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Introdução
Este trabalho trata do grotesco nos quadrinhos. Não apenas de uma hq que se caracterize
por algum aspecto grotesco, mas sim dos reflexos do conceito de grotesco indicado por
Bakhtin e confirmado por uma série de outros autores, que se aplica, em certos casos, nos
quadrinhos. Temos, neste contexto, transposições que se dão através das paródias em um
circuito que passa das manifestações diversas da cultura, mídia ou política – incluindo artes
sequenciais ou não – para os quadrinhos. Foram considerados, para a análise, os quadrinhos
que refletem este circuito.
Inicialmente, foi considerado e avaliado o conceito de grotesco de Bakhtin, bem como sua
releitura por outros autores como Muniz Sodré e Umberto Eco. Foram determinadas
algumas de suas origens e antecedentes desde a antiguidade e a era clássica, passando pelas
festas populares e costumes da Idade Média, e sua inserção e transposição para uma cultura
elitizada através, inicialmente, de Rabelais. Foram considerados também o
antropomorfismo e a fisiognomia, bem como as relações entre grotesco, sátira e caricatura.
Posteriormente, foram avaliados certos quadrinhos que refletem o conceito de grotesco,
como “Yellow Kid”, “Li’l Abner” e trabalhos diversos de Wally Wood e Basil Wolverton.
Por fim, foram analisados como os aspectos cruciais do grotesco podem ser processados
nos quadrinhos e de que forma o conceito se articula e se faz presente junto à estética
própria dos quadrinhos.
Características gerais
Sodré & Paiva (2002, p.11-15), em suas exposições introdutórias sobre o grotesco, indicam
as características que lhe seriam inerentes, como o cômico, o feio, o monstruoso, as
palhaçadas, o ridículo, as aberrações, as deformidades, o rebaixamento e os aspectos
bizarros tanto do aspecto físico como do comportamento humano. Relacionado, em grande
parte, a episódios desmoralizantes e associações a um humor negro ou à burrice, o grotesco
tem como decorrência uma visão preconceituosa, o riso e a fragmentação dos valores (Ibid,
p.16-18) – no ato de sua exposição. Destas características, a definição de rebaixamento
talvez seja aquela que melhor explique em poucas palavras a visão dos autores sobre o
grotesco.
Antecedentes
Bakhtin trata, em seu livro sobre Rabelais, das manifestações do grotesco na Idade Média e
sua transposição e transformação no Renascimento. Para ele, o grotesco envolve a
criatividade da cultura popular e o próprio povo. O carnaval, com suas regras opositoras à
cultura oficial, e o rebaixamento como duas constantes em seu realismo grotesco, com
independência da noção de obra-de-arte. Trata, portanto, de modos de expressão como
aqueles indicados por Baumgarten, que incluem afetações estéticas da vida social (Sodré &
Paiva, 2002, p.58), como a confusão, a desordem, a alegria em excesso e a exuberância das
formas. Balzac, de forma semelhante, colocava o carnaval como o centro da associação
entre humanidade e bestialismo, momento em que explodem paixões bestiais no homem.
Sob uma perspectiva bakhtiniana, contudo, devemos considerar também o aspecto crítico.
O grotesco se torna crítico na medida em que desafia. Assim o faz com o ridículo e o
cômico no espaço popular, conforme já percebera Bakhtin. É algo que ameaça
representações escritas ou visuais ou a idealização. “Pelo ridículo e pela estranheza, pode
fazer descer ao chão tudo aquilo que a idéia eleva alto demais” (Sodré & Paiva, 2002,
p.39).
Figura 10- Ilustrações 87 e 88 para os livros de Rabelais relacionados à Pantagruel. Francois Desprez,
1565.
Fonte: Pantagruel I, Disponível em http://bibliodyssey.blogspot.com/2006/06/pantagruel-i.html,
acessado em 15/01/2011.
Festas populares na Idade Média
As festas populares envolviam paródias grotescas dos plebeus que se davam nas
manifestações carnavalescas. Prevaleciam as representações grotescas do corpo através das
máscaras, as paródias à cultura sacra, liberdade de expressão e linguagem blasfematória.
Estas festas eram uma reação popular contra tudo o que era normalmente proibido e contra
as festas religiosas oficiais. Nos carnavais, as ordens e hierarquias podiam ser questionadas.
Vingava-se do poder feudal e eclesiático (Eco, 2007, p.140).
Das festas populares, algumas estavam relacionadas à Igreja, como a “festa dos loucos”
(Figura 11), “festa do asno” ou festas dedicadas a certos santos como São Lázaro. Nestas
festas, um dos elementos primordiais era a fantasia e a permutação dos graus hierárquicos e
a ridicularização do sofrimento e do medo em paródias. O bufão, por exemplo, era o rei
sagrado durante a “festa dos loucos”.
Figura 11- “The festival of fools”. Pieter Bruegel, 1570.
Fonte: The Feast of Fools, Disponível em: http://www.art-
wallpaper.com/2684/Bruegel+Pieter/The+Feast+of+Fools?Width=1024&Height=768, acessado em:
15/01/2011.
Apesar do carnaval ter sobrevivido até os nossos dias, muitas das práticas ali executadas se
perderam e se transformaram a ponto de ficarem irreconhecíveis, porém é a manifestação
que mais conserva aspectos das festas populares da idade média. O carnaval nesta época
remota se referia a festas de origens diversas que ocorriam em datas diferentes do ano. Com
o desaparecimento destas festas, coube ao carnaval – festa anual – acolher seus rituais,
atributos, efígies e mascaramentos, um reservatório das festas que deixaram de existir (Ibid,
p.190).
Bakhtin (1977, p.61-62) indica a prática do riso no renascimento como determinada pelas
tradições da cultura popular da Idade Média, onde o riso tinha um caráter regenerador e
criador, com uma existência extra-oficial, com radicalidade e liberdade. Contudo, as
manifestações do riso e certas características grotescas também estavam presentes mesmo
nas festas populares associadas à Igreja.
“Ao proibir que o riso tivesse acesso a qualquer domínio oficial da vida e das idéias, a Idade
Média lhe conferiu, em compensação, privilégios excepcionais de licença e impunidade
fora desses limites: na praça pública, durante as festas, na literatura recreativa. E o riso
Medieval beneficiou-se com isso ampla e profundamente” (Ibid).
Rabelais
Figura 13- Página de título para versão inglesa de “The works of Rabelais”. Gustave Doré, 1894.
Fonte: Ibid.
Rabelais, as “partes baixas” e o excremento
Figura 14- Ilustração para versão inglesa de “The works of Rabelais”. Gustave Doré, 1894.
Fonte: Ibid.
Na sociedade ocidental, o homem se mostra incomodado por tudo aquilo que é
excrementício ou ligado ao sexo. Desde a Antiguidade, as referências ao pênis se investiam
de obscenidade, feiúra e comicidade (Figura 15). Tinham na figura de Príapo um símbolo
(Eco, 2007, p.131-132) do desfigurado pela prática sexual excessiva, expressão do desprezo
e da desconfiança do mundo feudal e eclesiático em relação ao camponês. “As
deformidades do aldeão eram apreciadas com sadismo e ria-se deles e não com eles” (Ibid,
p.137).
Figura 15- Ilustrações 6 e 7 para os livros de Rabelais relacionados à Pantagruel. Francois Desprez,
1565.
Fonte: Pantagruel I, Disponível em http://bibliodyssey.blogspot.com/2006/06/pantagruel-i.html,
acessado em 15/01/2011.
Nas representações, a presença do excremento podia ser percebida. A expressão “bosta pra
ele”, por exemplo, era uma expressão muito popular na época de Rabelais, por ele incluído
no prólogo de “Gargantua”. Seu uso teria, segundo Bakhtin (1977, p.128), um significado
ambivalente, pois a zona dos órgãos genitais é onde se fecunda e dá a luz, e assim
conservava uma relação substancial com as noções de nascimento, fecundidade, renovação
e bem-estar. Trazia também a idéia de uma materialidade e corporalidade do homem e sua
ligação com a terra (Ibid, p.195). O ato de defecar sem controle, por outro lado, estaria
relacionado ao estado de pavor (Ibid, p.150).
Hoffman (apud Berger, p.49-50) enxerga este processo como paradoxo e Berger (1969,
p.133) considera as definições de caricatura de Kayser – o grotesco ou exagero ridículo,
distorção de partes ou características – como forma de aproximar os conceitos de caricatura
e grotesco.
Contudo, para Ernst Kris e Gombrich (apud Berger, 1969, p.133), algumas caricaturas são
apenas trocadilhos visuais. Estes, em “Li’l Abner”, como prática do grotesco, são
reforçados por comportamentos correspondentes, como ocorre com o personagem J.
Roaringham Fatback (Figura 17), que se parece com um porco e que age como tal, ao ser
ganancioso. Expõe-se, aqui, uma personalidade ou figura política ao ridículo através da
comparação de sua aparência com a de alguma forma ou criatura. A caricatura política
nasceu assim, com ênfase nas feições grotescas ou malignas, onde o adversário era tratado
como monstruoso.
Berger (1973, p.200), contudo, aponta uma diferença de alcance entre a caricatura e o
grotesco. A primeira serviria para atacar um indivíduo, ao distorcer algum aspecto de uma
pessoa. O grotesco, por outro lado, seria um ataque à sociedade, simbolizando alguma
distorção moral criada pela própria sociedade.
Outras definições
Para Victor Hugo (apud Sodré & Paiva, 2002, p.31-32, 42, 46-47), em sintonia com o
pensamento de Rabelais, o grotesco existe na natureza e no mundo e oferece um caminho
de irrupção do pagão e do aberrante nas representações figurativas. O cômico e o estranho
provenientes da cultura popular seriam incorporados como estética culta também graças à
repercussão do texto de Hugo, fazendo com que o gosto clássico se rebaixasse ante a
genialidade do extravagante, do feio e do incongruente. Critica a instituição artística,
chocando e provocando um mal-estar, de modo a indicar a intenção de uma mudança, onde
deveriam ser enterradas as formas simbólicas do passado. Assim, o grotesco funciona para
ele como categoria estética, como re-interpretação culta da espontaneidade popular. Estava
em sintonia com o conceito de disgusto muito em voga em seu tempo, uma reação contra
doutrinas moralistas afins com a hegemonia política da burguesia.
Wolfgang Kayser (apud Sodré & Paiva, 2002, p.54-56) indica o grotesco como categoria
estética não legitimada pela teoria hegemônica da arte, capaz de criar um mundo
desarticulado e estranho, uma constante supratemporal de algo negativo e tragicômico que
se repete ao longo da história de formas diversas. Surge a partir de sonhos, devaneios ou
visões desencantadas da existência, apresentando-se como jogo de máscaras ou
representação caricatural. Pode assumir formas fantásticas, horríficas, satíricas ou
simplesmente absurdas, sempre com uma composição que tende ao monstruoso. Para ele, o
grotesco teria como resultado um estranhamento decorrente dos efeitos do medo ou riso
nervoso a partir do contato do espectador com a obra-de-arte ou espetáculo.
Adeptos de uma estética do grotesco se posicionam contra uma pureza da forma (conforme
Horácio na “Arte poética” de Aristóteles) e da proporção (conforme o arquiteto Vitrúvio no
século I, que na época já condenara toda as manifestações estéticas do grotesco que lhe
eram coevas2)(Sodré & Paiva, 2002, p.21). Vasari divulga o pensamento de Vitrúvio no
século XVI, atribuindo ao grotesco um caráter de aberração, um universo onírico próprio
dos pintores com dessemelhanças com tudo o que se tinha de familiar: pedaços de corpos
despedaçados, incoerentes e absurdos (membra disjecta). Assim, temos uma definição de
grotesco que passa pelo disforme (conexões imperfeitas) e pelo onírico (conexões irreais)
(Ibid, p.29-30).
2
Só a depravação do gosto pode dar preferência a “hastes terminadas por flores, de onde saem meias-figuras,
umas com rostos de homens, outras com cabeças de animais” (Vitrúvio apud Sodré & Paiva, 2002, p.29).
Antropomorfismo
A partir da mistura entre homens, animais e riso, percebe-se uma intenção bem específica
do grotesco como categoria estética, podendo derivar para a escatologia, excessos
corporais, atitudes ridículas, paródias e rebaixamento de valores (Sodré & Paiva, 2002,
p.62).
Em termos figurativos, temos estas junções entre homens e animais com antropomorfismos
gerando não algo necessariamente feio ou bonito, mas uma força de expressão que gera
efeitos diretos no contemplador. Contudo, temos efeitos intencionais dos fisiognomistas
que, em práticas comuns durante a idade média, trabalhavam em cima de analogias e
interpretação de humores e caráter (Ibid, p.22-23).
Fisiognomia
A ciência da fisiognomia se presta ao grotesco na medida em que, por analogia, podem ser
construídas metáforas que visam a crítica relacionada a algum aspecto moral, através de
animais antropomorfizados ou de personagens com alguma característica que indique o
exagero.
No momento considerado como sopro inicial dos quadrinhos, nas tiras de jornal
Americanos no final do século XIX, podemos perceber algumas características bem
próprias ao grotesco. Em algumas tiras subseqüentes, este espírito persiste com mais força,
como nos trabalhos de Chester Gould e Al Capp.
A partir de 1948, Walt Kelly começou a publicar tiras diárias do personagem Pogo. Além
de trazerem personagens antropomorfizados como norma, personalidades públicas também
estiveram presentes nas tiras de Pogo com representações grotescas visando a crítica à
política Americana, incluindo “Simple J. Malarkey” para o senador Joseph McCarthy
(Figura 21) e o bode “Fido” para Fidel Castro.
Como prática da distorção e do antropomorfismo, mais do que uma prática crítica, temos
Basil Wolverton, que se faz presente com uma estética predominantemente grotesca, com o
bizarro e o humor se articulando. A partir de 1946 ao vencer um concurso para o desenho
de “Lena Hyena” na tira de “Li’l Abner” e posteriormente em trabalhos para a revista
“Mad” (na qual colaborou esporadicamente) e “Plop” (na década de 70), temos exemplos
diversos desta tendência. Neste viés, também foram realizadas paródias, como aquela da
revista “Life” onde “Lena Hyena” está presente como escolhida para a “garota mais linda
do mês”.
Figura 23- “Yellow Kid” aparece pela primeira vez no alto da sacada em “The day after ‘the glorious
fourth’ down in Hogan’s Alley”. Richard Outcault, 7/7/1895.
Fonte: The Yellow Kid 1895, Disponível em: http://cartoons.osu.edu/yellowkid/1895/1895.htm, acessado
em 16/1/2011.
O personagem “Yellow Kid”, com seu camisolão, parece ter escapado de um asilo. Traz
expressões de alegria ou sarcasmo junto ao pânico perceptível de outros personagens (Ibid,
p.26), um humor que mascara um desespero. Por trás das situações absurdas, temos um
mundo de angústia e dor. Uma exuberância grotesca que é ao mesmo tempo cômica e
ameaçadora em um testemunho da inadequação de nossa sociedade.
Uma das pranchas de “Yellow Kid”, “Mickey and His Friends Hobnob with Royalty”
(1897), traz Yellow Kid no trono do rei da Inglaterra, bem aos moldes do que se realizava
nas festas populares da Idade Média, quando o rei era representado pelo bufão (Figura 24).
Além disso, funciona de forma semelhante à proposta de transposição dos trabalhos de
Rabelais, reconstruindo práticas populares na mídia impressa, com influências dos
Vaudevilles, espetáculos populares que posteriormente caíram nas graças das elites,
absorvidas ou transformadas em outras manifestações culturais. Práticas populares em
“Yellow Kid” também se dão, de uma forma geral, na representação da linguagem com
erros e adaptações ao que seria um dialeto próprio local.
Figura 24- “Mickey and His Friends Hobnob with Royalty. Around the World with the Yellow Kid”.
Richard Outcault e Rudolph Block, 31/1/1897.
Fonte: The Yellow Kid on the paper stage, disponível em:
http://xroads.virginia.edu/~ma04/wood/ykid/imagehtml/yk_england.htm, acessado em 16/1/2011.
Temos aqui críticas aos preconceitos da prefeitura de Nova York contra as manifestações
esportivas populares; à pobreza; à superpopulação; à arte elitizada dos museus; às
vestimentas sofisticadas da elite; à urbanização; à forma de vida da classe trabalhadora; ao
abandono de crianças etc.
Com uma crítica social incisiva, como em “Yellow Kid”, temos a tira de jornal de “Dick
Tracy”, onde existe grande preponderância de uma representação do ser humano.
Nas descrições dos jornais, a vida dos gangsteres era maravilhosa, com muita saúde, jóias
exóticas e carros elegantes, legitimando o que antes eram tabus sociais, como o álcool
(durante a proibição), drogas e prostituição. O gangster se tornou um herói popular e
percebido como vencedor. Uma polícia corrupta também ganhou as manchetes como
contraponto às estórias de sucesso dos gangsteres. Assim, para aqueles impressionados com
o modelo carismático criado para os bandidos, os policiais seriam os verdadeiros vilões
(Ibid).
“Dick Tracy” emprega a violência para purgar a sociedade de suas impurezas. Grotesco e
crime são sinônimos na criação de Chester Gould. A junção de uma monstruosidade visual
à maldade não era novidade, porém não condizia com a glamourização dos gangsteres em
voga na época.
Os vários personagens estranhos que habitam a tira de “Dick Tracy” constroem, segundo
Berger (1973, p.121), um verdadeiro bestiário de monstruosidades criminais, demônios
representados graficamente para expor sua moral igualmente feia. O grotesco, segundo
Kayser (Ibid), existe nesta tentativa de invocar ou controlar os aspectos demoníacos do
mundo. Para Anderson (Ibid, p.122), os vilões incompreendidos também seriam
classificados como grotescos pela qualidade deformada de seu senso de verdade, sua visão
de mundo deformada. Exemplos de misturas antropomórficas em “Dick Tracy” incluem os
vilões “The Mole” (Figura 27), “Rhodent” e “Piggy”.
Figura 27- The Mole. Chester Gould, 1941.
Fonte: Ibid.
Ainda nas tiras em quadrinhos, temos o trabalho de Al Capp, que apresenta alguns aspectos
relevantes ao conceito de grotesco, como distorções, caricatura, exageros, incongruência,
artificialidade e feiúra. O que se percebe é que o grotesco em Capp, como ferramenta
estilística, contém uma crítica incorporada à sociedade, com tentativas conscientes em
direção à distorção, tanto nos desenhos dos personagens como em suas personalidades
(Berger, 1969, p.66).
Figuras grotescas estão presentes em “Li´l Abner”, como forma de protesto ao egoísmo e
conflitos que caracterizam o capitalismo em sua prática nos EUA. Estas figuras são
criações fantásticas – típicas do trabalho de Al Capp – que, pela virtude de alguma boa
qualidade, apresentam uma ameaça à sociedade 3. Os Kigmies (Figura 28), por exemplo,
são pequenos animais, parte pombos-correio, parte cachorro vira-lata, parte peixe, parte
balão e parte bola de futebol, que adoravam ser chutados. Após serem comprados milhões
de Kigmies, tendo em vista a diminuição da crueldade e dos conflitos do ser humano,
percebeu-se que só se atingiu o contrário. Assim, os Kigmies tiveram de ser isolados. Para
piorar, os Kigmes em sua reclusão descobrem o prazer de chutar, passando também a
chutar os seres humanos (Berger, 1969, p.16).
3
Para efetuar sua crítica, Capp se utiliza de paradoxos estabelecidos no nível verbal, como ocorre nos
anúncios na saga dos Shmoos: “Shmoos são ruins, pois eles são bons” (Berger, 1969, p.75).
Figura 28- Kigmies. Al Capp, 1949.
Fonte: Berger, Arthur Asa. Li’l Abner: a study in American satire. Jackson: University Press of
Mississipi, 1994 (1969), p. 18.
Das características físicas grotescas dos moradores de Brejo Seco (Dogpatch), temos
exageros gráficos, incluindo pés e mãos muito largos, corpos muito magros e altos ou
baixos e gordos; narizes largos, extensos, batatudos ou retorcidos; bocas muito largas, sem
dentes; lábios grossos ou carnudos; e mandíbulas protuberantes (Figura 29).
Figura 29- Personagens de Brejo Seco. Al Capp, 1949.
Fonte: Ibid, p. 141.
Capp (Berger, 1969, p.67) aponta seus objetivos com a tira, de criar suspeita e desrespeito
pelas instituições e seus valores, o que Berger (Ibid) especifica como uma crítica à
hipocrisia burguesa, através de uma visão cínica da natureza humana. Em “Li’l Abner”,
temos a representação de um conflito de classes – entre ricos e pobres – e um conflito
setorial – entre o urbano e o agrário. A classe dominante é uma elite superpoderosa que só
pode ser impedida por Chulipa (Mammy Yokun) (Figura 30), uma super-mulher com força e
bondade sobre-humanas e poderes mágicos utilizados para alcançar a justiça social (Ibid,
p.102).
Figura 30- Chulipa (Mammy Yokun). Al Capp, 1949.
Fonte: Ibid.
Como crítica aos padrões de beleza instituídos pela mídia, Capp propôs em 1946 um
concurso entre os leitores, para que estes desenhassem a mulher mais feia do mundo, “Lena
Hyena”. Foram enviados milhares de desenhos e a versão de Wolverton ganhou o concurso
(Figura 31). Por outro lado, a opulência sexual também é enfatizada na tira, pois temos a
presença de uma sucessão de mulheres glamourosas com grandes seios e decotes, podendo
soar como confirmação de um padrão de beleza ou uma crítica.
Basil Wolverton
Apesar de ter tido sua inserção de forma inusitada nas tiras em quadrinhos, Wolverton é um
artista de suma importância para as revistas em quadrinhos, por ditar de antemão uma
estética própria desde sua fase inicial. Suas hqs com “Spacehawk” (Figura 32), por
exemplo, foram publicadas entre 1938 e 1949 na “Circus Comics” e “Target Comics”. Já
traziam um aspecto que auxilia na construção de uma estética própria e do grotesco, as
fusões estranhas entre homens com aspectos animalescos ou máquinas, incluindo quadros
com conteúdos que parecem ter saído de um quadro de Bosch (Figura 33).
Figura 32- Página 1 de “Spacehawk and the Creeping Death From Neptune”. Basil Wolverton, 1940.
Fonte: Wolverton, Basil. “Spacehawk and the Creeping Death From Neptune”. In: Target Comics #5,
New York: Novelty Press, 1940.
Figura 33- Quadro de “SpaceHawk”. Basil Wolverton, 1940.
Fonte: Wolverton, Basil. “Spacehawk”. In: Target Comics #6, New York: Novelty Press, 1940.
Apesar de ter iniciado e continuado sua carreira de desenhista nas revistas em quadrinhos,
Wolverton teve sua inserção nas tiras em quadrinhos quando ganhou o concurso promovido
por Al Capp para “Li’l Abner”. Após o sucesso de “Lena Hyena”, motivo do concurso,
Wolverton foi contratado para desenvolver diversas caricaturas, onde pode colocar em
prática suas distorções bizarras (Figura 37).
Figura 37- “Miss Flentney Bunt”. Basil Wolverton, 1955.
Fonte: Basil Wolverton’s Miss Flentney Bunt. Disponível em
http://manishtama.blogspot.com/2009/12/basil-wolvwertons-miss-flentney-bunt.html, acessado em
16/1/2011.
Nas aventuras de ficção científicas por ele desenvolvidas, como “The eye of doom” da
revista “Mystic” #6, da editora Atlas, de 1951, a estética bizarra também persiste, com a
deformação de partes humanas, neste caso o olho, em destaque do corpo (Figura 38); e
monstruosidades com fusões e transformações de homens em animais em “Swamp
Monster” da revista “Weird Mysteries” #5 de 1953 (Figura 39).
Figura 38- Página inicial de “The eye of doom”. Basil Wolverton, 1951.
Fonte: Wolverton, Basil. “The eye of doom”. In: Mystic #6, New York: Atlas, 1951.
Figura 39- Página inicial de “Swamp Monster”. Basil Wolverton, 1953.
Fonte: Wolverton, Basil. “Swamp Monster”. In: Weird Mysteries #5. Mamaroneck: Archie Comics,
1953.
Na revista “Mad”, Wolverton teve espaço para publicar suas distorções em estado bruto,
como em “The Mad reader” (Figura 40) e na paródia da capa da revista “Life” (Figura 41).
Seu estilo, nesta publicação e nas outras, influenciou não só Robert Crumb, mas os
quadrinhos underground de uma forma geral, tanto que sua “Gjdrkzlxcbwq Comics”
(Figura 42), lançado em 1973, – da mesma forma que a hq “A nightmare scare” – parece
ser um trabalho realizado na época, quando traz, na verdade, trabalhos realizados
anteriormente.
Seguindo uma proposta estética semelhante a de Wolverton, porém com um viés crítico
mais perceptível, temos Wallace Wood. Ele foi assistente de George Wunder em “Terry
and the pirates” e de Will Eisner em “Spirit”. Como um dos artistas regulares da EC
Comics, na revista “Mad”, utilizou uma técnica pela qual ficou famoso, de preencher todos
os espaços com pequenas gags – piadas interpoladas na forma de desenho (Figura 45). A
prática do excesso já figurara anteriormente em outros de seus trabalhos, como “The
Shangai Chicken” da revista “Inside Crime” #3 de 1950 (Figura 46).
Figura 45- Seção da Primeira página de “Smilin' Melvin!”. Wallace Wood, 1952.
Fonte: Wood, Wallace. “Smilin' Melvin!” In: Mad #7. New York: Educational Comics, 1953.
Figura 46- “The Shangai Chicken”. Wallace Wood, 1950.
Fonte: Wood, Wallace. “The Shangai Chicken”. In: Inside Crime #3, New York: Fox Comics, 1950.
Das primeiras paródias da Mad, muitas eram referências a gêneros diversos de hq, como
terror e ficção científica da EC (Figura 48) ou tiras em que o próprio Wood trabalhou,
como “Terry and the Pirates” (Figura 49) e “Príncipe Valente” 4; encontros de diversos
personagens das hqs, como na revista “Mad” #56, “The Mad Comic Opera” (Figura 50); e
problemáticas que concernem à área dos quadrinhos, como “Superduperman” (Figura 51),
que tratou do processo aberto pela DC Comics contra a Fawcett em função da semelhança
do personagem “Capitão Marvel” com o “Super-homem”. Outras de suas paródias da época
incluíram adaptações como “O corvo” de Edgar Allan Poe. Mais tarde, a sua prática da
paródia se ampliou para todas as manifestações da mídia, cultura, atualidades e política,
incluindo as telenovelas e o cinema (Geissman, 2003, p.115-122).
4
Wood trabalhou apenas em uma prancha de “Príncipe Valente” – a de número 1762 de 1970 (Geissman,
2003, p.117).
Figura 49- Página de “Teddy and the pirates!” Wallace Wood, 1953.
Fonte: Wood, Wallace. “Teddy and the pirates!” In: Mad #6. New York: Educational Comics, 1953.
Figura 50- Quadros de “The 'Mad' Comic Opera”. Wallace Wood, 1960.
Fonte: Wood, Wallace. “The 'Mad' Comic Opera” In: Mad #56. New York: Educational Comics, 1960.
Figura 51- Página de “Superduperman!” Wallace Wood, 1953.
Fonte: Wood, Wallace. “Superduperman!” In: Mad #4. New York: Educational Comics, 1953.
Seguindo a mesma linha de Wolverton, entre 1965 e 1976, Wood também criou uma série
de monstros para figurinhas de chicletes, cartões, pôsteres e adesivos para a Topps, como
“Ugly Stickers” (Figura 52) e “Crazy cards”. Neste contexto, também foram realizadas
paródias de personagens de hqs, como “Prince Violet”, “The meekly Thase”, “The
Incridible Hunk” e “Blunder Woman”.
Uma crítica com uma predominância temática das “partes baixas” perpassou diversos de
seus trabalhos, principalmente aqueles do pré-underground e no próprio underground, como
“Pipsqueak Papers” (Figura 53), em que é travada uma guerra psicológica dos sexos em um
clima de conto-de-fada, “Dizzyland” na Zap #1, “Heroes Inc.” ou “Sally Forth”. Digno de
nota, contudo, é a presença de insinuações eróticas em outros trabalhos anteriores onde
normalmente não haveria espaço para este tipo de inflexão, como “The ogre of Paris” em
“Bold Stories” de 1950, “Six-gun Smith” em “Western Crime Busters” #7 de 1951 ou “The
Mad Horror Primer” na revista “Mad” #49 em 1959 (Figura 54).
Anúncios fictícios semelhantes aqueles presentes em “Yellow Kid” também tiveram espaço
na revista “Mad”, como aqueles realizados por Wood na série “If comic-strip characters
answered those little ads” (Figura 55).
Figura 55- “If comic-strip characters answered those little ads”. Wallace Wood, 1957.
Fonte: Fonte: Wood, Wallace. “If comic-strip characters answered those little ads”. In: Mad #35. New
York: Educational Comics, 1957.
Com sua revista “Witzend” #1 (Figura 56), fica clara sua postura em relação aos editores e
aos quadrinhos. Não deseja se adequar a estilos específicos e sim desenvolver um veículo
onde pudessem ser desenvolvidas hqs sem se prender a tendências específicas ou limites de
qualquer espécie, um espaço para veiculação de qualquer idéia relacionada aos quadrinhos
(Figura 57). Propõe fusões, como se vê de fato ao longo de seu trabalho, fusões que
redundam em algo de grotesco.
Das hqs de Barks com animais antropomorfizados da Disney, uma delas se destaca como
paródia dos costumes e da elite, de forma semelhante ao que se deu anteriormente na
revista “Mad”, nas tiras em hq aqui supracitadas e em “Yellow Kid”.
De acordo com Andrae (2006, p.257), Barks em “The beauty business” (Figura 58) (1966)
reage contra o controle de marketing editorial que visava uma adequação ao público,
conforme pesquisas realizadas. Ficou constatado que a revista “Walt Disney’s Comics and
Stories” teria um grande número de meninas como leitoras, que exigiam a presença mais
preponderante da personagem Margarida, com atualizações de figurino e maquiagem.
Assim, esta hq em questão é uma reação de Barks, onde a inclusão da personagem e um
enredo com vestidos e maquiagem foram permeados com uma proposta grotesca com
ênfase no deboche.
Figura 58- Quadro de “The Beauty business”. Carl Barks, 1966.
Fonte: Barks, Carl. “The Beauty Business”. In: Walt Disney's Comics and Stories #308. New York:
Gold Key, 1966.
Para manter as aparências perante as amigas, Margarida se preocupa com uma profissão
que conferisse status a Donald, diferente das profissões que ele assumiu nas últimas hqs
anteriores escritas por Barks, como carteiro ou gerente de hotel (Figura 59) (Ibid, p.259).
Na hq, até mesmo Donald está obcecado com o glamour.
Margarida resiste em se maquiar, o que seria uma exceção na cidade. Contudo, o que se vê,
a medida em que ela anda pela rua, é que ela é a única normal e todas as outras com belezas
sofisticadas são grotescas (Figura 61). Quando Margarida resolve se maquiar ocorre uma
transformação que chama a atenção para a linha tênue entre beleza e monstruosidade.
Figura 61- Quadro de “The Beauty business”. Carl Barks, 1966.
Fonte: Ibid
Alto-evolucionário
Sua possibilidade factível – muito além do que foi atingido na realidade – começa a ser
endereçada por Stan Lee em 1966, na revista Thor #134 (Figura 62). Temos aqui,
contudo, um reflexo de um futuro que se teme por parte da sociedade, que atinge graus
catastróficos com o personagem “Superfera” (Man Beast ou Super Beast) (Figura 63),
que “representa o fim da evolução... A melhor fera, combinada com o melhor homem”.
Figura 62- Capa de Thor #134. Jack Kirby, 1966.
Fonte: Lee, Stan. Kirby, Jack. Thor #134. New York: Marvel Comics, 1966.
Figura 63- Capa de Thor #135. Jack Kirby, 1966.
Fonte: Lee, Stan. Kirby, Jack. Thor #135. New York: Marvel Comics, 1966.
Antes disso, temos hqs de Stan Lee que tem a monstruosidade como tema, incluindo aquele
personagem que se pauta pelas transformações abruptas, “O incrível Hulk”, com críticas à
irresponsabilidade associada aos testes radioativos (Figura 64).
Nos quadrinhos underground, temos a estética do grotesco com grande presença, com uma
postura crítica muito mais incisiva do que ocorria nas hqs da Marvel Comics que lhe eram
coevas. Seus objetivos críticos são explícitos. Relaciona-se às manifestações sociais que
ganharam força na década de 1960. Defende-se, neste contexto, direitos a culturas próprias
com a naturalização de uma série de práticas antes consideradas proscritas, como o uso de
drogas e uma sexualização exacerbada. Com isso, os valores tradicionais são colocados em
cheque e, na prática do grotesco, o sexo deixa de ter um papel predominante no objetivo de
representação de desconforto, se acoplando à violência e ao humor.
Na chamada para a revista “Hydrogen Bomb Funnies #1” de Gilbert Shelton de 1970
(Figura 65), existe a nudez e a insinuação sexual no centro do quadro, porém, ao redor,
existem cartazes com propostas de ativismo político em um pólo e no outro, revistas em
quadrinhos e drogas. Em um quadro redondo inferior, temos uma mensagem do chefe da
policia secreta, condenando os quadrinhos. Todos os personagens aqui presentes trazem
feições com traços caricatos, como os Freak Brothers com suas feições características e
estilização hippie, e o chefe da policia representado com banhas excessivas na face.
Figura 65- Página de Hydrogen Bomb Funnies #1. Gilbert Shelton, 1970.
Fonte: Shelton, Gilbert. Hydrogen Bomb Funnies #1. São Francisco: Rip Off Press, 1970.
Seguindo a mesma tradição de Wolverton e Walt Kelly em termos de sombreamento
rachurado e características dos personagens, Robert Crumb traz, em seus trabalhos, críticas
a questões raciais. Ao transformar Angelfood McSpade, negra que vive nua com grandes
seios a mostra, em uma loura vestida – após transformação que envolveu mudança de
roupas, clareamento de pele e estudos da língua culta –, temos a clara insatisfação de seus
jovens amantes (Figura 66) (“Yellow Dog Comix” #13, 1969).
Figura 66- Tiras de Yellow Dog Comix #13 e 14. Robert Crumb, 1969.
Fonte: Crumb, Robert. Yellow Dog Comix #13 e 14. São Francisco: Print Mint, 1969
Figura 68- Página de “Ruby, the dyke meets the weedman”. Clay Wilson, 1970.
Fonte: Wilson, Clay. “Ruby, the dyke meets the weedman”. In: Zap #5. São Francisco: Apex Novelties,
1970.
Uma exploração do corpo em sua essência grotesca na representação está presente em “All
Meat Comics” na “Big Ass Comics #1” de 1969 - com fezes e distorções assumidas -
(Figura 69) ou na orgia que se transformou em campeonato internacional em “Snatch
Comics #1” de 1968 de Robert Crumb.
Figura 69- “All meat comics”. Robert Crumb, 1969.
Fonte: Fonte: Crumb, Robert. Big Ass Comics #1. São Francisco: Rip Off Press, 1969.
Outra sátira sexual relevante é aquela envolvendo “Wonder Wart-Hog” de Gilbert Shelton
em Zap Comix #4 (Figura 70). Trata-se de uma paródia de super-heróis – seres totalmente
assexuados -, em uma hq em que o personagem aparece pelado com um pênis microscópico
e um nariz gigante capaz de substituir a falta do pênis.
Figura 70- “Wonde Wart-Hog breaks up the muthalode Smut Ring”. Gilbert Shelton, 1970.
Fonte: Shelton, Gilbert. “Wonde Wart-Hog breaks up the muthalode Smut Ring”. In: Zap #5. São
Francisco: Apex Novelties, 1970.
Em alguns momentos, os quadrinhos underground parecem se posicionar na defesa de
certas causas e posicionamentos polêmicos para as gerações anteriores, como a questão da
virgindade, exposta na revista “Bakersfield Kountry Komics” de Larry Weltz de 1973
(Figura 71). Em outros, como em “A Word to you feminist womem” da revista “Big Ass
Comics” #2 de Robert Crumb (Figura 72), fica claro que não existe uma intenção em
assumir compromisso com movimento algum nem com nenhuma causa.
Figura 71- Quadro de “Bakersfield Kountry Komics” #1. Larry Weltz, 1973.
Fonte: Weltz, Larry. “Bakersfield Kountry Komics” #1. São Francisco: Last Gasp, Inc., 1973
Figura 72- “A Word to you feminist womem”. Robert Crumb, 1971.
Fonte: Crumb, Robert. “A Word to you feminist womem”. In: Big Ass Comics #2. São Francisco: Rip
Off Press, 1971.
Quadrinhos italianos
A emergência dos movimentos sociais na década de 1960 foi um fenômeno mundial, bem
como os quadrinhos que se articularam em torno de uma perspectiva política mais
combativa. Os quadrinhos italianos se inserem neste contexto, como se percebe nos
exemplos aqui apresentados.
A hq de Filippo Scòzzari “Un buon impiego” (Figura 73) se passa em um futuro não muito
distante na cidade Italiana de Bologna, quando a Itália passou a ser um estado de polícia
controlado pelo partido comunista. Temos aqui uma sátira carnavalesca do partido e o
presidente do partido comunista da Bologna, “Renato Zangheri”, tratado com sarcasmo. A
Bologna tinha sediado na época um dos protestos pivôs da ala alternativa esquerdista de
1977 e como conseqüência foi palco de um dos episódios de repressão policial mais brutais
da época, com uma mobilização de tanques – autorizada pelo chefe da policia – para conter
os tumultos (Castaldi, 2010, p.3-4).
Figura 73- Página de “Un buon impiego”. Filippo Scòzzari, 1977.
Fonte: Scòzzari, Filippo. “Un buon impiego”. In: Alter Alter #10. Milão: Milano Libri, 1977.
Castaldi (Ibid, p.5) indica as tomadas que favorecem à distorção como efeitos grotescos,
que estão presentes na hq como anatomias deformadas, e respingos de pincel que parecem
salientar uma “estética de lixo” (impression of filth) utilizada em diversos recursos gráficos
incluindo a tipografia e os balões (Figura 74).
Marcatti
Em 1988, no gibi “Ventosa”, Marcatti assume sua influência direta, Wolverton, e apresenta
um alfabeto com letras formadas por faces deformadas no mesmo espírito de certos
trabalhos publicados no renascimento (Figura 78).
Na década de 2000, na hq “Arte viva”, publicada na revista “Frauzio” #1, temos toda a
escatologia Marcattiana sendo utilizada para questionar o papel da obra de arte – todos os
lixos, degetos e substâncias derivadas de suas “partes baixas” foram incluídas em suas
pinturas – e também o discurso do artista como “papo furado, papo metido, arrogância,
presunção, prepotência, egocentrismo...” (Figura 79).
Figura 79- Página 13 de “Arte viva”. marcatti, 2001.
Fonte: Marcatti. Frauzio #1. São Paulo: Editora Escala, 2001.
“La discriminación en México” de Daniel Manrique
O trabalho de Manrique serviu para trazer ao leitor uma visão de realidade, história e
perspectiva social. Trazia 28 páginas com temas sociais de relevância para os descendentes
de Índios, saindo de uma perspectiva crítica oficial, sem um controle oficial. Utilizou uma
estética popular e uma metáfora sexual para descrever criticamente a interação entre a
globalização cultural e econômica nas vidas dos Mexicanos. Enfatiza duas dimensões da
experiência social que estão muito próximas: o corpo humano e a resistência. Indica a
situação política atual como resultante de um longo processo histórico, em que o Índio
perdeu sua identidade e foi subjulgado pelos espanhóis, avançando até a era atual quando o
líder Zapatista Subcomandante Marcos defendeu os direitos dos Índios e se colocou contra
o Neoliberalismo. Esta hq serviu como fomentador de uma discussão pública sobre as
atitudes descriminatórias contra a população indígena (Campbell, 2009, p.98-99, 108).
Temos na hq, uma inflexão que muito se assemelha aquela que se deu nas festas populares
da Idade Media, onde a nobreza e o clero eram criticados em paródias, com uma estética
que prevalecia na ênfase grotesca da figuração do corpo, no que Bakhtin define como
“funções baixas”. Temos, aqui, uma subjulgação destas funções corporais baixas no
domínio simbólico do rosto e da face. O corpo grotesco é evocado nos desenhos de
Manrique através da face com nariz fálico conferido ao poder oficial. Em um discurso
visual, as faces com nariz de pênis dos colonialistas mostram a referência Bakhtiniana
como estratégia de deboche, denunciando o domínio Europeu. A autoridade oficial é
reduzida àquela que fecunda e a penetração política e cultural do estrangeiro toma ares
característicos de uma violação sexual.
Conclusão
O grotesco se pauta, de acordo com uma ótica Bakhtiniana, pelo cômico e por um
rebaixamento ou perda dos comportamentos considerados como normais, uma comicidade
relacionada a algum tipo de deformação ou obscenidade, quando se diverte às custas de
alguém que se despreza ou como ato libertador em relação a algum opressor.
Assim, apesar dos gêneros outros com os quais os quadrinhos se alinhavaram, os comics
trazem em sua essência o cômico. Dos exemplos aqui analisados, as hqs com o “Alto-
Evolucionário” talvez sejam aquelas em que o humor esteja menos presente, apesar de
veicularem animais antropomorfisados, o que por si só – tendo em vista as práticas das
festas populares que vigoraram desde a Idade Média – já indicam um caráter cômico.
O ato de rir como forma de demolir as bases do pudor é uma estratégia da cultura popular
que também caracteriza com precisão alguns dos exemplos aqui enfocados. Em “Yellow
Kid”, o riso permite a articulação de uma crítica relacionada a um ato de desespero que se
dá na prática de uma série de ações caóticas inseridas no ambiente urbano. Temos aqui uma
ridicularização do sofrimento e do medo em paródias, com uma transposição de práticas
humorísticas do Vaudeville (Figura 81).
Figura 81- “The residents of Hogan's Alley visit Coney Island”. Richard Outcault, 1896.
Fonte: The Yellow Kid 1896. Disponível em http://cartoons.osu.edu/yellowkid/1896/1896.htm, acessado
em: 18/1/2011.
Em “Li’l Abner”, existe uma intenção clara em abalar os protocolos através do riso, o que
aqui se dá na forma da materialização de personagens grotescos que colocam em cheque os
valores institucionais e capitalistas (Figura 82). Esta estratégia, tendo em vista outros
objetivos críticos, também é utilizada em outros exemplos, como na revista “Mad”,
quadrinhos underground e a hq de Daniel Manrique.
Outra das características do grotesco, a feiúra, se faz presente nos quadrinhos como
representação de algo que se critica, tanto como objeto pelo qual se luta em defender –
como a população pobre em “Yellow Kid” (Figura 83) –, como objeto que se busca
depreciar – como o colonizador espanhol no trabalho de Daniel Manrique (Figura 84). Dos
exemplos enfocados, todos tratam, de uma forma ou de outra, do que seria feio. Nos
quadrinhos underground, contudo, temos um feio que seria socialmente construído, que
pode ser considerado feio segundo os valores tradicionais, como o hippie, o junkie ou os
hell’s angels. A feiúra, por outro lado, graças às imposições e prazos exigidos pelo nascente
mercado de gibis, caracterizou muitos dos trabalhos realizados na época, nos trabalhos
feitos às pressas e, por isso, sem muito cuidado com proporção e acabamento. Induz-se,
assim, a um tipo de estética própria que pode ser articulada em termos de sublime ou de
monstruoso.
Figura 83- Trecho de “A secret society initiation in Hogan’s Alley”. Richard Outcault, 1896.
Fonte: THe Yellow Kid 1896. Disponível em http://cartoons.osu.edu/yellowkid/1896/1896.htm, acessado
em: 18/1/2011.
Figura 84- Seção de “La discriminación en México”. Daniel Manrique, 1999.
Fonte: Campbell, Bruce. ¡Viva la historieta! Mexican Comics, NAFTA, and the Politics of
Globalization. Jackson: University Press of Mississippi, 2009, p. 112.
Apesar de ser uma constante nos exemplos aqui analisados, as aberrações não são uma
marca constante em todos os tipos de hq. As hqs infantis, por exemplo, se apresentam como
tendência purificada de qualquer tipo de aberração e, por outro lado, em pólo oposto, os
gibis de terror da EC Comics, bem como os outros gibis de terror, parecem tratar
exclusivamente de aberrações.
Estas aberrações e monstruosidade podem ser colocadas em contextos onde uma idéia ou
intenção de ridicularização pode ser enfatizada, junto a rebaixamentos – objetivo certo
desta ridicularização. Em “Yellow Kid”, por exemplo, são ridicularizados costumes e a
cultura da elite, o que também ocorre de forma semelhante em “Li’l Abner”, nos costumes
herdados das práticas capitalistas incorporadas pelos habitantes de Brejo Seco. Por outro
lado, pode-se ridicularizar também o inimigo com uma caracterização bizarra ou com
alguma antropomorfização, como ocorre nos vilões de “Dick Tracy” ou na representação
do colonizador espanhol na hq de Daniel Manrique.
Uma evidência das “partes baixas” nos quadrinhos se dá no gênero erótico. Uma inflexão
deste tipo de representação em direção ao grotesco está presente nos exemplos citados, no
trabalho de Daniel Manrique e em certas hqs underground como as de “Wonder Wart-hog”,
onde o nariz assume o papel de falo.
Figura 88- Quadros de “Poly and her pals”. Cliff Sterret, 1927.
Fonte: Blackbeard, Bill. Williams, Martin. The Smithsonian Collection of Newspaper Comics. New
York: Harry N. Abrams, 1966.
Figura 89- Crack. Roy Lichtenstein, 1963.
Fonte: Roy Lichtenstein 1923-1997, Disponível em http://www.artfacts.net/en/artist/roy-lichtenstein-
1892/artwork/crack-10656.html, acessado em 18/1/2011.
Os quadrinhos passaram a servir como elo de ligação entre uma cultura popular e outra
erudita, tanto pelo interesse suscitado – graças ao material diverso veiculado,
principalmente em revistas mensais ou semanários – como pela presença de artistas de
áreas diversas. A revista italiana Cannibale trouxe neste sentido uma imagem significativa
de um jovem que se devora com garfo e faca, os quadrinhos com uma estratégia meta-
discursiva e a cultura iconográfica pop (Figura 90) (Castaldi, 2010, p.7).
Figura 90- Capa da revista Cannibale. Liberatore, 1977.
Fonte: Cannibale magazine. Disponível em http://www.jahsonic.com/Cannibale.html, acessado em
18/1/2011.
Representações nos quadrinhos com uma mistura entre arte popular e erudita que envolva
um caráter grotesco, contudo, tende a possuir um caráter pontual, em casos como aquele
onde “Yellow Kid” é inserido em um museu e critica a noção de obra-de-arte (Figura 91),
onde temos também referências à commedia dell’arte e à noção carnavalesca de grotesco –
em termos de excesso, espontaneidade e chacota com a realeza (Figura 24).
Figura 91- “In the Louvre - The Yellow Kid Takes in the Masterpieces of Art”. Richard Outcault, 1897.
“Yellow Kid” traz de fato também uma referência às balbúrdias das festas populares, o que
se pode perceber também nas grandes concentrações de elementos e conflitos grotescos
veiculados na revista “Mad” e em certos trabalhos do underground, como aqueles de Clay
Wilson, Robert Willians e Victor Moscoso. Estes dois últimos são autores que também
contribuíram para aproximar os quadrinhos das artes plásticas e design.
Neste momento do surgimento dos gibis, podemos contar com trabalhos como os de
Wolverton, que apontam para uma estética do grotesco em meio a esta “arte do lixo”,
ajudando a compor, desta forma, um panorama estético dos quadrinhos, juntando o tosco ao
monstruoso, se posicionando contra a pureza da forma e da proporção.
Bibliografia
Andrae, Thomas. Carl Barks and the Disney Comic Book: unmasking the myth of
modernity. Jackson: The University Press of Mississipi, 2006.
Berger, Arthur Asa. Li’l Abner: A study in American satire. Jackson: University Press of
Mississipi, 1994 (1969).
Campbell, Bruce. ¡Viva la historieta! Mexican Comics, NAFTA, and the Politics of
Globalization. Jackson: University Press of Mississippi, 2009.
Castaldi, Simone. Drawn and Dangerous: Italian comics of the 1970s and 1980s. Jackson:
The University Press of Mississipi, 2010.
Cioffi, Frank. Disturbing comics: The disjunction of Word and image in the comics of
Andrzej Mleczko, Bem Katchor, R. Crumb, and Art Spiegelman. In: The language of
comics: word and image. Edited by Robin Varnum and Christina T. Gibbons. Jackson: The
University Press of Mississipi, 2001.
Lavater, Johann Caspar. Essays on Physiognonomia, London: William Tegg and co, 1850
(1772).
Roberts, Garyn. Dick Tracy and American Culture: Morality, mythology, text and context.
Jefferson: McFarland & Company inc. Publishers, 2003 (1993).
Sodré, Muniz. Paiva, Raquel. O império do grotesco. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2002.