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A CORTE
DO NORTE
g u i m a r ã e s e d i to re s
lisboa
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Não sei porque falei de Juvenal. Mas, agora que falei dele, reparo
como é próprio dar-lhe lugar e que suba à tribuna: «As nossas
fantasias ofuscam-nos» – diz ele. «Com a nossa ênfase tudo acredi-
tamos: as grandes mentiras que a Grécia nos contou; que o Monte
Athos foi sulcado por navios e que o mar chegou a estar, em cer-
ta ocasião, tão coberto de trirremes, que por ele podiam rodar os
carros de combate.»
Quando as mentiras se fazem populares, é porque o povo não
está conformado com a verdade. A lenda encobre a frustração, e
por isso os homens são mais tristes.
Não vamos qualificar Rosamund na lista dos sonâmbulos de
Broch, que os colheu noutra dimensão social. Ela não se situava
entre dois mundos, curiosa e enfática quanto aos tempos moder-
nos, mas ainda revestida dos antigos valores agora investidos numa
táctica histórica que favorecia os regimes totalitários. Exemplo de
sonambulismo foi Pessoa, comprimido entre esses dois campos,
em busca duma unidade cultural com uma veemência que pres-
sagia o sentimento de culpa. A solidão e o desejo de romper e ao
mesmo tempo de perseverar no apogeu histórico já dividido, con-
duzem à explosão do irracional, ao desfecho apocalíptico que Pessoa
inventa na fragmentação dos heterónimos. De qualquer forma, o
totalitarismo em Portugal foi produzido por um critério pessoal
puramente educativo e sem necessidade de compensação face à
grande metrópole que desencadeia a neurose da ordem e da expiação.
Rosamund estava absolutamente só numa espécie de paraíso
que a culpa não contaminava. Não rejeitava nem negava o passado,
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«Não voltes atrás, cavaleiro, não faças tal tirania.» Rosamund sabia
que António José não voltava mais. As estruturas mentais altera-
vam-se e as dimensões de partida eram principalmente a posição
política, a atitude face à autoridade e a relação com o meio fami-
liar. Na ilha o fortalecimento da autoridade era favorecido pelo
desequilíbrio económico, que criava situações de submissão; e tam-
bém as grandes cisões nos costumes, a contestação de todos os dog-
mas e de todas as praxes como um direito ao risco, fomentavam
uma flexibilidade popular no tocante à família e aos seus recursos
educativos. A ilha estava protegida pela cintura de pedra atrás da
qual se percebiam os seus mitos e as suas figuras de resistência.
Além de que funcionava do exterior a perseverança activa do emi-
grante e o conteúdo aristocrático relacionado com as humilhações
duma autonomia articulando-se sobre o imperialismo desgastado.
A ilha era como um barco a que os ventos da sua arqueologia po-
diam desatar as amarras, dando origem a um voluntarismo vivido
como um jogo de azar. O momento voluntarista podia ser desen-
cadeado com a chamada histórica às situações de incerteza. Isso
aconteceu com a revolução do 25 de Abril. Já não se comparava o
Terreiro do Paço à Bastilha, mas, com o pretexto duma negação
sistemática do materialismo histórico, a utopia tirava proveito.
A ética da liberdade ia influir afinal na racionalidade burguesa,
que é essencialmente uma herança cultural. O indivíduo heróico,
que toma uma solitária decisão para vencer um destino que tem
o peso dum hábito, está a recusar a sua herança cultural e a pra-
ticar a revolução avulsa que preocupa os valores hierárquicos.
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978-972-665-529-9
depósito legal
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