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Um Gajo

Porreiro

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“You Are Innocent When You Dream”
Tom Waits – Frank’s Wild Years

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- Só os namorados se beijam na boca!
É uma bela frase. Explícita, directa, sem margem para enganos. Nós não éramos
namorados, logo, a boca dela estava-me interdita. "Porreiro!", pensei. Ao menos posso
beijá-la na cara, nos olhos, no nariz, nas orelhas… Todo esse campo facial dava-me um
prazer tremendo, e eu sabia de antemão que a boca estava verboten! como dizem os
alemães. Mesmo assim, todas as noites tentava a minha sorte. Medo tens tu, mas a
vergonha é de cão, reprimia ela a rir.
Umas vezes fintava-lhe as voltas da cara, driblava pelas bochecas mas só conseguia
acertar num dos finos cantos da sua boca. - Bandido! - chamava-me nessas alturas.
Outras vezes chamava-me coisas piores e dizia que eu a violava, de brincadeira, mas eu
não resistia; tinha que beijá-la na boca, era um objectivo e prontes. Só me faltava aquele
pedacinho de cara. É incrível como uma relacão se define por uns meros centímetros de
face. Acesso completo a 95% da cara e somos amigos, toca-se na boca e ai meu deus…
Já estamos namorados em vias de casar. O que me dava gozo, era este tipo de
brincadeiras devolverem-me momentâneamente a adolescência; beijinhos inocentes aqui
e ali e todo um jogo de sedução urgente.
O pior de tudo era tê-la por perto e não poder apertá-la com toda a força da paixão que
me arrebatava. Era uma criança diabética numa loja de doces, um piromaníaco num
festival de fogo de artíficio: sem poder lançar um foguete nem atear fogo a nada.
Ela mantinha a distância politicamente correcta de quem diz na boca não. O que eu não
daria todas as noites para poder ultrapassar essa barreira ignóbil. Todas as noites
chegava a casa frustrado, ainda não foi desta, e lá ia mantendo a vã esperança de que na
noite seguinte a coisa correria melhor. Mentira. Tudo mentira. Nunca correu melhor.
Éramos "amigos" e prontes. “Amigos” é o eufemismo que as mulheres usam quando nos
querem dizer: Vê, aprecia, elogia, mas não toques. E eu, qual condenado, com a
maldita amizade carimbada na testa, seguia todas estas normas e regras incongruentes, e
sofria como só os amigos sofrem. Sabia que aquilo tinha de acabar mas faltava-me a
iniciativa. Até ao dia em que resolvi mudar as coisas.

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A princípio fiquei contente. Era o primeiro contrato que me outorgavam, sinal que já
confiavam em mim, ou então, que me queriam por à prova. Depois, passada a excitação
inicial comecei a ficar nervoso; afinal, era o primeiro ser humano que tinha de "limpar".
Não é de um dia para o outro que se elimina assim, um nosso semelhante, como se nada
fosse. Deram-me um trabalho simples para me testarem, o que era de se esperar. Sabiam
que eu era um moço novo e que provavelmente hesitaria na hora H. Por isso mesmo
escolheram uma pessoa “ao calhas”, como quem aponta o dedo às escuras para a lista
telefónica. Calhou-me uma senhora doutora médica. Olha que a escolha não foi de todo
descabida, pensei. Assim como assim, sempre fui avesso aos profissionais de saúde em
geral. Vai daí que comecei a mentalizar-me da ideia de mandar uma salvadora de vidas
para a outra vida. Como qualquer profissional da minha área resolvi fazer uma pequena
pesquisa, e se bem o pensei, pior o fiz.
Passei duas semanas a rondar o consultório antes de conseguir aproximar-me da porta.
Aqui tenho de fazer um parêntesis para confessar que só entrei nesta profissão por uma
questão de honra, da minha família, não da minha. O que eu queria era ser bailarino.
Bom,…Onde é que eu ia? Ah! Pois, andava a estudar minuciosamente a vítima, o que
era uma tremenda mentira, eu estava era acagaçado como tudo.
No dia em que finalmente entrei no consultório, ela, falou-me simpática (como se não
fosse esse o trabalho dela) e ainda por cima sorriu e apertou-me a mão, a parva. Mas por
que raio é que aquela mulher se lembrou de me sorrir? Eu que não estava nada habituado
este tipo de simpatias, ainda para mais vindas de uma mulher, e doutora, fiquei logo
encabulado. Ai, ai, que isto não vai acabar bem.
Perguntou-me do que é que eu me queixava, e eu, nem menti e disse que sentia falta de
ar e palpitações (nervosismo de principiante).
Podia tê-la morto logo ali com a minha pistola com silenciador, mas não, deixei-a
auscultar-me, medir-me a tensão, percurtir-me as costas, ouvir a ressonância dos meus
pulmões de fumador, mandar-me dizer 33 três vezes, e segurar-me no pulso com tal

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leveza, que me pareceu haver ali qualquer coisa de sensual. Mesmo agora, pensei outra
vez: podia matá-la... Mas isto está a dar-me um gozo um tanto ou quanto esquisitóide".
Sem dar por isso tinha começado a afastar-me do alvo/objectivo e aproximar-me dos
dois alvos do objectivo que, involuntáriamente, de vez em quando roçavam nos meus
braços.
Acabados os trâmites de um exame normal, diz-me ela, com um sorriso que nunca antes
havia visto (eu cresci entre rufias e mulheres de bigode) que, aparentemente nada de
anormal se passava comigo, talvez um pouco de ansiedade.
- Vá descansado, está tudo normal, se os sintomas persistirem, volte cá - disse-me
enquanto esticava aquela mãozinha capaz de tirar do sério o Dalai-Lama. Pois, pois, 'tá
tudo normal, eu bem me parecia que isto ia correr mal. Dei por mim à porta do
consultório todo embeiçado pela “parva” da Médica.
Belo começo para um assassino contratado, ruminei mal humorado, já me fodi outra
vez…Ai que saudades das aulas de dança.

...

Os meus contratantes nunca chegaram a perceber o que se passou. Ou melhor,


perceberam perfeitamente, a médica não tinha morrido e, era só. Eu, homem com mais
instintos para o bailado clássico do que para a festa brava, confessei-lhes que não tinha
encontrado coragem para a aniquilar e que para além disso ainda me tinha mais ou
menos apaixonado por ela.
- Ah! Compreendemos perfeitamente - Depois espernearam, gritaram e quase que me
limparam o sebo logo ali; só não o fizeram, porque eu era o filho do pai do padrastro do
Mestre Zé Filipe, homem de honra, que eles tinham em grande consideração.
Cortaram-me no entanto, o dedo mínimo direito, porque sabiam que era com esse dedo
que eu escaranfuchava o nariz. Era uma prática comum, decepar as extremidades dos
mancebos que goravam as expectativas do conselho deanciãos, por isso não estranhei
tanto como me recriminei pela tamanha falta de profissionalismo.

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- Eu não te disse que esta merda ia dar pró torto – admoestei-me.

Perante a vicissitude de me encontrar com um dedo a menos e uma ferida mal


cauterizada que ameaçava infectar, vi-me assim com um belo pretexto para voltar ao
consultório da minha recente exaltação.
A mulher ficou branca quando me viu. - Ossos do ofício doutora, ou neste caso, a falta
deles - sempre fui muito bem disposto, mesmo sem um dedo.
Esta mulher médica, era uma daquelas mulheres (como quase todas) cujo sentido
maternal vem ao de cima sempre que encontram uma pobre ave de asa partida,
maltratada, azarada e acabrunhada, como eu. Senti que também ela desta vez nutriu uma
espécie de interesse por mim. Interesse mórbido é certo, mas interesse, o que já é
qualquer coisa na minha terra. Foi um interesse daqueles que depois se pode contar às
amigas, como quem fala do homem elefante; nem sabem o doente que ando a tratar
agora...O desinteresse interessado. Eu cá meti na cachamorra que havia algo no olhar
dela que se podia considerar de um certa reciprocidade.
No seguimento das consultas, por mor do meu dedo, entre uma dor de ossos, uma falta
de ar e uma auscultação, soube trazer à conversa, com a manhosidade que me era
particular, assuntos mais informais; como fossem a literatura, a música, o bailado e outro
tipos de artes que nunca dominei. Sucedeu que ela, como doutora educada que era,
partilhava das mesmas dilecções que eu (ainda que as minhas fossem inventadas). A
pouco e pouco, e sem que fosse consciente, pelo menos da parte dela, cersceu entre nós
uma estima peculiar. Não era apenas a cordialidade tácita entre clínico e paciente. Era
outra coisa. Já tinha ouvido falar em situações deste género, e talvez tenha assistido a
uma ou duas nalgum filme americano, mas neste caso desejava que fosse a realidade.
Várias consultas depois, que marquei graças a sintomas verdadeiros e outros inventados,
escarrapachou-se-me na ideia de que se calhar era capaz de ter sorte com esta miuda.
Encontrava-a às vezes na rua porque na realidade a perseguia todos os dias, e quando

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ocasionalmente/de propósito nos cruzávamos, eu gritava logo, possuído de um frémito
alvoroço: olá doutora! Ao que ela respondia com um sorriso um tudo nada maroto,
completamente diferente do obsequioso que exibia nas consultas. Isto enchia-me de
confiança. Ela era extremamente sexy e bonita e tinha aquele sorriso que não me canso
de dizer desarmava qualquer um.

Uma nuvem cinzenta, carregada de fel e mal-aventura, amaldiçoou o dia em que a minha
imaginacão falhou e os sintomas se me acabaram. Tecnicamente estava curado, se bem
que a verdadeira doença, a que ardia sem se ver, desatinasse agora mais do que nunca
(isto é tão Camões).
- Não há mais razões para voltares aqui - por esta altura já nos tratávamos por tu – Estás
curado. Julguei ver no seu olhar uma pontinha de tristeza, ou talvez não, talvez fosse
apenas um reflexo da própria minha angústia.
Com o tal aperto de mão que me apertou o coração, despedimo-nos - Até à próxima!
Naquele momento desejei ter todas as doenças que um homem pode ter; daquelas que
não matam mas que nos levam frequentemente ao consultório do médico, neste caso da
médica.

Só no grande sofrimento surgem as grandes ideias - disse alguém. Pensando melhor fui
eu mesmo que disse na linha anterior, mas adiante…
A doutora conhecia-me como um "oficial de limpeza". Foi o que declarei na primeira
consulta. Ela não percebeu a ironia e confundiu-me com um técnico de ambiente, vulgo
homem do lixo; e eu, para não ter que dar muitas explicações acerca de como perdera o
dedo mindinho, deixei andar. Eu sabia que não frequentava os mesmos ambientes que
ela, e, era impossível ela encontrar-se nos meus, até porque na verdade eu era um
assassino falhado.

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Vai daí um dia, possuído duma daquelas inspirações raras que só os poetas e os parvos
alcançam, eu próprio cortei o meu outro dedo mínimo, o da esquerda, aquele com que
costumava limpar o cerume das orelhas. Nem mais, irmãos e ouvintes, foi isso mesmo,
joguei o dedo fora e lá fui encontrar-me com a doutora, todo doente e infectado.
Foi um reencontro ansiado, da minha parte pelo menos. No entanto, ali mesmo,
enquanto era desinfectado e cosido, algo me sussurou que também ela acalentava afecto
por mim, ainda que agora eu só tivesse oito dedos.
Num assomo de coragem, a mesma que me faltou para a matar, enchi o peito de ar, disse
33 e convidei-a para tomar um café. E como quem não quer a coisa, como se fosse algo
corriqueiro do dia-a-dia: ela aceitou. Não renitente no entanto. Fez questão de ser ela a
escolher o sítio. Eu fingi que não percebi quando ela escolheu um lugar onde era
praticamente impossivel sermos vistos por alguém que fizesse parte do seu circulo de
amizades. Afinal éramos de classes bastantes diferentes: ela, uma mulher das ciências,
uma médica, e eu, um homem do lixo/assassino frustrado e mentiroso por sinal.
O lugar era recôndito, lá isso era, mas foi nesse bistro, que o meu mundo recomeçou;
desta vez a sério; a tal segunda hipótese que se fala por aí.
Tomámos várias vezes café no tal bistro, onde falámos sobre tudo e mais alguma coisa.
Menos de trabalho. Trabalho era tabu. Ela ao mesmo tempo que não queria falar do dela
evitava que eu abordasse o assunto do meu, ou o que ela pensava ser o meu.
Pelo menos uma vez por semana lá estávamos caídos, muito interessados um no outro,
como dois animais que se vão descobrindo através do cheiro. Não eram poucas as vezes
em que o dono do estabelecimento se via na obrigação de nos mandar embora, ainda que
delicadamente. Tornou-se tal a rotina que comecei a desabituar-me dos meus poisos
naturais, daqueles que faziam a minha vida real, que era agora a minha segunda vida ou
vice-versa.
Agora, quando frequentava as tascas e os bordéis onde gravitavam os meus colegas, já
não conseguia encetar conversa com ninguém. As tertúlias giravam sempre à volta dos
mesmos temas: quem tinha a maior arma, quem tinha mais alvos abatidos, quem tinha a

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maior mira telescópica, quem conseguia mandar uma escarreta mais longe;
comparavam-se o tamanho das unhas do dedo mindinho, etc…
Afastava-me deles e sentava-me sozinho, ao canto do bar. Dizia boa noite quando
chegava e bom dia quando saía. Tornei-me por isso, de forma natural, o alvo preferido
da sua chacota. Para eles eu era o "acabado antes de ter começado", o piça mole, o pinga
amor e outras tantas que agora não me vêm à memória. É incrível, pensei, como as
pessoas que se ambientam à sua própria miséria, têm o dom de sentir inveja de outros, só
porque estes se tornaram um nadinha mais felizes. Foi naquele habitat, que na altura já
não me era tão natural, que cheguei à conclusão que, um homem do lixo deficiente mas
respeitável tem menos crédito na sociedade que um assassino implacável.

Sempre detestei os domingos, já o afirmei em diversas ocasiões. O domingo p'ra mim é


um dia estúpido que nunca deveria ter sido inventado. Só os parvos, os tristes, os
cristãos é que têm domingo. Pelo menos a solenidade que ele acarreta, e isto diz tudo
sobre os domingos.
Pois foi exactamente num domingo, para grande surpresa minha, que recebi o
telefonema da doutora a desafiar-me para um passeio. Não para tomar café no bistro e
conversar, não. Um passeio a sério. Eu disse que sim sem pensar. Sem pensar que era
um Domingo. Ela veio buscar-me a casa no seu carro e lá fomos. Foi um dia perfeito
que registei no meu diário de assassino medricas. Para vossa melhor compreensão
transcrevo aqui partes desse meu memorandum:

[ …] E fomos ver as esculturas de areia, o que foi engraçado porque ela


pensava que e eram na praia. As esculturas eram lindas, mesmo aquela que
parecia que o soldado romano 'tava a cagar. Depois fomos ver discos a um
centro comercial qualquer. Eu aconselhei-a e ela comprou um disco de blues.
Acho que não gostou muito quando o ouviu, mas foi simpática e disse que tinha

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gostado. O que foi bonito. Quando não há amor mas existe humor e simpatia
nem tudo 'tá perdido! […]

Such a Perfect Day, I'm glad I spent it with you - cantou o Lou Reed no dia em que
encontrou heroína de qualidade, e foi exactamente assim que me senti naquele dia.
Depois o tempo acelerou. Tenho a percepção de uma correria, um àpice, um dia de neve
a meio do Verão.
Começámos a sair juntos regularmente, a bares, cinemas, tertúlias (a sério), concertos e
sei lá eu mais o quê. Num dia de embriaguez descuidada, chegámos a andar de mãos
dadas e tudo, às escondidas é certo.
Apresentou-me aos seus amigos, o que diga-se, espantou-me deveras. Nunca me
apresentava como homem do lixo ou técnico de ambiente, como era de prever, porque
tinha vergonha. Antes inventava nomes fantásticos como: Gestor Ambiental, Supervisor
de Reciclagem Aplicada, e aquele que eu gostava mais: Técnico Superior de Eliminação
de Detritos Originados Pela Humanidade. Eu entendia-a perfeitamente. E até gostava. A
candura com que ela disfarçava o que julgava ser a minha condição social, em vez de
repulsa, comovia-me. Aquela miuda esforçava-se ao máximo para me encaixar num
puzzle, que para além de já estar completo, eu nunca poderia vir a fazer parte. Eu, pela
minha parte, divertia-me com tudo aquilo. Observava toda aquela intelligentsia e de vez
em quando apetecia-me matá-los a todos… Ainda assim fiz alguns "amigos".
Todas as noites ela levava-me a casa no seu carro. Eu mentia-lhe e dizia que não podia
conduzir porque uma vez que não tinha dois dedos, a Direccão de Viacção tinha-me
retirado a carta. Despedíamo-nos sempre com um beijo na face o que me deixava louco.
Uma bela noite de luar, eu, já ébrio q.b., atrevido e inconsequente, espetei-lhe com um
xoxo mesmo em cheio da boca. Ela ficou muito séria e eu saí do carro à pressa, lívido,
mudo e envergonhado como tudo. Pedi-lhe desculpas mais tarde, ao que ela retorquiu
que os beijos roubados eram os que sabiam melhor; o que me encheu de alento.
Muitos ensaios depois; à volta dos olhos, no nariz, na testa e por aí fora, eis que:
Splashhhh! CONSEGUI. Encaixámos um no outro que mais parecíamos um só. Uma

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sensação das mais puras que até à altura havia experienciado. Foi como se tivesse levado
um tiro na cabeça. Nunca antes tinha gostado de alguém como daquela miúda. Senti
naquele exacto momento que a minha vida se havia cumprido; o meu quinto império, a
minha saudade dada; afinal beijar era bem mais fixe do que disparar sobre alvos
incógnitos.
Os poucos meses que decorreram desde o beijo foram para mim como aqueles sonhos
em que parecemos estar a pairar sobre a cama, e somos leves como as nuvens e unos
com a mãe natureza. Daí o pouco que me lembro dessa altura, ou talvez não vos queira
contar tudo, na certeza porém de que qualquer um de vós já passou pelo mesmo.
Dias que não viverei mais sucederam-se uns aos outros, que é como eles normalmente
costumam suceder-se, o dia deu lugar á noite e a noite ao dia; a felicidade deu lugar à
rotina e a rotina ao aborrecimento e o aborrecimento, como se sabe é o pai de todos os
conflitos. E um dia, a parte submersa do iceberg assassino que havia em mim, veio,
despoletado sabe-se-lá porquê, ao de cima.
Discutíamos como qualquer casal de namorados normal (o que para mim era novidade).
A única diferença era que eu, nunca habituado a esta variante de felicidade, também não
lhe reconhecia o oposto. Não sabia lidar com tal tipo de frustração, não estava
preparado. Quando as coisas azedavam, instintivamente tentava sacar da arma que há
muito não usava e apontava-lhe o dedo indicador no ar como se fosse disparar. Isto
enquanto espumava de raiva. O povo diz que não há fartura que não dê em miséria e tem
razão. Deitei tudo a perder. Excedi-me e perdi-me. Desta vez a sério. Gritei-lhe como
quando discutia com os meu colegas de matança, invectivei, despejei impropérios nunca
antes ouvidos. Ela estranhou-me, deixou de me reconhecer. Eu observava a cena como
se estivesse fora do meu próprio corpo e não fazia nada senão desatinar mais ainda. Ela
foi suportando tudo até ao ponto em que me descontrolei de tal forma que a deixei
verdadeiramente assustada. Acabei por ouvir uma sentença que há muito me era
merecida:
- Tu não és quem eu pensava. Não te conheço. Não sei quem és. Não é isto que eu quero
para a minha vida.

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Adeus doutora, adeus boa vida.
Passado algum tempo consegui que ela saísse comigo uma noite. Hoje estou certo que só
acedeu ao meu pedido por boa educação. Mas já não foi a mesma coisa. Senti-a afastar-
se lentamente, em câmara lenta, como um barco que se afasta do farol. Pedi-lhe
desculpas, mas estas de tão desnecessárias nuncam deveriam ter sido proferidas. E ela
afastou-se,............afastou-se,..........................afastou-se,...................................afastou-se,
até que a dado momento era só um pontinho brilhante no horizonte, e depois o ponto
desapareceu e o farol apagou-se.

Voltei de orelhas baixas ao habitual retiro dos meus antigos sócios de armas. Tive que
suportar todo o tipo de “bocas” imagináveis, insultos e outras diatribes.
- Falhaste como assassino para ser amante e agora que falhaste como amante queres ser
assassino outra vez.
Ninguém me respeitava. Nunca havia iniciado a "carreira" e agora procurava consolação
junto de pessoas que não tinham a mínima consideracão por mim. Vinha à procura de
migalhas, diziam eles, e era verdade.
Reiniciei os treinos uma vez mais para esquecer uma vida que me tinha empurrado para
longe da vida a que agora regressava.

Arrumei a minha primeira vítima num dia de chuva. Depois seguiram-se a segunda, a
terceira, a quarta, a quinta, a vigésima, até lhes perder a conta. O meu coração
endureceu-se.
Hoje digo não! Convicto mas sem saber bem o que estou a negar.
Subi de posto, e tornei-me no mais duro dos duros. Não tenho pejo em matar crianças,
velhas, pais, mães, tudo o que me peçam. Perdi o hábito de falar com seres humanos e
irrita-me profundamente quando estes se me dirigem. Não consigo dormir porque tenho
medo. Quando durmo tenho sonhos maus. Só me sinto verdadeiramente bem na
matança; no espaço de tempo que decorre entre o premir do gatilho e a cabeça da vítima

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a explodir em pedaços de carne propalados ao vento. Apetece-me morrer mas não
consigo matar-me, sou cobarde demais para o fazer. E assim passei estes seis meses.
Soube entretanto que ela se enamorou de novo. Desta vez a sério. Com alguém decente
que lhe satisfaz os sonhos, um par de verdade. Alguém de quem não se envergonha e até
se orgulha.
Soube disto e julgando que o meu coracão não podia endurecer mais descobri o
contrário.
Em jeitos de sublimação, comecei a matar mais do que nunca. Mesmo sem contrato, só
por desporto, até os meus colegas se arrepiavam. Agora conquistara-lhes o respeito, e o
medo, o que é ainda mais importante. Quando mencionavam o meu nome mesmo sem
eu estar presente, faziam-no com uma certa deferência.
Chegou o Mundial de Futebol da Alemanha e toda a gente andava feliz. Multidões na
rua aos gritos e carros a apitar sempre que Portugal ganhava um jogo.
Na minha profissão é sabido que este tipo de eventos propiciam o aumento de contratos.
Devido á confusão, ao barulho, à distracção, às bebedeiras, tudo se torna mais simples; é
uma espécie de natal para o assassino contratado.
Num desses dias de euforia, recebi um contrato dos meus patrões. Era só mais um. Nada
de especial. Olhei para a fotografia e era um tipo normal, bem parecido, e até parecia ser
um gajo porreiro. Enfim, um caso vulgar.
Estudei o indivíduo, contei-lhe os passos, os hábitos e tudo mais… Escolhi o dia do
Portugal-Inglaterra para o abater. Pensei que, se Portugal ganhasse ele morreria feliz e
caso contrário, se Portugal perdesse, bom, acabava-se tudo na mesma. Coloquei-me
estrategicamente no alto do Hotel Eva, num sítio privilegiado defronte para a multidão.
Tudo indicava que era ali que alvo iria aparecer. Montei a minha remington sniper
special de raça lobo com mira telescópica e perscrutei toda a multidão com
panorâmicas para a esquerda e para a direita. No meio da euforia encontrei o alvo todo
contente; o Ricardo tinha defendido três penaltis. Apontei à cabeça , fiz cálculos ao
vento, calibrei a mira e comecei a afagar o gatilho. No momento fulcral, a milisegundos
do tiro fatal, de mais uma cruz na coronha da minha carabina, eis senão quando, surge

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no meu campo de mira, junto ao alvo, por coincidência ou por destino, como um sinal de
STOP na minha consciência, a alvura daquele sorriso de outrora; feliz porque sim e
porque tudo e porque nada. Os olhos enevoaram-se-me de memórias e não fui capaz de
desferir o "golpe final". É um gajo porreiro convenci-me. Arrumei a tralha e fui-me
embora.

Os meus patrões é que não foram em conversas. Era a segunda vez que vacilava, e desta
vez com prejuízo considerável.
Agora que o Mestre Filipe, que era enteado do filho do meu pai, já havia morrido,
ninguém se condoeu. Não me mataram. Fizeram pior; deixaram-me vivo. Como castigo
e exemplo para os outros, cortaram-me os dedos indicadores de ambas as mãos, e, à laia
de bónus cortaram-me também os polegares, impossibilitando-me para sempre a vida de
matador. Conclusão: perdi o emprego e nem tive direito a subsídio.
Hoje vagueio pelas ruas ao calhas. Canto músicas em voz alta, sozinho e sem propósito,
o que faz com que as pessoas pensem que sou louco. Fumo cigarros, muitos cigarros,
bebo whisky, muito whisky e às vezes vejo-a. Ela desliza pela rua como quem flutua e
não repara em mim. Não me admiro. Já não existo.
À noite vejo os quatro canais da televisão e fico com pena de já não conseguir disparar
uma arma. Bebo mais whisky para adormecer mas não consigo. Os fantasmas das
pessoas que matei visitam-se sempre e ficam a ralhar comigo até de manhã.
Só aos domingos consigo encontrar algum descanso, que é quando as almas penadas vão
visitar os seus entes queridos. Nestes dias visto-me de mulher e finjo que sou uma
bailarina; depois tomo comprimidos para dormir e antes de fechar os olhos, lembro-me
sempre que também eu já fui um gajo porreiro.

13/07/2006
El Matador

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