sua missão na veemente
expectativa da manifestação escatológica do Esposo: «O Espírito e a Esposa dizem: “Vem!”» (Ap
22, 17). Esta expectativa nunca é passiva, mas tensão missionária de anúncio da Palavra de Deus
que cura e redime todo o homem; ainda hoje Jesus ressuscitado nos diz: «Ide pelo mundo inteiro e
anunciai a Boa Nova a toda a criatura» (Mc 16, 15).

Nova evangelização e nova escuta

122. Por isso, o nosso deve ser cada vez mais o tempo de uma nova escuta da Palavra de Deus e de
uma nova evangelização. É que descobrir a centralidade da Palavra de Deus na vida cristã faz-nos
encontrar o sentido mais profundo daquilo que João Paulo II incansavelmente lembrou: continuar a
missio ad gentes e empreender com todas as forças a nova evangelização, sobretudo naquelas nações
onde o Evangelho foi esquecido ou é vítima da indiferença da maioria por causa de um difundido
secularismo. O Espírito Santo desperte nos homens fome e sede da Palavra de Deus e os torne
zelosos anunciadores e testemunhas do Evangelho.

À imitação do grande Apóstolo das Nações, que ficou transformado depois de ter ouvido a voz do
Senhor (cf. Act 9, 1-30), escutemos também nós a Palavra divina que não cessa de nos interpelar
pessoalmente aqui e agora. O Espírito Santo reservou para Si – narram os Actos dos Apóstolos –
Paulo e Barnabé para a pregação e a difusão da Boa Nova (cf. 13, 2). Também hoje de igual modo o
Espírito Santo não cessa de chamar ouvintes e anunciadores convictos e persuasivos da Palavra do
Senhor.

A Palavra e a alegria

123. Quanto mais soubermos colocar-nos à disposição da Palavra divina, tanto mais poderemos
constatar como o mistério do Pentecostes se está a realizar ainda hoje na Igreja de Deus. O Espírito
do Senhor continua a derramar os seus dons sobre a Igreja, para que sejamos guiados para a verdade
72
total, desvendando-nos o sentido das Escrituras e tornando-nos anunciadores credíveis da Palavra de
salvação. E assim regressamos à Primeira Carta de São João. Na Palavra de Deus, também nós
escutámos, vimos e tocámos o Verbo da vida. Por graça, acolhemos o anúncio de que a vida eterna
se manifestou, de modo que agora reconhecemos que estamos em comunhão uns com os outros,
com quem nos precedeu no sinal da fé e com todos aqueles que, espalhados pelo mundo, escutam a
Palavra, celebram a Eucaristia, vivem o testemunho da caridade. Recebemos a comunicação deste
anúncio – recorda-nos o apóstolo João – para que «a nossa alegria seja completa» (cf. 1 Jo 1, 4).

A Assembleia sinodal permitiu-nos experimentar tudo isto que está contido na mensagem joanina: o
anúncio da Palavra cria comunhão e gera a alegria. Trata-se de uma alegria profunda que brota do
próprio coração da vida trinitária e é-nos comunicada no Filho. Trata-se da alegria como dom
inefável que o mundo não pode dar. Podem-se organizar festas, mas não a alegria. Segundo a
Escritura, a alegria é fruto do Espírito Santo (cf. Gl 5, 22), que nos permite entrar na Palavra e fazer
com que a Palavra divina entre em nós e frutifique para a vida eterna. Anunciando a Palavra de Deus
na força do Espírito Santo, queremos comunicar também a fonte da verdadeira alegria, não uma
alegria superficial e efémera, mas aquela que brota da certeza de que só o Senhor Jesus tem palavras
de vida eterna (cf. Jo 6, 68).

«Mater Verbi et Mater laetitiae»

124. Esta relação íntima entre a Palavra de Deus e a alegria aparece em evidência precisamente na
Mãe de Deus. Recordemos as palavras de Santa Isabel: «Feliz daquela que acreditou que teriam
cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor» (Lc   1, 45). Maria é feliz porque tem
fé, porque acreditou, e, nesta fé, acolheu no seu ventre o Verbo de Deus para O dar ao mundo. A
alegria recebida da Palavra pode agora estender-se a todos aqueles que na fé se deixam transformar
pela Palavra de Deus. O Evangelho de Lucas apresenta-nos este mistério de escuta e de alegria, em
dois textos. Jesus afirma: «Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a
põem em prática» (8, 21). E, em resposta à exclamação duma mulher que, do meio da multidão,
pretende exaltar o ventre que O trouxe e o seio que O amamentou, Jesus revela o segredo da
verdadeira alegria: «Diz antes: Felizes os que escutam a palavra de Deus e a põem em prática» (11,
28). Jesus manifesta a verdadeira grandeza de Maria, abrindo assim também a cada um de nós a
possibilidade daquela bem-aventurança que nasce da Palavra acolhida e posta em prática. Por isso,
recordo a todos os cristãos que o nosso relacionamento pessoal e comunitário com Deus depende do
incremento da nossa familiaridade com a Palavra divina. Por fim, dirijo-me a todos os homens,
mesmo a quantos se afastaram da Igreja, que abandonaram a fé ou que nunca ouviram o anúncio de
salvação. O Senhor diz a cada um: «Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e
abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo» (Ap 3, 20).

Por isso, cada um dos nossos dias seja plasmado pelo encontro renovado com Cristo, Verbo do Pai
feito carne: Ele está no início e no fim de tudo, e n’Ele todas as coisas subsistem (cf. Cl 1, 17).
Façamos silêncio para ouvir a Palavra do Senhor e meditá-la, a fim de que a mesma, através da
acção eficaz do Espírito Santo, continue a habitar e a viver em nós e a falar-nos ao longo de todos os
dias da nossa vida. Desta forma, a Igreja sempre se renova e rejuvenesce graças à Palavra do Senhor,
que permanece eternamente (cf. 1 Pd 1, 25; Is 40, 8). Assim também nós poderemos entrar no
esplêndido diálogo nupcial com que se encerra a Sagrada Escritura: «O Espírito e a Esposa dizem:
“Vem”! E, aquele que ouve, diga: “Vem”! (…) O que dá testemunho destas coisas diz. “Sim, Eu
venho em breve”! Amen. Vem, Senhor Jesus!» (Ap 22, 17.20).

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 30 de Setembro – memória de São Jerónimo – de 2010,
sexto ano de Pontificado.
73
BENEDICTUS PP. XVI

© Copyright 2010 - Libreria Editrice Vaticana

74

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