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O ENIGMA EM PESSOA
Introdução à obra de Fernando
Pessoa
“Para ser grande, sê inteiro: nada “Nasceu em Tavira, teve uma educação vulgar de
Teu exagera ou exclui. Liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas
No mínimo que fazes. férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o
Assim como em cada lago a lua toda Opiário. Agora está aqui em Lisboa em inatividade."
Brilha, porque alta vive.”
Como normalmente acontece com os poetas de
A linguagem de Ricardo Reis é clássica. Usa um carne e osso, o heterônimo Álvaro de Campos apresenta
vocabulário erudito e, muito apropriadamente, seus três fases distintas em sua poesia. De início é influenciado
poemas são metrificados e apresentam uma sintaxe pelo decadentismo simbolista, depois pelo futurismo e por
rebuscada. fim, amargurado, escreve poemas pessimistas e
Os poemas de Reis são odes, poemas líricos de tom desiludidos.
alegre e entusiástico, cantados pelos gregos, ao som de No poema Opiário, o engenheiro Campos,
cítaras ou flautas, em estrofes regulares e variáveis. Nelas, influenciado pelo simbolismo, ainda metrifica e rima.
convida pastoras como Lídia, Neera ou Cloe para Escreve quadras, estrofes de quatro versos, de teor
Fernando Pessoa, por ele mesmo 4
Fernando Pessoa, por ele mesmo
"À dolorosa luz das lâmpadas elétricas da fábrica Fernando Pessoa, ele mesmo
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza A obra que Fernando Pessoa assinou com seu
disto, próprio nome está reunida nos volumes Cancioneiro e
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos Mensagem.
antigos." O ancioneiro é composto por poemas líricos, rimados
e metrificados,
Desta fase são também a Ode Marítima e a de forte influência simbolista. É do Cancioneiro um dos
Saudação a Walt Whitman. Homenageando o grande poemas mais célebres de Pessoa, Autopsicografia, em que
escritor norte-americano, Campos, além de se referir ao reflete sobre o fazer poético:
conhecido homossexualismo de Whitman, de que parece
comungar, revela uma das mais fortes influências sobre o "O poeta é um fingidor.
seu estilo: Finge tão completamente
Os poemas de Álvaro de Campos são marcados pela Que chega a fingir que é dor
oralidade e pela prolixidade que se espalha em versos A dor que deveras sente.
longos, próximos da prosa. Despreza a rima ou métrica E os que lêem o que escreve,
regular. Despeja seus versos em torrentes de incontrolável Na dor lida sentem bem,
desabafo. Não as duas que ele teve,
A última fase do heterônimo Álvaro de Campos, em Mas só a que eles não têm."
que pontifica o poema Tabacaria, apresenta um poeta
amargurado, refletindo de forma pessimista e desiludida O leitor atento há de perceber que o poeta parte de
sobre a existência: uma dor sua, real, integral. Só quem sente uma dor pode
fingir outra que não sente. Só quem tem personalidade
"Não sou nada. pode ser ator. Como Fernando Pessoa. Já os leitores,
Nunca serei nada. lêem no poema a dor ou o sentimento que lhes falta e que
Não posso querer ser nada. gostariam de ter. Sentem-na ao atribuí-la a poeta.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do Mensagem (1934), foi o único livro em língua
mundo." portuguesa publicado por Pessoa.
Os poemas do livro estão organizados de forma a compor
Assim como Ricardo Reis, também Álvaro de uma epopéia fragmentária, em que o conjunto dos textos
Campos confessa-se discípulo de Alberto Caeiro. Mas se líricos acaba formando um elogio de teor épico a Portugal.
Reis envereda pelo neoclassicismo ao tentar imitar o Traçando a história do seu país, Pessoa envereda por um
mestre, Campos se revela inquieto e frustrado por não nacionalismo místico de caráter sebastianista.
conseguir seguir os preceitos de Caeiro. No poema que se O livro Mensagem está dividido em três partes:
inicia pelo verso "Mestre, meu mestre querido", dialoga Brasão, Mar português e O Encoberto.
com Caeiro, revelando toda sua angústia: Na primeira, conta-se a história das glórias portuguesas.
Na segunda, são apresentadas as navegações e conquistas
"Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua marítimas de Portugal. Na terceira, é apresentado o mito
serenidade. sebastianista de retorno de Portugal às épocas de glória.
Meu coração não aprendeu nada. A primeira parte de Mensagem, Brasão, se estrutura
(...) como o brasão português, que é formado por dois
A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação." campos: um apresenta sete castelos, o outro, cinco quinas.
No topo do brasão, estão a coroa e o timbre, que
apresenta o grifo, animal mitológico que tem cabeça de
leão e asas de águia. Assim se dividem os poemas desta
parte, remetendo ao brasão de Portugal. Versam sobre as
A segunda parte, Mar português, apresenta as Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia
principais etapas da expansão ultramarina que levou dos Mártires, no prédio nº 4 do Largo de S. Carlos
Portugal a ocupar um lugar de destaque no mundo durante (hoje do Directório), em 13 de Junho de 1888.
os séculos XV e XVI:
"E ao imenso e possível oceano Filiação: Filho legítimo de Joaquim Seabra Pessoa e
Ensinam estas Quinas, que aqui vês, de D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira. Neto
Que o mar com fim será grego ou romano: paterno do General Joaquim António de Araújo
Pessoa, combatente das campanhas liberais, e de D.
O mar sem fim é português."
Dionísia Seabra; neto materno do Conselheiro Luís
António Nogueira, jurisconsulto, e que foi
Já a última parte, O Encoberto, apresenta o director-geral do Ministério do Reino, e de D.
misticismo em torno da figura de Dom Sebastião, rei de Madalena Xavier Pinheiro. Ascendência geral - misto
Portugal cuja frota foi dizimada em ataque aos mouros em de fidalgos e de judeus.
1578. Muitas previsões, como a do sapateiro Bandarra e a
do padre Antônio Vieira, prevêem o retorno de Dom
Sebastião para resgatar o poderio de Portugal, criando o Profissão: A designação mais prórpia será "tradutor",
Quinto Império, marcando a supremacia de Portugal sobre a mais exacta a de "correspondente estrangeiro em
casas comerciais". O ser poeta e escritor não
o mundo:
constitui profissão, mas vocação.
Ideologia política: Considera que o sistema Passo agora a responder à sua pergunta sobre a
monárquico seria o mais próprio para uma nação génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo
orgânicamente imperial como é Portugal. Considera, responder-lhe completamente.
ao mesmo tempo, a Monarquia completamente
inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus
entre regimes votaria, embora com pena, pela heterónimos é o fundo traço de histeria que existe
República. Conservador do estilo inglês, isto é, liberal em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se
dentro do conservantismo, e absolutamente sou, mais propriamente, um histeroneurasténico.
anti-reaccionário. Tendo para esta Segunda hipótese, porque há em
mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente
dita, não enquadra no registo dos seus sintomas.
Seja como for, a origem mental dos meus
Posição iniciática: heterónimos está na minha tendência orgânica e
....................................................................... constante para a despersonalização e para a
.......................................... simulação. Estes fenómenos - felizmente para mim e
para outros - mentalizaram-se em mim; quero dizer,
....................................................................... não se manifestam na minha vida prática, exterior e
....................................................................... de contacto com outros; fazem explosão para dentro
.. e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher - na
mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques
e coisas parecidas - cada poema de Álvaro de
Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo Campos (o mais histericamente histérico de mim)
místico, de onde seja abolidatoda infiltração seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem -
católica-romana, criando-se, se possível for, um e nos homens a histeria assume principalmente
sebastianismo novo, que a substitua espiritualmente, aspectos mentais: assim tudo acaba em silêncio e
se é que no catolicismo português houve alguma vez poesia.
espiritualidade. Nacionalista que se guia por este
Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do
lema: "Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação."
meu heteronismo. Vou agora fazer-lhe a história
directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles
que morreram, e de alguns dos quais já me não
Posição social: Anticomunista e anti-socialista. O lembro - os que jazem perdidos no passado remota
mais deduz-se do que vai dito acima. da minha infância quase esquecida.
Imediatamente e totalmente. Foi o regresso de profissão nem educação quase alguma. Álvaro de
Fernando Pessoa - Alberto Caeiro a Fernando Pessoa Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de
- ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando 1890 (às 1,30 horas da tarde, diz-me o Ferreira
Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para
Caeiro. essa hora, está certo). Este, como sabe é
engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura
- instintiva e subconscientemente - uns discípulos. média, e, embora realmente frágil (morreu
Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis tuberculoso), não parecia tão frágil quanto era.
latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-me a si Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais
mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, baixo, mais forte, mais seco. Álvaro de Campos é alto
e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me (1,75m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um
impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos - o
máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago
surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos - a Ode moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo
com esse nome e o homem com o nome que tem. vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e
normalmente apartado ao lado, monóculo.
Criei, então uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo
em moldes de realidade. Graduei as influências, Caeiro, como disse, não teve mais educação que
conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as quase nenhuma - só instrução primária; morreram-lhe
discussões e as divergências de critérios, e em tudo cedo e pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa,
isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com
que ali houve. Parece que tudo se passou uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num
independentemente de mim. E parece que assim colégio de jesuítas, é, como disse, médico: vive no
ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a Brasil desde 1919, pois se expatriou
discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de espontaneamente por ser monárquico. É um latinista
Campos, verá como eles são diferentes, e como eu por educação alheia, e um semi-helenista por
não sou nada na matéria. educação própria. Álvaro de Campos teve uma
educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a
Quando foi da publicação de Orpheu, foi preciso, à Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e
última hora, arranjar qualquer coisa para completar o depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente
número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio
eu fizesse um poema "antigo" do Álvaro de Campos - beirão que era padre.
um poema de como o Álvaro de Campos seria antes
de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua Como escrevo em nome desses três?...
influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar
Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber
todas as tendências latentes do Álvaro de Campos,
ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis,
conforme haveriam de ser depois de reveladas, mas
depois de uma deliberação abstracta, que
sem haver ainda qualquer traço de contacto com o
sùbitamente se concretiza numa ode. Campos,
seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho
quando sinto um súbito impulso para escrever e não
escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo
sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares,
poder de despersonalização que tive que
que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de
desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e
Campos,
que dá o Álvaro em botão...
Creio que lhe expliquei a origem dos meus
heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que
precise de um esclarecimento mais lúcido - estou
aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de
escrevendo depressa, e quando escrevo depressa
sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades
não sou muito lúcido -, diga, que de bom grado lho
de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um
darei. E, é verdade, um complemento
constante devaneio. É um semi-heterónimo porque,
não sendo a personalidade a minha, é, não diferente
verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu,
das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o
Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta,
verdadeiras. É para que saiba com quem está e o português perfeitamente igual; ao passo que
lidando, meu caro Casais Monteiro! Caeiro escrevia mal o português, "eu próprio" em vez
de "eu mesmo", etc., Reis melhor do que eu, mas
Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo com um purismo que considero exagerado. O difícil
diante da mim, no espaço incolor mas real do sonho, para mim, é escrever a prosa de Reis - ainda inédita
as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro - ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque
de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. é mais espontânea, em verso).
Ricardo Reis nasceu em 1887 não me lembro do dia e
mês (mas tenho-os algures), no Porto, é médico e
está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu
em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas (Extractos duma carta escrita a Casais Monteiro.
viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve In PÁGINAS DE DOUTRINA ESTÉTICA, pags. 259 a
Olhando para a direita e para a esquerda, E todos os meus poemas são diferentes,
E de vez em quando olhando para trás... Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer
isto.
E o que vejo a cada momento
Às vêzes ponho-me a olhar para uma pedra.
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
Não me ponho a pensar se ela sente.
E eu sei dar por isso muito bem...
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Sei ter o pasmo essencial
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Que tem uma criança se, ao nascer,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Reparasse que nascera deveras...
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum
Sinto-me nascido a cada momento comigo.
Creio no mundo como um malmequer, E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena
ter nascido.
Porque o vejo. Mas não penso nêle
Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo
Porque pensar é não compreender... isto;
O Mundo não se fêz para pensarmos nêle Mas acho que isto deve estar bem porque o penso
sem estôrvo,
(Pensar é estar doente dos olhos)
Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Mas para olharmos para êle e estarmos de acôrdo...
Porque o penso sem pensamentos,
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Uma vez chamaram-me poeta materialista,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
E eu admirei-me, porque não julgava
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Amar é a eterna inocência,
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o
E a única inocência não pensar... tenho:
Basta existir para se ser completo. Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço,
a figura dela,
Tenho escrito bastantes poemas.
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a
Hei de escrever muitos mais, naturalmente. encontro a ela.
Cada poema meu diz isto, Faço pensamentos com a recordação do que ela é
Fernando Pessoa, por ele mesmo 10
Fernando Pessoa, por ele mesmo
Amar é pensar.
THE TIMES
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar
16-8-1928
nela.
Sentou-se bêbado à mesa e escreveu um fundo
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não
penso senão nela.
Do Times, claro, inclassificável, lido,
Tenho uma grande distração animada.
Supondo (coitado!) que ia ter influência no mundo...
Quando desejo encontrá-la
.......................................................................
..................
Quase que prefiro não a encontrar,
Santo Deus!... E talvez a tenha tido!
Para não ter que a deixar depois.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar. Símbolos. Tudo símbolos...
Todos os dias agora acordo com alegria e pena. Olho, desterrado de ti, as tuas mãos brancas
Antigamente acordava sem sensação nenhuma: Postas, com boas maneiras inglêsas, sôbre a toalha
acordava. da mesa.
Tenho alegria e pena porque perco o que sonho. Pessoas independentes de ti...
E posso estar na realidade onde está o que sonho. Olho-as: também serão símbolos?
Não sei o que hei de fazer das minhas sensações. Então todo o mundo é símbolo e magia?
Não sei o que hei de ser comigo sòzinho.
Se calhar é...
Quero que ela me diga qualquer coisa para eu E porque não há de ser?
acordar de novo.
Símbolos...
Ou metade dêsse intervalo, porque também há Respondo fielmente à tua conversa por cima da
vida... mesa...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos "It was very strange, wasn't it?"
de chinelos no corredor.
"Awfully strange. And how did it end?"
Fique eu no quarto só com o grande sossêgo de mim
"Well, it didn't end. It never does, you know."
mesmo.
Fernando Pessoa, por ele mesmo 11
Fernando Pessoa, por ele mesmo
Cartas de amor
Não tiro os olhos de tuas mãos... Quem são elas? Quem me dera no tempo em que escrevia
Cartas de amor
Ridículas.
Soneto já antigo
A verdade é que hoje
(12-1922)
As minhas memórias
Olha Daisy: quando eu morrer tu hás de
Dessas cartas de amor
dizer aos meus amigos aí de Londres,
É que são
embora não sintas, que tu escondes
mesmo êle, a quem eu tanto julguei amar, Às vezes tenho idéias felizes,
nada se importará... Depois vai dar Idéias sùbitamente felizes, em idéias
a notícia a essa estranha Cecily E nas palavras em que naturalmente se despegam...
que acreditava que eu seria grande... Depois de escrever, leio...
Raios partam a vida e quem lá ande! Por que escrevi isto?
Tôdas as cartas de amor são De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Não seriam cartas de amor se não fôssem Com que alguém escreve a valer o que nós aqui
traçamos?
Ridículas.
Do seu drama O Marinheiro Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.
Se sentem com sono e brutos, É tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi.
E de sentido nem cheiro, Não ser nada, ser uma figura de romance,
Diz uma das veladoras Sem vida, sem morte material, uma idéia,
Com langorosa magia: Qualquer coisa que nada tornasse útil ou feia,
Qualquer que êle seja, o destino daqueles Uma vontade de nunca chegar a casa,
Por certo êles foram mais reais e felizes. No falso ano, no imutável curso
Do tempo consequente;
Não sei. Falta-me um sentido, um tacto E não sabe ninguém qual é o primeiro,
Ou qualquer fato?
Parece que passam sem ver-me os instantes, Depus a máscara e vi-me ao espelho. -
Mas passam sem que o seu passo seja leve. Era a criança de há quantos anos.
Começo a ler, mas cansa-me o que inda não li. Não tinha mudado nada...
A criança.
Cansaço.
Ao menos não há que arrumar malas Os amôres intensos por o suposto em alguém,
Grande tranquilidade a que nem sabe encolher Há sem dúvida quem não queira nada -
ombros
Três tipos de idealistas, e eu nenhum dêles:
Por isso tudo, ter pensado o tudo
Porque eu amo infinitamente o finito,
É o ter chegado deliberadamente a nada.
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Como uma oportunidade virada do avêsso.
Ou até se não puder ser...
Há quantas vezes vivo
E o resultado?
A vida vegetativa do pensamento!
Para êles a vida vivida ou sonhada,
Todos os dias sine linea
Para êles o sonho sonhado ou vivido,
Sossêgo, sim, sossêgo...
Para êles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Grande tranquilidade...
Para mim só um grande, um profundo,
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e
psíquicas! E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Que prazer olhar para as malas fitando como para Um supremíssimo cansaço,
nada!
Íssimo, íssimo, íssimo,
Dormita, alma, dormita!
Cansaço...
Aproveita, dormita!
Dormita!
17-1-1933
Fernando Pessoa, por ele mesmo 14
Fernando Pessoa, por ele mesmo
E o esplendor dos mapos, caminho abstrato para a Quem fui é alguém que amo
imaginação concreta,
Porém sòmente em sonho.
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.
E a saudade que me aflige a mente
O que de sonho jaz nas encadernações vestustas,
Não é de mim nem do passado visto,
Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e
esguias) dos velhos livros. Senão de quem habito
(Tinta remota e desbotada aqui presente para além Por trás dos olhos cegos.
da morte,
Nada, senão o instante, me conhece.
O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas
ilustrações, Minha mesma lembrança é nada, e sinto
O que certas gravuras de anúncios sem querer Que quem sou e quem fui
anunciam.
São sonhos diferentes.
Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime,
(1-7-1916)
Vê de longe a vida.
A cada hora se muda não só a hora Não consentem os deuses mais que a vida.
Mas o que se crê nela, e a vida passa Tudo pois refusemos, que nos alce
A glória concede e nega; não tem verdades a fé. Temos, todos que vivemos,
Por isso na orla morena da praia calada e só, Uma vida que é vivida
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó; E outra vida que é pensada,
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido, E a única vida que temos
Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe, Entre a verdadeira e a errada.
Não quero nada do ocaso, senão a brisa na face; Qual porém é a verdadeira
Não quero gôzo nem dor, não quero vida nem lei. Nos saberá explicar;
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar, Que a vida que a gente tem
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi É a que tem que pensar.
seu,
Sei que, passados anos, Melhor é nem sonhar nem não sonhar
(20-9-1933)
Sem saber já o que era,
Viajar! Perder países!
Que até já o não sei.
Ser outro constantemente
Mas, nada só que fôsse,
Por a alma não ter raízes
Fica dêle um ficar
De viver de ver sòmente!
Que será suave ainda
Não pertencer nem a mim!
Quando eu o não lembrar.
Ir em frente, ir a seguir
E boa a cigarreira.
Que importa o tédio que dentro em mim gela, Velha que o trouxe ao colo.
E do pensar se me some.
A VOZ DE DEUS
Visão que se não pode ver... São mais que Sombra e que Passado
Tudo tem outro sentido, ó alma, São já para êle, sem as ver,
BRAÇO SEM CORPO BRANDINDO UM GLÁDIO Só com sua alma e com a treva,
Por não saber se a curva da ponte Aquilo a que a alma chama a vida,
E ungida espada.
Não é com fé que nós não cremos Tornará feito qualquer outro,
Que êle não morra inteiramente. Qualquer cousa de nós com êle;
Nada sabemos do que oculta Com mais armas que com Verdade
Apraz ao que em nós quer que seja Mas ai, que a fé já não tem forma
Tenhamos fé, porque êle foi. Mas basta o nome e basta a glória
Deus não quer mal a quem o deu. Para êle estar conosco, e ser
A alma de nós de que foi braço, Uma vaga ânsia, um 'sperar vago,
Porque êle pôde ser, Deus não E um novo herói se sinta erguido
Por não podê-la herdar dos seus O que íamos a ser morreu.
Deus p'ra que no-lo deu, se era Vive ainda em nós, longínquq chama -
Mais vivo que nós somos, fita - E quem sabe se a mesma? - quando
Sua alma, que não vemos, tem, Nos nossos corações gravou,
De longe ou perto - por que espera? Que Deus não dá paga ilusória
Regresse sem que a gente o veja, O sôpro de ânsia que nos leva
Impulso, luz, visão que reja E em nós vem como em uma treva,
Fernando Pessoa, por ele mesmo 23
Fernando Pessoa, por ele mesmo
Que nova luz virá raiar Até que Deus o laço solte
Da noite em que jazemos vis? Que prende à terra a asa que somos,
Confrange-me de horror. Quero hoje apenas Eu, Fausto - aquêles que não sentem bem
Mudando sempre,
Ferve a revolta em mim
Guardando forte a personalidade
Contra a causa da vida que me fêz
Para sintetizá-las num sentir.
Qual sou. E morrerei e deixarei
***********
Neste mundo isto apenas: uma vida
Quero
Só prazer e só gozo, só amor,
Quero afogar em bulício, em luz, em vozes,
Só inconsciência em estéril pensamento
- Tumultuárias [cousas] usuais -
E desprêzo [...]
O sentimento da desolação
Mas eu como entrarei naquela vida?
Que me enche e me avassala.
Eu não nasci para ela.
*************
Folgaria
III
De encher num dia, [...] num trago,
Melodia vaga
A medida dos vícios, inda mesmo
Para ti se eleva
Que fôsse condenado eternamente -
E, chorando, leva
Loucura! - ao tal inferno,
O teu coração,
A um inferno real.
Já de dor exausto,
E sonhando o afaga.
II
Os teus olhos, Fausto,
Alegres camponeses, raparigas alegres e ditosas,
Não mais chorarão.
Como me amarga n'alma essa alegria!
.......................................................................
......... IV
Nem em criança ser predestinado, Já não tenho alma. Dei-a à luz e ao ruído,
Alegre eu era assim; no meu brincar, Só sinto um vácuo imenso onde alma tive...
Nas minhas ilusões da infância, eu punha Sou qualquer cousa de exterior apenas,
E uma febre e um vácuo que há em mim Se te vejo não sei quem sou: eu amo.
Da minha alma, os fragmentos do meu ser ...Mas tu fazes, amor, por me faltares
Por isso não concebo alegremente Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Mas com profunda pesadez em mim Não há cousa feliz ou hora alegre
Esta alegria, esta felicidade, Que eu tenha tido pela vida fora,
Que odeio e que me fere [...] Que o não fôsse porque te previa,
Que rir, é rir - não de mim, mas, talvez, E tive para mim melhor sentido,
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te. Quando eu era pequena, sinto que eu
Que queres que te diga mais que te amo, Amava-te já longe, mas de longe...
Quando te falo, dõi-me que respondas -Compreendo-te tanto que não sinto,
Ah! não perguntes nada; antes me fala E das leis que há no fundo dêste mundo!
De tal maneira, que, se eu fôra surda, Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
Fernando Pessoa, por ele mesmo 26
Fernando Pessoa, por ele mesmo
Sou só por ser supremo, e tudo em mim Como éramos só um, falando! Nós
Reza por mim, por mim! Eis a que chega Aí onde escreveste aquêles versos
Nunca supus que isto que chamam morte Desta prisão fechada que é o mundo,
Cada um de nós, aqui aparecido, E o que sou é um sonho que está triste.
Onde manda a lei certa e a falsa sorte, Porque há em nós, por mais que consigamos
Tem só uma demora de passagem Ser nós mesmos a sós sem nostalgia,
Chamado o mundo, ou a vida, ou o momento; O amigo como êsse que a falar amamos.
Uma coisa ou não com fé, Para ser quem quer partir.
Colcha de croché do anseio morto, Pode ser que, se não deitar hoje esta carta no
correio amanha, relendo-a, me demore a copiá-la à
Grande prolixidade do navio máquina, para inserir frases e esgares dela no "Livro
do Desassossego". Mas isso nada roubará à
Que existe só para nunca chegar ao pôrto. sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa
inevitabilidade com que a sinto.
Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a Você acha-me razão, não é verdade?
minha consciência do meu corpo, que sou a crianca
triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um (em 14 de Marco de 1916)
canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o
brinquedo partido que me deram por uma ironia de Carta a João Gaspar Simões
lata. Hoje, dia catorze de Marco, às nove horas e
dez da noite, a minha vida sabe a valer isto. (...) Estou começando - lentamente, porque não é
coisa que possa fazer-se com rapidez - a classificar
No jardim que entrevejo pelas janela caladas do meu e rever os meus papéis; isto com o fim de publicar,
sequestro, atiraram com todos os baloucos para cima para fins do ano em que estamos, um ou dois livros.
dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito Serão provavelmente ambos em verso, pois não
alto; e assim nem a ideia de mim fugido pode, na conto poder preparar qualquer outro tão depressa,
minha imaginacão, ter baloucos para esquecer a entendendo-se preparar de modo a ficar como eu
hora. quero.
Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu Primitivamente, era minha intencão começar as
estado de alma neste momento. Como à veladora do minhas publicações por três livros, na ordem
"Marinheiro" ardem-me os olhos, de ter pensado em seguinte: (1) Portugal, que é um livro pequeno de
chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por poemas (tem 41 ao todo), de que o Mar Português
interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito (Contemporânea 4) é a segunda parte; (2) Livro do
pequeno num livro com a brochura a descoser-se. Desassosego (Bernardo Soares, mas
subsidiariamente, pois que o B. S. não é um
Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que heterónimo, mas uma personalidade literária); (3)
lhe jurar que esta carta é sincera, e que as coisas de Poemas Completos de Alberto Caeiro (com o prefácio
nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que de Ricardo Reis, e, em posfácio, as Notas para a
me sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia Recordacão do Álvaro de Campos). Mais tarde, no
irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de outro ano, seguiria, só ou com qualquer livro,
chávena - chia de aqui e de agora, e passando-se Cancioneiro (ou outro título igualmente inexpressivo),
na minha alma como o verde nas folhas. onde reuniria (em Livros I a III ou I a V) vários dos
muitos poemas soltos que tenho, e que são por
Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é natureza inclassificáveis salvo de essa maneira
inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que inexpressiva.
as frases absurdas dão uma grande vontade de