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Fernando Pessoa, por ele mesmo

O ENIGMA EM PESSOA
Introdução à obra de Fernando
Pessoa

Fernando Pessoa, educado em inglês, adquiriu o


gosto pela poesia lendo Milton, Byron, Shelley, Edgar
Allan Poe e outros poetas de língua inglesa.
Deixando a família em Durban, o jovem estudante,
que até pensava em inglês, retorna a Portugal. Fernando
Pessoa matricula-se, então, no Curso Superior de Letras,
que logo abandona, e entra em contato com os grandes
escritores da língua portuguesa. Impressiona-se
sobremaneira com os sermões do Padre Antônio Vieira
(1608-1697) e particularmente com a obra de Cesário
Verde (1855-1886), Em 1908 começa a trabalhar como
tradutor de cartas comerciais para empresas estrangeiras.
Deste emprego modesto tirará o sustento durante toda a
vida. Boêmio, encontra-se com os amigos em cafés,
Uma vida e muitas invenções especialmente a "Brasileira do Chiado" para discutir
literatura. Em 1912 conhece o poeta Mário de
Ao escrever sobre Fernando Pessoa, o poeta Sá-Carneiro (1890 - 1916), de quem se tornaria grande
mexicano Octavio Paz declara que “os poetas não têm amigo. Em Paris, no dia 26 de abril de 1916, Sá-Carneiro,
biografia. Sua obra é sua biografia”. Afirma ainda, que, no após escrever cartas angustiadas a Fernando Pessoa,
caso de Pessoa, “nada em sua vida é surpreendente -- comete o suicídio.
nada, exceto seus poemas”. Homem de vida pública A revista Orpheu, fundada em 1915 por Fernando
modesta, Fernando Pessoa dedicou-se a inventar. Através Pessoa, Mário de Sá Carneiro,
da poesia, criou outras vidas, despertando, assim, o e outros amigos, como Almada Negreiros e Luís de
interesse por sua própria vida tão pacata. Tornou-se, Montalvor, representa
portanto, o enigma em pessoa. o marco inicial do Modernismo em Portugal.
Após a notoriedade, nem sempre positiva, adquirida
com a publicação de Orpheu, Pessoa mergulha em anos
de relativa obscuridade. Publica um pequeno volume de
poemas em inglês, Antinuos and 35 Sonnets (1918),
ensaios e poemas esporádicos em algumas revistas, funda
outras, envolve-se com o ocultismo e a magia negra,
dedica-se ao estudo da astrologia. Em 1934 publica,
tomando dinheiro emprestado, o livro Mensagem, e com
ele participa do prêmio "Antero de Quental". Recebe o
prêmio de Categoria B. No dia 30 de novembro de 1935,
morre de cirrose hepática.
Fernando Pessoa nunca teve, em vida, o
Nascido em Lisboa, no dia 13 de junho de 1888, reconhecimento que merecia.
Fernando Pessoa perdeu o pai aos cinco anos de idade. Viveu modestamente, em relativa obscuridade. Em vida,
Em 1896, a família se transfere, levada pelo segundo teve apenas dois livros publicados: alguns poemas em
marido de sua mãe, para a cidade de Durban, na África do inglês e Mensagem.
Sul. Lá, cursa o secundário, cedo revelando seu pendor
para a literatura. Em 1903, ingressa na Universidade do
Cabo.

Fernando Pessoa, por ele mesmo


Fernando Pessoa, por ele mesmo

publicadas e ele é considerado hoje, ao lado de Camões,


um dos dois maiores poetas portugueses de todos os
tempos. Nenhum poeta, em língua portuguesa, obteve
tanto prestígio em todo o mundo. O obscuro e modesto
lisboeta tornou-se, assim, um nome importante em todo o
mundo. Graças ao poder da palavra. Graças à magia da
poesia.
Os heterônimos
Pessoa e os heterônimos

Mais do que meros pseudônimos, outros nomes com


os quais um autor assina sua obra, os heterônimos são
invenções de personagens completos, que têm uma
biografia própria, estilos literários diferenciados, e que
produzem uma obra paralela à do seu criador. Fernando
Pessoa criou várias dessas personagens. Três deles foram
excelentes poetas e seus poemas estão nesta antologia,
lado a lado com os que Pessoa assinava com seu próprio
Desde cedo, Fernando Pessoa inventara seus nome. Os estudiosos seguem discutindo por que Pessoa
companheiros. Ainda em Durban, imagina os heterônimos teria criado seus heterônimos. Seria esquizofrenia?
Charles Robert Anon e H. M. F. Lecher. Cria também o Psicografia? Uma grande piada? Um genial jogo de
especialista em palavras cruzadas Alexander Search e marketing poético? De certo, sabemos que a genialidade
outras figuras menores. Mas seria no dia 8 de março de de Fernando Pessoa é grande demais para caber em um
1914 que os heterônimos começariam a aparecer com só poeta. Como bem o sintetizou o seu heterônimo mais
toda a força. Neste dia, Pessoa escreve, de uma só vez, os atribulado, Álvaro de Campos:
49 poemas de O Guardador de Rebanhos, de Alberto
Caeiro. Como resposta, escreve também os seis poemas "Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como
de Chuva Oblíqua, que assina com seu próprio nome. várias pessoas,
Logo, inventaria Álvaro de Campos e, em junho do Quanto mais personalidades eu tiver,
mesmo ano, Ricardo Reis. Um semi-heterônimo de Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Pessoa, Bernardo Soares, só em 1982 teve sua obra, O Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Livro do Desassossego, composta por fragmentos de Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente
prosa poética, publicada. atento,
Álvaro de Campos e Ricardo Reis, assim como o Estiver, sentir, viver, for,
próprio Pessoa, consideravam-se discípulos de Alberto Mais possuirei a existência total do universo,
Caeiro, mas cada um seguiu os ensinamentos do mestre à Mais completo serei pelo espaço inteiro fora."
sua forma, e chegaram até a travar uma polêmica muito
interessante sobre o fazer poético. Além disso, Fernando Pessoa viveu durante os
A última frase de Fernando Pessoa foi escrita em primórdios do Modernismo, uma época em que a arte se
inglês no dia de sua morte: fragmentava em várias tendências simultâneas, as
chamadas Vanguardas: Futurismo, Cubismo,
“I know not what tomorrow will bring” ou “Eu não Expressionismo, Dadaísmo, Surrealismo e muitas outras.
sei o que o amanhã trará” A arte, no momento da explosão das inúmeras
vanguardas modernistas por todo
O amanhã trouxe para Fernando Pessoa uma o mundo, também se dividia e se multiplicava. Fernando
admiração crescente. Suas obras foram aos poucos sendo Pessoa, introdutor das
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vanguardas modernistas em Portugal, ao se dividir, levou a desejar:


fragmentação da
arte moderna às últimas conseqüências. “Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?”

Caeiro coloca-se, portanto, como inimigo do


misticismo, que pretende ver “mistérios” por trás de todas
as coisas. Busca precisamente o contrário: ver as coisas
como elas são, sem refletir sobre elas e sem atribuir a elas
significados ou sentimentos humanos:

“Os poetas místicos são filósofos doentes,


E os filósofos são homens doidos.
Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.
Mas as flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
Alberto Caeiro (1889 - 1915) E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não
eram pedras;
Fernando Pessoa explicou em detalhes a “vida”de E se os rios tivessem êxtases ao luar,
cada um de seus heterônimos. Assim apresenta a vida do Os rios seriam homens doentes.”
mestre de todos, Alberto Caeiro:
"Nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida É importante lembrar que os poetas simbolistas, que
no campo. Não teve profissão, nem educação quase antecederam Fernando Pessoa, estavam impregnados de
alguma, só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a forte misticismo, herdado da poesia romântica. Enquanto
mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos românticos e simbolistas carregavam seus poemas de
rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia avó. Morreu religiosidade, Alberto Caeiro procura, de forma coerente e
tuberculoso." lógica, afastar-se da reflexão sobre Deus.
Pessoa cria uma biografia para Caeiro que se encaixa
com perfeição à sua poesia, como podemos observar nos
49 poemas da série O Guardador de Rebanhos, incluída
“Pensar em Deus é desobedecer a
Deus,
por inteiro nesta antologia. Segundo Pessoa, foram escritos
Porque Deus quis que o não
na noite de 8 de março de 1914, de um só fôlego, sem
conhecêssemos,
interrupções. Esse processo criativo espontâneo traduz
Por isso se nos não mostrou...”
exatamente a busca fundamental de Alberto Caeiro:
completa naturalidade.
Seguindo esta linha de pensamento religioso, Caeiro
escreve um poema muito ousado sobre o menino Jesus.
“Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
No poema VIII de O Guardador de Rebanhos, destituído
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é.
de santidade, Cristo é representado como uma criança
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
normal: espontânea, levada, brincalhona e alegre. Nisso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
está a religiosidade de Caeiro.
Nem por que ama, nem o que é amar...”
Em perfeita consonância com sua busca de
simplicidade e espontaneidade, Alberto Caeiro escreve
Caeiro escreve com a linguagem simples e o
versos livres (sem métrica regular) e brancos (sem rimas).
vocabulário limitado de um poeta camponês pouco
ilustrado. Pratica o realismo sensorial, numa atitude de
rejeição às elucubrações da poesia simbolista.
Assim, constantemente opõe à metafísica o desejo de
não pensar. Faz da oposição à reflexão a matéria básica
das suas reflexões. Esse paradoxo aproxima-o da atitude
zen-budista de pensar para não pensar, desejar não
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desfrutar de prazeres contemplativos e regrados:


"Prazer, mas devagar,
Lídia, que a sorte àqueles não é grata
Que lhe das mãos arrancam.
Furtivos, retiremos do horto mundo
Os deprendandos pomos."

As odes de Reis, como as de Píndaro, recorrem


sempre aos deuses da mitologia grega. Este paganismo, de
caráter erudito, afasta-se da convicção de Alberto Caeiro
de que não se deve pensar em Deus. Para Ricardo Reis,
os deuses estão acima de tudo e controlam o destino dos
homens:

"Acima da verdade estão os deuses.


Nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo.
Ricardo Reis (1887 - 1935?)
Se Alberto Caeiro era um camponês autodidata
desprovido de erudição, seu discípulo Ricardo Reis era um
erudito que insistia na defesa dos valores tradicionais, tanto
na literatura quanto na política. De acordo com Pessoa:

"Ricardo Reis nasceu no Porto. Educado em


colégio de jesuítas, é médico e vive no Brasil desde
1919, pois expatriou-se espontaneamente por ser
monárquico. É latinista por educação alheia, e um
semi-helenista por educação própria."

Discípulo de Caeiro, Reis retoma o fascínio do


mestre pela natureza pelo viés do neoclassicismo. Insiste
nos clichês árcades do Locus Amoenus (local ameno) e do
Carpe Diem (aproveitar o momento).
Neoclássico Reis busca o equilíbrio, a "Aurea
Mediocritas" ( equilíbrio de ouro) tão prezada pelos poetas
do século XVIII. A busca da espontaneidade de Caeiro Álvaro de Campos (1890 - 1935?)
transforma-se em Reis, na procura do equilíbrio contido
dos clássicos. Deixa de ser uma simplicidade natural e Fernando Pessoa nos informa que Álvaro de
passa a ser estudada, forjada através do intelecto: Campos:

“Para ser grande, sê inteiro: nada “Nasceu em Tavira, teve uma educação vulgar de
Teu exagera ou exclui. Liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas
No mínimo que fazes. férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o
Assim como em cada lago a lua toda Opiário. Agora está aqui em Lisboa em inatividade."
Brilha, porque alta vive.”
Como normalmente acontece com os poetas de
A linguagem de Ricardo Reis é clássica. Usa um carne e osso, o heterônimo Álvaro de Campos apresenta
vocabulário erudito e, muito apropriadamente, seus três fases distintas em sua poesia. De início é influenciado
poemas são metrificados e apresentam uma sintaxe pelo decadentismo simbolista, depois pelo futurismo e por
rebuscada. fim, amargurado, escreve poemas pessimistas e
Os poemas de Reis são odes, poemas líricos de tom desiludidos.
alegre e entusiástico, cantados pelos gregos, ao som de No poema Opiário, o engenheiro Campos,
cítaras ou flautas, em estrofes regulares e variáveis. Nelas, influenciado pelo simbolismo, ainda metrifica e rima.
convida pastoras como Lídia, Neera ou Cloe para Escreve quadras, estrofes de quatro versos, de teor
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autobiográfico e já se apresenta amargurado e insatisfeito:

"Eu fingi que estudei engenharia.


Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avozinha que anda
Pedindo esmolas às portas da alegria."
Campos em seguida envereda pelo futurismo,
adotando um estilo febril, entre as máquinas e a agitação
da cidade, do que resultam poemas como Ode Triunfal:

"À dolorosa luz das lâmpadas elétricas da fábrica Fernando Pessoa, ele mesmo
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza A obra que Fernando Pessoa assinou com seu
disto, próprio nome está reunida nos volumes Cancioneiro e
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos Mensagem.
antigos." O ancioneiro é composto por poemas líricos, rimados
e metrificados,
Desta fase são também a Ode Marítima e a de forte influência simbolista. É do Cancioneiro um dos
Saudação a Walt Whitman. Homenageando o grande poemas mais célebres de Pessoa, Autopsicografia, em que
escritor norte-americano, Campos, além de se referir ao reflete sobre o fazer poético:
conhecido homossexualismo de Whitman, de que parece
comungar, revela uma das mais fortes influências sobre o "O poeta é um fingidor.
seu estilo: Finge tão completamente
Os poemas de Álvaro de Campos são marcados pela Que chega a fingir que é dor
oralidade e pela prolixidade que se espalha em versos A dor que deveras sente.
longos, próximos da prosa. Despreza a rima ou métrica E os que lêem o que escreve,
regular. Despeja seus versos em torrentes de incontrolável Na dor lida sentem bem,
desabafo. Não as duas que ele teve,
A última fase do heterônimo Álvaro de Campos, em Mas só a que eles não têm."
que pontifica o poema Tabacaria, apresenta um poeta
amargurado, refletindo de forma pessimista e desiludida O leitor atento há de perceber que o poeta parte de
sobre a existência: uma dor sua, real, integral. Só quem sente uma dor pode
fingir outra que não sente. Só quem tem personalidade
"Não sou nada. pode ser ator. Como Fernando Pessoa. Já os leitores,
Nunca serei nada. lêem no poema a dor ou o sentimento que lhes falta e que
Não posso querer ser nada. gostariam de ter. Sentem-na ao atribuí-la a poeta.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do Mensagem (1934), foi o único livro em língua
mundo." portuguesa publicado por Pessoa.
Os poemas do livro estão organizados de forma a compor
Assim como Ricardo Reis, também Álvaro de uma epopéia fragmentária, em que o conjunto dos textos
Campos confessa-se discípulo de Alberto Caeiro. Mas se líricos acaba formando um elogio de teor épico a Portugal.
Reis envereda pelo neoclassicismo ao tentar imitar o Traçando a história do seu país, Pessoa envereda por um
mestre, Campos se revela inquieto e frustrado por não nacionalismo místico de caráter sebastianista.
conseguir seguir os preceitos de Caeiro. No poema que se O livro Mensagem está dividido em três partes:
inicia pelo verso "Mestre, meu mestre querido", dialoga Brasão, Mar português e O Encoberto.
com Caeiro, revelando toda sua angústia: Na primeira, conta-se a história das glórias portuguesas.
Na segunda, são apresentadas as navegações e conquistas
"Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua marítimas de Portugal. Na terceira, é apresentado o mito
serenidade. sebastianista de retorno de Portugal às épocas de glória.
Meu coração não aprendeu nada. A primeira parte de Mensagem, Brasão, se estrutura
(...) como o brasão português, que é formado por dois
A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação." campos: um apresenta sete castelos, o outro, cinco quinas.
No topo do brasão, estão a coroa e o timbre, que
apresenta o grifo, animal mitológico que tem cabeça de
leão e asas de águia. Assim se dividem os poemas desta
parte, remetendo ao brasão de Portugal. Versam sobre as

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grandes figuras da história de Portugal, desde Dom


Henrique, fundador do Condado Portucalenses, passando
por sua esposa, Dona Tareja, e seu filho, primeiro rei de
Fernando Pessoa por ele
Portugal, Dom Afonso Henriques, até o infante Dom mesmo
Henrique (1394-1460), fundador da Escola de Sagres e
grande fomentador da expansão ultramarina portuguesa, e
Afonso de Albuquerque (1462-1515), dominador Nota biográfica escrita por Fernando Pessoa em
30 de Março de 1935 e publicada, em parte,
português do Oriente. Até o mito de Ulisses, que teria como introdução ao poema editado pela Editorial
fundado a cidade de Ulissepona, depois Lisboa, é Império em 1940 e intitulado: "À memória do
apresentado: Presidente-Rei Sidónio Pais")

"O mito é o nada que é tudo.


O mesmo sol que abre os céus Nome completo: Fernando António Nogueira Pessoa
É um mito brilhante e mudo."

A segunda parte, Mar português, apresenta as Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia
principais etapas da expansão ultramarina que levou dos Mártires, no prédio nº 4 do Largo de S. Carlos
Portugal a ocupar um lugar de destaque no mundo durante (hoje do Directório), em 13 de Junho de 1888.
os séculos XV e XVI:

"E ao imenso e possível oceano Filiação: Filho legítimo de Joaquim Seabra Pessoa e
Ensinam estas Quinas, que aqui vês, de D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira. Neto
Que o mar com fim será grego ou romano: paterno do General Joaquim António de Araújo
Pessoa, combatente das campanhas liberais, e de D.
O mar sem fim é português."
Dionísia Seabra; neto materno do Conselheiro Luís
António Nogueira, jurisconsulto, e que foi
Já a última parte, O Encoberto, apresenta o director-geral do Ministério do Reino, e de D.
misticismo em torno da figura de Dom Sebastião, rei de Madalena Xavier Pinheiro. Ascendência geral - misto
Portugal cuja frota foi dizimada em ataque aos mouros em de fidalgos e de judeus.
1578. Muitas previsões, como a do sapateiro Bandarra e a
do padre Antônio Vieira, prevêem o retorno de Dom
Sebastião para resgatar o poderio de Portugal, criando o Profissão: A designação mais prórpia será "tradutor",
Quinto Império, marcando a supremacia de Portugal sobre a mais exacta a de "correspondente estrangeiro em
casas comerciais". O ser poeta e escritor não
o mundo:
constitui profissão, mas vocação.

"Grécia, Roma, Cristandade,


Europa, os quatro se vão
Funções sociais que tem desempenhado: Se por
Para onde vai toda idade. isso se entende cargosn públicos, ou funções de
Quem vem viver a verdade destaque, nenhumas.
Que morreu dom Sebastião?"

Obras que tem publicado: A obra está


essencialmente dispersa, por enquanto, por várias
revistas e publicações ocasionais. O que, de livros ou
folhetos, considera como válido, é o seguinte: "35
Sonnets" (em inglês), 1918; "English Poems I-II" e
"English Poems III" (em inglês também), 1922, e o
livro "Mensagem", 1934, premiado pelo Secretariado
de Propaganda Nacional, na categoria "Poema".

Educação: Em virtude de, falecido seu pai em 1893,


sua mãe ter casado, em 1895, em segundas núpcias,
com o Comandante João Miguel Rosa, Cônsul de
Portugal em Durban, Natal, foi ali educado. Ganhou o
prémio Raínha Vitória de estilo inglês na Universidade
do Cabo da Boa Esperança em 1903, no exame de
admissão, aos 15 anos.

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Ideologia política: Considera que o sistema Passo agora a responder à sua pergunta sobre a
monárquico seria o mais próprio para uma nação génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo
orgânicamente imperial como é Portugal. Considera, responder-lhe completamente.
ao mesmo tempo, a Monarquia completamente
inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus
entre regimes votaria, embora com pena, pela heterónimos é o fundo traço de histeria que existe
República. Conservador do estilo inglês, isto é, liberal em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se
dentro do conservantismo, e absolutamente sou, mais propriamente, um histeroneurasténico.
anti-reaccionário. Tendo para esta Segunda hipótese, porque há em
mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente
dita, não enquadra no registo dos seus sintomas.
Seja como for, a origem mental dos meus
Posição iniciática: heterónimos está na minha tendência orgânica e
....................................................................... constante para a despersonalização e para a
.......................................... simulação. Estes fenómenos - felizmente para mim e
para outros - mentalizaram-se em mim; quero dizer,
....................................................................... não se manifestam na minha vida prática, exterior e
....................................................................... de contacto com outros; fazem explosão para dentro
.. e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher - na
mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques
e coisas parecidas - cada poema de Álvaro de
Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo Campos (o mais histericamente histérico de mim)
místico, de onde seja abolidatoda infiltração seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem -
católica-romana, criando-se, se possível for, um e nos homens a histeria assume principalmente
sebastianismo novo, que a substitua espiritualmente, aspectos mentais: assim tudo acaba em silêncio e
se é que no catolicismo português houve alguma vez poesia.
espiritualidade. Nacionalista que se guia por este
Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do
lema: "Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação."
meu heteronismo. Vou agora fazer-lhe a história
directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles
que morreram, e de alguns dos quais já me não
Posição social: Anticomunista e anti-socialista. O lembro - os que jazem perdidos no passado remota
mais deduz-se do que vai dito acima. da minha infância quase esquecida.

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande),


veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagâ.
Resumo destas últimas considerações: Ter Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo
sempre na memória o mártir Jacques de Molay, Álvaro de Campos, mas num estilo de meia
Grão-Mestre dos Templários, e combater, sempre e regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-s-me,
em toda a parte, os seus três assassinos - a contudo, numa penumbra mal urdida, um vago
Ignorância, o Fanatismo e a Tirania. retrato da pessoa que estava a fazer aquilo (tinha
nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia


Lisboa, 30 de Março de 1933 de fazer uma partida ao Sá-Carneiro - de inventar
um poeta bucólico, de espécie complicada, e
apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer
espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o
poeta mas nada consegui. Num dia em que
====== finalmente desistira - foi em 8 de Março de 1914 -
acerquei-me
"...E contudo - penso-o com tristeza - pus no Caeiro
todo o meu poder de despersonalização dramática,
pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei
vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso.
de Campos toda a emoção que não dou nem a mim E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie
nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o
que todos estes têm que ser, na prática da dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro
publicação preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e assim. Abri com o título Guardador de Rebanhos. E o
simples! que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim,
a quem dei desde logo o nome Alberto Caeiro.
Creio que respondi à sua pergunta. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim
o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que
Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, tive. E tanto assim que, escrito que foram esses
responderei. Mais planos não tenho, por enquanto. E, trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro
sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que
é caso para dizer, Graças a Deus! constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa.

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Imediatamente e totalmente. Foi o regresso de profissão nem educação quase alguma. Álvaro de
Fernando Pessoa - Alberto Caeiro a Fernando Pessoa Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de
- ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando 1890 (às 1,30 horas da tarde, diz-me o Ferreira
Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para
Caeiro. essa hora, está certo). Este, como sabe é
engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura
- instintiva e subconscientemente - uns discípulos. média, e, embora realmente frágil (morreu
Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis tuberculoso), não parecia tão frágil quanto era.
latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-me a si Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais
mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, baixo, mais forte, mais seco. Álvaro de Campos é alto
e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me (1,75m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um
impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos - o
máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago
surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos - a Ode moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo
com esse nome e o homem com o nome que tem. vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e
normalmente apartado ao lado, monóculo.
Criei, então uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo
em moldes de realidade. Graduei as influências, Caeiro, como disse, não teve mais educação que
conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as quase nenhuma - só instrução primária; morreram-lhe
discussões e as divergências de critérios, e em tudo cedo e pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa,
isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com
que ali houve. Parece que tudo se passou uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num
independentemente de mim. E parece que assim colégio de jesuítas, é, como disse, médico: vive no
ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a Brasil desde 1919, pois se expatriou
discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de espontaneamente por ser monárquico. É um latinista
Campos, verá como eles são diferentes, e como eu por educação alheia, e um semi-helenista por
não sou nada na matéria. educação própria. Álvaro de Campos teve uma
educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a
Quando foi da publicação de Orpheu, foi preciso, à Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e
última hora, arranjar qualquer coisa para completar o depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente
número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio
eu fizesse um poema "antigo" do Álvaro de Campos - beirão que era padre.
um poema de como o Álvaro de Campos seria antes
de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua Como escrevo em nome desses três?...
influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar
Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber
todas as tendências latentes do Álvaro de Campos,
ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis,
conforme haveriam de ser depois de reveladas, mas
depois de uma deliberação abstracta, que
sem haver ainda qualquer traço de contacto com o
sùbitamente se concretiza numa ode. Campos,
seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho
quando sinto um súbito impulso para escrever e não
escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo
sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares,
poder de despersonalização que tive que
que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de
desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e
Campos,
que dá o Álvaro em botão...
Creio que lhe expliquei a origem dos meus
heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que
precise de um esclarecimento mais lúcido - estou
aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de
escrevendo depressa, e quando escrevo depressa
sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades
não sou muito lúcido -, diga, que de bom grado lho
de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um
darei. E, é verdade, um complemento
constante devaneio. É um semi-heterónimo porque,
não sendo a personalidade a minha, é, não diferente
verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu,
das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o
Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta,
verdadeiras. É para que saiba com quem está e o português perfeitamente igual; ao passo que
lidando, meu caro Casais Monteiro! Caeiro escrevia mal o português, "eu próprio" em vez
de "eu mesmo", etc., Reis melhor do que eu, mas
Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo com um purismo que considero exagerado. O difícil
diante da mim, no espaço incolor mas real do sonho, para mim, é escrever a prosa de Reis - ainda inédita
as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro - ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque
de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. é mais espontânea, em verso).
Ricardo Reis nasceu em 1887 não me lembro do dia e
mês (mas tenho-os algures), no Porto, é médico e
está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu
em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas (Extractos duma carta escrita a Casais Monteiro.
viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve In PÁGINAS DE DOUTRINA ESTÉTICA, pags. 259 a

Fernando Pessoa, por ele mesmo 8


Fernando Pessoa, por ele mesmo

268) averiguar com perguntas casuais nos meios literários


e artísticos portugueses do que o poderá demonstar,
de modo realmente probante, qualquer
documentação. O requerente chama, porém, a
Exma. Comissão Administrativa do Museu-Biblioteca atenção de V.Exas para os dois estudos que lhe
Conde de Castro Guimarães foram dedicados pelo jovem - e não fica mal dizer
notável - crítico coimbrão João Gaspar Simões, a
Fernando Nogueira Pessoa, solteiro, maior, escritor,
págs, 171 a 191 do livro Temas (Edições Presença,
residente em Lisboa, na Rua Coelho da Rocha,
Coimbra, 1929) e a págs, 164 a 193 do livro O
número dezasseis, primeiro andar, e provisòriamente
Mistério da Poesia (Coimbra, Imprensa da
em Cascais, na Rua Oriental do Passeio, porta dois,
Universidade, 1931), assim como para o que do
vem concorrer perante V.Exa ao lugar de
requerente diz Pierre Hourcade no artigo Panorama
conservador do Museu-Biblioteca Conde de Castro
du Modernisme Littéraire ao Portugal inserto no
Guimarães, com os fundamentos seguintes, expostos
número de Janeiro-Maio (nº1.2) do Bulletin des
no termo do artigo 6º e seus §§, do Regulamento do
Études Portugaises, publicados pela Imprensa da
Museu-Biblioteca, conforme estão transcritos no
Universidade de Coimbra e pelo Institut Français au
anúncio inserto em O Século, de Lisboa, do dia 1 do
Portugal. Quanto a opiniões, presumivelmente
mês corrente.
autorizadas, sobre os versos ingleses do requerente
juntam-se as críticas que aos dois primeiros folhetos
O requerente tem 44 anos de idade, é natural de
(os dois segundos não foram enviados a jornais)
Lisboa, freguesia dos Mártires, e filho legítimo de
foram feitas pelo Suplemento Literário do Times e
Joaquim Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena
pelo Glasgow Herald, apresentado assim, em certo
Nogueira Pessoa, ambos já falecidos. Não junta
modo, opiniões representativas da crítica inglesa e
certidão de idade, nem, aliás, certidão de registo
escocesa.
criminal, por o citado artigo 6º e seus §§ não
exigirem, nem explicita nem implìcitamente, outros § 4 - Os documentos citados em referência ao § 1 e
documentos que não sejam os rigorosamente a este juntos demonstram mais do que o necessário
precisos para apreciar a afirmação das habilitações quanto ao conhecimento que o requerente tem da
neles indicadas, como motivos de preferência. língua inglesa. Quanto ao seu conhecimento da língua
francesa, crê o requerente que na ausência de prova
documental realmente válida (como a que tem para o
inglês), o melhor que pode fazer é juntar uma folha
São as seguintes as habilitações do requerente, de impressão da Contemporânea, número 7, onde, a
expostas nos termos do citado artigo e seus §§, pela págs. 20 e 21, vêm três canções (Trois Chansons
ordem dos mesmos §§, e com o apoio documental Mortes) que escreveu em francês. - No texto do
que irá sendo indicado no decurso da presente artigo 6º pròpriamente dito, do Regulamento, diz-se
exposição: que é necessário que o conservador-bibliotecário
§ 1 - O requerente tem o Curso ou Exame Intermédio seja pessoa de "reconhecida competência e
da Universidade (inglesa) do Cabo da Boa Esperança, idoneidade". Salvo o que de competência e
como prova com a respectiva carta. À parte isto, foi idoneidade está implícito nas habilitações indicadas
concedido ao requerente, na mesma Universidade, o como motivos de preferência nos §§ di artigo e
Prémio Rainha Vitória, de estilo inglês, como prova portanto se prova
com a carta oficial assinada pelo secretário
arquivista da Universidade, em que se comunica ao
documentalmente pelos documentos referentes às
requerente a concessão do prémio. Juntam-se os 2
indicações de cada §, a competência e a idoneidade
citados documentos. § 3 - O requerente tem uma já
não são susceptíveis de prova documental. Incluem,
extensa colaboração
até, elementos, como o aspecto físico e a educação,
que são indocumentáveis por natureza.
dispersa por várias revistas portuguesas, de onde se
lhe advém o ser hoje conhecido no País, sobretudo
entre as novas gerações, a um ponto quase Cascais, 16 de Setembro de 1932
injustificável para quem se tem abstido de reunir em
livros essa colaboração. Importa talvez citar as Fernando Nogueira Pessoa.
revistas em que essa colaboração foi ou mais assídua
ou mais marcante. A Águia (nos anos 1912 a 1914),
Orpheu, Centauro, Contemporânea, Presença,
Athena e Descobrimento. Foi o requerente um dos
directores do Orpheu, e dirigiu, conjuntamente com o Alberto Caeiro
pintor Ruy Vaz, a revista de arte Athena. - À
abstenção do requerente de publicar livros fazem O Guardador De Rebanhos
excepção os quatro folhetos em verso inglês que,
destinados à Biblioteca do Museu- Biblioteca, II (8-3-1914)
acompanham o presente requerimento.
O meu olhar é nítido como um girassol.
Quanto o serem ou não estes escritos "de
reconhecido mérito", melhor o poderão V.Exas Tenho o costume de andar pelas estradas

Fernando Pessoa, por ele mesmo 9


Fernando Pessoa, por ele mesmo

Olhando para a direita e para a esquerda, E todos os meus poemas são diferentes,

E de vez em quando olhando para trás... Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer
isto.
E o que vejo a cada momento
Às vêzes ponho-me a olhar para uma pedra.
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
Não me ponho a pensar se ela sente.
E eu sei dar por isso muito bem...
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Sei ter o pasmo essencial
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Que tem uma criança se, ao nascer,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Reparasse que nascera deveras...
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum
Sinto-me nascido a cada momento comigo.

Para a eterna novidade do Mundo... Outras vezes oiço passar o vento,

Creio no mundo como um malmequer, E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena
ter nascido.
Porque o vejo. Mas não penso nêle
Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo
Porque pensar é não compreender... isto;
O Mundo não se fêz para pensarmos nêle Mas acho que isto deve estar bem porque o penso
sem estôrvo,
(Pensar é estar doente dos olhos)
Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Mas para olharmos para êle e estarmos de acôrdo...
Porque o penso sem pensamentos,
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Uma vez chamaram-me poeta materialista,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
E eu admirei-me, porque não julgava
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Amar é a eterna inocência,
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o
E a única inocência não pensar... tenho:

O valor está ali, nos meus versos.

A Espantosa Realidade das Tudo isso é absolutamente independente da minha


vontade.
Cousas
(7-11-1915)
Um Dia de Chuva
(8-11-1915)
A espantosa realidade das cousas
Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.
É a minha descoberta de todos os dias.
Ambos existem; cada um como é.
Cada cousa é o que é,

E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, Passei Toda a Noite


E quanto isso me basta. (10-7-1930)

Basta existir para se ser completo. Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço,
a figura dela,
Tenho escrito bastantes poemas.
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a
Hei de escrever muitos mais, naturalmente. encontro a ela.

Cada poema meu diz isto, Faço pensamentos com a recordação do que ela é
Fernando Pessoa, por ele mesmo 10
Fernando Pessoa, por ele mesmo

quando me fala, É um universo barato.

E em cada pensamento ela varia de acôrdo com a


sua semelhança.

Amar é pensar.
THE TIMES
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar
16-8-1928
nela.
Sentou-se bêbado à mesa e escreveu um fundo
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não
penso senão nela.
Do Times, claro, inclassificável, lido,
Tenho uma grande distração animada.
Supondo (coitado!) que ia ter influência no mundo...
Quando desejo encontrá-la
.......................................................................
..................
Quase que prefiro não a encontrar,
Santo Deus!... E talvez a tenha tido!
Para não ter que a deixar depois.

Não sei bem o que quero, nem quero saber o que


quero. Quero só
PSIQUETIPIA (OU PSICOTIPIA)
Pensar nela. 7-11-1933

Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar. Símbolos. Tudo símbolos...

Todos os Dias Se calhar, tudo é símbolos...

(23-7-1930) Serás tu um símbolo também?

Todos os dias agora acordo com alegria e pena. Olho, desterrado de ti, as tuas mãos brancas

Antigamente acordava sem sensação nenhuma: Postas, com boas maneiras inglêsas, sôbre a toalha
acordava. da mesa.

Tenho alegria e pena porque perco o que sonho. Pessoas independentes de ti...

E posso estar na realidade onde está o que sonho. Olho-as: também serão símbolos?

Não sei o que hei de fazer das minhas sensações. Então todo o mundo é símbolo e magia?
Não sei o que hei de ser comigo sòzinho.
Se calhar é...

Quero que ela me diga qualquer coisa para eu E porque não há de ser?
acordar de novo.
Símbolos...

Estou cansado de pensar...

Álvaro de Campos Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me


olham.

Sorris, sabendo bem em que eu estava pensando...


Começo a conhecer-me. Não existo.
Meu Deus! E não sabes...
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros
me fizeram, Eu pensava nos símbolos...

Ou metade dêsse intervalo, porque também há Respondo fielmente à tua conversa por cima da
vida... mesa...

Sou isso, enfim...

Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos "It was very strange, wasn't it?"
de chinelos no corredor.
"Awfully strange. And how did it end?"
Fique eu no quarto só com o grande sossêgo de mim
"Well, it didn't end. It never does, you know."
mesmo.
Fernando Pessoa, por ele mesmo 11
Fernando Pessoa, por ele mesmo

Sim, you know... Eu sei... Ridículas.

Sim, eu sei... Mas, afinal,

É o mal dos símbolos, you know. Só as criaturas que nunca escreveram

Cartas de amor

Yes, I know. É que são

Conversa perfeitamente natural... Mas os símbolos? Ridículas.

Não tiro os olhos de tuas mãos... Quem são elas? Quem me dera no tempo em que escrevia

Meu Deus! Os símbolos... Os símbolos... Sem dar por isso

Cartas de amor

Ridículas.
Soneto já antigo
A verdade é que hoje
(12-1922)
As minhas memórias
Olha Daisy: quando eu morrer tu hás de
Dessas cartas de amor
dizer aos meus amigos aí de Londres,
É que são
embora não sintas, que tu escondes

a grande dor da minha morte. Irás de


Ridículas.
Londres p'ra Iorque, onde nasceste (dizes...
(Todas as palavras esdrúxulas,
que eu nada que tu digas acredito),
Como os sentimentos esdrúxulos.
contar àquele pobre rapazito
São naturalmente
que me deu tantas horas tão felizes,
Ridículas).
Embora não o saibas, que morri...

mesmo êle, a quem eu tanto julguei amar, Às vezes tenho idéias felizes,
nada se importará... Depois vai dar Idéias sùbitamente felizes, em idéias
a notícia a essa estranha Cecily E nas palavras em que naturalmente se despegam...
que acreditava que eu seria grande... Depois de escrever, leio...
Raios partam a vida e quem lá ande! Por que escrevi isto?

Cartas de Amor Onde fui buscar isto?

Tôdas as cartas de amor são De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...

Ridículas. Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta

Não seriam cartas de amor se não fôssem Com que alguém escreve a valer o que nós aqui
traçamos?
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,

Como as outras, A Fernando Pessoa


Ridículas. (1915)

As cartas de amor, se há amor, Depois de ler o seu drama estático O Marinheiro


em Orfeu I
Têm de ser
Depois de doze minutos
Fernando Pessoa, por ele mesmo 12
Fernando Pessoa, por ele mesmo

Do seu drama O Marinheiro Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.

Em que os mais ágeis e astutos O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir

Se sentem com sono e brutos, É tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi.

E de sentido nem cheiro, Não ser nada, ser uma figura de romance,

Diz uma das veladoras Sem vida, sem morte material, uma idéia,

Com langorosa magia: Qualquer coisa que nada tornasse útil ou feia,

Uma sombra num chão irreal, um sonho num transe.

De eterno e belo há apenas o sonho.

Porque estamos nós falando ainda?


Clearly Non-Campos!
Não sei qual é o sentimento, ainda inexpressivo,
Ora isso mesmo é que eu ia
Que sùbitamente, como uma sofucação, me aflige
Perguntar a essas senhoras...
O coração que, de repente,

(1-3-1917) Entre o que vive, se esquece.

No lugar dos palácios desertos e em ruínas Não sei qual é o sentimento


Que me desvia do caminho,
À beira do mar,

Leiamos, sorrindo, o segredo das sinas Que me dá de repente

De quem sabe amar. Um nojo daquilo que seguia,

Qualquer que êle seja, o destino daqueles Uma vontade de nunca chegar a casa,

Que o amor levou Um desejo de indefinido,

Para a sombra, ou na luz se fêz a sombra dêles, Um desejo lúcido de indefinido.

Qualquer fôsse o vôo. Quatro vezes mudou a stação falsa

Por certo êles foram mais reais e felizes. No falso ano, no imutável curso

Do tempo consequente;

Ao verde segue o sêco, e ao sêco o verde,


(1-3-1917)

Não sei. Falta-me um sentido, um tacto E não sabe ninguém qual é o primeiro,

Para a vida, para o amor, para a glória... Nem o último, e acabam.

Para que serve qualquer história,

Ou qualquer fato?

Estou só, só como ninguém ainda estêve,

Õco dentro de mim, sem depois nem antes. (18-8-1934)

Parece que passam sem ver-me os instantes, Depus a máscara e vi-me ao espelho. -

Mas passam sem que o seu passo seja leve. Era a criança de há quantos anos.

Começo a ler, mas cansa-me o que inda não li. Não tinha mudado nada...

É essa a vantagem de saber tirar a máscara.


Fernando Pessoa, por ele mesmo 13
Fernando Pessoa, por ele mesmo

É-se sempre a criança, É pouco o tempo que tens! Dormita!

O passado que foi É a véspera de não partir nunca!

A criança.

Depus a máscara, e tornei-a a pô-la. (9-10-1934)

Assim é melhor, O que há em mim é sobretudo cansaço -

Assim sem a máscara. Não disto nem daquilo,

E volto à personalidade como a um términus de linha. Nem sequer de tudo ou de nada:

Cansaço asssim mesmo, êle mesmo,

Cansaço.

(27-9-1934) A subtileza das sensações inúteis,

Na véspera de não partir nunca As paixões violentas por coisa nenhuma,

Ao menos não há que arrumar malas Os amôres intensos por o suposto em alguém,

Nem que fazer planos em papel, Essas coisas tôdas -

Com acompanhamento involuntário de Essas eo que falta nelas eternamente -;


esquecimentos,
Tudo isso faz um cansaço,
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Êste cansaço,
Não há que fazer nada
Cansaço.
Na véspera de não partir nunca.
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Grande sossêgo de já não haver sequer de que ter
sossêgo! Há sem dúvida quem deseje o impossível,

Grande tranquilidade a que nem sabe encolher Há sem dúvida quem não queira nada -
ombros
Três tipos de idealistas, e eu nenhum dêles:
Por isso tudo, ter pensado o tudo
Porque eu amo infinitamente o finito,
É o ter chegado deliberadamente a nada.
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Como uma oportunidade virada do avêsso.
Ou até se não puder ser...
Há quantas vezes vivo
E o resultado?
A vida vegetativa do pensamento!
Para êles a vida vivida ou sonhada,
Todos os dias sine linea
Para êles o sonho sonhado ou vivido,
Sossêgo, sim, sossêgo...
Para êles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Grande tranquilidade...
Para mim só um grande, um profundo,
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e
psíquicas! E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,

Que prazer olhar para as malas fitando como para Um supremíssimo cansaço,
nada!
Íssimo, íssimo, íssimo,
Dormita, alma, dormita!
Cansaço...
Aproveita, dormita!

Dormita!
17-1-1933
Fernando Pessoa, por ele mesmo 14
Fernando Pessoa, por ele mesmo

E o esplendor dos mapos, caminho abstrato para a Quem fui é alguém que amo
imaginação concreta,
Porém sòmente em sonho.
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.
E a saudade que me aflige a mente
O que de sonho jaz nas encadernações vestustas,
Não é de mim nem do passado visto,
Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e
esguias) dos velhos livros. Senão de quem habito

(Tinta remota e desbotada aqui presente para além Por trás dos olhos cegos.
da morte,
Nada, senão o instante, me conhece.
O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas
ilustrações, Minha mesma lembrança é nada, e sinto

O que certas gravuras de anúncios sem querer Que quem sou e quem fui
anunciam.
São sonhos diferentes.
Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime,

Tudo o que diz o que não diz, (30-7-1914)

E a alma sonha, diferente e distraída. Só esta liberdade nos concedem


Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que Os deuses: submetermo-nos
estamos!)
Ao seu domínio por vontade nossa.

Mais vale assim fazermos


Ah, Um Soneto Porque só na ilusão da liberdade
Meu coração é um almirante louco A liberdade existe.
que abandonou a profissão do mar Nem outro jeito os deuses, sobre quem
e que a vai relembrando pouco a pouco O eterno fado pesa,
em casa a passear, a passear... Usam para seu calmo e possuído
No movimento (eu mesmo me desloco Convencimento antigo
nesta cadeira, só de o imaginar) De que é divina e livre a sua vida.
o mar abandonado fica em foco Nós, imitando os deuses,
nos músculos cansados de parar. Tão pouco livres como eles no Olimpo,
Há saudades nas pernas e nos braços Como quem pela areia
Há saudades no cérebro por fora. Ergue castelos para encher os olhos,
Há grandes raivas feitas de cansaçs. Ergamos nossa vida
Mas - esta é boa! - era do coração E os deuses saberão agradecer-nos
que eu falava... e onde diabo estou eu agora O sermos tão como eles.
com almirante em vez de sensação?...

(1-7-1916)

Ricardo Reis Segue o teu destino,

(26-5-1930) Rega as tuas plantas,

Se recordo quem fui, outrem me vejo, Ama as tuas rosas.

E o passado é o presente na lembrança. O resto é a sombra

Fernando Pessoa, por ele mesmo 15


Fernando Pessoa, por ele mesmo

De árvores alheias. Nada de verdadeiro a nós nos une -

A realidade Somos quem somos, e quem fomos foi

Sempre é mais ou menos Coisa vista por dentro.

Do que nós queremos.


(14-2-1933)
Só nós somos sempre

Iguais a nós-próprios. Para ser grande, sê inteiro: nada

Suave é viver só. Teu exagera ou exclui.

Grande e nobre é sempre Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

Viver simplesmente. No mínimo que fazes.

Deixa a dor nas aras Assim em cada lago a lua tôda

Como ex-voto aos deuses. Brilha, porque alta vive.

Vê de longe a vida.

Nunca a interrogues. (11-7-1914)

Ela nada pode As rosas amo dos jardins de Adônis,

Dizer-te. A resposta Essas volucres amo, Lídia, rosas,

Está além dos deuses. Que em o dia em que nascem,

Mas serenamente Em êsse dia morrem.

Imita o Olimpo A luz para elas é eterna, porque

No teu coração. Nascem nascido já o sol, e acabam

Os deuses são deuses Antes que Apolo deixe

Porque não se pensam. O seu curso visível.

Assim façamos nossa vida um dia,

(26-4-1928) Inscientes, Lídia, voluntàriamente

Inglória é a vida, e inglório o conhecê-la. Que há noites e após

Quantos, se pensam, não se reconhecem O pouco que duramos.

Os que se conheceram! (17-7-1914)

A cada hora se muda não só a hora Não consentem os deuses mais que a vida.

Mas o que se crê nela, e a vida passa Tudo pois refusemos, que nos alce

Entre viver e ser. A irrespiráveis píncaros,

Perenes sem ter flôres.


(6-7-1930)
Só de aceitar tenhamos a ciência,
Não sei de quem recordo meu passado E, enquanto bate o sangue em nossas fontes,
Que outrem fui quando o fui, nem me conheço Nem se engelha connosco
Como sentindo com minha alma aquela O mesmo amor, duremos,
Alma que a sentir lembro, Como vidros, às luzes transparentes
De dia a outro nos desamparamos. E deixando escorrer a chuva triste,

Fernando Pessoa, por ele mesmo 16


Fernando Pessoa, por ele mesmo

Só mornos ao sol quente, Pelo processo divino

E refletindo um pouco. Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro

Tudo pela estrada fora,

E falso, êle vem seguro,


Eros e Psique
E, vencendo estrada e muro,

Chega onde em sono ela mora.


...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades que
nos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que E, inda tonto do que houvera,
vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são,
ainda que opostas, a mesma verdade. À cabeça, em maresia,

Ergue a mão, e encontra hera,

Do Ritual do Grau de Mestre do Átrio na Ordem E vê que êle mesmo era


Templária de Portugal
A Princesa que dormia.

Conta a Lenda que dormia

Uma Princesa encantada


Cancioneiro
A quem só despertaria

Um Infante, que viria

De além do muro da estrada.


Natal... Na província neva.
Êle tinha que, tentado,
Nos lares aconchegados,
Vencer o mal e o bem,
Um sentimento conserva
Antes que, já libertado,
Os sentimentos passados.
Deixasse o caminho errado
Coração oposto ao mundo,
Por o que à Princesa vem.
Como a família é verdade!
A Princesa Adormecida,
Meu pensamento é profundo,
Se espera, dormindo espera.
'Stou só e sonho saudade.
Sonha em morte a sua vida,
E como é branca de graça
E orna-lhe a fronte esquecida,
A paisagem que não sei,
Verde, uma grinalda de hera.
Vista de trás da vidraça
Longe o Infante, esforçado,
Do lar que nunca terei!
Sem saber que intuito tem,

Rompe o caminho fadado.


(10-8-1929)
Êle dela é ignorado.
Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Ela para êle é ninguém.
Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,
Mas cada um cumpre o Destino -
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
Ela dormindo encantada
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.
Êle buscando-a sem tino
A vida é como uma sombra que passa por sôbre um
Fernando Pessoa, por ele mesmo 17
Fernando Pessoa, por ele mesmo

rio De que sou sentimental,

Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz Mas reconheço, ao medir-me,


vazio;
Que tudo isso é pensamento,
O amor é um sono que chega para o pouco ser que
se é; Que não senti afinal.

A glória concede e nega; não tem verdades a fé. Temos, todos que vivemos,

Por isso na orla morena da praia calada e só, Uma vida que é vivida

Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó; E outra vida que é pensada,

Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido, E a única vida que temos

E comecei a morrer muito antes de ter vivido. É essa que é dividida

Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe, Entre a verdadeira e a errada.

Não quero nada do ocaso, senão a brisa na face; Qual porém é a verdadeira

Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei, E qual errada, ninguém

Não quero gôzo nem dor, não quero vida nem lei. Nos saberá explicar;

Só, no silêncio cercado pelo som branco do mar, E vivemos de maneira

Quero dormir sossegado, sem nada que desejar, Que a vida que a gente tem

Quero dormir na distância de um ser que nunca foi É a que tem que pensar.
seu,

Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer (19-9-1933)


céu.
Durmo. Se sonho, ao despertar não sei

(5-9-1933) Que coisas eu sonhei.

Momento imperceptível, Durmo. Se durmo sem sonhar, desperto

Que coisa fôste, que há Para um espaço aberto

Já em mim qualquer coisa Que não conheço, pois que despertei

Que nunca passará? Para o que inda não sei.

Sei que, passados anos, Melhor é nem sonhar nem não sonhar

O que isto é lembrarei, E nunca despertar.

(20-9-1933)
Sem saber já o que era,
Viajar! Perder países!
Que até já o não sei.
Ser outro constantemente
Mas, nada só que fôsse,
Por a alma não ter raízes
Fica dêle um ficar
De viver de ver sòmente!
Que será suave ainda
Não pertencer nem a mim!
Quando eu o não lembrar.
Ir em frente, ir a seguir

(18-9-1933) A ausência de ter um fim,

Tenho tanto sentimento E da ânsia de o conseguir!

Que é frequente persuadir-me Viajar assim é viagem.

Fernando Pessoa, por ele mesmo 18


Fernando Pessoa, por ele mesmo

Mas faço-o sem ter de meu E, abrindo as asas sôbre Renovar,

Mais que o sonho da passagem A êrma sombra do vôo começado

O resto é só terra e céu. Pestaneja no campo abandonado...

Tenho dó das estrêlas O Menino da Sua Mãe

Luzindo há tanto tempo, No plaino abandonado

Há tanto tempo... Que a morna brisa aquece,

Tenho dó delas. De balas traspassado

Não haverá um cansaço - Duas, de lado a lado -,

Das coisas Jaz morto, e arrefece.

De tôdas as coisas, Raia-lhe a farda o sangue.

Como das pernas ou de um braço? De braços estendidos,

De um cansaço de existir, Alvo, louro, exangue,

De ser, Fita com olhar langue

Só de ser, E cego os céus perdidos.

O ser triste brilhar ou sorrir... Tão jovem! que jovem era!

Não haverá, enfim, (Agora que idade tem?)

Para as coisas que são, Filho único, a mãe lhe dera

Não a morte, mas sim Um nome o mantivera:

Uma outra espécie de fim, "O menino de sua mãe".

Ou uma grande razão - Caiu-lhe da algibeira

Qualquer coisa assim A cigarreira breve.

Como um perdão? Dera-lhe a mãe. Está inteira

E boa a cigarreira.

XI Êle é que já não serve.

Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela De outra algibeira, alada

E oculta mão colora alguém em mim. Ponta a roçar o solo,

Pus a alma no nexo de perdê-la A brancura embainhada

E o meu princípio floresceu em Fim. De um lenço... Deu-lho a criada

Que importa o tédio que dentro em mim gela, Velha que o trouxe ao colo.

E o leve Outono, e as galas, e o marfim, Lá longe, em casa, há a prece:

E a congruência da alma que se vela "Que volte cedo, e bem!"

Com os sonhados pálios de cetim? (Malhas que o Império tece!)

Disperso... E a hora como um leque fecha-se... Jaz morto e apodrece,

Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar... O menino da sua mãe.

O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se...


Fernando Pessoa, por ele mesmo 19
Fernando Pessoa, por ele mesmo

E do pensar se me some.

Fico sem poder ligar


TOMAMOS A VILA DEPOIS DE UM INTENSO
BOMBARDEAMENTO Ser, idéia, alma de nome

A criança loura A mim, à terra e aos céus...

Jaz no meio da rua. E súbito encontro Deus.

Tem as tripas de fora II

E por uma corda suaUm comboio que ignora. PASSOU

A cara está um feixe Passou, fora de Quando,

De sangue e de nada. De Porquê, e de Passando...,

Luz um pequeno peixe Turbilhão de Ignorado,

- Dos que bóiam nas banheiras - Sem ser turbilhonado...,

À beira da estrada. Vasto por fora do Vasto

Cai sobre a estrada o escuro. Sem ser, que a si se assombra...

Longe, ainda uma luz doura O universo é o seu rasto...

A criação do futuro... Deus é a sua sombra...

E o da criança loura? III

A VOZ DE DEUS

DISPERSAS Brilha uma voz na noute...

De dentro de Fora ouvi-a..


Além-Deus
(1913?)
Ó Universo, eu sou-te...
I
Oh, o horror da alegria
ABISMO
Dêste pavor, do archote
Olho o Tejo, e de tal arte
Se apagar, que me guia!
Que me esquece estar olhando,
Cinzas de idéia e de nome
E súbito isto me bate
Em mim, e a voz: Ó mundo,
De encontro ao devaneando -
Sermente em ti eu sou-me...
O que é ser-rio, e correr?
Mero eco de mim, me inundo
O que é está-lo eu a ver?
De ondas de negro lume
Sinto de repente pouco,
Em que pra Deus me afundo.
Vácuo, o momento, o lugar.
IV
Tudo de repente é ôco -
A QUEDA
Mesmo o meu estar a pensar.
Da minha idéia do mundo
Tudo - eu e o mundo em redor -
Caí...
Fica mais que exterior.
Vácuo além de profundo,
Perde tudo o ser, ficar,
Sem ter Eu nem Ali...
Fernando Pessoa, por ele mesmo 20
Fernando Pessoa, por ele mesmo

Vácuo sem si-próprio, caos Só a noite enorme.

De ser pensado como ser... Porque para êle, já virado

Escada absoluta sem degraus... Para o lado onde está só Deus,

Visão que se não pode ver... São mais que Sombra e que Passado

Além-Deus! Além-Deus! Negra calma... A terra e os céus.

Clarão de Desconhecido... Ali o gesto, a astúcia, a lida,

Tudo tem outro sentido, ó alma, São já para êle, sem as ver,

Mesmo o ter-um-sentido... Vácuo de ação, sombra perdida,

V Sôpro sem ser.

BRAÇO SEM CORPO BRANDINDO UM GLÁDIO Só com sua alma e com a treva,

Entre a árvore e o vê-la A alma gentil que nos amou

Onde está o sonho? Inda êsse amor e ardor conserva?

Que arco da ponte mais vela Tudo acabou?

Deus?... E eu fico tristonho No mistério onde a Morte some

Por não saber se a curva da ponte Aquilo a que a alma chama a vida,

É a curva do horizonte... Que resta dêle a nós - só o nome

Entre o que vive e a vida E a fé perdida?

Pra que lado corre o rio? Se Deus o havia de levar,

Árvore de fôlhas vestida - Para que foi que no-lo trouxe -

Entre isso e Árvore há fio? Cavaleiro leal, do olhar

Pombas voando - o pombal Altivo e doce?

Está-ljes sempre à direita, ou é real? Soldado-rei que oculta sorte

Deus é um grande Intervalo, Como em braços da Pátria ergueu,

Mas entre que e quê? E passou como o vento norte

Entre o que digo e o que calo Sob o êrmo céu.

Existo? Quem é que me vê? Mas a alam acesa não aceita

Erro-me... E o pombal elevado Essa morte absoluta, o nada

Está em tôrno na pomba, ou de lado? De quem foi Pátria, e fé eleita,

E ungida espada.

Se o amor crê que a Morte mente


À Memória do Presidente-Rei
Sidônio Pais Quando a quem quer leva de novo,

(27-2-1920) Quão mais crê o Rei ainda existente

Longe da Fama e das espadas, O amor de um povo!

Alheio às turbas êle dorme. Quem êle foi sabe-o a Sorte,

Em tôrno há claustros ou arcadas? Sabe-o o Mistério e a sua lei.

A Vida fê-lo herói, e a Morte


Fernando Pessoa, por ele mesmo 21
Fernando Pessoa, por ele mesmo

O sagrou Rei! Ao tempo e ao espaço.

Não é com fé que nós não cremos Tornará feito qualquer outro,

Que êle não morra inteiramente. Qualquer cousa de nós com êle;

Ah, sobrevive! Inda o teremos Porque o nome do herói moprto

Em nossa frente. Inda compele;

No oculto para o nosso olhar, Inda comanda, e a armada ida

No visível à nossa alma, Para os campos da Redenção,

Inda sorri com o antigo ar Às vezes leva à frente, erguida

De fôrça calma. 'Sprada, a Ilusão.

Ainda de longe nos anima, E um raio só do ardente amor,

Inda na alma nos conduz - Que emana só do nome seu,

Gládio de fé erguido acima Dê sangue a um braço vingador,

Da nossa cruz! Se esmoreceu.

Nada sabemos do que oculta Com mais armas que com Verdade

O véu igual de noite e dia. Combate a alma por quem ama.

Mesmo ante a Morte a Fé exulta: É lenha só a Realidade:

Chora e confia. A fé é a chama.

Apraz ao que em nós quer que seja Mas ai, que a fé já não tem forma

Qual Deus quis nosso querer tôsco, Na matéria e na côr da Vida,

Crer que êle vela, benfazeja E, pensada, em dor se transforma

Sombra conosco. E fé perdida!

Não sai da nossa alma a fé Pra que deu Deus a confiança

De que, alhures que o mundo e o fado, A quem não ia dar o bem?

êle inda pensa em nós e é Morgado da nossa esperança,

O bem-amado. A Morte o tem!

Tenhamos fé, porque êle foi. Mas basta o nome e basta a glória

Deus não quer mal a quem o deu. Para êle estar conosco, e ser

Não passa como o vento o herói Carnal presença de memória

Sob o êrmo céu. A amanhecer;

E amanhã, quando queira a Sorte, Spectro real feito de nós,

Quando findar a expiação, Da nossa saudade e ânsia,

Ressurrecto da falsa morte, Que fala com oculta voz

Êle já não. Na alma, a distãncia;

Mas a ânsia nossa que incarnara, E a nossa própria dor se torna

A alma de nós de que foi braço, Uma vaga ânsia, um 'sperar vago,

Tornará, nova forma clara, Como a êrma brisa que transtorna


Fernando Pessoa, por ele mesmo 22
Fernando Pessoa, por ele mesmo

Um êrmo lago. E a alma pressinta!

Não mente a alma no coração. E qualquer gládio adormecido,

Se Deus o deu, Deus nos amou. Servo do oculto impulso, acorde,

Porque êle pôde ser, Deus não E um novo herói se sinta erguido

Nos desprezou. Porque o recorde!

Rei-nato, a sua realeza, Governa o servo e o jogral.

Por não podê-la herdar dos seus O que íamos a ser morreu.

Avós, com mística inteireza Não teve aurora a matinal

A herdou de Deus; 'Strêla do céu.

E, por direta consonância Vivemos só de recordar.

Com a divina intervenção, Na nossa alma entristecida

Uma hora ergueu-nos alta e ânsia Há um som de reza a invocar

De salvação. A morta vida;

Toldou-o a Sorte que o trouxera E um místico vislumbre chama

Outra vez com noturno véu. O que, no plaino trespassado,

Deus p'ra que no-lo deu, se era Vive ainda em nós, longínquq chama -

P'ra o tornar seu? O DESEJADO.

Ah, tenhamos mais fé que a esp'rança! Sim, só há a esp'rança, como aquela

Mais vivo que nós somos, fita - E quem sabe se a mesma? - quando

Do Abismo onde não há mudança Se foi de Aviz a última estrêla

A terra aflita. No campo infando.

E se assim é; se, desde o Assombro Nova Alcacer-Kibir na noite!

Aonde a Morte as vidas leva, Novo castigo e mal do Fado!

Vê esta pátria, escombro a escombro, Por que pecado novo o açoite

Cair na treva; Assim é dado?

Se algum poder do que tivera Só resta a fé, que a sua memória

Sua alma, que não vemos, tem, Nos nossos corações gravou,

De longe ou perto - por que espera? Que Deus não dá paga ilusória

Por que não vem? A quem amou.

Em mova forma ou novo alento, Flor alta do paul da grei,

Que alheio pulso ou alma tome, Antemanhã da Redenção,

Regresse como um pensamento, Nêle uma hora incarnou el-rei

Alma de um nome! Dom Sebastião.

Regresse sem que a gente o veja, O sôpro de ânsia que nos leva

Regresse só que a gente o sinta - A querer ser o que já fomos,

Impulso, luz, visão que reja E em nós vem como em uma treva,
Fernando Pessoa, por ele mesmo 23
Fernando Pessoa, por ele mesmo

Em vãos assomos, Por descobrir,

Bater à porta ao nosso gesto, Sê estrada, gládio, fé, fanal,

Fazer apêlo ao nosso braço, Pendão de glória em glória erguido!

Lembrar ao sangue nosso o doesto Tornas possível Portugal

E o vil cansaço. Por teres sido!

Nêle um momento clareou, Não era extinta a antiga chama

A noite antiga se seguiu, Se tu e o amor pudeream ser.

Mas que segrêdo é que ficou Entre clarins te a glória aclama,

No escuro frio? Morto a vencer!

Que memória, que luz passada E, porque fôste confiando

Projeta, sombra, no futuro, Em QUEM SERÁ porque tu fôste,

Dá na alma? Que longínqua espada Ergamos a alma, e com o infando

Brilha no escuro? Sorrindo arroste,

Que nova luz virá raiar Até que Deus o laço solte

Da noite em que jazemos vis? Que prende à terra a asa que somos,

Ó sombra amada, vem tornar E a curva novamente volte

A ânsia feliz. Ao que já fomos.

Quem quer que sejas, lá no abismo E no ar de bruma que estremece

Onde a morte a vida conduz, (Clarim longínquo matinal!)

Sê para nós um misticismo O DESEJADO enfim regresse

A vaga luz. A Portugal!

Com que a noite êrma inda vazia TERCEIRO TEMA


No frio alvor da antenhanhã
A FALÊNCIA DO PRAZER E DO AMOR
Sente, da esp'rança que há no dia,
(extractos)
Que não é vã.
I
E amanhã, quando houver a Hora,
Beber a vida num trago, e nesse trago
Sendo Deus pago, Deus dirá
Tôdas as sensações que a vida dá
Nova palavra redentora
Em tôdas as suas formas [...]
Ao mal que há,
............................................................
E um verbo ocidental

Incarnado em heroísmo e glória,


Dantes eu queria
Traga por seu broquel real
Embeber-me nas árvores, nas flôres,
Tua memória!
Sonhar nas rochas, mares, solidões.
Precursor do que não sabemos,
Hoje não, fujo dessa idéia louca:
Passado de um futuro a abrir
Tudo o que me aproxima do mistério
No assombro de portais extremos
Fernando Pessoa, por ele mesmo 24
Fernando Pessoa, por ele mesmo

Confrange-me de horror. Quero hoje apenas Eu, Fausto - aquêles que não sentem bem

Sensações, muitas, muitas sensações, Tôda a extensão da felicidade,

De tudo, de todos neste mundo - humanas, Gozá-la?

Não outras de delírios panteístas .......................................................................


..........
Mas sim perpétuos choques de prazer

Mudando sempre,
Ferve a revolta em mim
Guardando forte a personalidade
Contra a causa da vida que me fêz
Para sintetizá-las num sentir.
Qual sou. E morrerei e deixarei
***********
Neste mundo isto apenas: uma vida
Quero
Só prazer e só gozo, só amor,
Quero afogar em bulício, em luz, em vozes,
Só inconsciência em estéril pensamento
- Tumultuárias [cousas] usuais -
E desprêzo [...]
O sentimento da desolação
Mas eu como entrarei naquela vida?
Que me enche e me avassala.
Eu não nasci para ela.
*************
Folgaria
III
De encher num dia, [...] num trago,
Melodia vaga
A medida dos vícios, inda mesmo
Para ti se eleva
Que fôsse condenado eternamente -
E, chorando, leva
Loucura! - ao tal inferno,
O teu coração,
A um inferno real.
Já de dor exausto,

E sonhando o afaga.
II
Os teus olhos, Fausto,
Alegres camponeses, raparigas alegres e ditosas,
Não mais chorarão.
Como me amarga n'alma essa alegria!

.......................................................................
......... IV

Nem em criança ser predestinado, Já não tenho alma. Dei-a à luz e ao ruído,

Alegre eu era assim; no meu brincar, Só sinto um vácuo imenso onde alma tive...

Nas minhas ilusões da infância, eu punha Sou qualquer cousa de exterior apenas,

O mal da minha predestinação. Consciente apenas de já nada ser...

....................................................................... Pertenço à estúrdia e à crápula da noite


.........
Sou só delas, encontro-me disperso
Acabemos com esta vida assim!
Por cada grito bêbedo, por cada
Acabemos! o modo pouco importa!
Tom da luz no amplo bôjo das botelhas.
Sofrer mais já não posso. Pois verei -
Participo da névoa luminosa

Fernando Pessoa, por ele mesmo 25


Fernando Pessoa, por ele mesmo

Da orgia e da mentira do prazer. Te ouvisse todo com o coração.

E uma febre e um vácuo que há em mim Se te vejo não sei quem sou: eu amo.

Confessa-me já morto... Palpo, em tôrno Se me faltas [...]

Da minha alma, os fragmentos do meu ser ...Mas tu fazes, amor, por me faltares

Com o hábito imortal de perscrutar-me. Mesmo estando comigo, pois perguntas -

Quando é amar que deves. Se não amas,

V Mostra-te indiferente, ou não me queiras,

Perdido Mas tu és como nunca ninguém foi,

Pois procuras o amor pra não amar,

E, se me buscas, é como se eu só fôsse

No labirinto de mim mesmo, já Alguém pra te falar de quem tu amas.

Não sei qual o caminho que me leva .............................................................

Dêle à realidade humana e clara Quando te vi amei-te já muito antes.

Cheia de luz [...] Tornei a achar-te quando te encontrei.

Por isso não concebo alegremente Nasci pra ti antes de haver o mundo.

Mas com profunda pesadez em mim Não há cousa feliz ou hora alegre

Esta alegria, esta felicidade, Que eu tenha tido pela vida fora,

Que odeio e que me fere [...] Que o não fôsse porque te previa,

.......................................................... Porque dormias nela tu futuro.

Sinto como um insulto esta alegria ............................................................

- Tôda a alegria. Quase que sinto E eu soube-o só depois, quando te vi,

Que rir, é rir - não de mim, mas, talvez, E tive para mim melhor sentido,

Do meu ser. E o meu passado foi como uma 'strada

Iluminada pela frente, quando

... O carro com lanternas vira a curva

XXI Do caminho e já a noite é tôda humana.

- Amo como o amor ama. ...............................................................

Não sei razão pra amar-te mais que amar-te. Quando eu era pequena, sinto que eu

Que queres que te diga mais que te amo, Amava-te já longe, mas de longe...

Se o que quero dizer-te é que te amo? ...............................................................

.................................................................. Amor, diz qualquer cousa que eu te sinta!

Quando te falo, dõi-me que respondas -Compreendo-te tanto que não sinto,

Ao que te digo e não ao meu amor. Oh coração exterior ao meu!

................................................................... Fatalidade, filha do destino

Ah! não perguntes nada; antes me fala E das leis que há no fundo dêste mundo!

De tal maneira, que, se eu fôra surda, Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
Fernando Pessoa, por ele mesmo 26
Fernando Pessoa, por ele mesmo

De o sentir...? Grandes acolhimentos se darão

............................................................... Por cada prolixo coração

Que com seu próprio ser vive em demanda.

XXII Hoje, falho de ti, sou dois a sós.

Pra que te falar? Ninguém me irmana Há almas pares, as que conheceram

Os pensamentos na compreensão. Onde os sêres são almas.

Sou só por ser supremo, e tudo em mim Como éramos só um, falando! Nós

É maior. Éramos como um diálogo numa alma.

Não sei se dormes [...] calma,

XXIII Sei que, falho de ti, estou um a sós.

Reza por mim! A mais não me enterneço. É como se esperasse eternamente

Só por mim mesmo sei enternecer-me, A tua vida certa e conhecida

Sob a ilusão de amar e de sentir Aí embaixo, no Café Arcada -

Em que forçadamente me detive. Quase no extremo dêste [...]

Reza por mim, por mim! Eis a que chega Aí onde escreveste aquêles versos

A minha tentativa [em] querer amar. Do trapézio, doriu-nos [...]

Aquilo tudo que dizes do Orpheu.


Inéditas
Ah, meu maior amigo, nunca mais

Na paisagem sepulta desta vida


SÁ CARNEIRO
Encontrarei uma alma tão querida
1934
Às coisas que em meu ser são as reais.
Nesse número do Orpheu que há de ser feito com
rosas e estrêlas em um mundo novo. [...]

Não mais, não mais, e desde que saíste

Nunca supus que isto que chamam morte Desta prisão fechada que é o mundo,

Tivesse qualquer espécie de sentido... Meu coração é inerte e infecundo

Cada um de nós, aqui aparecido, E o que sou é um sonho que está triste.

Onde manda a lei certa e a falsa sorte, Porque há em nós, por mais que consigamos

Tem só uma demora de passagem Ser nós mesmos a sós sem nostalgia,

Entre um comboio e outro, entroncamento Um desejo de têrmos companhia -

Chamado o mundo, ou a vida, ou o momento; O amigo como êsse que a falar amamos.

Mas, seja como fôr, segue a viagem.

Passei, embora num comboio expresso

Seguisses, e adiante do em que vou; (14-10-1930)

No términus de tudo, ao fim lá estou Se tudo o que há é mentira

Nessa ida que afinal é um regresso. É mentira tudo o que há.

Porque na enorme gare onde Deus manda De nada nada se tira


Fernando Pessoa, por ele mesmo 27
Fernando Pessoa, por ele mesmo

A nada nada se dá. Depois de ficar e ir,

Se tanto faz que eu suponha Hei de ser quem vai chegar

Uma coisa ou não com fé, Para ser quem quer partir.

Suponho-a se ela é risonha, Viver é não conseguir.

Se não é, suponho que é.


(17-6-1932)
Que o grande jeito da vida
Como nuvens pelo céu
É pôr a vida com jeito
Passam os sonhos por mim.
Fana a rosa não colhida
Nenhum dos sonhos é meu
Como a rosa posta ao peito.
Embora eu os sonhe assim.
Mais vale é o mais valer,
São coisas no alto que são
Que o resto urtigas o cobrem
Enquanto a vista as conhece,
E só se cumpra o dever
Depois são sombras que vão
Para que as palavras sobrem.
Pelo campo que arrefece.

Símbolos? Sonhos? Quem torna


O Peso de Haver o Mundo
Meu coração ao que foi?
(19-5-1932)
Que dor de mim me transtorna?
Passa no sôpro da aragem
Que coisa inútil me dói?
Que um momento o levantou

Um vago anseio de viagem


(28-3-1930)
Que o coração me toldou.
Quem vende a verdade, e a que esquina?
Será que em seu movimento
Quem dá a hortelã com que temperá-la?
A brisa lembre a partida,
Quem traz para casa a menina
Ou que a largueza do vento
E arruma as jarras da sala?
Lembre o ar livre da ida?
Quem interroga os baluartes
Não sei, mas sùbitamente
E conhece o nome dos navios?
Sinto a tristeza de estar
Dividi o meu estudo inteiro em partes
O sonho triste que há rente
E os títulos dos capítulos são vazios...
Entre sonhar e sonhar.
Meu pobre conhecimento ligeiro,

Andas buscando o estandarte eloquente


(14-6-1932)
Da filarmônica de um Barreiro
Basta pensar em sentir
Para que não há barco nem gente.
Para sentir em pensar.
Tapeçarias de parte nenhuma
Meu coração faz sorrir
Quadros virados contra a parede...
Meu coração a chorar.
Ninguém conhece, ninguém arruma
Depois de parar e andar,
Ninguém dá nem pede.

Fernando Pessoa, por ele mesmo 28


Fernando Pessoa, por ele mesmo

Ó coração epitélico e macio, chorar.

Colcha de croché do anseio morto, Pode ser que, se não deitar hoje esta carta no
correio amanha, relendo-a, me demore a copiá-la à
Grande prolixidade do navio máquina, para inserir frases e esgares dela no "Livro
do Desassossego". Mas isso nada roubará à
Que existe só para nunca chegar ao pôrto. sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa
inevitabilidade com que a sinto.

As últimas notícias são estas. Há também o estado


de guerra com a Alemanha, mas já antes disso a dor
fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a
Livro do Desassossego legenda duma caricatura casual.

Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um


abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso
dos solavancos da alma, não muito diferentes
Carta a Mário de Sá-Carneiro destes.

De que cor será sentir?


Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental -
uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se Milhares de abracos do seu, sempre muito seu,
depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto - que
estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O FERNANDO PESSOA
absurdo da frase falará por mim.
P.S. - Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a,
Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. vejo que, decididamente, a copiarei amanha, antes
Há só um presente imóvel com um muro de angústia de lha mandar. Poucas vezes tenho tão
em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a completamente escrito o meu psiquismo, com todas
de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com
meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas toda a sua histero-neurastenia fundamental, com
nenhum para a vida não doer, nem há desembarque todas aquelas intersecções e esquinas na
onde se esqueca. Tudo isto aconteceu há muito consciência de si-próprio que dele são tao
tempo, mas a minha mágoa é mais antiga. características...

Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a Você acha-me razão, não é verdade?
minha consciência do meu corpo, que sou a crianca
triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um (em 14 de Marco de 1916)
canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o
brinquedo partido que me deram por uma ironia de Carta a João Gaspar Simões
lata. Hoje, dia catorze de Marco, às nove horas e
dez da noite, a minha vida sabe a valer isto. (...) Estou começando - lentamente, porque não é
coisa que possa fazer-se com rapidez - a classificar
No jardim que entrevejo pelas janela caladas do meu e rever os meus papéis; isto com o fim de publicar,
sequestro, atiraram com todos os baloucos para cima para fins do ano em que estamos, um ou dois livros.
dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito Serão provavelmente ambos em verso, pois não
alto; e assim nem a ideia de mim fugido pode, na conto poder preparar qualquer outro tão depressa,
minha imaginacão, ter baloucos para esquecer a entendendo-se preparar de modo a ficar como eu
hora. quero.

Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu Primitivamente, era minha intencão começar as
estado de alma neste momento. Como à veladora do minhas publicações por três livros, na ordem
"Marinheiro" ardem-me os olhos, de ter pensado em seguinte: (1) Portugal, que é um livro pequeno de
chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por poemas (tem 41 ao todo), de que o Mar Português
interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito (Contemporânea 4) é a segunda parte; (2) Livro do
pequeno num livro com a brochura a descoser-se. Desassosego (Bernardo Soares, mas
subsidiariamente, pois que o B. S. não é um
Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que heterónimo, mas uma personalidade literária); (3)
lhe jurar que esta carta é sincera, e que as coisas de Poemas Completos de Alberto Caeiro (com o prefácio
nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que de Ricardo Reis, e, em posfácio, as Notas para a
me sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia Recordacão do Álvaro de Campos). Mais tarde, no
irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de outro ano, seguiria, só ou com qualquer livro,
chávena - chia de aqui e de agora, e passando-se Cancioneiro (ou outro título igualmente inexpressivo),
na minha alma como o verde nas folhas. onde reuniria (em Livros I a III ou I a V) vários dos
muitos poemas soltos que tenho, e que são por
Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é natureza inclassificáveis salvo de essa maneira
inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que inexpressiva.
as frases absurdas dão uma grande vontade de

Fernando Pessoa, por ele mesmo 29


Fernando Pessoa, por ele mesmo

Sucede, porém, que o Livro do Desassossego tem


muita coisa que equilibrar e rever, não podendo eu
calcular, decentemente, que me leve menos de um
ano a fazê-lo. E, quanto ao Caeiro, estou indeciso.
(...)

(em 28 de Julho de 1932)

Carta a Adolfo Casais Monteiro

(...) Como escrevo em nome desses três?... Caeiro


por pura e inesperada inspiracão, sem saber ou
sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois
de uma deliberacão abstracta que subitamente se
concretiza numa ode. Campos, quando sinto um
súbito impulso para escrever e não sei o quê. O meu
semi-heterónimo Bernardo Soares que aliás em
muitas coisas se parece com Álvaro de Campos,
aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de
sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades
de raciocínio e de inibicão; aquela prosa é um
constante devaneio. É um semi-heterónimo porque,
não sendo a personalidade a minha, é, não diferente
da minha, mas uma simples mutilacão dela. Sou eu
menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o
que o raciocínio dá de "ténue" à minha, é iqual a
esta, e o português perfeitamente igual; ao passo
que Caeiro escrevia mal o português, Campos
razoavelmente mas com lapsos como dizer "eu
próprio" em vez de "eu mesmo", etc., Reis melhor do
que eu, mas com um purismo que considero
exagerado. (...)

(em 13 de Janeiro de 1935)

Fernando Pessoa, por ele mesmo 30

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